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China: O mais estrangeiro dos países estrangeiros

“O dragão despertou.”1 “A etiqueta chinesa privilegia a preservação da harmonia e evita todas as atitudes que possam levar a um confronto aberto. Para os chineses, a necessidade de manter uma certa ordem social é uma condição prévia para a resolução de qualquer conflito. Assim, é dever dos que se encontram em lugares de poder, antecipar e prevenir o aparecimento de confrontos potenciais: a decisão tomada há algum tempo pela hierarquia chinesa de mudar o protocolo, por forma a que o convidado estrangeiro não discurse nos encontros oficiais ao mais alto nível, é disto um bom exemplo.”2 “(...) Ludgero [Marques] tem uma explicação pessoal para o famoso conceito, um país, dois sistemas. Ele diz mesmo que o sucesso chinês assenta nesse modelo. Um sistema, o comunista, que é válido para os operários e trabalhadores que levam a sério a máxima leninista de cada um segundo as suas possibilidades. Só trabalham, não reivindicam. Não há horários, não há férias, os salários são baixos, o importante é produzir. Depois, o sistema capitalista para os dirigentes e empresários que seguem a lógica do lucro e da concorrência para impor os seus produtos nos principais mercados mundiais. Como adverte Ludgero, não vale a pena competir pelo preço – há sempre uma empresa chinesa que faz mais barato.”3 “A China vai mesmo para a economia de mercado. A referência ao socialismo é só para tranquilizar os mais conservadores – disse-me um veterano jornalista chinês.”4

A4 CAPÍTULO

1

Madrinha (2005a, p.5). 2 Trigo (1995, p. 5). 3 Castaflore (2005, p. 13). 4 Caeiro (2004, p. 52).

160

MANUAL DE GESTÃO TRANSCULTURAL DE RECURSOS HUMANOS

Principais questões abordadas no capítulo • Quais são as principais características da cultura chinesa? Em que medida a linguagem pictográfica, a ruralidade e o Confucionismo ajudam a compreendê-la melhor? • Quais as razões pelas quais os Chineses são “prudentes” relativamente aos estrangeiros? • Em que grau o yin-yang ajuda a compreender as complexidades e a “coabitação dos opostos” da sociedade chinesa? • Qual o papel que as reformas económicas encetadas por Deng Xiao Ping exercem sobre a sociedade, a economia e a vida empresarial chinesa? • O que significa o fim da “tigela de arroz de ferro”? • Por que razões a China é “o mais estrangeiro dos países estrangeiros”? • Quais as razões explicativas dos insucessos de algumas t ventures entre parceiros chineses e estrangeiros? • Em que medida os parceiros das t ventures perfilham “diferentes sonhos na mesma cama”? • Quais os efeitos do fim da “tigela de arroz de ferro” na GRH praticada na China? • Porque há sobrerrecrutamento nas empresas chinesas? Que outras especificidades (por exemplo, em termos de formação, promoção, compensação) caracterizam a gestão na China? • Que desafios a situação chinesa actual coloca à liderança nas empresas? • Porque podem os expatriados mais jovens sentir algumas dificuldades de desempenho na China? • Quais os principais factores de dissonância entre os gestores chineses e os gestores expatriados? • Qual a importância da “preservação da face” na China? • O que é o guanxi? Que implicações dele advêm para o trabalho dos expatriados e para a gestão? • Qual a diferença entre o bom e o mau guanxi? • Porque não é conveniente “retirar a ponte depois de atravessar o rio”? • Como podem os expatriados formar os gestores locais, tendo em vista que eles venham a substituí-los? • Em que medida a lógica negocial chinesa é distinta da lógica ocidental? • Por que razões, para os Chineses, os contratos não são para “cumprir a rigor”? • Porque é importante, na negociação, “preservar a face” da contraparte chinesa? • Quais as principais recomendações para negociar na China? • O que significa “mascar sementes de girassol”?


Vencer corridas com cavalos mais fracos

pretende ajudar o leitor a aprofundar as razões destas especificidades. Na senda do que foi aduzido no capítulo anterior, o texto sugere que as

“O Inverno, em Pequim, é sempre muito seco. A relva, nos

particularidades da GRH vigente na China, em-

jardins, parece palha (...). Mas, de um dia para o outro,

bora partilhem traços asiáticos, não permitem

em pleno mês de Fevereiro, a relva ao longo da Aveni-

argumentar a existência de um “modelo asiáti-

da Chang’ An ficou verde. O milagre ocorreu na véspera

co” de GRH. O texto está assim organizado:

da chegada dos inspectores do Comité Olímpico Internacional. ‘O líquido verde para embelezar a cidade foi

• Explana algumas das principais característi-

importado dos Estados Unidos e está aprovado pelo

cas da cultura chinesa: o pendor agrário, o

Centro de Protecção Ambiental daquele país. (...) Além

confucionismo, a orientação para a harmonia

de ter tingido a relva com um ‘spray ecológico’, o governo

interpessoal e a “preservação da face”, a har-

municipal ‘plantou’ milhares de flores de plástico e man-

monia dos opostos yin e yang, a prudência

dou pintar os edifícios de habitação.”5

relativamente aos estrangeiros, a importância dos relacionamentos pessoais na vida social e

Um camponês chinês tinha três cavalos, com

nos negócios (veja o testemunho de Manuel

distintas competências em corridas: um me-

Monge, na parte final deste capítulo).

lhor, um médio e um mais fraco. O Imperador

• Descreve as principais reformas económicas

também possuía três cavalos, com diferentes

encetadas por Deng Xiao Ping, que represen-

capacidades. Mas o melhor do Imperador era

tam a abertura do sistema económico chinês

mais rápido do que o melhor do camponês.

às regras do mercado e à lógica da competi-

O médio também era mais rápido do que o

ção global.

médio do camponês. E o mesmo sucedia com

• Mostra que, apesar do fim da “tigela de arroz

o seu cavalo mais lento, que era mais rápido do

de ferro”, o sistema económico e social chinês

que o mais lento do aldeão. Mas o camponês

continua a atravessar um período de transi-

ganhou duas das três corridas. Colocou o seu

ção que, pelas suas peculiaridades, coloca

mais fraco cavalo a competir com o melhor do

desafios muito particulares aos investidores

Imperador – perdeu. Colocou o seu médio com

estrangeiros.

o pior do Imperador – venceu. E colocou o seu

• Sugere que a fórmula mais comum de ingres-

melhor com o médio do Imperador – também

so das empresas ocidentais na China é a t

venceu. Se tivesse colocado os seus cavalos em

venture. E argumenta que esta via está pejada

competição de acordo com o ranking de cada

de dificuldades. Entre estas, salientam-se duas.

um, teria perdido todas as provas.

Primeira: a que resulta de os gestores ocidentais e os chineses viverem “diferentes sonhos

A lenda ajuda a compreender como as empresas chinesas vencem “guerras” e como o mun-

na mesma cama”. Segunda: a interferência das autoridades governamentais.

do ocidental tem, por vezes, dificuldade em

• Argumenta que a diferença de “sonhos” pro-

compreender a cultura chinesa.6 Este capítulo

vém de aspectos como os estereótipos que 5

Caeiro (2004, p. 241). 6 Xing (1995).

161

162


Chineses e Ocidentais formam mutuamente,

Enfatiza a relevância da confiança, da relação

a importância da senioridade na China, as de-

pessoal duradoura, do status dos negociado-

ficientes competências de gestão no país, as

res, da preservação da face, da flexibilidade

particularidades linguísticas e comunicacio-

contratual e da interdependência e dos ga-

nais, e a influência do Partido Comunista nas

nhos mútuos.

empresas. E sugere que os problemas de coo-

• Aprofunda a caracterização do guanxi, mos-

peração no seio da equipa de gestão podem

trando as suas duas faces. Na face positiva, ele

advir do enorme diferencial remuneratório

é um factor agregador da sociedade chinesa,

entre expatriados e Chineses.

um modo de lidar com a burocracia e a inefi-

• Explana as particularidades da gestão de pes-

ciência, um importante lubrificante para a vida

soas na China – nos planos do recrutamento,

social e a cooperação nos negócios. Na face

dos critérios de promoção, da escassez de com-

negativa, pode ser um factor que penaliza o

petências de gestão, da comunicação interna,

mérito e o desempenho, enviesa as decisões

da compensação e do processo de liderança.

políticas e empresariais, cria factores de nepo-

• Enfatiza a importância do guanxi (as redes de

tismo e corrupção.

relações interpessoais) na vida empresarial e

• Faculta recomendações às empresas sobre as

económica chinesa. Explica que o cultivo das

decisões que podem/devem tomar em maté-

relações pessoais na China é uma arte subtil .

rias de selecção, de formação, de preparação,

• Sugere que o trabalho árduo dos Chineses,

de compensação e de adaptação. Sugere a

embora contribua para a competitividade das

eventual vantagem de enviar dois expatriados,

empresas e seja uma vantagem para os inves-

não demasiadamente jovens, bem prepara-

tidores estrangeiros, pode raiar a escravidão e

dos tecnicamente e fortemente sensibilizados

criar problemas sociais e psicológicos de gran-

para a cultura chinesa.

7

de relevância. • Aponta linhas de orientação sobre o modo

O capítulo ajuda o leitor a compreender a cul-

como os expatriados podem formar/desen-

tura chinesa, o processo evolutivo que está em

volver colaboradores chineses, assim os capa-

curso, as particularidades económicas e empre-

citando para que venham a exercer funções

sariais do país – assim como as dificuldades, as

de gestão de topo nas filiais – quando eles (os

oportunidades e os desafios com que se de-

expatriados) regressarem.

frontam os investidores estrangeiros. Mostra

• Mostra como o estilo negocial chinês se dis-

que as linhas de eficácia no mundo empresarial

tingue claramente do estilo americano/oci-

ocidental não são necessariamente coinciden-

dental – e que daí podem resultar equívocos

tes com as vias de eficácia na China. Sublinha

e dificuldades de negociação sérias. Salienta a

veementemente a necessidade de os gestores

importância da dialéctica chinesa e a tendên-

ocidentais compreenderem a cultura chinesa,

cia dos Chineses para encararem os contratos

o modo de os chineses entenderem o “mundo”

como um ponto de partida – e não como

e as relações de negócio, e a importância que

um documento a cumprir necessariamente.

o contexto político-ideológico ainda exerce

7

Chan et al. (2003).


no país. Argumenta que não é prudente a con-

Preferem mentir a “perder a face” em

duta de gestores ocidentais que vão decididos

situações sociais melindrosas. A sua aparen-

a implementarem “receitas” ocidentais – pois

te indiferença ao sofrimento dos outros é

a probabilidade de fracasso é grande. Na Chi-

frequentemente baseada na sua autopreser-

na, é preciso compreender a importância das

vação. Por exemplo, se você oferecer ajuda a

relações interpessoais duradouras, do Partido

alguém envolvido num acidente rodoviário,

Comunista e das autoridades governamentais,

pode acabar por ser considerado culpado,

da harmonia interpessoal e da “preservação da

assim se prejudicando a si e à sua família. Os

face”, da dialéctica negocial chinesa, da con-

Chineses riem quando ficam embaraçados,

jugação dos opostos, do confucionismo e do

facto que pode ser problemático quando

guanxi. Jackson e Bak descreveram a situação

há crianças envolvidas. Por exemplo, a sua

de modo elucidativo:

criança é rude para com o filho de outra pessoa. Esta pessoa fica embaraçada, pelo que

“(...) Muitos problemas e fracassos das t ven-

ri. A criança pensa que tudo está OK, pelo

tures na China têm sido atribuídos a problemas

que continua a ser rude!!!

da área da gestão dos recursos humanos, e particularmente à motivação do desempenho e à

Quando se é apresentado a alguém, é normal

retenção do pessoal. (...) Com a mudança da in-

fazer o cumprimento de mãos, possivelmen-

fra-estrutura social e económica, é possível que

te durante longo tempo. Ofereça e aceite car-

os padrões motivacionais estejam em mutação.

tões de visita e dinheiro com as duas mãos.

Porventura, mudarão no sentido de facilitarem

O jantar tende a ser tomado cedo. E ainda

incrementos adicionais na produtividade, os

que a refeição possa demorar muito tempo,

quais encorajarão investimentos adicionais pro-

uma vez acabado, todas as pessoas saem da

venientes do Ocidente. Mas será ingénuo pen-

mesa. Se encontrar osso ou espinhas na co-

sar que os gestores ocidentais podem entrar na

mida que tem na boca, não os retire com os

China com um arsenal de técnicas motivacio-

dedos. Antes use a colher ou os pauzinhos,

nais que se provaram eficazes nos seus países.”8

ou cuspa-os. Não coloque os pauzinhos verticalmente na sua tigela do arroz!

Caixa A4.1

Boas maneiras e etiquetas: Informações curiosas facultadas pelo Outpost da Shell sobre a China9

Se necessitar de oferecer um presente, es-

“Os Chineses são, geralmente, muito pa-

ou brandy, ou então cigarros estrangeiros.

cientes. Historicamente, tiveram de sê-lo.

Os Chineses, normalmente, não têm dentes

A impaciência é encarada como um defei-

muito saudáveis. Portanto, não ofereça cho-

to, pelo que, se um estrangeiro fica irritado

colates. Relógios não são bons presentes,

ou transtornado, eles sentem que ‘perdem

pois a expressão “oferecer um relógio” soa a

a face’, algo que os Chineses evitam fazer.

algo como “levar alguém para a sua morte’”.

colha uma pequena peça decorativa do seu país, ou uma marca bem conhecida de whisky

8

Jackson e Bak (1998, pp. 282-283). 9 Extraído de http://www.outpostbeijing.com

163

164


Coloque questões muito específicas. Não

A China representa um imenso e populoso

confie na informação voluntária das pessoas.

território, com características culturais que ape-

Por exemplo, uma senhora desceu para a re-

nas podem ser realmente compreendidas me-

cepção do seu hotel com a factura do telefo-

diante o o concreto com a população

ne e perguntou: Posso pagar isto na estação

e a sua vida quotidiana. No entanto, a atracção

de correios? Responderam-lhe: “sim”. Pergun-

“exótica” que tende a exercer sobre os Ociden-

tou então onde era a estação, e responderam-

tais – incluindo as empresas e os estudiosos

-lhe onde era. Mais tarde, veio a descobrir que

– tem dado origem a um portentoso caudal

poderia ter deixado a factura na recepção e

de literatura sobre os seus traços culturais fun-

alguém teria pago por ela. Todavia, como não

damentais. A sua compreensão é fulcral para

perguntou, não lho disseram!”

quem pretende fazer negócios no país e, por maioria de razão, para a gestão das pessoas que

Veja, também, os websites Executive Planet e

operam nas organizações aí implantadas.

Kwintessential para compreender os costumes e a etiqueta na China.

Numa breve síntese, e pese embora o diversificado mosaico multicultural chinês12, o país pode ser assim culturalmente caracterizado13:

Compreendendo a cultura da china

(a) elevada distância de poder; (b) respeito pela hierarquia e pela autoridade; (c) a idade como factor de autoridade; (d) preocupação com a

O altar familiar chinês

harmonia interpessoal e com a “preservação da

“A orientação chinesa para o grupo também se compa-

face”; (e) cultura difusa; (f ) moderada/elevada

gina com a doutrina confuciana que enfatiza os laços

masculinidade; (g) forte sentido colectivista,

de parentesco e as relações pessoais fortes. Os indiví-

embora com tendências para o decréscimo; (h)

duos existem para o benefício do grupo. Os indivíduos

vincado dinamismo confuciano (i.e, orientação

são pressionados para se conformarem com as nor-

para o longo prazo, perseverança); (i) atribui-

mas do grupo, sob pena de perderem a face. O conflito

ção de status – e não conquista do mesmo. A

é geralmente gerido sobretudo através da mediação

metáfora usada por Gannon para caracterizar o

intragrupo, mais do que por meio do recurso ao sistema

país foi “o altar familiar chinês” (veja Quadro 4.7,

legal externo. Os indivíduos são encarados como parte

Capítulo 4):

de uma rede de relações sociais.”

10

• Redondeza (a continuidade e complitude es“Na China, uma jovem mulher que estava na audiência

trutural da família).

levantou-se e, literalmente em lágrimas, perguntou-me

• Harmonia (na família e na sociedade).

como é que um empresário do seu país poderia praticar

• Fluidez (capacidade para mudar, embora man-

a franqueza e a diferenciação quando ‘apenas é permi-

tendo a solidez das tradições)14.

tida a voz do chefe’”11

Xing (1995, p. 17). 11 Welch (2005, p. 56). 12 Chien (2006). 13 Hofstede (1980, 1991); Nevis (1983); Locket (1987); Hui (1990); Vertinski et al. (1990); Chimezie et al. (1993); Trompenaars (1993); Schwartz (1994); Warner (1993); Trigo (1995); Blackman (1997); Chen et al. (1997); Jackson (1998; 2002a); Graham e Lam (2003); Chien, 2006; Ke et al. (2006). 14 Gannon (2001). 10


Quadro A4.1

A China nas quatro variáveis culturais de Hofstede – uma abordagem comparativa15 China

EUA

Portugal

Média dos países abrangidos por Hofstede

Distância de poder

80

40

63

57

Individualismo/colectivismo

20

91

27

42

Evitamento da incerteza

40

46

104

66

Masculinidade/feminilidade

66

62

31

51

Dinamismo confuciano

118

29

-

46

Confiança: apenas na família e na conta bancária

a 2006 davam conta de que 56% da população

Esta descrição “técnica” carece, todavia, de

chinesa tradicional assenta num forte espírito

uma perspectiva mais prática – que melhore

comunitário – não individualista. A sobrevivên-

a compreensão da matéria pelo leitor menos

cia depende da cooperação e da harmonia.

versado em ciências sociais e comportamen-

A lealdade e a obediência à hierarquia familiar

tais. Nas linhas seguintes desta secção, ex-

compelem os indivíduos para o trabalho con-

põem-se, sobretudo, características gerais gi-

junto e marcam a essência do relacionamento

zadas num artigo publicado num número da

interpessoal. Muitos habitantes das cidades

Harvard Business Review fortemente dedicado

chinesas nasceram e cresceram em ambiente

ao país . O leitor desejoso de proceder a uma

rural – denotando um padrão comportamental

leitura prática e aprofundar a compreensão do

e uma leitura do mundo circundante compagi-

país pode consultar o site da UCLA Anderson

náveis com os modos de vida rurais.

16

activa trabalha na agricultura18. A agricultura

School of Management, do qual consta um espaço denominado Global Window China

O vigor da ruralidade é de tal modo profundo

(Caixa A4.3). Pode ainda ler um relatório inti-

que, aquando da Revolução Cultural de Mao

tulado Doing Business in China, publicado pela

Tse-tung, os burocratas e os estudantes foram

Shanghai Guangji Business Consulting, e que

“reeducados” pelos camponeses. O filósofo

pode ser obtido na Web . O texto vale, sobre-

chinês Fung Yu-lan representa bem a proemi-

tudo pela amplitude de temas abordados (e.g.,

nência da vida campesina ao distinguir entre

economia, legislação, contratos, fiscalidade, sis-

a “raiz” (agricultura) e os “ramos” (comércio). Os

tema financeiro, educação superior). Eis, então,

teóricos económicos e sociais tenderam a favo-

um resumo dos quatro traços nele delineados:

recer a raiz e a apoucar os ramos. As pessoas que

17

trabalhavam com os ramos – os comerciantes Cultura agrária. A maior parte da população

– eram encarados, pois, com algum desdém.

chinesa vive em áreas rurais. Dados referentes Fontes: Hofstede (1980); Elenkov (1997); www.geert-hofstede.com/hofstede_dimensions.php (consulta efectuada em 5 de Outubro de 2008). 16 Graham e Lam (2003). 17 http://www.seve.gr/documents/me- letes_erevnes/Doing%20Business%20in%20China.pdf (o em 5 de Outubro de 2008). 18 Dados do People’s Dayly Online (o em 5 de Outubro de 2008). Dados referentes a 2005, publicados em The World Factbook, davam conta de uma percentagem diferente, de 45%. 15

165

166


Caixa A4.2

• Nas grandes cidades é maior a probabili-

Como lidar com os arrotos e os escarros em público – a vantagem das grandes cidades

dade e a quantidade de pessoas que falam

A decisão das empresas de edificarem negó-

ocidentais. Portanto, é presumível que as

cios além-fronteiras tende a ser pautada por

possibilidades de relacionamentos inter-

considerações globais acerca de um dado

pessoais sejam maiores e que o ajustamen-

país – sem que as circunstâncias específicas

a língua inglesa. É também igualmente maior a quantidade de outros indivíduos

to interaccional seja superior.

do local de instalação sejam por vezes devida-

• As grandes cidades chinesas têm sido factor

mente ponderadas. Desafiando esse pendor,

de atracção das gerações mais jovens, cujas

Selmer presumiu que, no caso concreto da

atitudes (mais individualistas e propensas à

China, seria pertinente discernir entre as gran-

iniciativa) se aproximam mais dos padrões

des cidades e as pequenas concentrações po-

ocidentais. É entre elas, também, que se en-

pulacionais19. A tese do autor assentou numa

contra maior proficiência na língua inglesa.

ideia dupla: (1) o desempenho dos expatria-

Por conseguinte, é maior a probabilidade

dos depende fortemente dos seus níveis de

de os expatriados se ajustarem melhor ao

ajustamento à China; (2) os expatriados ajus-

trabalho na relação com eles.

tam-se melhor às grandes cidades do que às povoações mais pequenas. Na base da ideia,

Numa pesquisa realizada com 165 expatria-

colocou as seguintes hipóteses explicativas:

dos de várias origens, o investigador verificou que, efectivamente, os expatriados nas gran-

• Nas grandes cidades, é maior a probabi-

des cidades denotavam níveis superiores

lidade de encontrar padrões de vida mais

de ajustamento geral e ao trabalho. No seu

compagináveis com os hábitos ocidentais

entender, o facto de o mesmo não ter sido

– no que concerne à comida, aos hábitos

identificado para o ajustamento interaccional

de higiene, aos níveis de conforto e aos

pode resultar das dificuldades linguísticas.

cuidados de saúde. Parafraseando o investigador: “Arrotar e escarrar em público, fitar fixamente os estrangeiros e observar o que

Moralidade. A sociedade chinesa continua a

eles fazem são hábitos provavelmente mais

ser pautada pelos princípios confucianos. Du-

comuns nas pequenas cidades e aldeias de

rante quase dois mil anos, o conhecimento dos

que nas grandes cidades, onde as pessoas

textos de Confúcio era o requisito principal para

denotam níveis mais elevados de educação

a nomeação para cargos governamentais. Eis

e são mais expostas à convivência com oci-

alguns aspectos da moldura confuciana:

dentais”20. Por conseguinte, é presumível

19

que os expatriados denotem maior ajusta-

• Uma sociedade pautada pelo código moral

mento geral/cultural nos grandes do que

benevolente será próspera, politicamente es-

nos pequenos aglomerados.

tável e, por conseguinte, livre de ataques.

Selmer (2003b). 20 Selmer (2003b, p. 5).


• A erudição e o parentesco são reverenciados.

Linguagem pictográfica. Enquanto as crian-

• A orientação para a família, o respeito pela ida-

ças ocidentais aprendem a ler letras e números,

de e pela hierarquia, a harmonia interpessoal

as chinesas são confrontadas com milhares de

e a “preservação da face” (i.e., dignificar, não

caracteres pictóricos. As palavras chinesas são

diminuir, a outra parte) devem ser cultivados.

“pinturas” – e não sequências de letras e núme-

• Cinco relações cardinais devem nortear o fun-

ros. Daqui decorre que o pensamento chinês

cionamento da sociedade – entre governan-

tende a ser mais holístico no processamento

te e governado, entre marido e mulher, entre

da informação, e não fragmentado. Os Chine-

pais e filhos, entre irmãos mais velhos e mais

ses são mais proficientes do que os Ocidentais

novos, entre amigo e amigo.

na leitura global dos problemas, enquanto os

21

• Quatro dessas relações são de natureza hierár-

Ocidentais tendem a lidar melhor com os deta-

quica, devendo os governados, a mulher, os fi-

lhes24. Uma das consequências daqui oriundas

lhos e os irmãos mais novos devotar obediên-

projecta-se sobre a negociação: os Chineses

cia e benevolência aos outros elementos do

tendem a negociar em termos da globalidade

binómio – assim se promovendo a harmonia

das matérias em jogo (e.g., relações com a con-

social e prevenindo-se a violência.

traparte; confiança; preço; prazo de entrega;

• Esta lógica hierárquica está profundamente

quantidades), enquanto os Ocidentais sentem

impregnada na cultura chinesa, reflectindo-se

mais propensão para acordar determinados de-

no seu pendor paternalista e na elevada dis-

talhes e partir então para outros. Esta diferença

tância de poder identificada por Hofstede.

tende a provocar grandes tensões nas negociações, gerando equívocos mútuos e fracassos

Deve notar-se que o quadro confuciano está

negociais relativamente comuns.

fortemente impregnado da lógica da reciprocidade22. Por conseguinte, os governantes, o

Prudência relativamente aos estrangeiros.

marido, os pais e os irmãos mais velhos devem

Virgínia Trigo escreve que “a suspeição que os

ser justos, honrados, benevolentes, carismáti-

Chineses sentem relativamente ao Ocidente

cos e afectuosos para que os “juniores” sejam,

não é de todo injustificada. De facto, o primeiro

reciprocamente, leais, filiais, obedientes e res-

produto que o Ocidente vendeu à China, com

peitadores. Esta lógica ajuda a compreender as

algum significado comercial, foi o ópio. Durante

razões pelas quais os Chineses podem ser since-

quase 200 anos, o país foi forçado a consumir

ros ou enganadores quando lidam com as con-

esta droga apesar da oposição do seu gover-

trapartes, dependendo do nível de confiança e

no.”25 Uma violenta história de ataques, e o im-

do modo como os favores são correspondidos:

perativo de preservar a integridade territorial,

“o modo como os Chineses se ajustam à outra

geraram nos Chineses uma postura de grande

parte depende do modo como a contraparte

prudência (e até desconfiança) relativamente

se ajusta aos Chineses.”

aos estrangeiros. A esta postura juntou-se uma

23

história de contendas internas, de revoltas contra os abusos dos poderes imperiais instituídos, 21

Ver, também: Hui e Graen (1997); Fan (2000); Lee (2006). 22 Fang (2000). 23 Fang (2000, p. 55). 24 Veja Nisbett (2003). 25 Trigo (2006, p. 29).

167

168


Caixa A4.3

de guerras civis e de fluxos e refluxos de im-

Global Window: China

périos. Daqui emergiu um cinismo acentuado acerca do papel da lei e das regras em geral.

Do website da UCLA Anderson School of

Também emergiu a necessidade de buscar

Management consta um espaço denomi-

ajuda e protecção na família e na comunidade.

nado Global Window: China, incorporando

“Pode dizer-se que os chineses apenas confiam

um “Guia para a eficácia dos negócios”29. O

em duas coisas: a família e a sua conta bancá-

texto tem o especial condão de resumir os

ria.” O resultado traduz-se numa grande con-

elementos mais relevantes para quem dese-

fiança nos membros do grupo (colectivismo de

ja compreender ou fazer negócios no país.

endogrupo; veja modelo GLOBE, no Capítulo 2),

Entre o amplo leque de informações aí con-

mas numa grande desconfiança relativamente

tidas, identifica-se, desde logo, uma aborda-

aos membros e entidades externos . Traduz-se,

gem geral que inclui informações sobre a

também, no modo “prudente” como os Chine-

história do país, a governação, a religião, o

ses lidam com os Ocidentais – sejam eles os ne-

clima, a geografia e a população.

26

27

gociadores de uma t venture ou os gestores ocidentais expatriados.

Mais detalhadamente, e exemplificando, surge informação específica sobre: (1) o quadro

Esta leitura pode ser complementada com

de políticas públicas para os negócios; (2) o

outra, de natureza mais profunda. No quadro

panorama económico e financeiro; (3) a pe-

filosófico confuciano, há normas para as cinco

netração no mercado; (4) o povo e a cultura;

relações consideradas mais relevantes para a

(5) a etiqueta dos negócios e a comunicação;

harmonia social. Mas não as há para as relações

(6) as práticas de negócio e de negociação;

impessoais. Lucian Pye, numa lição intitulada

(7) o quadro legal e regulamentador; (8) as

International relations in Asia: Culture, nation

diferenças regionais; (9) os aspectos relacio-

and state, apresentada na George Washington

nados com hospedagem, transportes, segu-

University, escreveu a este propósito:

rança pessoal, moeda, telecomunicações e correios.

“[Nas normas confucianas, não há] nada acerca da conduta com estranhos. A regra implícita é

Entre as curiosidades identificadas, citem-se

que, com estranhos, o jogo consiste em enga-

as seguintes: (1) 36 estratagemas militares

nar antes de ser enganado. Este silêncio acerca

para triunfar e sobreviver; (2) endereços de

dos estranhos explica como na cultura chinesa

websites relacionados com as características

é possível que nos tratem instantaneamente

essenciais chinesas; (3) a explanação do sig-

como ‘velhos amigos’, pois apenas entre conhe-

nificado e das implicações do guanxi; (4) a

cidos é possível haver civilidade.”28

percepção do tempo pelos Chineses; (5) os rituais chineses e a etiqueta de negócios; (6) as formalidades relacionadas com apertos de mão, a troca de cartões de visita, o o

Graham e Lam (2003, p. 85). 27 Child e Warner (2003). 28 Lucian Pye é um asianista reconhecido. O texto da lição a que fazemos aqui alusão foi colhido, em 5 de Outubro de 2008, em www.gwu.edu. 29 http://www.anderson.ucla.edu:7777/research/globalwindow/china/index2.html (o em 5 de Outubro de 2008). 26


visual, os arranjos das cadeiras nos encon-

“Desde a morte de Confúcio, os intelectuais chineses fize-

tros de negócios, a troca de presentes; (7) as

ram pouco mais do que acrescentar algumas notas de ro-

questões relacionadas com a comunicação

dapé às teorias expostas por ele e pelos seus discípulos.”32

não-verbal; (8) endereços de websites sobre etiqueta e protocolo; (9) alguns provérbios

Um dos modos porventura mais proveitosos

e endereços de websites pertinentes para o

de compreender a cultura chinesa consiste

efeito; (10) endereços de websites com dicio-

em identificar os valores-chave que a caracte-

nários Inglês-Chinês e Chinês-Inglês; (11) um

rizam. Ying Fan33 contribuiu fortemente para

glossário de A a Z que permite compreender

esta matéria ao expor uma lista de 71 valores

inúmeros aspectos da cultura do país.

“nucleares” – mais 31 do que os preconizados pela Chinese Culture Connection34. O autor afir-

Sugere-se vivamente ao leitor que aceda a

ma que eles são centrais a toda a população

este grande manancial de informação. Ain-

chinesa, viva ela em Hong Kong, em Taiwan

da que não se relacione directamente com

ou na China continental. Dado que os valores

a gestão de recursos humanos, o website

modelam as crenças e as atitudes das pessoas,

ajuda a compreender como fazer negócios

e guiam os seus comportamentos numa base

e gerir pessoas na China.

relativamente permanente, é presumível que a sua compreensão permita interpretar melhor a actuação dos chineses.

O confucionismo “Há um século, Max Weber descreveu o pensamento

Ainda que a cultura tradicional provenha de

confuciano como uma [empecilho] à inovação e ao em-

várias escolas de pensamento (e.g., confucionis-

preendedorismo, o qual deixaria a China culturalmente

mo, taoísmo, budismo), é indubitável a predo-

moribunda. Tal como um observador relembrou mordaz-

minante influência do confucionismo em todos

mente alguns anos depois, Weber não leu certamente os

os aspectos da vida chinesa35. Esta é basicamen-

escritos de Confúcio.”30

te a doutrina comportamental e moral assente nos ensinamentos de Confúcio sobre as rela-

“A ética representava um papel essencial na visão do

ções humanas, as estruturas sociais, o compor-

mundo de Confúcio, incluindo a actividade económica.

tamento virtuoso e a ética do trabalho. As regras

De acordo com Confúcio e o seu círculo, há três factores

confucianas focalizam-se no comportamento

de produção: a terra, o capital e o homem virtuoso. Dos

social de todos os indivíduos e governam o am-

três, o mais importante é o último. A riqueza provém

plo leque de interacções humanas na socieda-

da virtude. (...) O homem superior deve cuidar primeiro

de. O pensamento doutrinal de Confúcio pode

a sua virtude. Havendo virtude, haverá o homem. Ha-

ser condensado em cinco virtudes maiores:

vendo o homem, haverá a terra. Havendo a terra, haverá

humanidade/benevolência, rectidão, correcção,

riqueza. Havendo riqueza, haverá o seu uso. A virtude é a

sensatez e lealdade. Ademais, o filósofo definiu

raiz, e a riqueza o seu único resultado.”31

cinco relações humanas básicas (referidas na secção anterior), e preconizou princípios para

Witzel (2005b, p. 89). 31 Witzel (2005b, p. 90). 32 Bo Yang, um dos mais populares escritores de Taiwan, citado por Caeiro (20049, p. 116). 33 Fan (2000). 34 The Chinese Culture Connection (1987). 35 Xing (1995); Warner e Zhu (2003). 30

169

170


cada uma delas (Quadro A4.2). Três dessas rela-

E Dessler escrevia, dez anos depois, que “muitos

ções são de natureza familiar – facto que parece

Chineses ainda pensam nos seus empregado-

explicar a importância fundamental da famí-

res mais como família do que como emprega-

lia na cultura chinesa e a sua propensão pater-

dores, e podem mesmo esperar que eles olhem

nalista. A devoção filial e a lealdade, presentes

pelo seu bem-estar social.”37

nas duas primeiras relações, tendem a ser encaradas como as virtudes mais importantes.

É possível que as reformas económicas dos últimos anos suscitem alterações nestas políticas

No seu conjunto, este quadro de referência

e nos estilos de gestão. É igualmente plausível

ajuda a explicar o estilo de gestão paternalista

que as empresas ocidentais que têm vindo a in-

chinesa. E permite entender como as relações

vestir na China denotem alguma renitência na

familiares tradicionais se transmitem para o

adopção destas medidas. E é provável que as

contexto organizacional. A este propósito, Xing

autoridades e as organizações chinesas, dese-

escreveu em 1995 que o conceito de família

josas de captar investimento estrangeiro e incli-

tradicional dera lugar ao “familismo”, atraves-

nadas para imitar o “modelo americano”, sintam

sando quase todas as organizações sociais:

necessidade de prescindir de alguns dos modos de gestão chinesa mais convencionais. Em qual-

“A organização proporciona aos seus emprega-

quer caso, o quadro confuciano está bem pre-

dos alojamento, cuidados médicos gratuitos e

sente na sociedade e nas instituições chinesas,

educação para os filhos. As suas actividades e

e é presumível que continue a impregnar os

vida pessoal estão fortemente ligadas às activi-

valores e as actuações das novas gerações. Há,

dades na organização para que trabalham, e os

aliás, razões para supor que a expansão dos

gestores, em muitos aspectos, actuam como

negócios transnacionais dos empreendedores

pais da família extensa, assumindo responsabi-

chineses se deva, pelo menos parcialmente,

lidade pelos negócios mas também pela resolu-

ao “familiarismo” que marca as relações entre

ção dos problemas pessoais dos empregados.”

parceiros.

36

Quadro A4.2

Cinco relações humanas cardinais e os princípios que as norteiam

Relações humanas fundamentais

36

Princípios norteadores

• Soberano e súbdito (ou mestre e seguidor, governante e governado)

• Lealdade e dever

• Pai e filho

• Amor e obediência (devoção filial)

• Marido e esposa

• Obrigação e submissão

• Irmãos mais velhos e mais novos

• Antiguidade e actuação pelo exemplo

• Amigo e amigo

• Confiança

Xing (1995, p. 17). 37 Dessler (2006, p. 11).


Yin e Yang – opostos que se complementam

• A lista não considera a existência de diferenças entre as várias zonas geográficas da (enorme)

“Para uma imagem geral do carácter nacional chinês,

China e entre as várias classes sociais. Mas re-

a lista seguinte pode servir como ponto essencial: mo-

presenta um lastro cultural que porventura

deração, paciência, fecundidade, pacifismo, intuição,

desenha a essência da cultura chinesa.

conservantismo, simplicidade, indiferença, diligência,

• É presumível que algumas alterações ocorram

contentamento, submissão, sensualidade, amor pela

na cultura chinesa como resultado das reformas

natureza, orientação para a família, dependência, relu-

económicas, da “avassaladora” globalização e da

tância em mudar.”38

interpenetração de culturas. Todavia, há nestes valores uma linha de continuidade e de estabili-

A classificação dos valores preconizada por Fan

dade que marca a China e que, porventura, per-

reconhece a influência marcante das orientações

sistirá. Em 1995, Xing afirmava, a este propósito,

cardinais confucianas, tendo o autor agrupado os

que “a actual campanha chinesa para a ‘moder-

71 valores em oito categorias. O elenco está con-

nização’ não é necessariamente um processo

templado no Quadro A4.3 e sobre ele podem ser

de mudança na mentalidade e no comporta-

tecidas algumas considerações críticas:

mento fundamental do povo chinês.”40

• O agrupamento dos valores nestas oito ca-

A última consideração relaciona-se com o fac-

tegorias não deve ser interpretado de modo

to de alguns valores serem contraditórios. É o

preciso. Por exemplo, a honradez/honestida-

caso, por exemplo, da adaptabilidade versus

de, ainda que inserida no domínio das relações

conservadorismo. Ou da reverência perante a

interpessoais, poderia ser inserida nos traços

autoridade versus igualitarismo. A contradição e

de personalidade. A frugalidade/poupança

o paradoxo são, todavia, características detectá-

está incluída no grupo das atitudes perante o

veis em todas as culturas. Acresce que, na cultu-

trabalho, mas poderia ser englobada na cate-

ra chinesa, essas contradições podem reflectir

goria da filosofia dos negócios.

o entrosamento entre os opostos, o casamento

• Muitos destes valores denotam alguma re-

entre o masculino e o feminino, entre o frio e o

dundância (e.g., sentido da vergonha e “pre-

quente, entre a luz e a escuridão, entre o activo

servação da face”; paciência e persistência;

e o ivo. A cultura chinesa não é porventura

harmonia interpessoal e não-competição).39

masculina nem feminina – mas o resultado da

• A generalidade dos valores tem génese tradi-

unidade de ambas as coisas. Não é porventura

cional, sendo raros os contemporâneos (e.g.,

unicamente evitadora da incerteza nem apenas

guanxi).

propensa para o risco – mas a conciliação de

• O autor refere explicitamente que alguns dos

ambas as tendências. Não é porventura orienta-

valores propagados pelo Partido Comunista

da para a distância de poder nem para pequena

não são abarcados, por estarem em conflito

– mas focalizada na combinação de ambas as

com os tradicionais e não serem hoje alvo de

coisas. Não é individualista nem colectivista –

muita atenção.

mas uma combinação idiossincrática de ambas 38

Xing (1995, p. 18), baseando-se em Yutang (1935).

39

Fang (2003). 40 Xing (1995, p. 16).

171

172


Valores culturais chineses41

Quadro A4.3 Traços nacionais

• Patriotismo • Sentido de superioridade cultural • Respeito pela tradição • Capacidade para ar as agruras • Conhecimento (educação) • Governação pelos líderes, mais do que pela lei • Igualdade/igualitarismo • Moderação, preferência pelo meio-termo

Relações interpessoais • Honradez/honestidade • Jen-ai – Gentileza (perdão, compaixão) • Li – Justeza (propriedade, correcção) • As pessoas são essencialmente boas • Tolerância para com os outros • Cortesia • Humilhação/humildade • Amigo íntimo e próximo • Observância dos ritos e rituais sociais • Reciprocidade nos cumprimentos, nos favores e nos presentes • Retribuição do bem ou do mal que o outro causou • Face (preservar, dar, ganhar e perder)

Orientação social/familiar • Piedade/devoção filial • Castidade feminina • Consanguinidade/parentesco • Veneração dos mais velhos • Lealdade aos superiores • Deferência para com a autoridade • Relações hierárquicas marcadas pelo status e observância da ordem por elas definida • Conformidade/orientação para o grupo • Sentido de pertença • Alcance do consenso ou do compromisso • Evitamento da confrontação • Autocracia benevolente/paternalismo • Solidariedade • Colectivismo

Orientação para com o tempo • Orientação para o ado • Continuidade/tempo visto como circular, e não linear • Tomar uma perspectiva de longo prazo

Filosofia dos negócios • Não-competição • Não ser guiado pelo lucro • Guanxi (laços e redes de relacionamento pessoal) • Importância concedida às relações de longo prazo, não aos ganhos • Riqueza • Resistência à corrupção • Ser conservador/moderado/cauteloso • Moralidade

Traços de personalidade • Te – virtude, padrão moral • Sentido da rectidão/integridade • Sinceridade • Ter o sentido da vergonha/pudor • Sabedoria/prudência/sensatez/desenvoltura/ desembaraço • Autocultura • Firmeza pessoal e estabilidade • Manter-se desinteressado e puro • Ter poucos desejos • Ser sempre um cavalheiro • Obrigação para com a família e a nação • Pragmático/ajustar-se à situação • Contentamento com a posição própria na vida

Atitudes perante o trabalho • Diligência (aplicação ao trabalho) • Empenhamento • Frugalidade/poupança • Persistência (perseverança) • Paciência • Prudência (cuidado) • Adaptabilidade

Relação com a natureza • Em consonância (Tao) • Fatalismo/Karma (crença no próprio destino) • Yuarn42 • Harmonia entre o homem e a natureza • Unidade do Yin e do Yang

Ligeiramente adaptado de Fan (2000, p. 9). 42 Relações pré-determinadas com outros indivíduos, que estão foram do controlo do próprio. Representa pendor fatalista (Siu, 2001). 41


as propensões. Não é yin nem yang – mas a uni-

não significa estagnação – pode aliás reportar-

dade de ambos (Caixa A4.4).

-se a valores tradicionais como a persistência, o sentido da vergonha (pelas más acções!) e a

É esta a idiossincrasia que talvez explique a

frugalidade/poupança. Eis como Fang articula o

complexidade da cultura chinesa e a grande

argumento a propósito da China:

dificuldade que os Ocidentais experimentam para compreendê-la. Tony Fang deu conta dis-

“A China é a civilização mundial mais antiga,

so mesmo ao referir-se à tendência “ocidental”

com uma história de 5000 anos. Uma razão pela

para encarar os elementos e os valores como

qual a cultura chinesa é tão duradoura deve-se

positivos ou negativos, melhores ou piores. No

ao facto de o povo chinês ter orgulho nas suas

caso concreto dos valores culturais, a tendência

tradições e ser profundamente respeitador das

é para considerá-los como dimensões bipola-

mesmas.”44

res. Nesses termos, é-se orientado para o longo prazo ou para o curto prazo, para a elevada

Podem ser apresentadas ilustrações adicionais

distância de poder ou para a pequena, para o

da dualidade. Por exemplo:

colectivismo ou para o individualismo, e assim sucessivamente. Distintamente, a China carac-

• “O autocultivo moral contém tanto aspectos

teriza-se pelo princípio filosófico do dualismo e

positivos (aprendizagem ao longo da vida,

do paradoxo no mundo manifesto. “Está profun-

empenhamento, auto-regulação do com-

damente enraizado na cultura chinesa a crença

portamento) como negativos (rejeição da lei

de que o yin e o yang existem em toda a parte;

como racional, relacionamentos mais associa-

tudo abrange yin e yang. Os valores confucianos

dos ao contexto imediato do que à sociedade

não são excepção – cada valor confuciano tem o seu lado brilhante e o seu lado escuro, e envolve qualidades construtivas e destrutivas.”43

mais ampla). • A confiança nas relações informais comporta tanto aspectos positivos (permite que as coisas sejam levadas a cabo) como negativos (desen-

De um ponto de vista prático, esta dualidade

coraja o estabelecimento de instituições fortes).

está aliás contemplada no estilo de negociação

• A orientação para a família integra elementos

chinês, que secção posterior deste capítulo ex-

positivos (permitiu que a cultura chinesa resis-

plana. Mas o que importa aqui considerar é que

tisse e sobrevivesse às dificuldades) e negati-

dela não pode extrair-se a ideia de uma cultura

vos (cria nepotismo e corrupção).

“negativamente” contraditória. Na verdade, cada

• O valor concedido à idade e à hierarquia está

um dos valores pode ser “positivo” ou “negativo”,

impregnado de aspectos positivos (veicula a

conforme o contexto. No limite, e ilustrando,

sabedoria para as próximas gerações) e de ne-

importa ser conservador relativamente a tudo

gativos (desencoraja os mais jovens de expres-

o que de mais positivo uma sociedade de-

sarem os seus pontos de vista).

tém – mas igualmente adaptável naquilo que

• A manutenção da harmonia comporta aspec-

é necessário mudar! O respeito pela tradição

tos positivos (apoia a resolução de conflitos) 43

Fang (2003, p. 355). 44 Fang (2003, pp. 357-358).

173

174


e negativos (concede parca importância aos direitos individuais). • A preservação da face contém aspectos positivos (o self regula o mecanismo moral) e negativos (dificulta a demonstração dos sentimentos genuínos).”45

Caixa A4.4

O yin-yang e a predominância da razoabilidade sobre a racionalidade 1. A coabitação dos opostos

Muitas culturas asiáticas caracterizam-se pelo princípio do yin escuro e do yang claro47

Tome-se finalmente em atenção outro valor da

e, concomitantemente, reflectem elementos

cultura chinesa: a reciprocidade nos cumpri-

tanto “femininos” (água, fraco, lua, misterioso/

mentos, nos favores e nos presentes. Ele pode

secreto, brando/cortês, ivo) como “mas-

representar o lado mais perverso do “tráfico de

culinos” (sol, fogo, forte, brilhante, forte, ac-

influência” e da corrupção. Mas, em essência,

tivo). Estes opostos existem de uma forma

também reflecte o dever de honrar a ajuda re-

dinâmica e são a fonte da mudança. Neste

cebida de outros, de lidar com as pessoas do

sentido, em vez de uma lógica dualista na

mesmo modo que elas lidam connosco.

qual a realidade é clara ou escura, o pensamento asiático parece mais sensível à tensão

Quando os jovens ocidentais jantam juntos

dialéctica entre opostos que se complemen-

num restaurante, a prática habitual é dividirem

tam em vez de se excluírem mutuamente.48

a factura, consoante o que cada um encomendou. Por vezes, a discussão ocorre. Refere Fang que, na China, a prática habitual não é essa – alguém assume o pagamento. Mas esta pessoa não é esquecida pelos seus congéneres – que o convidam a jantar noutro momento em que as despesas são adas por outra pessoa:

2. O meio-termo ideal e a predominância

“É deste modo que os Chineses cultivam mu-

da razoabilidade sobre a racionalidade

tuamente e desenvolvem relações interpes-

Eis como Xing se referiu a um dos aspectos

soais, denotando consideração uns pelos ou-

marcantes do carácter chinês: “Outro aspec-

tros e construindo relações para o futuro. A

to importante do pensamento chinês é a

pessoa que não observa [este] li shang wang

chamada doutrina do meio-termo ideal49, o

lai simplesmente não sobrevive na sociedade

aspecto central da metodologia confuciana.

chinesa.”

Na sua essência, está a crença de que os se-

46

res humanos devem ser razoáveis, não meramente racionais. Pelos padrões chineses, a razoabilidade situa-se em patamar superior à razão. Enquanto ‘a razão é abstracta, analítica, idealista e inclinada para extremos Excerto extraído de Fletcher (2003, p. 15). 46 Fang (2003, p. 358). 47 Representam qualidades opostas mas complementares (e.g., homem-mulher, claro-escuro, frio-quente, dia-noite, princípio-fim). 48 Para uma exploração desta lógica, ver Capra (1975). Para uma discussão no âmbito organizacional, ver Clegg, Cunha e Cunha (2002). 49 Tradução de Golden Mean, de acordo com o dicionário da Porto Editora. 45


lógicos, o espírito de razoabilidade é sempre

“Visite uma fábrica estatal chinesa típica, e encontrará

mais realista, mais humano, em o

os empregados a produzirem bens que ninguém quer,

próximo com a realidade, e mais capaz de

ou então observará os três rituais próprios de uma célula

verdadeiramente compreender e apreciar as

de trabalho do Partido Comunista: beber chá, ler jornais

situações.’ A cultura das pessoas que amam

do Estado e frequentar reuniões do partido. (’Éramos

a moderação, que são avessas aos extremos

obrigados a criticar Beethoven, mas nunca ouvimos

lógicos e que evitam todos os excessos da

Beethoven’, recorda o compositor Tan Dun)”.54

teoria e da conduta, é considerada como modelo da cultura tradicional chinesa. (...) A

Gradualismo ou mudança profunda?

regra do meio-termo ideal é uma linha de

Uma das mudanças mais dramáticas na paisa-

orientação filosófica associada ao ideal gre-

gem da economia mundial nas duas últimas

go nothing too much (...), que significa um

décadas ocorreu com a economia chinesa. Ain-

modo de vida, uma capacidade de compro-

da que outras economias tenham enveredado

misso, definido como o estado mais desejá-

também por processos de transição para uma

vel da mente ou dos assuntos mundanos.

economia de mercado, o caso chinês destaca-

Nas vidas quotidianas e nas actividades de

-se por três particularidades.

negócios, a regra do meio-termo ideal representa a ideia de que nada deve ir para além

• O país caracteriza-se por uma imensidão geográfica e uma grande massa populacional

do seu domínio apropriado.”50

(correspondente a 130 países como Portugal). • A transição económica não se tem feito acom-

as reformas económicas e a transição sui generis

panhar de uma tão vincada transição democrática. • O crescimento da economia tem alcançado

“Não se podia, sequer, ter um sofá em casa. Estar confor-

taxas que, no contexto internacional, podem

tavelmente sentado era uma postura burguesa. Muitas

ser consideradas extraordinárias, cifrando-se

famílias tentaram vender os seus sofás, mas como nin-

em cerca de 10% nos últimos anos.55

guém os comprava, acabaram por deitá-los fora.”

51

A tese mais comum é a de que as reformas têm “Segundo se dizia na altura [da Revolução Cultural], ‘a

sido graduais. Tem-se considerado que é nesse

música sinfónica promove a propriedade privada e o

gradualismo que radica a grande responsabili-

individualismo’. O próprio piano, que os Guardas Verme-

dade pelos sucessos obtidos. E tem-se aduzido

lhos destruíam à machadada, chegou a ser considerado

que nele reside uma das grandes diferenças pe-

‘um símbolo da lealdade ao capitalismo’.”

rante o processo de transição russa – cujo relati-

52

vo insucesso alegadamente se deve à “terapia de “Não tente mudar a China, mas aprenda a trabalhar nos

choque” adoptada pelo governo de Gaidar nos

bastidores para atingir os seus objectivos.”53

anos 90. Todavia, estes argumentos foram contrariados num artigo precisamente intitulado

Xing (1995, p. 19), citando parcialmente Yutang (1935). 51 Testemunho de um Chinês, acerca da vida em Pequim na primeira metade dos anos 70, citado por Caeiro (2004, p. 181). 52 Caeiro (2004, pp. 183-184). 53 Comentário de gestor expatriado na China, referido por Björkman e Schaap (1994, p. 151). 54 Tomlinson (1999, p. 54). 55 Veja, por exemplo, Hassad et al. (2004), assim como os websites de The World Factbook e do Banco Mundial. 50

175

176


“Gradualismo

choque:

também duas gerações de gestores (a antiga

(Re)interpretando as experiências russa e chi-

nomenklatura e a nova geração; veja Caixa

nesa.” A reinterpretação é a seguinte:

A4.16), as diferenças são menores e a “velha

versus

terapia

de

56

guarda” está mais identificada com as novas • Por trás de um processo chinês aparentemente gradual existe, de facto, um processo de al-

exigências da globalização e da competição internacional nos mercados.

terações profundas – que está bem reflectido, por exemplo, no fraco peso que hoje têm as

Embora esta tese seja controversa, é um facto

empresas estatais na economia.

indesmentível que a China alcançou ritmos de

• Na retaguarda de uma aparente “terapia de

crescimento económico e de melhoria de indi-

choque” russa está, na realidade, uma mudan-

cadores de bem-estar que a Rússia não almejou.

ça menos “exuberante” – aliás visível no facto

O seu processo de reformas económicas pode

de o Estado continuar a exercer um papel ful-

ser caracterizado à luz de três elementos fun-

cral na vida empresarial e controlar inúmeros

damentais: (1) abertura ao investimento directo

sectores e actividades.

estrangeiro; (2) reforma do sector industrial do

• A mudança chinesa não foi apenas macro-

Estado; (3) encorajamento gradual das empre-

económica – antes se traduziu em inúmeras

sas privadas (ainda que o termo “privatização”

mudanças microeconómicas, tendo ocorrido

seja tabu57 e raramente utilizado). Por exemplo,

uma ampla mudança na agricultura, na emer-

apenas em 2005, o investimento estrangeiro

gência de empresas privadas, na abertura ao

na China cifrou-se em 72,4 biliões de dólares.58

exterior, no funcionamento do mercado. A

As maiores empresas mundiais têm escritórios,

mudança foi especialmente dramática na agri-

subsidiárias e fábricas no país.

cultura. Dela saiu uma imensa mole humana que se empregou na indústria (cujo cresci-

Estas reformas induziram mudanças profundas

mento beneficiou de mão-de-obra barata e

em vários domínios. Por exemplo, as empresas

“esforçada”) ou que criou os seus próprios pe-

estatais têm vindo a ajustar-se progressivamen-

quenos empreendimentos.

te aos ditames de uma economia de mercado.

• As reformas russas não foram consistentes,

De uma situação em que ocupavam o exclusi-

tendo sido aliás penalizadas pela instabilidade

vo da acção empresarial, aram a ombrear

política. Este cenário contrasta com a estabi-

com numerosas empresas privadas, com t

lidade política chinesa, a consequente esta-

ventures e com empresas de capital estrangeiro.

bilidade das políticas macroeconómicas e a

Por exemplo, em 1978, contribuíam para 80%

atracção que as mesmas exerceram sobre o

do PIB, mas a cifra caiu para cerca de 20% nos

investimento estrangeiro.

últimos anos. Um dos efeitos foi o downsizing,

• Na Rússia, uma parcela substancial dos negó-

o encerramento de empresas e o incremento

cios e das organizações é dirigida pela “velha

das taxas de desemprego e da insegurança no

guarda”, que continua a exercer um papel ful-

emprego.

cral. Na China, embora se possam encontrar 56

Kazakevitch e Smyth (2005). 57 Warner (2003b). 58 UNCTAD (2006).


Em síntese, pode afirmar-se que as reformas se

sincrasia chinesa – de que se ilustram a conces-

traduziram em mudanças: (a) na estrutura in-

são de alojamento aos colaboradores (uma via

dustrial; (b) no peso relativo assumido pelas em-

usada, por vezes, como mecanismo de retenção

presas estatais na estrutura económica; (c) nas

de profissionais e de gestores escassos). E daí

práticas da gestão e no modo como os modelos

não parece terem ocorrido obstáculos intrans-

ocidentais de gestão se impregnaram na gestão

poníveis ao seu sucesso. Todavia, importa pres-

das empresas chinesas; (d) no mercado de tra-

tar atenção a algumas potenciais dificuldades

balho e nas práticas de GRH; (e) nas relações la-

– designadamente as que resultam da especifi-

borais; (f ) numa diferença significativa entre os

cidade política do país, da influência que o Esta-

processos de gestão nas empresas estatais e nas

do e o Partido Comunista continuam a exercer62,

restantes. Os efeitos foram de tal modo vigo-

e dos traços culturais chineses.

rosos que algumas estimativas sugerem que, em 2020, o país suplantará o Japão no segundo

Um exemplo paradigmático é exposto numa

lugar do ranking das economias mundiais.59

das próximas secções a propósito de uma t venture. Esta fórmula tem sido largamente pre-

Uma transição idiossincrática

ferida pelos investidores estrangeiros. Esta pre-

“É esta dualidade entre a nova e a velha China, que coe-

ferência deve-se, em medida considerável, ao

xistem sobrepostas no mesmo tempo e no mesmo lugar,

desconhecimento do mercado e da situação

que torna tão difícil compreender a realidade chinesa e tão

chinesa – e à necessidade de dispor de acto-

interessante a tentativa da sua descoberta. Alguém disse

res locais que dominem as redes de relaciona-

que, para um Ocidental, viver na China constitui como que

mento, conheçam as idiossincrasias chinesas

uma oportunidade de ter e beneficiar de uma segunda

e acedam aos corredores do poder. Um caso

vida a acrescentar àquela ada no país de origem.”

paradigmático é o da Coca-Cola63. Começou

60

por adoptar a via do franchising, vendendo o Assiste-se, todavia, a uma transição idiossincrá-

concentrado a engarrafadores locais. Mas aca-

tica, misturando-se confucionismo, socialismo

bou por se defrontar com o “oportunismo” dos

e capitalismo.61 Por um lado, existe a noção de

parceiros locais, com a incapacidade de lidar

que a aplicação dos modelos de gestão ociden-

com as incertezas do mercado e com a impos-

tal deve respeitar as “características chinesas”.

sibilidade de se expandir. Optou, então, por par-

Por outro lado, as tradições, a cultura e a inércia

cerias em processos de t venture.

impedem que a legislação de algumas reformas seja transposta para as reais práticas das empre-

Caixa A4.5

sas. Por exemplo, ainda que a legislação tenha

“O poder ao povo”, o poder do Partido Comunista e as manobras para aceder ao poder e contornar as burocracias

sido alterada, o emprego para a vida continua a ser uma ambição e uma expectativa comum.

A primeira parte do título desta caixa corresAs multinacionais com maior capacidade adap-

ponde ao de um artigo publicado no Finan-

tativa têm adoptado práticas ajustadas à idios-

cial Times e traduzido pelo Diário Económico.

Warner (2003). 60 Pedro Catarino, embaixador de Portugal na China entre 1997 e 2002, no prefácio ao livro de Caeiro (2004, p. 13). 61 Ke et al. (2006). 62 Engardio et al. (2007). 63 Mok et al. (2002). 59

177

178


O artigo explana abundantemente o caso de

O isolamento dos delegados não se fica, po-

prospectores privados chineses que, quando

rém, por aqui. Multinacionais estrangeiras

começaram a fazer dinheiro com os seus di-

despendem milhões de dólares a orquestrar

reitos petrolíferos, viram os poços confisca-

manobras para contornar a burocracia chi-

dos pelo Estado. E sugere que “para recuperar

nesa e chegar mais depressa às entidades

os seus poços de petróleo, terão de pedir ao

que lhes podem atribuir licenciamentos. Um

Partido Comunista que subscreva os interes-

aspecto comum aos directores executivos lo-

ses de empresários privados em detrimen-

cais, que investem grande parte do seu tem-

to das decisões do Estado”. O jornalista do

po na manutenção de boas relações com o

Financial Times explica como ele próprio foi

governo. Em suma, quem não possui meios,

“envolvido” na contenda, tendo sido indaga-

conhecimentos e estatuto tem, de imediato,

do pelos privados sobre a possibilidade de os

vedado o caminho para chegar ao poder.”64

ajudar a lutar contra o processo de confisco, aparentemente ilegal, mas envolto numa teia de ambiguidades. O texto ajuda a compreender cinco coisas. Primeira: o enorme papel que o Estado de-

dificuldades nas t ventures: Sonhos diferentes na mesma cama

tém na economia. Segunda: a dificuldade que os agentes privados podem ter para afir-

Um exemplo

mar direitos numa sociedade em transição.

Em 1994, a chinesa Blue Sword Company e a

Terceira: os conflitos por vezes existentes en-

belga Interbrew acordaram uma t venture.

tre as autoridades locais e as centrais. Quarta:

Decorrido um ano, o fracasso sobreveio – e a

as dificuldades que as empresas estrangeiras

colaboração esboroou-se. Uma das razões para

podem enfrentar na China. Quinta: a impor-

o insucesso parece ter advindo da diferença de

tância das boas ligações ao poder instituído.

expectativas de ambas as partes (Quadro A4.4).

Este último aspecto está, parcialmente, asso-

Todavia, Jackson aduziu que, na base do fiasco,

ciado ao tradicional guanxi e traduzido neste

terão estado, fundamentalmente, problemas

extracto (algo jocoso) do artigo:

relacionados com a gestão das pessoas:

“Em Março de cada ano, o Congresso Nacional

“O factor porventura mais importante para asse-

do Povo reúne. Os ‘Delegados do Povo’ che-

gurar o sucesso das t ventures na China são

gam em Audis pretos com vidros fumados

as pessoas (...) As expectativas e as aspirações

e movimentam-se anonimamente através

das pessoas devem ser identificadas antes que

do trânsito, escoltados por viaturas da polí-

qualquer t venture seja estabelecida.”65

cia. Por vezes, apetece pensar que o cidadão

64

comum não pode sequer vislumbrar o que

No caso concreto em apreço, o fracasso parece

os líderes da nação ‘conspiram’ em privado.

ter radicado nos seguintes factores:

Kynge (2005, p. 4).

65

Jackson (2002a, p. 167).


• A Interbrew enviou para a China vários gesto-

mais velhos. A tentativa dos gestores expatria-

res expatriados, alguns provindos da Bélgica e

dos para alterar este sistema de recrutamento

outros de Hong Kong, mas cuja compreensão

suscitou conflitos com os gestores locais – fac-

da cultura chinesa era parca.

to aliás agravado pelo desejo de modificar sis-

• A estes gestores foram concedidos automóvel e habitação. O salário de cada gestor correspondia ao montante remuneratório atribuído ao conjunto de todos os colaboradores.

temas de saúde e de pensões tendo em vista reduzir custos. • Perante a situação e recebendo várias queixas de trabalhadores despedidos e de outros apo-

• Os gestores chineses sentiram que haviam

sentados, o governo local interveio. Foi reava-

sido ignorados e que tinham parcas oportu-

liado o valor da Blue Sword – que se tornou in-

nidades de serem promovidos aos níveis de

comportável para as pretensões da Interbrew.

topo. Sentiram, também, que os expatriados

Ocorreram também modificações na legisla-

não compreendiam verdadeiramente a cultu-

ção relativa às políticas laborais destinadas a

ra chinesa.

empresas com investidores estrangeiros.

• Muitos empregados da Blue Sword haviam sido recrutados por duas vias. Alguns haviam

Por conseguinte, é plausível que na raiz do fra-

sido trabalhadores de empresas estatais fa-

casso tenham estado o background e o papel

lidas, tendo-lhes sido concedida prioridade

dos gestores chineses, a relação entre expa-

– facto resultante das pressões sentidas pelo

triados e Chineses, assim como a influência do

governo local para reduzir as taxas de desem-

governo local. Esta explicação adquire, aliás,

prego. Outros eram familiares de empregados

especial consistência quando se atenta nos

Quadro A4.4

Diferenças entre os objectivos dos Chineses e dos seus parceiros estrangeiros em t ventures internacionais66

Objectivos

Parceiro chinês

Parceiro estrangeiro

Resultados financeiros

• Aumentar as reservas de divisa estrangeira; investir com o fito no desenvolvimento futuro.

• Repatriar lucros no longo prazo • Maximizar os proveitos a longo prazo.

Investimento

• Minimizar o investimento inicial.

• Investimento mínimo aceitável.

Processo de negociação

• Holístico, global.

• Sequencial, o-a-o.

Natureza do contrato

• Ajustável; curto prazo; ambíguo.

• Para cumprir; longo prazo; preciso e inequívoco.

Inputs

• Focalização nos fornecedores internos.

• Minimização dos problemas de qualidade e da imprevisibilidade.

Outputs

• Aumentar exportações; gerar divisas estrangeiras.

• o e/ou desenvolvimento do mercado doméstico chinês.

Requisitos de pessoal

• O máximo número de empregados locais.

• A menor quantidade possível de pessoas para os outputs desejados.

Estilo de gestão

• Tradicional.

• Moderno. 66

Construído e adaptado a partir de: Sweeney (1996); Jackson (2002a).

179

180


problemas que a PepsiCola experimentou no

“A primeira escolha seria trabalhar com um par-

país, e cujos contornos podem ser identifica-

ceiro americano. Eles são educados, honestos,

dos no relato publicado pela Shanghai Guangji

amistosos e tomam decisões rápidas. Depois vi-

Business Consulting.67 Todavia, é igualmente

riam os de Singapura. São muito eficientes e de

plausível que as matérias de natureza cultural

confiança, tal como os Americanos, mas talvez

expliquem uma parcela fundamental do insu-

menos abertos ou amistosos. Os de Taiwan e os

cesso da t venture entre a Interbrew e a Blue

Chineses de Hong Kong tendem a ser agradá-

Sword. A este propósito, algumas pesquisas su-

veis, mas por vezes aproveitam-se de si. O pro-

gerem que as t ventures internacionais com

blema é que pensam que conhecem a cultura e

mais probabilidades de fracasso são as que se

a linguagem, e que conhecem todas as respos-

realizam entre empresas de países culturalmen-

tas aos problemas da China. Mas não sabem.

te distintos. Tal pode suceder devido a diferen-

Os Japoneses? De facto, denotam muitos dos

ças em torno de matérias como os estilos de

bons traços dos Americanos, dos Europeus ou

liderança, os mecanismos de governança, as

dos Singapurenses. São excelentes planeado-

culturas organizacionais, as concepções éticas,

res, bons no trabalho detalhado, muito profi-

os valores dos empregados e os estereótipos

cientes na tecnologia. Mas muitos Chineses não

que os gestores de cada país se projectam mu-

confiam neles. Isto é um facto. Não conseguem

tuamente no seio da equipa de gestão. Estes

esquecer séculos de história.”72

68

desafios requerem, pois, uma liderança ágil.69 O valor da idade. Os Chineses que integram

“Uma cama, diferentes sonhos?”

as equipas de gestão tendem a ser mais velhos,

“É indubitável que, para terem aceitação na China, as

facto aliás resultante da valorização conferida

novas ideias têm de se mostrar compatíveis com as

à senioridade. Enquanto para eles a idade e a

ideias clássicas e a tradição.”71

experiência de vida devem prevalecer, para os

70

Ocidentais são os conhecimentos e a experiênAs diferenças culturais, políticas e ideológicas

cia especializada que devem ponderar. A insen-

merecem aqui um destaque especial. Elas po-

sibilidade dos estrangeiros para esta matéria

dem ajudar a compreender que os fracassos

pode ser perniciosa.

das t ventures podem provir da diferenças entre os “sonhos” dos gestores chineses e os dos

Gestão: o condimento secreto japonês, mas

ocidentais. Eis alguns dados pertinentes:

a fraqueza da China. Os gestores chineses tendem a possuir boas competências técnicas,

Estereótipos que afastam. É comum haver

mas a formação em gestão é deficitária. Uma

estereótipos mútuos – que, se acentuados, po-

das dificuldades sentidas pelas empresas mul-

dem ser perversos para o funcionamento da

tinacionais que demandam a China em busca

equipa. Li e seus colaboradores citam um ges-

da realização de operações locais tem residido,

tor chinês acerca das preferências de parceria:

precisamente, na dificuldade em encontrar gestores locais com competências suficientes

Shanghai Guangji Business Consulting (2003). 68 Hofstede et al. (2002). Veja, também, Giu (2005); Lu (2006). 69 Fernández (2006). 70 Título do livro de Lampton (2001). Uma crítica à obra foi publicada por Robert Kapp, em The Chinese Business Review (May/June, 2001). 71 Xing (1995, p. 16). 72 Li et al. (1999, p. 55). 67


para levar a cabo as estratégias, as políticas e os

ligação da informação e impositores da disci-

objectivos que se compaginam com as arenas

plina, mais do que como parceiros em busca

competitivas globais do mundo hodierno. A es-

de novas ideias e de processos melhorados. O

cassez de gestores bem preparados tem levado

saldo geral é que as estruturas de autoridade de

a uma “guerra pelos talentos” da qual poderão

tipo chaminé e a ênfase na obediência às auto-

sair vitoriosas as empresas que proporcionarem

ridades superiores tornam os gestores chineses

aos quadros chineses um coach. O valor do

competentes no que concerne a levar a cabo

coaching é particularmente apreciado na me-

tarefas discretas, mas fracos na optimização de

dida em que fornece perspectivas de carreira

todos os processos na cadeia de valor. Esta sub-

promissoras àqueles que dele beneficiem.

til deficiência está reflectida na ausência de um

73

termo chinês para o conceito de ‘trade-off’.” 74 Há alguns sinais de mudança (Caixa A4.6). Mas o facto de o tradicional sistema educacional

O texto prossegue, então, aludindo à provável

do país não contemplar a disciplina de gestão

delonga na alteração deste estado de coisas, e

como a conhecemos no Ocidente representa

comparando a China com o Japão:

uma parcela importante do “atraso” chinês na matéria. Acresce que esse factor está associa-

(...) Em boa verdade, os gestores e os trabalha-

do a um quadro cultural, social, económico e

dores chineses tornaram-se eficientes na im-

político mais amplo. Um modo frutuoso de

plementação de decisões tomadas por outros.

compreender este tema pode ser colhido no

E poucos são tão eficazes quanto os Chineses

seguinte excerto de um artigo publicado na

no empreendedorismo de pequena escala.

revista Harvard Business Review:

Mas serão necessárias décadas para ultraar a arreigada fraqueza sistémica que os impede

“Apesar das duas décadas de t-ventures e do

de desenhar empresas eficientes, fomentar a

volumoso investimento em formação, os gesto-

inovação, facilitar a flexibilidade nos níveis de

res chineses continuam a denotar deficiências

gestão intermédios e encontrar trade-off entre

em tarefas críticas de integração e optimização

os vários pontos da cadeia de valor. A este res-

de sistemas. O problema é fundamental, estan-

peito, a situação na China difere totalmente do

do embutido no próprio sistema económico.

desafio competitivo com que o Japão se apre-

A dominância das empresas de propriedade

sentou perante as empresas ocidentais há um

estatal nos maiores sectores da indústria e dos

quarto de século atrás. O condimento secreto

serviços, juntamente com uma extensiva inter-

japonês era a gestão – mas esta representa a

venção do Estado na economia, valorizou mais

fraqueza da China.”

as competências políticas dos gestores do que as modernas competências de gestão. As consequências são sentidas em toda a hierarquia das empresas. As empresas chinesas tendem a encarar os gestores intermédios como elos de 73

Li et al. (1999, p. 55). 74 Liebertahl e Lieberthal (2003, pp. 73-74).

181

182


Caixa A4.6

Sinais de mudança e os MBA cogumelos

res chineses têm pouca experiência internacional e/ou compreensão da economia de mercado. E,

As reformas económicas e políticas introduzi-

por vezes, reagem de modo menos positivo ao

das após a morte de Mao Tse Tung, especial-

facto de os estrangeiros pretenderem fazer lucro.

mente as erigidas por Deng Xiao Ping, têm

Este facto recomenda aos estrangeiros que não

produzido alterações substanciais no modo

enfatizem o lucro quando pretendem constituir

de funcionamento das empresas e na vida so-

a t venture, pois os Chineses valorizam mais o

cial chinesa. Por conseguinte, a descrição da

grau em que os seus parceiros se orientam para

situação num dado momento pode ser par-

o benefício da empresa e do país.

cialmente desmentida pela realidade emergente algum tempo depois. É possível que

Não basta aprender mandarim. A língua

isso esteja a ocorrer no que concerne à forma-

representa uma barreira comunicacional vee-

ção de gestores, embora seja expectável que o

mente – mas as dificuldades comunicacionais

panorama geral sofra poucas alterações num

podem ser ainda mais vincadas no terreno da

país enorme e com uma enorme herança do

linguagem não verbal. Li e seus colaboradores

ado recente. Eis como Rowley e seus co-

são muito claros nesta matéria:

laboradores se pronunciaram recentemente a propósito da formação de gestores:

“Por exemplo, observámos grandes variações no uso do silêncio nas reuniões da equipa. Os

“Os MBA e os cursos para gestão surgiram

Americanos tipicamente não toleram o silêncio

como cogumelos nos anos 90. Nas peque-

por mais de 10 ou 15 segundos. Os Chineses

nas e médias empresas, há poucas possibili-

gostam de pensar em silêncio sobre um tó-

dades de esta formação e desenvolvimento

pico durante 30 segundos, ou mais, antes de

serem aplicados em larga escala. Todavia,

falar. Todavia, para os Americanos, 30 segun-

são mais comuns nas empresas de maior di-

dos parecem uma eternidade, pelo que falam

mensão, especialmente as grandes empre-

quebrando o silêncio. O parceiro chinês pode

sas estatais, as t ventures e as empresas

sentir-se ofendido ou frustrado, inibindo-se de

estrangeiras.”

falar de novo.”77

É igualmente relevante que o MBA da China

Silêncios e opiniões escondidas. Alguns ges-

Europe International Business School come-

tores chineses não expressam abertamente as

ce a surgir nos primeiros lugares dos rank-

suas opiniões e evitam enunciados peremp-

ings mundiais.

tórios. A conduta é porventura fruto de uma

75

76

cultura que valoriza a “preservação da face”, a harmonia interpessoal e a linguagem indirecta. A linguagem do mercado. Porventura como

Mas é também provável que resulte do clima

resultado da escassa formação em gestão e do

de perseguição e “totalitarismo homogenei-

contexto cultural/político/ideológico, os gesto-

zante” ocorrido durante a Revolução Cultural.

75 77

Rowley et al. (2004, p. 921). 76 Em 2007, surgia em 11.º lugar do ranking do Financial Times (veja suplemento especial, sobre MBA, da revista Exame, Abril de 2007). Li et al. (1999, p. 57).


Habituados a anuir às opiniões de outrem para

Diferenças salariais no seio da equipa de

evitar a perseguição e o pânico, muitos Chine-

gestão. O diferencial remuneratório entre os

ses manifestam concordância – mesmo quan-

Chineses e os expatriados pode provocar res-

do discordam. Uma das consequências desta

sentimentos entre os primeiros, gerando dificul-

ausência de proactividade é a dificuldade em

dades de cooperação. Li e seus colaboradores,

alcançarem-se decisões rápidas.

referindo-se a um estudo de Tang, referem que a disparidade pode alcançar o rácio de 1 para 50.

A importância das pessoas. Os gestores chi-

O problema pode ser ainda mais grave quando

neses concedem um relevo às matérias de na-

o diferencial ocorre entre parceiros chineses:

tureza pessoal que não se compagina com as concepções ocidentais. Li e seus colaboradores

“Os gestores locais podem aceitar, embora de

reportam o caso de dois empregados que, por

má vontade, que os Ocidentais chegados à Chi-

terem desobedecido às orientações reiteradas

na aufiram cinquenta vezes mais do que eles.

de expedir uma dada encomenda urgente para

Mas trabalhar com um gestor similar ao chinês,

um cliente, foram despedidos. Mais de um ano

eventualmente falando a mesma língua, que

após a ocorrência, todos os gestores seniores

aufere esse diferencial remuneratório, é supe-

da parte chinesa continuavam a sustentar que

rior ao que a psique pode aceitar.”78

não houvera motivos para o despedimento e que os empregados deveriam ter sido tratados

Diferentes obediências. Se uma parcela remu-

mais humanamente.

neratória dos gestores está associada ao desempenho da t venture, é expectável que a coo-

Dupla cadeia de comando. Por vezes, emerge

peração impere. Todavia, o oposto pode ocorrer

uma cadeia de comando dupla, em consequên-

quando o incentivo se baseia no alcance dos

cia da tentativa de mais do que um parceiro da

objectivos da empresa-mãe. Nesse caso, cada

equipa requerer o comando da mesma área

gestor pode actuar em dissonância com os ou-

funcional ou de negócios. Quando a dualida-

tros. Ou podem surgir coligações geradoras de

de ocorre em níveis superiores da empresa, os

actuações políticas com efeitos perversos para a

efeitos podem ser profundamente perniciosos

t venture, os gestores – e a própria casa-mãe.

e hipotecar o futuro da t venture (veja a secção seguinte).

Caixa A4.7

influência do Partido Comunista na empresa,

Sugestões para a melhoria da eficácia das equipas de liderança das t ventures com a China

nem sempre de um modo formalmente estabe-

• Importa que, na designação dos gestores

lecido mas, mesmo assim, real. O papel pode ser

para a equipa de liderança, não seja con-

exercido, por exemplo, pelo dirigente sindical.

siderada apenas a competência técnica e

Partido Comunista. É comum detectar-se a

gestionária – mas também a proficiência e a sensibilidade cultural. 78

Li et al. (1999, p. 61).

183

184


• Pode ser pertinente que os gestores pro-

Entre as acções que se lhe requerem para

venham de diversos países e tenham di-

esse efeito, podem citar-se a articulação

ferentes backgrounds funcionais, idades e

de uma visão e de um conjunto de valores

formações académicas.

que sejam significativos para os membros

• É importante gerar interdependência entre os membros da equipa. Por exemplo,

da equipa, o “tacto” diplomático, a compreensão transcultural.

importa que todos sejam juntamente responsáveis pelo desempenho da equipa e da t venture.

Indesejabilidade da gestão bicéfala

• Importa minimizar as diferenças de status

Independentemente das reais razões subjacen-

(e.g., títulos, espaço de gabinete, papéis

tes, os fracassos e as dificuldades têm induzido

nas deliberações do grupo) entre os mem-

alguns autores a sugerirem que a estratégia

bros da equipa.

apropriada para a China não é a t venture

• Os os frequentes e informais entre os parceiros devem ser fomentados.

(a via mais frequentemente usada),79 mas a detenção plena da empresa.80 Complementar ou

• Importa que, através da selecção e/ou da

alternativamente, os autores sugerem a cele-

formação, se assegure que os membros

bração de acordos contratuais81 que permitam,

da equipa tenham competências comu-

pelo menos no que concerne à GRH, a adopção

nicacionais (e.g., de escuta), de ajuda inter-

de políticas e medidas mais condizentes com as

pessoal, de observação e de avaliação dos

regras do mercado e/ou mais liberta dos cons-

processos de grupo.

trangimentos governamentais/locais.

• Recomenda-se o fomento da identidade

79

da equipa, através da comunhão de expe-

A discussão da matéria não é, todavia, linear.

riências e da responsabilidade partilhada.

Alguns estudos sugerem que estes proble-

• Os incentivos e prémios dos gestores de-

mas são relativamente comuns, resultando do

vem estar associados ao desempenho da

modelo de gestão que os parceiros da t ven-

t venture – e não ao desempenho da

ture acordam. Mais especificamente, aduzem

casa-mãe de cada um dos membros da

que uma das causas do fracasso parece advir

equipa.

da tendência dos parceiros para colocarem, na

• Importa atenuar os diferenciais entre as

gestão de topo do empreendimento comum,

remunerações dos diferentes membros da

um representante de cada parceiro.82 Por exem-

equipa. Mecanismos indirectos de equilí-

plo, a parceria entre a Siemens e a Fujitsu deu

brio podem ser as viagens para formação,

origem a uma liderança bicéfala, isto é, a uma

o subsídio de alojamento, as ajudas à edu-

presidência gémea. Mas a experiência mos-

cação dos filhos.

trou que os dois CEOs perfilhavam diferentes

• Importa que o gestor geral (o líder da equi-

políticas, das quais resultaram fricções para os

pa) seja fomentador do bom funciona-

empregados e os clientes, assim como fraca

mento da equipa e da identidade grupal.

eficiência das operações. Consequentemente,

Clarke e Yuxing (1998). 80 Vanhonacker (1997) ; Braun e Warner (2004). 81 Braun e Warner (2002). 82 Kabst (2004).


o processo foi repensado e a bicefalia foi

que a gestão funcional desta área esteja a cargo

removida. Apenas um expatriado, oriundo da

desse parceiro – e, ademais, que seja este a pre-

Siemens, foi nomeado como novo CEO.

sidir à t venture.

Algumas pesquisas sugerem que este tipo de

Esta discussão desafia, pois, a tese comum se-

opções não é pernicioso para o parceiro que

gundo a qual o fracasso das t ventures com

fica desprovido de representante na presidên-

parceiros chineses radica nas especificidades

cia. O que mais releva é a possibilidade de cada

cultural, económica, governamental e política da

parceiro exercer poder sobre as áreas funcionais

China. Em qualquer caso, o que aqui se sugere é

para as quais os seus activos mais contribuem.

que as empresas não atendam apenas a estas es-

Por exemplo, se um parceiro canaliza para a t

pecificidades – mas que sejam também cautelo-

venture activos específicos de Investigação &

sas acerca do modelo de gestão que acordam.

Desenvolvimento, importa que exerça controlo sobre essa área, colocando um representante na respectiva posição de poder. Se os activos canalizados por um parceiro para a t venture

Particularidades da gestão das pessoas na China

são específicos da produção, é recomendável que o controlo sobre a área seja exercida por

O fim da “tigela de arroz de ferro”

esse parceiro. Nestes dois casos, não será neces-

“Quando preenchiam a ficha de entrada num hotel, os

sário atribuir poder de posição na presidência a

Chineses escreviam o seu nome e, a seguir, o nome da

esse parceiro, já que isso representaria redun-

dan wei [unidade de trabalho] a que pertenciam. Era

dância e potenciais conflitos com os restantes

essa a sua filiação. Além de um emprego para toda a

parceiros.

vida, a dan wei assegurava casa e assistência médica, garantia a educação dos filhos, promovia ‘sessões de es-

Esta proposta não responde, porém, à questão

tudo político’, organizava a ocupação dos tempos livres

de saber a qual dos parceiros deve ser atribu-

e era até responsável pela distribuição de preservativos

ída a posição de CEO. Uma resposta verosímil

aos trabalhadores casados.”83

é: ao parceiro que tiver canalizado para a t venture os activos específicos de marketing/

Antes das reformas encetadas nos anos 80 por

vendas. A razão fundamental é a seguinte: estes

Deng Xiao Ping, a gestão de recursos humanos

activos, quando comparados com outros, estão

na China inspirava-se na lógica soviética e as-

disseminados largamente pelas operações do

sentava em três pilares84:

empreendimento conjunto e são virtualmente indispensáveis para a gestão executiva da

• A “tigela de arroz de ferro” representava o direi-

mesma. A gestão das relações com os consumi-

to a garantia de emprego vitalício, a casa e a

dores e a importância dos conhecimentos específicos de vendas são fulcrais para o sucesso da t venture. Por conseguinte, é necessário

outros benefícios. • O “salário de ferro” simbolizava a ideia do salário tendencialmente igual para todos. 83

Caeiro (2004, p. 31). 84 Hassard et al. (2004).

185

186


• A “cadeira de ferro” significava a obtenção de uma promoção garantida em função da anti-

benefícios sociais (incluindo habitação, cuidados médicos, escolas).

guidade, da idade, da lealdade ao grupo, assim como da fidelidade e do trabalho partidários.85

O sistema estava impregnado da noção de que “todos comem do mesmo grande prato”86,

Estes três elementos do sistema tipificavam um

isto é: recebem a mesma compensação inde-

Estado-Providência de grande extensão, sendo

pendentemente do mérito, é-lhes garantido o

operacionalizados num quadro de economia

o a bens mínimos, ninguém é alvo de tra-

centralizada que se projectava sobre as grandes

tamento preferencial. “Dependência organiza-

empresas estatais. As práticas de “istração

da” é uma designação também apropriada para

de pessoal” caracterizavam-se pelo planeamen-

caracterizar o sistema.

to centralizado das atribuições de funções, por um sistema remuneratório relativamente igua-

As reformas, especialmente as levadas a cabo

litário, por um esquema de promoções assente

na década de 90, incidiram sobre três áreas:

na antiguidade e por um leque diversificado de

foram introduzidos os contratos de trabalho,

Quadro A4.5

O modelo da “tigela de arroz de ferro” e a transição para o modelo pós-reformas87

Modelo pré-reformas (“tigela de arroz de ferro”)

Transição (Situação actual em muitas empresas)

Modelo pós-reformas

• Empresas propriedade do Estado

• Várias fórmulas proprietárias (empresas estatais, t ventures, empresas privadas, ou com capital totalmente estrangeiro)

• Gestão das empresas centralizada

• Gestão orientada pelo mercado

• Quadros políticos

• Gestores profissionais

• Emprego vitalício

• Contratos de trabalho

• istração de pessoal (papel istrativo e controlador)

• Gestão de recursos humanos

• Compensação igualitária

• Compensação baseada no desempenho

• Formação interna à empresa

• Formação em cursos externos

• Alojamento facultado (ou subsidiado) pela empresa

• Mercado de rendas de habitação

• Serviços sociais ao nível da empresa

• Segurança social “externa” (companhias seguradoras; Estado)

• Serviços sociais pagos pela empresa

• Serviços sociais pagos pela empresa, pelo trabalhador e pelo Estado

• Fraco turnover

• Maior mobilidade no emprego

• Presença dominante do sindicato oficial (ACFTU)

• Frequentemente, ausência de sindicatos

Numa versão soft, representava a segurança no emprego. Numa leitura mais hard, significava que as posições dos quadros e dos gestores eram inflexíveis (Warner, 2002, p. 216). 86 Hulme (2001). 87 Adaptado de Zhu e Warner (2000); Braun e Warner (2002). 85


implementaram-se os sistemas de compensa-

istração de pessoal. A transferência da GRH

ção associados ao desempenho e implemen-

tem sido apenas parcial. E a sua absorção pela

taram-se modificações na segurança social.

cultura gestionária chinesa tem sido feita com a

Em substituição de um sistema centralmente

impregnação das características chinesas.”89

planeado (o Estado imputava empregados às descentralizado e flexível. Foram adoptados sis-

A transição ainda em curso e os desafios para as empresas estrangeiras

temas de incentivos (especialmente materiais)

“Sendo a lei na China pouco mais do que uma orien-

destinados a encorajar a produtividade. Nos

tação istrativa, é aconselhável que as empresas

critérios de promoção, foram acrescentados

estrangeiras procurem saber de que lado da burocracia

aspectos relacionados com as competências.

a lei provém, para então tentar negociar pontos espe-

Os benefícios sociais (pensões, apoio médico,

cíficos (aqui entra o papel do famoso ‘guanxi’, a rede

alojamento, educação) antes assegurados pelas

de relações). Na prática, a lei é suficientemente flexível

empresas transitaram, em medida considerável,

e aberta para que muitas empresas obtenham conces-

para um sistema de segurança social nacional,

sões especiais no que respeita a impostos, tarifas alfan-

cujos custos são ados pelas três partes

degárias ou outros.” 90

empresas), surgiu um mercado de trabalho

do processo: trabalhadores, empresas e Estado. “(...) Existe esmagadora evidência mostrando que a

Todavia, a introdução de um sistema de gestão

cultura tradicional chinesa (...), assim como os factores

de recursos humanos de teor ocidental tem

políticos, económicos e históricos, influenciam profun-

sido gradual e relativamente lento – seja pela

damente as políticas e as práticas de GRH.” 91

88

especificidade das reformas, pela influência da tradição e da cultura chinesas ou pela natural

Pelo exposto se compreende que as molduras

inércia das empresas (especialmente as esta-

política, legislativa, económica e social projectam

tais). Uma boa leitura de síntese da situação foi

consequências sobre o modo como a gestão

facultada por Shen e Edwards:

das pessoas pode ser levada a cabo e influencia o desempenho das empresas. Gestores expa-

“[Dado que] a istração e o controlo do Esta-

triados oriundos de culturas distintas da chinesa

do continuam a ser fortes, as organizações ainda

podem sentir dificuldade em compreender as

não dispõem da necessária autonomia para im-

particularidades locais e as reacções dos autóc-

plementar uma GRH estratégica. Consequente-

tones. Acresce que a experiência relacional com

mente, assiste-se a uma considerável continuida-

os Ocidentais induziu nos Chineses um senti-

de das práticas da ‘tigela de arroz de ferro’ e da tra-

mento de desconfiança bastante acentuado.

dicional istração de pessoal numa grande

Este facto pode impregnar a gestão quotidiana,

quantidade de empresas estatais. Mesmo entre

pelo menos enquanto laços duradouros não fo-

as empresas tecnologicamente mais avançadas,

rem desenvolvidos e enquanto a compreensão

e em muitas t ventures, a GRH de estilo oci-

mútua entre gestores chineses e ocidentais não

dental ainda não substituiu o antigo modelo de

ocorrer. Numa tentativa de síntese, eis algumas

Braun e Warner (2002); Warner (2003); Gamble (2004). 89 Shen e Edwards (2004, p. 815), baseando-se em Warner (1993, 1995, 1997), Goodall e Warner (1997), Lu e Bjorkman (1997). O leitor pode consultar também Warner (2003) para uma leitura da situação e para compreender como a GRH tem sofrido alterações, embora sempre impregnada de “características chinesas” (p. 26). 90 Trigo (1994, p. 16). 91 Warner (2002, p. 217). 88

187

188


idiossincrasias que podem suscitar dificuldades

dificuldades. É essa a razão pela qual algumas

de compreensão e de acção a gestores de raiz

estão a praticar sistemas de apoio à compra de

ocidental, mas também oportunidades.

casa pelos seus colaboradores. Virgínia Trigo foi

92

peremptória: “Aos olhos dos trabalhadores chiCompensação. Embora os bónus individuais

neses, uma empresa credível deve ocupar-se de

existam na China desde 1979, e os incentivos

muitos aspectos da sua vida profissional e fami-

baseados no desempenho desde 1983, a dife-

liar. Quanto mais o patrão assumir o papel de

renciação remuneratória é relativamente reduzi-

‘pai’ maior será o respeito que os seus emprega-

da. Nas empresas estatais, os sistemas de remu-

dos lhe dedicam. Se os trabalhadores ’sentirem’

neração associados ao desempenho e às com-

que este papel é desempenhado com sinceri-

petências têm vindo a ser implementado mais

dade e sucesso, a empresa será mais coesa e

lentamente do que nos outros tipos de empre-

eficiente e a moral será mais elevada.”95

sas. A remuneração dos gestores das empresas estatais continua a ser fortemente regulada pelo

Sobrerrecrutamento. Especialmente nas em-

Estado. E embora a compensação baseada no

presas estatais, há problemas de excesso de

desempenho individual seja progressivamente

colaboradores. Ainda que o emprego vitalício

mais frequente, parece haver prevalência dos

tenha sido largamente substituído por contratos

bónus grupais. Em geral, esta situação parece

a termo certo, continua a haver fortes pressões

reflectir a necessidade, própria de uma cultura

para que aquele se mantenha, especialmente

colectivista, de minimizar a competição e de

entre os colaboradores mais antigos. Os contra-

salvaguardar a harmonia no local de trabalho.

tos temporários são quase sempre automatica-

É igualmente fruto de uma sociedade onde a

mente renovados. E algumas empresas são alvo

ideologia socialista, o Partido Comunista e as au-

de pressões exercidas pelos governos central e

toridades governamentais continuam a exercer

local no sentido de adquirirem organizações de

influência acentuada – especialmente em sec-

menor dimensão e com problemas de desem-

tores (como o da electrónica) considerados fun-

penho. O nepotismo e o favoritismo são comuns,

damentais para as áreas militares e da defesa.94

o que pode gerar algumas dificuldades a empre-

93

sas estrangeiras que investem no país. Um modo Benefícios. Alguns gestores ocidentais ficam

de estas organizações tentarem contornar a difi-

surpreendidos com o facto de os trabalhadores

culdade consiste em realizar as entrevistas de re-

esperarem que a empresa lhes faculte habita-

crutamento e de selecção com o recurso a vários

ção e outros benefícios sociais. Mas esta é uma

gestores (e não apenas gestores chineses).

fórmula com tradições na China, e algumas empresas estatais continuam a praticá-la. O re-

Liderança e “seguidança”. Os Chineses con-

sultado é que os empregados desenvolvem um

ferem valia acrescida à senioridade. Preferem,

recíproco e forte sentido de lealdade à organi-

também, uma liderança autoritária, embora

zação. As empresas ocidentais que assim não

benevolente, respeitada, competente e deci-

actuam podem, por conseguinte, experimentar

dida. Daqui podem resultar problemas para as

Huo e Glinow (1995); Sergeant e Frenkel (1996); Jackson e Bak (1998); Jackson (2002a); Braun e Warner (2002); Littrell (2002); Fey et al. (2004); Hassard et al. (2004); Dessler (2006); Engardio et al. (2007). 93 Warner (2003); Dessler (2006). 94 Braun e Warner (2002); Child e Warner (2003). 95 Trigo (2006, p. 51). 92


empresas ocidentais, por duas razões. Primeira:

dro, requer-se às empresas ocidentais que com-

alguns gestores expatriados são relativamente

preendam as idiossincrasias chinesas, sob pena

jovens, facto que pode torná-los menos respei-

de desbaratarem o empenhamento, o denoda-

táveis aos olhos dos Chineses. Segundo: muitos

do esforço de trabalho e o sentido de lealdade

gestores tendem a praticar na China os mo-

dos trabalhadores locais.

delos de boa liderança típicos dos seus países (veja casos do mesmo teor descritos na parte inicial do Capítulo 1) – mas que surtem efeitos

Caixa A4.8

contraproducentes por não se adequarem às

Um programa para formação de expatriados na China

concepções chinesas de boa liderança.

A China Europe International Business School Os trabalhadores chineses revelam fraco espírito

é uma instituição de ensino que, segundo a

de iniciativa. São avessos ao risco e pouco ino-

informação constante do website em 5 de

vativos (porventura por receio de fracassarem

Outubro de 2008, é a única com acreditação

e de “perderem a face”). Preferem orientações

Equis na China Continental. É realmente con-

claras, não apreciam que lhes atribuam “excessi-

siderada, como uma das melhores da Ásia,

vas” responsabilidades nem denotam vincados

e o seu MBA tem surgido em boa posição

desejos de participação nas decisões. Eis duas

nos rankings internacionais.97 Em consulta

eventuais razões explicativas para este facto:

efectuada ao referido website98 na data antes

(a) há uma tradição cultural de obediência ao

citada, os autores deste livro identificaram,

96

superior e uma lógica paternalista acentuada ;

entre outros programas de formação para

(b) as pessoas não tomam iniciativa por receio

executivos, um destinado a expatriados, sob

de cometerem erros e serem punidas.

o título: China Expatriate Programme - Accelerating your business success in China. Para que

Os Chineses são bastante sensíveis ao sentido

o leitor forme uma opinião mais detalhada

de pertença e ao exemplo provindo dos seus

da matéria, sugerimos que consulte o men-

superiores. São igualmente motivados pela

cionado website.99

oportunidade de desenvolverem relações sociais no local de trabalho. O seu sentido de colectivismo, de preservação da face, de harmo-

Critérios de promoção. Ainda que os critérios

nia interpessoal e de igualitarismo tem como

de promoção sejam agora mais edificados sobre

consequência que o elogio dirigido a um dado

as competências e o desempenho, a seniorida-

indivíduo perante o seu grupo pode gerar-lhe

de continua a assumir papel relevante. A lealda-

embaraço e ser contraproducente. Ou seja:

de ao Partido, a manutenção de relações har-

aquilo que parecer desejável em muitos países

moniosas e a preocupação em preservar a face

ocidentais (elogiar publicamente alguém pelo

também continuam a exercer influência. No seio

desempenho e realizações pessoais) pode ser

das t ventures, estas lógicas podem colidir

contraproducente na China. Perante este qua-

com as orientações dos parceiros ocidentais.

96

Child e Warner (2003). 97 Warner (2002). 98 www.ceibs.edu 99 http://www.ceibs.edu/execed/programmes/open/3352.shtml

189

190


Escassez de competências de gestão e de

Diferenciais compensatórios perversos. Por

políticas de formação e desenvolvimento.

natureza, os expatriados são compensados com

A formação e o desenvolvimento ocupam ain-

boas remunerações e apelativos pacotes de be-

da um espaço diminuto nas preocupações das

nefícios. Quando exercem missões em países de

empresas. Este facto é especialmente gravoso

elevado desenvolvimento económico, o dife-

devido à carência de competências em diver-

rencial entre o seu nível de compensação e as

sas áreas, incluindo a gestão e, particularmen-

remunerações dos gestores locais não é acentu-

te, a gestão de recursos humanos. A escassez

ada. Mas o mesmo não ocorre quando a missão

de pessoal qualificado nesses domínios induz

decorre em países de mais baixos níveis de de-

grande competição entre as empresas e um

senvolvimento, como é o caso na China. O resul-

consequente nível elevado de turnover. As em-

tado pode ser um enorme desnível entre a com-

presas que prestam formação têm maior pro-

pensação dos membros da equipa de gestão da

babilidade de reter colaboradores e de melhor

t venture, gerando efeitos perversos sobre a

lidar com a escassez de determinadas compe-

coesão e a cooperação no seio da equipa.

tências. (Esta descrição merece um parêntesis. Na persTempo “lento”. O tempo não é considerado

pectiva de alguns ocidentais, esta reacção dos

como recurso escasso, facto que pode ter raízes

Chineses pode parecer pouco condizente com

históricas. Enunciando de modo figurativo:

as “regras de mercado”. Mas o ponto de vista não deixa de ser enviesado. Com efeito, tam-

“O arroz cresce ao longo de uma estação, não

bém nas “economias de mercado” os diferen-

em minutos. O sol nasce dia após dia. O que re-

ciais compensatórios no seio de uma mesma

almente importa é o modo como a vida pode

equipa de gestão geram frequentemente efei-

ser vivida com naturalidade e ser apreciada dia-

tos perversos e lamentos de iniquidades!)

riamente. Se se está constantemente pressionado pelo tempo, onde poderá encontrar-se a

A China “profunda”. A compreensão da China

qualidade de vida? (...) Uma rã numa pétala de

“profunda” requer um tempo de permanência

lótus é um momento no tempo, uma beleza a

relativamente longo no país. A celebração de

contemplar e a meditar, algo a não perder.”

negócios exige o estabelecimento de relações

100

de confiança e o cultivo de uma boa rede de Descrições de funções. As descrições de fun-

relacionamentos interpessoais (guanxi). Estes

ções comportam fraco potencial motivador em

objectivos nem sempre são alcançados devi-

termos de tarefas ou objectivos a serem alcan-

do à insensibilidade (ou simples dificuldade de

çados. São, fundamentalmente, tomadas como

compreensão) dos gestores ocidentais para as

protecção do trabalhador contra alguma exi-

idiossincrasias culturais chinesas. O exemplo

gência além da inscrita nas descrições ou como

descrito na secção “Uma americana na Ásia”,

mecanismo de evitamento de punição.

no Capítulo 1, ajuda a compreender os contornos deste processo e as dificuldades que

100

Xing (1995, p. 19).


os Ocidentais por vezes experimentam para se

naram a ordem económica chinesa (tanto no

compenetrarem do mesmo. As dificuldades são

interior como no exterior do país) como um “ca-

agravadas pelo facto de muitas missões de ex-

pitalismo de rede social.”101 Eis como Björkman

patriação serem relativamente breves (porque

e Schaap se pronunciaram acerca da matéria a

assim são programadas ou porque terminam

propósito da experiência de expatriados oci-

prematuramente), não permitindo ao expatria-

dentais a exercer funções na China:

do a imersão cultural. “O guanxi é um conceito-chave para a compreGuanxi. O que em muitos países ocidentais é

ensão do comportamento social na China, es-

tomado como “tráfico de influências” ou “cunha”,

pecialmente o nexo entre os relacionamentos

pode ser considerado apropriado, desejável

interpessoais e o alcance de recursos desejáveis.

e imprescindível em outros países. O famoso

Ele implica a obrigação social de fazer favores e

guanxi chinês é um caso ilustrativo. Para que

responder reciprocamente, proporcionando,

o leitor compreenda melhor o seu significado,

por exemplo, algum tipo de recurso escasso. A

convidamo-lo a executar o exercício A4.1, situa-

importância do guanxi pode ser vista em vários

do na parte final do capítulo, antes de prosse-

aspectos relacionados com as operações das

guir a leitura. Virgínia Trigo, no livro Negociar

t ventures. Pode ser necessário para obter

na China: Algumas Informações Úteis, editado

vários tipos de permissões e matérias-primas,

pelo Instituto de Promoção do Comércio e do

pode ajudar a empresa a aceder a potenciais

Investimento em Macau, referiu-se ao assunto

clientes, e pode mesmo contribuir para que a

do seguinte modo:

empresa vença um determinado concurso. No âmbito da própria t venture, o guanxi pode,

“Guanxi é um requisito prévio para se negociar

entre outras coisas, ajudar o expatriado a tra-

na China. Se V. for apresentado pela pessoa certa

balhar nos bastidores para obter apoio para as

receberá uma recepção calorosa; se se lembrar

decisões que deseja implementar.”102

de bater sozinho a uma porta cria-se imediatamente uma distância que será depois difícil de ultraar.” O tema será desenvolvido em secção posterior deste capítulo. Aqui, importa compreender que

Caixa A4.9

Guanxi na China, blat na Rússia - redes de relacionamentos ou tráfico de influências?

o guanxi representa redes de relações interpes-

1.

soais, no seio das quais cada parte pode fazer

Provérbios103

pedidos ilimitados à outra parte. Difere da ami-

‘Zhi ren zhong yu zhi wu’ (Quem se conhece

zade e das simples relações interpessoais por-

é mais importante do que o que se sabe)

que inclui obrigações recíprocas de responder

– Provérbio chinês.

às solicitações de apoio. A sua importância é

‘Ruka ruku moyet’ (Uma mão lava a outra)

de tal modo grande que alguns autores desig-

– Provérbio russo.

101

Veja: Clarke e Yuxing (1998); Boisot e Child (1999); Liu (2001); Michailova e Worm (2003). 102 Björkman e Schaap (1994, p. 148). 103 Michailova e Worm (2003, p. 509).

191

192


2.

coincidente. Tal como este, oferece-se a uma

“Faça lobbying aqui, faça-o acolá,

difícil – ou mesmo impossível – tradução.

faça-o em todo o lado”

Estas relações assumiram um especial relevo

O título em epígrafe corresponde ao de uma

no período comunista, permitindo aceder a

secção do texto Doing Business in China,

privilégios e a bens de consumo (essenciais

publicado pela Shanghai Guangji Business

ou não) que o sistema oficial não facultava.

Consulting.

O texto mostra que apenas o

A sua presença mantém-se na actualidade,

etnocentrismo impede que se veja que al-

embora goze de uma imagem negativa jun-

gumas práticas americanas/ocidentais não

to de alguns sectores (sobretudo devido à

se diferenciam das encontradas na China. Eis

associação do termo com actividades crimi-

um extracto do texto:

nosas). São numerosas as semelhanças entre

104

o blat e o guanxi, mas algumas diferenças “Na China, os conselheiros e os consultores

marcam-nos. Por exemplo: (a) o termo guan-

jogaram um papel importante no lobbying

xi tem uma origem neutra, ao o que a

ao longo dos últimos 5000 anos (...). Os

do blat é negativa; (b) a ajuda impregnada

Americanos desde há muito sabem como

no guanxi é uma obrigação social e moral,

os jogos de lobbying são jogados. Algumas

mas é um prazer no blat; (c) a “perda da face”

das práticas americanas são consideradas

gerada pelo incumprimento dos deveres

‘ilegais’ em certos países, como por exemplo

inerentes ao guanxi provoca consequências

os donativos políticos em Singapura. Para os

pessoais vigorosas, mas a perda do blat pode

Chineses, são a norma. Se querem as coisas

ser uma questão de vida ou de morte. O lei-

feitas, tomam atenção ao guanxi, por exem-

tor interessado em compreender as seme-

plo, quem se relaciona com o director do

lhanças e as diferenças entre o guanxi chinês,

projecto, quem pode tomar a decisão, quem

o blat russo e o networking ocidental pode

pode ‘dar a cara’, quem possui informação

consultar o artigo de Michailova e Worm, pu-

privilegiada, como o pagamento é feito,

blicado no European Management Journal.

quando será boa oportunidade para falar e discutir, que tipo de entretenimento é desejável, e assim sucessivamente. (...) Muitos

Comunicação interna. Os Chineses tendem a

negócios são concluídos antecipadamente.

comunicar de modo indirecto, evitando a con-

Quando os chefes se encontram para jantar,

frontação e “preservando a face”106. Dificilmente

é apenas uma formalidade, pois as duas par-

afirmam peremptoriamente o “não”. Para expa-

tes já alcançaram o que desejam.”

triados que valorizam a assertividade, esta con-

105

duta pode ser erradamente interpretada como 3.

ausência de franqueza e dar origem a equívo-

Blat

cos. Outro problema identificável nas empresas

O blat é uma estrutura de relacionamento

chinesas é a comunicação interna, designada-

similar ao guanxi, embora não exactamente

mente a que (não) ocorre entre departamentos.

http://www.seve.gr/documents/meletes_erevnes/Doing%20Business%20in%20China.pdf (o em 5 de Outubro de 2008). 105 Shanghai Guangji Business Consulting (2003, p. 8). 106 Chien (2006). 104


É possível que tal decorra das tradições culturais

vária ordem, é inquestionável que as empresas

e da tendência dos empregados para pensarem

estrangeiras que aí investem podem beneficiar

mais nos interesses do seu departamento do

de algumas particularidades positivas. Uma de-

que nos interesses da empresa como um todo.

las foi identificada por Fey e seus colaboradores,

A comunicação ascendente é também deficitá-

numa pesquisa efectuada com três empresas

ria107, por razões relacionadas com uma cultura

suecas (Tetra Pak, Ericsson e Electrolux) operando

forte em distância de poder e com receios pró-

na China, na Rússia e na Finlândia: a disponibili-

prios de uma sociedade politicamente fechada.

dade dos chineses para conceder longas horas

A ênfase chinesa na harmonia e na “preservação

ao trabalho, tendo em vista ajudar a empresa e

da face” dificulta o fornecimento e o recebimen-

progredir nas suas carreiras. Um empregado da

to de 108. O director geral da Tetra Pak

Ericsson China aludiu ao tema do seguinte modo:

Hoyer China teceu uma explicação peculiar: “A Suécia é um país com grandes benefícios, e “Um dos problemas é que os Chineses se preo-

que atribui grande importância à boa qualidade

cupam realmente com a “perda da face”. Já se

de vida. O sistema de segurança social é bom.

ouvira falar disto antes, e é realmente verdade.

Os empregados na Ericssson China trabalham

Assim, se um gestor chinês não entende algo

mais do que os da Suécia. Para além da orien-

que eu lhe digo, é pouco provável que ele ten-

tação para a carreira, a nova situação na China

te esclarecer-se, pois está preocupado com a

é um factor importante. Os clientes requerem

possibilidade de dizer algo que possa parecer

mais – resposta mais rápida e tempo de entrega

estúpido. Isto é muito diferente de muitos lu-

reduzido são essenciais.”111

gares onde trabalhei anteriormente.”

109

Virgínia Trigo relatou também uma experiência

Apesar de tudo, a mudança é célere

pessoal elucidativa:

“O grau em que a gestão chinesa ‘convergirá’, nos próximos anos, com a gestão ocidental (ou japonesa) é ain-

“Lembro-me que, no surgimento de uma con-

da duvidoso. O caminho que a gestão chinesa tomará

versa em que eu insistia, talvez com demasiada

pode não ser qualquer projecção linear/directa das ten-

veemência, em obter a opinião de um empre-

dências presentes.”112

gado, ele me disse visivelmente constrangido: ‘Você é a minha chefe. Ainda que fosse um

As descrições antes tecidas devem ser interpre-

armário eu curvar-me-ia perante si e diria: sim,

tadas com a consciência de que o processo de

chefe’. Nestas circunstâncias, é muito mais sim-

mudança na China é célere. Esta é, aliás, uma

ples trabalhar para um patrão que tome todas

das razões pelas quais alguns autores consi-

as decisões sem consultar os subordinados.”110

deram ser impossível caracterizar a cultura organizacional típica do país113. Embora possa

Trabalho árduo. Ainda que a gestão de recursos

presumir-se que o panorama geral se aproxi-

humanos na China depare com obstáculos de

ma do processo de transição antes enunciado,

107

Dessler (2006). 108 Dessler (2006). 109 Fey et al. (2004, p. 89). 110 Trigo (2006, p. 47). 111 Fey et al. (2004, p. 89). 112 Warner (2002, p. 221). 113 Child e Warner (2003).

193

194


é necessário reiterar que o país tem sido alvo

vem ocorrendo nas relações com empresas

de reformas (especialmente económicas) pro-

estrangeiras, nas quais o cumprimento da lei e

fundas após a morte de Mao Tse Tung e, sobre-

a observância dos princípios contratuais vêm

tudo, durante a governação de Deng Xiao Ping.

sendo progressivamente aceites e acolhidos.116

As empresas estatais que antes predominavam

• Existem hoje vários tipos de empresas, ocu-

representam, agora, um papel relativamente

pando as empresas estatais (“propriedade de

modesto.

Alguns autores têm dado conta de

todo o povo”, no jargão oficial117) um peso

algumas consequências daí advenientes para a

relativamente modesto em termos de em-

gestão dos recursos humanos.115 Por exemplo:

prego, mas especialmente em termos de con-

114

tributo para a riqueza nacional. Os constrangi• O emprego para toda a vida, a quase ausência

mentos a uma GRH mais moderna (embora

de mobilidade de emprego e o posto de tra-

com “características chinesas”) são claramente

balho que poderia ser herdado são hoje uma

menores nas empresas não estatais.

marca chinesa muito menos profunda do que no período pré-reformas. O recrutamento e a

Um sintoma claro da celeridade das mudanças

selecção são hoje mais norteados pelo mer-

e das dificuldades das empresas em acompa-

cado e pelo mérito, embora as redes de rela-

nhá-las pode ser identificado nos comentários

cionamento próprias do guanxi continuem a

do gestor de uma multinacional farmacêutica.

interferir no processo.

O executivo referia-se ao facto de a sua empre-

• A formação (sobretudo no seio da empresa) é hoje mais comum, especialmente nas grandes

sa possuir um sistema pouco sofisticado de níveis remuneratórios:

empresas. Programas de MBA e de gestão têm proliferado “como cogumelos”.

“Julgamos que não é ainda chegada a altura de

• No período pré-reformas, as remunerações

fazer um esforço acentuado na criação de um

eram fracas e tendencialmente desconexas

sistema formal de níveis remuneratórios. A mu-

do desempenho. O ritmo de trabalho era

dança na China é muito rápida, e nós estamos

lento, e o turnover era raro. Após as reformas,

também a mudar velozmente. Por conseguinte,

foram instituídos contratos a termo certo, im-

logo que terminássemos a criação desse sistema,

plementaram-se sistemas remuneratórios as-

teríamos que alterá-lo, pois já estaria obsoleto.”118

sociados ao desempenho e o “emprego para toda a vida” perdeu o significado de outrora.

“No limiar da escravidão?”

• Não há direito à greve, mas existem processos

“O conceito de Direitos Humanos – tema de constante

de arbitragem e conciliação que permitam di-

polémica com os governos ocidentais – não coincide

rimir disputas ao nível da empresa.

com a interpretação universalmente aceite. Direitos Hu-

• Especialmente nas empresas locais, o guanxi

manos, em chinês, diz-se Ren Quan, que significa, literal-

continua a exercer papel relevante nos negó-

mente, Poderes do Homem. ‘Sempre que um chinês lê ou

cios, secundarizando-se frequentemente a lei

ouve o termo quan, ele lê e ouve o termo poder’ – diz a

e os princípios contratuais. Mas algo distinto

escritora Adeline Yeh Mah.”119

A sua importância pode ser ainda menor do que as estatísticas oficiais sugerem. Um fenómeno designado de “chapéu vermelho” pode ajudar a compreender as razões para tal. Significa que diversas empresas privadas escondem a sua verdadeira identidade mantendo o estatuto formal de empresa colectiva ou estatal. Desse modo, podem aceder mais facilmente a terra, financiamentos, contratos governamentais e benefícios fiscais (Warner, 2002). Veja, também, Engardio et al. (2007). 115 Warner (2002, 2003) ; Rowley et al. (2004). 116 Child e Warner (2003). 117 Warner (2002, p. 19). 118 Braun e Warner (2002, p. 571). 119 Caeiro (2004, p. 36). 114


Quadro A4.6

Breves orientações/recomendações para a GRH na China120

Reduza a ambiguidade e a incerteza

As regras e os procedimentos devem ser bem documentados e comunicados, tendo em vista reduzir a ambiguidade e o risco. Importa, pois, proporcionar descrições claras de funções e instruções claras para tarefas específicas. Assim se poderá criar um quadro de segurança para os empregados, informando-os das regras de conduta, do âmbito dos seus cargos e das expectativas em termos de desempenho e qualidade.

Valorize a lealdade

Os sistemas de recompensas devem incorporar um elemento de “lealdade”, assim se fomentando e recompensando o sentido de “pertença”. Subsídios de habitação e remuneração indexada à permanência na empresa podem também ser apropriados.

ita eficazmente

Importa desenvolver programas de issão eficazes, aproximando o empregado da empresa.

Adopte formação ajustada ao contexto organizacional

Os programas de formação devem reflectir o modo como “as coisas são feitas aqui” – mais do que as competências específicas que podem ser facilmente transferíveis para outras organizações.

Como líder, seja a “personalidade” da organização

Desenvolva competências que lhe permitam actuar como modelo e representar a “personalidade” da organização.

Lidere pelo exemplo

Denote trabalho árduo, seja pontual e actue pelo exemplo.

Foque-se no colectivo

A focalização no trabalho colectivo tende a produzir resultados mais positivos do que a ênfase no desempenho individual.

Trace opções de carreira claras

Disponibilize opções claras de carreira, especialmente para os colaboradores que pretende venham a ser modelos de papéis.

Não esqueça a distância de poder!

Gestão participativa e de grande proximidade social pode ser contraproducente.

Evite grandes desníveis salariais

O leque salarial amplo pode ser igualmente nefasto para a motivação, o espírito de grupo e a confiança.

Nunca esqueça a importância da “preservação da face”

Oriente-se pela harmonia interpessoal, pelo evitamento do confronto aberto e pela “preservação da face”.

“Como já ouvira muitas vezes, ‘a China é governada

chinesa (mil e trezentos milhões de pessoas),

por homens e não por leis’ e dentro da sua ‘unidade’,

ao elevado ritmo de crescimento da economia

um pequeno ‘líder’ pode mandar mais do que qualquer

(9% ao ano nos últimos 15 anos) ao potencial

decreto”.

de crescimento futuro e ao papel crescente da

121

China na economia mundial. O texto começava, O título em epígrafe corresponde ao de uma

aliás, por referir que o país produz cerca de 75%

secção de um artigo publicado na revista Visão.

dos brinquedos, 30% dos televisores, 25% das

O título do artigo era “A maior fábrica do mun-

máquinas de lavar e 20% dos telemóveis que se

do”, fazendo alusão à imensidão da população

vendem em todo o mundo.

Construído a partir de : Huo e Glinow (1995); Sergeant e Frenkel (1996); Jackson e Bak (1998); Jackson (2002a); Chien (2006); Li et al. (2006); SeKiguchi (2006); Trigo (2006). 121 Caeiro (2004, p. 167). 120

195

196


Um dos factores explicativos do “milagre chinês”

voz e olhos baixos, enquanto corta os extremos

parece residir nos baixos custos da mão-de-

de um molho de cabos amarelos da grossura

obra e na já referida grande propensão para o

de uma linha. Yang diz que gostava de ter con-

trabalho árduo. A fronteira entre este espírito de

tinuado a estudar, mas que não pode porque

sacrifício e a submissão a lógicas “escravizantes”

tem dois irmãos mais novos e tem de ganhar

é, todavia, ténue.122 O artigo aqui em análise é,

dinheiro para ajudar em casa. O rendimento

aliás, bastante emblemático. E ajuda a interpre-

mensal per capita na China, nas zonas rurais,

tar os problemas sociais e humanos que a Caixa

onde vivem dois terços da população, é de 20

A4.10 reflecte. Apresentaremos seguidamente

euros mensais.”123

alguns extractos desse artigo, para depois tecermos algumas considerações reflexivas. Eis os

Cinco minutos na casa de banho. “[Luo

extractos:

Lihuan, chefe de uma das linhas de produção] conhece perfeitamente as normas. ‘Não podem

Proibido levantar a cabeça. “Como é a vida de

falar, para não se distraírem, e se precisarem de

milhões de operários que fazem girar esta po-

ir à casa de banho não devem demorar mais de

derosa cadeia produtiva, às vezes em silêncio,

cinco minutos’, revela.”124

outras vezes ousando levantar a cabeça? Zhang [directora da empresa Quan Az] assegura que

Ainda a “tigela de arroz de ferro”. “Muitos dos

o salário mensal dos seus operários é de 800

assalariados de Quan An pernoitam nos dormi-

yuans (75 euros) por 10 ou 11 horas de trabalho

tórios que a empresa tem num edifício anexo.

diário e um dia livre por mês. Condições que

Pagam dois euros por mês por um quarto in-

lhe parecem normais porque é igual em muitos

festado de mosquitos, no qual dormem entre

locais da China. (...) Cerca de 60% dos trabalha-

seis a oito pessoas, distribuídas por beliches.

dores desta empresa são oriundos do interior

Num dos quartos, acumulam-se sobre uma

do país (...) e só regressam às suas casas no

mesa um ventilador, utensílios para a comida

Ano Novo, em finais de Janeiro. São quase to-

e recipientes para água. (...) Num dos beliches,

das mulheres da casa dos 20 anos, ‘porque têm

por detrás de uma cortina rasgada que pro-

mais paciência para o pormenor’, porque são

porciona a única intimidade possível, está uma

mais fáceis de dirigir e, o que talvez seja mais

televisão. Zhang dá-se conta, afasta a cortina e

importante, segundo Ruby Zhu, economista da

diz em tom de provocação: ‘Isto está proibido,

Câmara de Comércio de Hong Kong, porque

existe um quarto para ver televisão. Além disso,

ganham menos. Como Yang Limei, uma rapa-

às onze da noite toda a gente tem de estar a

riga de 18 anos, de cabelo curto e olhar triste,

dormir e não se pode fazer barulho’. Ao cair da

de Guangxi, que veste uma mísera blusa com

tarde, às sete horas, antes de voltarem à linha de

o desenho do rato Mickey. ‘Estou aqui porque

montagem, os trabalhadores saem para o pátio

na minha terra a situação não está boa. Vim há

para jantar. De cócoras, colocam a tigela metá-

um mês, e está tudo bem, o trabalho é fácil; mas

lica perto da boca enquanto empurram o arroz

ainda não sei quanto vou ganhar’, afirma, com

com os pauzinhos.”125

122

Dyer (2007). 123 P. 98 124 P. 98 125 P. 99


Legislação laboral desrespeitada. “O proble-

lução é aguentar. ‘Se se despedirem e regressa-

ma [segundo as associações laborais] é que,

rem a casa, não vão ganhar mais de cem yuans

embora existam leis que fixam o número má-

(9,3 euros) por mês’, disse Zhang, a directora de

ximo de horas e os salários mínimos, raramente

Quan An.” 128

são respeitadas. E os operários, que por vezes têm o salário de meses em atraso, são obriga-

Esta descrição compagina-se com as alterações

dos a calar-se, ao verem como são penalizados

nas relações industriais que ocorreram no país,

financeiramente por terem gasto mais de cinco

no sentido de uma maior conflitualidade e

minutos na casa de banho ou terem falado du-

agressividade. A literatura sugere que, à luz dos

rante o trabalho, e a fazer horas e horas a mais

padrões laborais ocidentais, a violação dos di-

para aumentarem os seus magros rendimentos

reitos dos trabalhadores ocorre em quase todos

e não perderem nada do que ganharam. Na

os domínios da gestão dos recursos humanos:

China, são proibidos os sindicatos indepen-

justiça e direitos, recrutamento e selecção, for-

dentes.126 ‘Sindicatos, que é isso?’, pergunta Luo

mação, salários e benefícios, horário de traba-

Lihuan, a chefe da linha de montagem de Quan

lho, condições de trabalho e segurança social129.

An. Embora existam empresas onde as condi-

As antigas relações “harmoniosas” (os trabalha-

ções de trabalho são razoáveis, a maioria, se-

dores eram denominados “patrões” das empre-

gundo a CLB [China Labour Bulletin] não cum-

sas estatais) foram substituídas pelas tensões

pre as normas e não desconta para o sistema

constantes entre empregadores e empregados

de pensões nem proporciona seguro de saúde.

e pelo crescente desequilíbrio de poder nas

‘Alguns operários trabalham 12, 14 e mesmo 20

relações laborais. Pese embora a preocupação

horas por dia.”127

que estes problemas suscitam no governo (devido à instabilidade social) e as pressões provin-

Protestos que a prisão silencia. “O valor acres-

das do exterior, a mudança é lenta. Os sindicatos

centado da China, actualmente, está na mão-

não exercem o papel que tipicamente exercem

de-obra. É barata, obedece e trabalha’, disse um

nas economias ocidentais, sendo muitas vezes

empresário estrangeiro que está há vários anos

pró-gestão das empresas (e não pró-trabalha-

no país. Obedece e trabalha, até que rebenta

dores) e estando a sua actividade limitada por

o conflito. Na China acontecem protestos fre-

vários constrangimentos, alguns de jure, outros

quentes – embora poucos tenham repercussão

de facto. Por razões históricas (designadamen-

– provocados pelos baixos salários e pelas más

te, a economia planificada e o sistema de po-

condições de trabalho. (...) Alguns dos cabeci-

der centralizado), a lei chinesa permite apenas

lhas [de um protesto realizado em Dongguan],

uma federação de sindicatos (ACFTU: All-China

que rondam os vinte anos, foram condenados

Federation of Trade Unions), e a independência

a vários anos de prisão. Segundo o advogado,

dos sindicatos não está assegurada. Na prática,

para servirem de exemplo e mostrar aos investi-

o Estado não garante o direito à greve. E muitas

dores que os seus interesses são protegidos na

empresas resistem à sindicalização dos seus tra-

China. (...) No entanto, para a maioria, a única so-

balhadores.

126

Veja Child e Warner (2003), acerca desta matéria e do modo como os conflitos gestão-trabalhadores são dirimidos. 127 P. 100 128 P. 100 129 Shen (2006).

197

198


Reflexões sobre o futuro

• Terá razão Shang Dewen131, professor uni-

“O crescimento da China deixou de ser uma previsão.

versitário de economia, quando afirma que

É um facto. É já a economia com maior taxa de cres-

“o maior problema que a China enfrenta é a

cimento mundial, e a segunda detentora mundial de

contradição entre a economia de mercado e

reservas de divisa estrangeira, sobretudo dólares. Tem o

o sistema político. Sem a introdução de refor-

maior exército do mundo (2.5 milhões de homens) e o

mas políticas, a corrupção e outros problemas

quarto maior orçamento da defesa, crescendo dez por

será cada vez mais graves”?

cento ao ano. Independentemente de se saber se ultra-

• Na eventualidade de ocorrer liberalização

ará economicamente os EUA (o que me parece uma

política, surgirão maiores reivindicações pela

possibilidade ainda distante), é indubitável que é a poderosa nova força na cena global.”130

melhoria das condições sociais e de trabalho? • Daí advirão maiores custos de mão-de-obra, que obrigarão as empresas a procurar eficiên-

O que acaba de ser exposto suscita diversas

cia?

questões pertinentes para que se reflicta so-

• Se tais melhorias sociais não ocorrerem, ver-

bre o percurso que a gestão global poderá

-se-ão as empresas ocidentais obrigadas a

seguir nos próximos anos. Pela sua dimensão

prescindir de determinadas “benesses sociais”

e posicionamento geoestratégico, a China já

para então melhor competirem com as em-

é hoje uma grande potência, tanto política como económica. Mas a dimensão territorial e o ritmo de crescimento económico avassala-

presas chinesas? • Daí decorrerão perdas sociais para os trabalhadores de países europeus?

dor transformarão o país numa “superpotência”,

• E advirão alterações nas políticas de gestão de

permitindo-lhe influenciar as linhas gerais de

recursos humanos das empresas europeias?

desenvolvimento económico e político do globo. São já hoje frequentes as acusações de que

O futuro é, por natureza, indescortinável. Mas

a China pratica dumping social. Aduz-se que,

estas questões ajudam a compreender como a

consequentemente, as empresas dos países

globalização suscita novos desafios às empre-

com políticas sociais mais justas terão dificulda-

sas e à gestão. O jogo de xadrez em que as mul-

de em competir com as empresas chinesas. E

tinacionais se envolvem é influenciado pela si-

preconiza-se a tomada de medidas condizentes

tuação actual da China, mas sê-lo-á ainda mais

nas instituições supranacionais. Este panorama

vigorosamente no futuro. Mesmo as empresas

convida a algumas interrogações:

“domésticas” verão o seu percurso afectado por esse processo.

• A liberalização económica chinesa virá a ser acompanhada pela liberalização política? • Poderá a China prosseguir com os tradicionais ritmos de crescimento económico se mantiver o seu regime político?

130

Zakaria (2005, p. 17). 131 Citado por Caeiro (2004, p. 171).


Caixa A4.10

‘tremenda aflição’ nos homens de negócios

Suicídios, ansiedade e frustração – Um congresso em Pequim debatendo os efeitos psicológicos do desenvolvimento na China

bem sucedidos que ‘perderam a sua identidade’, os seus amigos e os seus costumes ao enriquecer. Quem não alcança o sucesso económico enfrenta uma frustração ainda

Entre os dias 8 e 13 de Agosto de 2004, rea-

maior, porque ‘os seus desejos aumentaram,

lizou-se em Pequim o 28 International Con-

mas os seus salários não podem pagá-los’,

gress of Psychology. Uma notícia do 24Horas-

diz o especialista.

th

News.com.br, dava conta de alguns aspectos aí debatidos relacionados com os efeitos do

A competitividade no trabalho, unida às no-

novo modelo económico chinês sobre a

vas ânsias consumistas da sociedade (mó-

saúde mental dos Chineses. Eis uma parcela

veis, carros, apartamentos), encurralaram

da notícia :

muitas famílias da incipiente classe média,

132

que começam a usar o cartão de crédito e “Ansiedade, frustração e depressão são al-

são capazes de se endividar para ir de férias.

guns dos males que afectam a população

Os funcionários públicos, que antes desfru-

da China, cujo desenvolvimento económico

tavam de um trabalho vitalício segundo o

sem precedentes trouxe uma avalancha de

modelo da ‘tigela de arroz de ferro’, temem

tensões desconhecidas até então para esta

agora pelos seus empregos, e vêem-se incli-

sociedade. Apesar de o seu rendimento ter

nados a comportamentos violentos e com-

sido multiplicado por dez nos últimos vinte

pulsivos, dizem os especialistas.

anos, os Chineses não são mais felizes hoje do que no ado e recorrem ao escapis-

‘A corrupção, do ponto de vista psicológico,

mo e ao hedonismo para aplacar as suas

é um acto impulsivo, motivado pela insegu-

ansiedades (...). Nos casos mais extremos, as

rança social e pelo amor ao dinheiro’, opinou

tensões desembocam em comportamentos

Hou Yubo, outro psicólogo da Universidade

violentos ou compulsivos: vício em jogos

de Pequim. Os 800 milhões de camponeses

virtuais, endividamento, alcoolismo, assassi-

chineses também não têm vida fácil. As suas

nato e suicídio.

condições precárias contrastam com o enriquecimento dos empresários. Nos últimos

‘Os cidadãos chineses não sabem como en-

anos, devido ao atraso no pagamento dos

frentar as mudanças abruptas neste período

salários aos trabalhadores rurais que emigra-

de transição’, segundo Wang Dengfeng, pro-

ram para as cidades, aumentaram as imola-

fessor de psicologia da prestigiosa Universi-

ções de camponeses na Praça da Paz Celes-

dade de Pequim. A economia de mercado

tial, uma saída ‘digna’ para um homem que

criou uma espécie de ‘mania social’, cujos

não pode voltar fracassado a seu lugar de ori-

ídolos maiores são o dinheiro e o poder,

gem. Segundo dados da Associação Chinesa

segundo Wang, que, no entanto, vê uma

de Saúde Mental, os suicídios nas áreas rurais

132

http://www.24horasnews.com.br/index.php?mat=108091 (algumas expressões foram adaptadas para o português de Portugal).

199

200


superam os das áreas urbanas, e frequentemente o ressentimento acaba em alcoolismo e violência, muitas vezes doméstica.

Expatriados formando os seus sucessores chineses: expatriar ou localizar, eis a questão

Embora os problemas psicológicos nem sempre acabem em suicídio, esta já é a quin-

Um dos factores fundamentais para o sucesso

ta causa de morte na China e a primeira en-

das empresas estrangeiras na China é a capa-

tre as pessoas de 14 a 34 anos. Na cidade, os

cidade para construir equipas de gestão local

jovens buscam escapar das duras demandas

fortes e competentes. Todavia, devido à escassez

escolares, refugiando-se nos jogos de com-

de gestores locais experimentados, as empresas

putador ou na Internet, onde já são o maior

estrangeiras enfrentam o desafio de recrutá-los,

grupo de utilizadores, que am horas, e

desenvolvê-los e retê-los. No que diz respeito à

até dias, vivendo aventuras fictícias e com-

complexa tarefa de desenvolvimento, tem sido

batendo demónios e ogres imaginários.

frequente incumbir os expatriados de executar os papéis de professores, de mentores e de coaches

A pressão social e as esperanças familiares

dos gestores locais. Este processo denomina-se

depositadas nos adolescentes também cau-

“localização”133 e foi usado por empresas como a

sam tensão psicológica, e as universidades

Coca-Cola134, a Unilever, a ABB e a Siemens.135

de Pequim e Tsinghua, as mais prestigiosas do país, têm um alto índice de suicídio en-

O leitor pode aprofundar a compreensão do

tre os seus alunos. São, na sua maioria, filhos

tema lendo a secção “Localização de RH e de-

únicos que, em muitas ocasiões, foram os

senvolvimento de colaboradores locais”, no

melhores estudantes nas suas províncias e

Capítulo 8. Aqui, importa especificamente com-

não conseguem aceitar uma suspensão ou

preender a sua pertinência para as empresas

uma decepção amorosa. Em alguns casos,

que investem na China. E a primeira matéria

em vez de acabarem com a sua vida, estes

que requer atenção é a das vantagens poten-

jovens decidem agredir os seus companhei-

ciais do processo:

ros ou matar os seus pais, fontes das expectativas não cumpridas. ‘As mudanças sociais

• Os gestores expatriados auferem níveis de

são mais rápidas do que a educação do país,

compensação muitas vezes superiores (alguns

trazendo graves crises psicológicas para os

dados apontam para cifras até 50 vezes supe-

jovens’, opina um especialista.”

riores136) aos obtidos pelos locais. As dificuldades de cooperação no seio da equipa de gestão são um dos potenciais efeitos perversos dessa disparidade. Substituir expatriados por gestores locais pode, por conseguinte, diminuir custos e pôr fim a alguns conflitos entre os parceiros.

133

Braun e Warner (2002) ; Law et al. (2004). 134 Mok et al. (2002). 135 Selmer (2003e). 136 Selmer (2003e).


• Mediante os gestores locais, muitas barreiras linguísticas e culturais entre a sede e a China

para fazer a integração global e a transferência de conhecimento.

desvanecem-se. • Os gestores locais estão mais capacitados para trabalhar no seio das redes guanxi.

Do exposto se extrai a noção de que as empresas estrangeiras na China se confrontam com

• A presença de gestores locais nas filiais de em-

um dilema que não pode ser resolvido com

presas estrangeiras favorece o relacionamento

simples cálculos de redução de custos a curto

entre elas e as autoridades locais. Estas auto-

prazo. É necessário que ponderem as vantagens

ridades podem percepcionar a localização

e as desvantagens da expatriação e da localiza-

como uma demonstração do empenhamento

ção – e que se indaguem acerca do processo

da empresa no país.

que mais se compagina com os seus interesses

• A localização incrementa a motivação dos

estratégicos.

gestores locais e diminui a sua tendência para abandonar a empresa – pois aumenta-lhes

Se optarem pelo desenvolvimento de proces-

as probabilidades de promoção dentro da

sos de localização, importa então que actuem

empresa e transmite-lhes sinais de reconheci-

para motivar os expatriados a “ensinarem” os

mento.

locais. Entre os factores motivadores que têm à sua disposição, contam-se os seguintes:

Não se recomenda, porém, que as empresas estrangeiras enveredem por um processo precipitado de localização e substituição dos expatriados. Na verdade, a presença de expatriados conflui para diversas vantagens:

• Afirmar muito claramente que a localização é uma política privilegiada pela empresa. • Definir claramente objectivos de implementação (e.g., quais as posições a localizar, em que prazo).

• Dada a escassez de gestores chineses bem preparados, a empresa precisa de recorrer a expatriados para garantir que as operações são executadas com sucesso.

• Seleccionar expatriados que denotem competências de formação e de coaching. • Formar os expatriados (i.e., ensiná-los a ensinar os Chineses).

• Os expatriados podem estar mais sensibiliza-

• Inserir as competências de localização do ex-

dos e preparados para compreender a cultura

patriado entre os critérios de avaliação do seu

da empresa global, para estabelecer a ponte comunicacional entre a filial e a sede, e para implementar no terreno as orientações estra-

desempenho. • Recompensar o expatriado pelo alcance dos objectivos de localização.

tégicas conducentes à integração global. • A expatriação, na China ou em outros países,

Como nota final, refira-se que o processo de

representa um mecanismo de formação de

ensino e coaching do expatriado sobre o seu

gestores e líderes globais – de que qualquer

sucessor local pode ser dificultado por várias

empresa com ambições internacionais carece

razões137: 137

Selmer (2003d, 2003e).

201

202


• O expatriado pode apreciar a missão ou estar apreensivo quanto ao seu futuro noutro local. Pode, portanto, desejar permanecer no país,

O estilo de negociação chinês – a lógica aparentemente sem lógica

estando pouco desmotivado para formar o seu sucessor e, assim, provocar a sua própria “sucessão”.

A lógica formal ocidental versus a lógica dialéctica chinesa

• O expatriado pode não ter competências for-

Seja aquando da preparação das parcerias com

mativas ou estar carenciado de conhecimen-

empresas chinesas, seja no quadro das relações

tos linguísticos e culturais que o capacitem

de negócios já institucionalizadas, os gestores

para a formação/coaching.

ocidentais necessitam de negociar com a con-

• Absorto pelas tarefas de gestão, o expatriado

traparte chinesa. Os eventos negociais são pro-

pode não dispor do tempo suficiente para a

gressivamente prolixos como resultado de um

formação do seu sucessor.

crescente afluxo de investimento estrangeiro à

• A reputação do expatriado junto dos Chineses pode ser de tal modo fraca que os ensinamen-

China e da celebração de numerosos acordos de parceria.

tos não surtem qualquer efeito, ou são mesmo contraproducentes.

Sucede, porém, que vários conflitos e equívo-

• As relações superior-subordinado e professor-

cos podem surgir como fruto da lógica negocial

-aluno na China não são idênticas àquelas a

chinesa – bastante distinta da lógica negocial

que o expatriado está acostumado, pelo que

ocidental. Esperando que a contraparte chi-

podem faltar-lhe as competências de “instru-

nesa negoceie e estabeleça acordos negociais

ção” apropriadas.

segundo princípios presumidamente “óbvios”, os Ocidentais são frequentemente confronta-

Estas matérias assumem grande relevância, ha-

dos com lógicas de raciocínio, de acção e de

vendo estudos sugerindo que a relutância dos

negociação que ferem a sua própria lógica.

expatriados em localizar (porque não acreditam

A consequência é que acabam por reagir como

que seja necessário fazê-lo e/ou porque eles

se os Chineses tivessem propensão natural para

próprios desejam permanecer na China) afecta

violar acordos negociados de acordo com os

negativamente o processo de localização. Para

seus interesses momentâneos!

138

que o leitor possa melhor compreender como se podem realizar eficazmente os processos de

No sentido aqui usado, uma lógica pode ser

ensinamento, tendo em vista a localização, su-

considerada como um conjunto de premissas

gerimos que (re)leia duas secções do Capítulo

subjacentes, profundamente enraizadas nos in-

8: (1) “Localização de RH e desenvolvimento de

divíduos, frequentemente não examinadas, que

colaboradores locais” e (2) “Os expatriados en-

formam a moldura dentro da qual o raciocínio

quanto coaches.”

toma lugar.139 É um conjunto coerente de princípios organizadores do pensamento dos indivíduos e da forma como interpretam a realidade.

138

Selmer (2003d; 2003e). 139 Horn (1983), citado por Palich et al. (2002).


De modo simples, pode afirmar-se que a lógi-

tensão interna que existe entre entidades opos-

ca negocial ocidental é formal, ao o que a

tas e que motiva a mudança. Três grandes prin-

chinesa/oriental é dialéctica ou contraditória.

cípios organizam esta lógica:

Lógica formal ocidental. A lógica ocidental

• O primeiro é, precisamente, o da mudança

está profundamente impregnada no pensamen-

provocada pela tensão interna, e não por for-

to ocidental, recebendo forte influência do pen-

ças externas. É a contradição entre as forças

samento Aristotélico e da ênfase colocada no

internas que provoca a mudança. A sua ausên-

raciocínio dedutivo rigoroso. Pode ser caracteri-

cia resulta em falta de movimento. São essas

zada à luz de três princípios: (1) identidade; (2)

mudanças internas que influenciam as forças

não contradição; (3) exclusão do meio-termo:

externas, não o contrário. • O segundo sugere que a mudança é da ordem

• O princípio da identidade aduz que uma coi-

do desenvolvimento: a resolução de contradi-

sa é igual a si própria, e que uma entidade é

ções (forças internas) gera novas contradições

separada de outras entidades. A mudança é

ou paradoxos, cuja resolução produz novas

possível, mas a natureza fundamental de uma

contradições, e assim sucessivamente. As no-

identidade é permanente.

vas contradições representam mudanças po-

• O princípio da não-contradição assume que

sitivas – não obstáculos.

uma entidade não pode ser simultaneamente

• O terceiro descreve dois tipos de mudanças:

A e não-A. Por exemplo, uma afirmação não

evolucionárias e revolucionárias. Uma grande

pode ser falsa e verdadeira. Um líder não pode

quantidade de mudanças evolucionárias pro-

ser autocrático e democrático.

voca mudanças revolucionárias em qualidade.

• O princípio da exclusão do meio termo aduz

“Mais especificamente, o somatório de mu-

que uma entidade, se não pode ser A e não-

danças incrementais/evolucionárias sucessivas

-A, também não pode ser algo entre elas. Em

proporciona a plataforma para que mudanças

sentido estrito, este princípio requer que os

revolucionárias ou radicais ocorram.”141

indivíduos aceitem uma ideia no seu conjunto ou a rejeitem também na totalidade. Ele não permite, pois, que se perfilhem partes de diferentes ideias, especialmente das que estão em contradição entre si.

Caixa A4.11

A Intel, a lógica paradoxal e a criatividade Ainda que a lógica formal predomine no Ocidente, há razões para supor que a lógica

Lógica dialéctica chinesa. A lógica dialéctica

dialéctica tem os seus dilectos e praticantes.

(paradoxal ou contraditória) chinesa é distinta

Uma das maiores evidências pode ser iden-

da lógica ocidental, aceitando o paradoxo e a

tificada em diversa literatura relativa ao con-

contradição como naturais – e como veículos

flito, designadamente a que argumenta que

que permitem a mudança positiva e o cresci-

o conflito construtivo deve ser procurado e

mento.

fomentado tendo em vista a produção de

140

A contradição é interpretada como a

140

Veja Nisbett (2003). 141 Palich et al. (2002, p. 785).

203

204


maior quantidade de alternativas decisórias e

Estilos negociais peculiares

de melhores decisões.

A literatura referen-

Estas lógicas transvazam os seus efeitos para

te aos modos de prevenção do pensamento

os estilos negociais, sendo legítimo presumir a

grupal também é bastante peremptória143:

existência de um estilo de lógica negocial formal

se as equipas desejam evitar decisões pre-

e outro de lógica dialéctica. As diferenças entre

cipitadas com desastrosas consequências,

estes estilos podem ser traçadas de acordo com

é necessário que o conflito construtivo seja

três dimensões: confiança entre as partes, pro-

encorajado, que o “mensageiro da má notí-

cesso negocial e horizonte temporal. Nas linhas

cia” não seja eliminado, que a diversidade de

seguintes, dar-se-á conta destas diferenças

opiniões seja fomentada.

mediante a abordagem facultada por Palich e

142

seus colaboradores. Os autores focaram-se esNum artigo precisamente intitulado “Promo-

pecificamente nos negociadores Americanos

vendo a criatividade mediante a lógica da

e Chineses, pelo que é essa a designação que

contradição”, Livingstone e seus colaborado-

usaremos seguidamente. Mas não será abusivo

res aduziram que a lógica da contradição ou

referir que, em matéria negocial empresarial, o

do paradoxo pode ser um poderoso estimu-

quadro americano se compagina com as lógi-

lador da criatividade ao serviço das equipas

cas prevalecentes em muitos países ocidentais

e das organizações. Os autores ilustram a

– e que a moldura chinesa se replica em muitos

tese com o exemplo da Intel, sugerindo que

países orientais.

a lógica da contradição ajuda a explicar o sucesso da empresa no negócio dos micro-

Confiança entre as partes. A lógica formal

processadores: “A filosofia de gestão e a cul-

americana tende a induzir os negociadores

tura da Intel encorajam saudáveis níveis de

a pensar que só é possível ganhar ou perder

conflito. Andy Grove sabia que a gestão por

– sendo impossível ganhar e perder. O corolário

vezes fracassa em lidar eficazmente com as

é simplesmente este: os negociadores partem

mudanças porque os empregados receiam

para a negociação com espírito competitivo,

transmitir más notícias aos seus superiores.

denotando pouco propensão para a busca de

Assim, através da ‘confrontação construtiva’,

soluções em que ambas as partes possam ga-

as reuniões envolvem frequentemente dis-

nhar. Por conseguinte, buscam todas as opor-

cussões acentuadas acerca dos prós e con-

tunidades para prosseguir os seus próprios

tras das ideias.”

interesses independentemente dos custos daí

144

advenientes para o oponente. O resultado é a A lógica dialéctica presume, pois, que as con-

ténue confiança entre as partes.

tradições contribuem positivamente para os resultados negociais. Argumenta-se que é ne-

Distintamente, o estilo dialéctico chinês toma a

cessário identificar e reenquadrar as tensões

reciprocidade como um elemento fundamen-

e colher os benefícios delas resultantes.

tal das relações humanas, sendo a confiança um ingrediente crucial. O “impulso” negocial

Priem e Price (1991); Amason (1996); De Dreu e De Vries (1997); Turner e Pratkanis (1997). 143 Janis (1971); Janis e Mann (1977); Turner e Pratkanis (1997); Garvin e Roberto (2001); Rego (2001). 144 Livingstone et al. (2002, p. 324). 142


dialéctico é dirigido para a cooperação e a pro-

em celebrar um contrato, no pressuposto de

cura de soluções mutuamente satisfatórias. A

que as virtudes morais e a fortaleza dos laços

energia negocial não é projectada sobre a con-

relacionais tornam o contrato escrito desne-

quista de ganhos imediatos, mas sobre a cons-

cessário. O negociador de “inspiração comu-

trução de um relacionamento que, se progredir

nista” encara o contrato como um meio de

em clima de confiança, pode gerar resultados

explicitar documentalmente as obrigações

mutuamente vantajosos.

do “adversário” e de o culpabilizar e punir. Em qualquer dos casos, os negociadores

A lógica formal também propõe que uma coisa

não encaram o contrato como o fim das

é igual a si própria. Do ponto de vista negocial,

negociações: “Os acordos com os outsiders

o efeito é simplesmente este: o ponto final do

são frequentemente reabertos e ajustados

processo negocial é a celebração de um con-

à medida que as necessidades e os interes-

trato, não sendo desejável que nele sejam pos-

ses mudam, uma prática comum na China

teriormente introduzidas mudanças adicionais.

mesmo entre interesses diferentes no seio

O contrato celebra-se para se cumprir. Se foi

do governo chinês.”145

celebrado como bom, não se compreende que venha a ser “quebrado” e considerado nefasto. Processo negocial. Os negociadores americaA lógica dialéctica é distinta. Nela, os contra-

nos, mais individualistas, procuram a indepen-

tos não assumem o valor que lhes é conferido

dência relativamente aos interlocutores. Porque

pela lógica formal – quer o negociador seja do

presumem que uma “coisa” é uma de duas “coi-

tipo “confuciano” ou “comunista” (Caixa A4.12).

sas” mutuamente exclusivas (não podendo ser

O contrato é interpretado como o princípio de

ambas as coisas nem uma coisas entre ambas),

um processo interactivo, durante o qual as par-

os Americanos consideram que importa preser-

tes se ajustam à medida que os seus interesses,

var a autonomia e a independência. Esta pos-

as suas necessidades e o contexto se modifi-

tura pode ser denominada do seguinte modo:

cam. O contrato, em si, recebe fraca prioridade

“Negócio é negócio, conhaque é conhaque”.

– o que releva é a continuidade da relação no

Por conseguinte, os negociadores tendem a fo-

quadro de interesses que se vão modificando.

calizar-se no objecto negocial (e.g., o preço, as quantidades), e não no relacionamento pessoal

Caixa A4.12

Negociadores “confucianos” e “comunistas”

entre as partes. Tudo o que extravasar as fronteiras do contrato não é sujeito a discussão. Os negociadores dialécticos encaram o proces-

Palich e seus colaboradores consideraram a

so de forma distinta. Consideram que o sucesso

existência de dois grandes tipos de negocia-

negocial está condicionado pela dependência

dores chineses: o confuciano e o “comunis-

das partes – de tal modo que cada negociador

ta”. O negociador confuciano tem relutância

só pode obter o resultado desejado se obtiver 145

Palich et al. (2002, p. 790).

205

206


a colaboração da contraparte, e vice-versa. Pre-

Horizonte temporal. O aforismo americano

sumem que as relações interpessoais são cru-

segundo o qual time is money transcorre para

ciais para a favorabilidade negocial e para a ob-

as negociações e gera comportamentos nem

tenção de resultados positivos.146 E entendem

sempre compagináveis com a lógica da con-

que é pertinente a discussão de novos assuntos

traparte chinesa. Uma boa ilustração da matéria

que possam emergir no decurso do processo.

pode ser identificada na duração dos almoços

Uma das consequências desta diferença é o

de negócios: cerca de 67 minutos, nos EUA, e

modo como cada tipo de negociador encara a

cerca de 124, na França. A ocorrência deve-se à

fase pós-acordo:

diferença de lógicas:

• O negociador formal deseja partir para o pró-

• Os ses procuram conhecer a contrapar-

ximo contrato. • O dialéctico tenta aprender com o contrato anterior, identificar e aproveitar novas oportunidades de cooperação. • O resultado tende a ser a impaciência dos ne-

te em aspectos que ultraam o da matéria específica da negociação. • Os Americanos primam pelo uso eficiente do tempo e pela necessidade de usá-lo para discutir matérias específicas do negócio.

gociadores Norte-americanos, que assim menosprezam os potenciais benefícios da apren-

Não surpreende, então, que os executivos ame-

dizagem retrospectiva.

ricanos chegados de França relatem histórias “horrorosas” sobre o enorme desperdício de

Aspecto igualmente importante do processo

tempo gasto em minudências inúteis. E que os

negocial é o que diz respeito às concessões. Os

ses regressem dos EUA com a ideia de

negociadores americanos tendem a fazê-las ao

que os Americanos são bruscos, desinteressa-

longo do processo, como resposta a nova infor-

dos e obcecados com o trabalho147. Na relação

mação carreada para as negociações. À medida

com os Chineses, o comportamento negocial

que novos dados do problema são assimilados

dos Americanos segue uma lógica similar:

pelos negociadores, os Americanos fazem concessões em busca da resolução de um dado

• É possível que a equipa negocial americana

aspecto e/ou do encaminhamento para uma

comunique à sua contraparte chinesa que

solução negocial final. Distintamente, os nego-

dispõe de pouco tempo para o processo. É

ciadores chineses não procuram concessões

igualmente possível que, pelo menos impli-

até ao termo do processo – pois consideram

citamente, transmita a ideia de que o prolon-

que, durante o mesmo, a resolução do conflito

gamento excessivo das negociações poderá

não é consistente com o crescimento. Ou seja:

induzir o fecho inconclusivo das mesmas.

actuam para que o conflito se mantenha irre-

• De modo distinto, é plausível que os negociado-

solúvel durante o processo. Um dos resultados

res chineses velem mais pela harmonia interpes-

possíveis é a frustração dos Americanos.

soal e pela procura de relações de longo prazo e sejam menos sensíveis aos prazos e à eficiência.

146

Veja, por exemplo, Trigo (2006). 147 Adler (1991).


• A impaciência americana pode colidir com a paciência chinesa – gerando perdas negociais

Quadro A4.7

Confiança entre as partes e postura perante a contraparte

Processo negocial

148

para os Americanos e/ou a ruptura precipitada das negociações.

A comparação entre duas lógicas negociais148 Lógica formal (americana/ocidental)

Lógica dialéctica (chinesa/oriental/confuciana)

• As partes denotam forte orientação por uma lógica competitiva. A negociação é interpretada como um jogo perda-ganho, em que não é possível ambas as partes obterem ganhos.

• As partes denotam forte orientação por uma lógica integradora ou de colaboração. A negociação é interpretada como um jogo em que ambas as partes podem ganhar.

• Cada negociador denota pouca confiança na contraparte. A confiança no seio do próprio grupo também é modesta. Cada indivíduo denota uma forte propensão individualista.

• Os negociadores confiam fortemente no seu grupo e desconfiam da contraparte.

• A lógica prevalecente é pautada pela resposta à pergunta: “como posso obter a satisfação dos meus interesses?”.

• A lógica prevalecente é pautada pela construção de um relacionamento e pela reciprocidade.

• O contrato entre as partes é de grande relevância.

• O contrato não é prioritário. É um quadro de princípios gerais que permite que os detalhes sejam trabalhados à medida que o acordo vai sendo implementado.

• O contrato representa o termo do processo negocial. Destina-se, por conseguinte, a ser cumprido pelas partes – não sendo desejável modificá-lo ao longo do tempo.

• O contrato representa o ponto de partida. Pode ser modificado em benefício das partes.

• As partes procuram alcançar acordos em aspectos específicos.

• As partes procuram acordos em matérias globais.

• Cada parte procura independência relativamente à contraparte.

• A interdependência dos parceiros é procurada e considerada essencial.

• Evitam-se proximidades pessoais que possam condicionar a eficiência do processo. As relações pessoais entre os parceiros negociais não são consideradas essenciais ao sucesso do processo negocial.

• As partes consideram que os relacionamentos pessoais e as amizades são fundamentais para o sucesso do negócio.

• O processo é fechado, circunscrito aos aspectos negociais em jogo. “Negócio é negócio” – os aspectos alheios ao negócio em sentido estrito não são considerados relevantes.

• O processo é holístico. O processo negocial abarca aspectos não estritamente relacionados com o “negócio”.

• Os negociadores são modestamente protocolares e denotam alguma rudeza.

• Os negociadores denotam grande preocupação com as formalidades protocolares e com a cortesia.

• Cada parte faz concessões ao longo do processo.

• As concessões são feitas na fase final do processo.

• A fase pós-acordo é secundária.

• A fase pós-acordo é considerada essencial para o sucesso do negócio. Espera-se que entre amigos haja actuações recíprocas.

Construída a partir de Palich et al. (2002), com contributos adicionais de Weiss e Stripp (1998); Carini et al. (1998); Livingstone et al. (2002).

207

208


Horizonte temporal

• A lógica prevalecente obedece ao aforismo time is money.

• A construção da relação predomina sobre a relevância do tempo.

• As partes negoceiam um dado assunto – e procuram ganhos nessa matéria. O negócio não se subordina à necessidade de construir a relação de longo prazo.

• As partes procuram relações a longo prazo.

• Os prazos são claros e a sua importância maximizada.

• Os prazos são ambíguos e a sua importância é minimizada.

• A eficiência prevalece sobre a eficácia.

• A eficácia prevalece sobre a eficiência.

• Os movimentos no processo negocial são incrementais. As partes desejam ver progressos.

• O processo tem muitos momentos em que nenhum movimento parece ocorrer – e isso é considerado natural e aceitável.

• As actividades negociais assumem uma lógica linear.

• As actividades negociais desenrolam-se sem uma “ordem apropriada”.

• Impaciência, pressa.

• Paciência.

Recomendações para a negociação com Chineses

losos para que não se deixem enredar pela des-

“Os contratos são frequentemente especificados em ter-

man descreveu a China como a sociedade do re-

mos legais, mas implementados com base na confiança

gateio e enunciou o seguinte: “Esperando ser en-

e nas relações entre as partes envolvidas.”149

ganados, os Chineses protegem-se seguindo um

treza negocial chinesa. A este propósito, Black-

determinado procedimento na negociação.”152 “Enquanto nós encaramos o negócio como uma questão de intuição e lemos ‘O Gestor Um Minuto’, na China

Confiança, status. Assuma que a confiança

até mesmo as crianças estão familiarizadas com os ’36

pode ser edificada mediante a construção de

Estratagemas’ ou ‘A Arte da Guerra’ formulados por Sun

relacionamentos pessoais com a contrapar-

Tzu, um famoso estratega militar que viveu no século

te chinesa. Para o efeito, é fundamental que a

quarto a.C., e aplicam-nos no seu dia-a-dia.”

equipa de negociadores seja consistente com

150

a equipa chinesa (em termos de idade, posição Do que acaba de ser exposto, várias linhas de

organizacional, status). Por exemplo, devem ser

orientação podem ser colhidas. Importa, toda-

evitados jovens negociadores ocidentais se a

via, sistematizá-las, como seguidamente se fará.

equipa negocial chinesa for constituída por se-

O leitor poderá complementá-las com os argu-

niores. E se a equipa chinesa incluir membros

mentos expostos na Caixa A4.13 e no Quadro

de elevado status, é importante que o mesmo

A4.7. Eis, então, algumas orientações :

suceda na equipa ocidental.

Sociedade do regateio. Os Chineses são nego-

Relação pessoal duradoura. Não incorra no

ciadores exímios. Para eles, o pensamento estra-

erro de, durante um longo processo negocial,

tégico é uma disciplina formal. Por conseguinte,

mudar regularmente as pessoas que represen-

é recomendável que os Ocidentais sejam caute-

tam os seus interesses. Nas negociações, os

151

149

Xing (1995, p. 17). 150 Trigo (1995, p. 26). 151 Trigo (1995; 2006); Palich et al. (2002). 152 Blackman (1997, p. 5).


Chineses procuram uma relação duradoura,

Preservação da face. Tenha sempre em men-

sendo esta fundamentalmente assente na re-

te a relevância fulcral da “preservação da face”.

lação pessoal. Por conseguinte, as pessoas que

Seja cauteloso com afirmações e propostas

começam o processo devem permanecer até

que possam induzir a contraparte a sentir-se

ao fim. Se houver realmente necessidade de

desmentida, desrespeitada ou perdedora do

fazer alguma substituição, o substituído deve

prestígio. Compreenda que a sua contraparte

apresentar o seu substituto à contraparte chi-

chinesa pode necessitar de “salvar a face” e apa-

nesa – para que as duas “faces” sejam identifica-

rentar bom trabalho junto dos seus superiores

das. Ademais, não tome cada negociação como

na organização respectiva.

um evento distinto das outras. Reconheça a conexão entre assuntos e adopte uma postura de

Interdependência e ganhos mútuos. Não se

longo prazo na relação com a contraparte.

posicione no quadro mental “eles contra nós”. O pensamento confuciano pugna pelas soluções

Mascar sementes de girassol. Prepare-se para

ganha-ganha, pelo que é recomendável actuar

negociações demoradas. Por vezes, os Chine-

tendo em vista esse resultado negocial. Aceite

ses prolongam o processo pelo simples prazer

a interdependência e não assuma uma postura

do regateio. Aceite a aventura. Seja paciente:

de superioridade. Daí podem advir resultados

“O segredo em se ser bem sucedido na China

positivos para ambas as partes. Por exemplo,

está naquilo que os Chineses chamam a arte de

os Ocidentais têm dificuldade em penetrar

‘mascar sementes de girassol’, isto é, ter paciên-

no mercado chinês por meios próprios e sem

cia para entender as diferenças, os atrasos, as

apoios/redes locais. Por seu turno, os Chineses

aparentes irracionalidades, a má vontade oca-

não estão capacitados para facultar aos consu-

sional.”

A construção de uma relação de con-

midores o que eles desejam, pelo que procu-

fiança requer, pois, tempo – mas pode ser forte-

ram parcerias ocidentais. Consequentemente,

mente benéfica a longo prazo. A impaciência e

ambas as partes carecem da outra – a interde-

a pressa podem gerar ruptura nas negociações

pendência é a regra.

153

e/ou gerar propostas perdedoras precipitadas (para avançar no processo!).

Flexibilidade contratual. Não crie grandes expectativas nos contratos. Os Chineses conce-

Cuidado com a comunicação. Seja cauteloso

dem-lhes importância secundária. Interpretam-

com a comunicação – especialmente com o

-nos como um ponto de partida e encaram as

significado dos silêncios e de outras mensagens

alterações com grande naturalidade. Importa,

não verbais. Uma palavra pode significar muitas

por conseguinte, ser flexível. A prolixidade de

coisas, consoante o contexto em que são proferi-

mudanças na China requer ajustamentos per-

das. Se o seu interlocutor chinês lhe acena repe-

manentes. Pode, pois, ser vantajoso ajustar os

tidamente com a cabeça, não interprete o gesto

acordos tendo em vista aproveitar as condições

como representativo de concordância consigo

entretanto emergentes.

– o gesto apenas significa que está a ouvi-lo. 153

Trigo (1995, pp. 26-27).

209

210


Concessões de última hora. Esteja prepara-

ocorre. A tendência faz jus ao adágio chinês:

do para surpresas de “última hora”. Os Chineses

“Um homem sem um sorriso não consegue

tendem a fazer concessões na parte final do

abrir uma loja”.

processo. Ademais, é nesses momentos que os

5. Pensamento holístico. Os negociadores

seus ímpetos negociais mais tendem a traduzir-

chineses actuam no quadro da negociação

-se em propostas concretas.

global – e não em função de aspectos específicos. 6. Poupança. Como resultado de uma his-

Caixa A4.13

tória repleta de instabilidade, os Chineses

“Um homem sem um sorriso não consegue abrir uma loja”

aprenderam a aforrar. A tendência reflecte-se na mesa das negociações: forte sentido do

Graham e Lam caracterizaram o estilo nego-

regateio e acérrima discussão dos preços.

cial chinês mediante oito elementos.

7. Preservação da face. A reputação e o

154

Eis

uma adaptação prescritiva:

bom nome são cruciais na cultura chinesa. Se, durante as negociações, os Ocidentais

1. Guanxi. Para negociar eficazmente na

lhes causam (mesmo que involuntariamen-

China, importa ter ou desenvolver boas rela-

te) embaraço ou perda de compostura, o

ções pessoais (guanxi).

efeito pode ser desastroso.

2. Intermediários. Na China, a suspeição e

8. Resistência, severidade, mordacidade

a desconfiança tendem a marcar as reuniões

e trabalho árduo. Os negociadores chine-

com os estrangeiros. A solução consiste em

ses preparam-se intensamente para as ne-

recorrer aos serviços de um intermediário

gociações, são firmes, trabalham arduamen-

local.

te, dispõem-se a longas sessões negociais,

3. Status social. Os Chineses são muitos

são pacientes.

sensíveis ao status social. Podem sentir-se insultados se o interlocutor ocidental no processo negocial possui fraco status (e.g.,

as duas faces do guanxi

é muito jovem e/ou é gestor de nível infe-

154

rior). Fazer-se representar por interlocutores

“O guanxi é um imperativo para se realizarem negócios

séniores e/ou executivos de topo pode ser

na China. (...) Todavia, muitos académicos simplesmen-

fulcral para alcançar bons negócios.

te fazem equivaler o guanxi à corrupção e ao suborno

4. Harmonia interpessoal. Os Chineses

nas transações de negócios. Esta perspectiva negativa

não apreciam a confrontação negocial e re-

coloca um problema sério às multinacionais ocidentais:

querem a construção da confiança antes de

‘devem elas fazer negócios na China? Como devem fazê-

enveredarem pela negociação propriamen-

los?’ (...) Se as considerações negativas acerca do guanxi

te dita. É isso que explica os convites para

são válidas (...), então a realização de negócios na China

visitas a casa, as actividades desportivas, os

implica grandes riscos de comportamento anti-ético e

longos jantares. Sem eles, a negociação não

mesmo ilegal.”155

Graham e Lam (2003). 155 Su et al. (2003, p. 304).


“Não retire a ponte depois de atravessar o rio”

• O guanxi é intangível. Não especifica o âmbi-

A compreensão do guanxi é imprescindível para

• O guanxi é mais utilitário do que emocional.

quem pretende compreender a cultura chinesa

Baseia-se na troca de favores, não representan-

e o modo de funcionamento da sociedade e

do um vínculo emocional. Por conseguinte, não

da vida empresarial. A tradução e a definição

envolve amizade, ainda que esta seja preferida.

to ou a frequência dos favores trocados.

do conceito não recebem consenso. Alguns autores chegam a referir que ele continua a ser

O guanxi exerce, indubitavelmente, um papel

um enigma para os Ocidentais.156 Todavia, pode

importante na sociedade colectivista chinesa,

afirmar-se que a ideia nuclear do processo en-

caracterizada por forte interdependência e reci-

volve relações entre pessoas, entre as quais se

procidade. Por exemplo, pode actuar como uma

criam obrigações para a troca de favores.

rede informal que permite às pessoas contornarem as ineficiências de um vigoroso sistema

O guanxi pode ser edificado sobre laços familiares

burocrático. Pode representar modos de rela-

(Jia-ren guanxi) ou sobre algumas formas de in-

cionamento cortês, de cooperação e de ajuda

terconexão social (Shou-ren guanxi), como sejam

entre os membros da sociedade e os agentes

a frequência da mesma escola, a vizinhança no

económicos. Pode fomentar a credibilidade e

bairro, o trabalho na mesma organização.

Estas

as relações de confiança. Há quem o considere

bases são todavia insuficientes. Para que o guanxi

uma espécie de massa agregadora que mantém

ocorra efectivamente, é necessário que os indiví-

unida a sociedade chinesa. Ajuda a compreen-

duos interactuem, troquem favores, construam a

der como determinadas redes de parceiros em-

confiança e a credibilidade, velem ao longo do

presariais são bem sucedidas dentro e fora das

tempo pela manutenção da relação. Quatro tra-

fronteiras da China. Parece ser crucial para que os

ços fundamentais caracterizam o processo158:

investidores estrangeiros estabeleçam relações

157

negociais frutuosas com os parceiros chineses. • O guanxi é transferível. Se Ang pertence à rede de Luo, e Luo pertende à rede de Leong,

Esta relevância tem provocado uma grande

então Leong pode aceder a Ang (e vice-versa)

quantidade de orientações aconselhando as

por intermédio de Luo. O vigor da transferibi-

empresas e os gestores a considerarem o guan-

lidade depende da força dos laços que Ang e

xi como um recurso estratégico e a fazerem

Leong têm com Luo.

auditorias ao modo como está a ser levado a

• O guanxi é recíproco. Quando algum membro

cabo.159 Algumas organizações requerem mes-

da rede não actua reciprocamente para com

mo que os candidatos a determinadas posições

outro membro, perde a confiança dos restan-

exibam uma forte rede de relações pessoais. E

tes membros. A sua reputação é abalada e so-

algumas pesquisas facultam linhas de orienta-

fre uma humilhante “perda da face”. A recusa

ção acerca do modo como os ocidentais de-

em responder a um favor, mesmo que decorri-

vem desenvolver o guanxi como método de

dos vários anos, representa a exclusão da rede.

“entrada” no mercado chinês (Quadro A4.8).

Su e Littlefield (2001). 157 Su e Littlefield (2001). 158 Park e Luo (2001). 159 Luo (1997); Tsang (1998); Dunfee e Warren (2001); Park e Luo (2001); Su e Littlefiield (2001); Buekley et al. (2006). 156

211

212


Orientações sobre como desenvolver guanxi para entrar no mercado chinês160

Quadro A4.8 Iniciativa

Tome a iniciativa de estabelecer relações, fazer favores e denotar interesse pela contraparte chinesa. Devido ao código de reciprocidade, os seus parceiros chineses tenderão a responder positivamente, trocando recursos consigo e permitindo-lhe desenvolver redes de relacionamento e de amizade.

Ajuda permanente e oportuna

Procure ajudar de modo sistemático e oportuno. Desenvolva a arte de, oportunamente, ajudar. Os Chineses são sensíveis ao facto de os seus parceiros estrangeiros actuarem em prol dos interesses da China. As autoridades tendem a conceder facilidades (e.g., em termos fiscais, ou de o a matérias-primas) a esses parceiros. Os próprios consumidores também respondem positivamente. E os empregados sentem orgulho e satisfação por trabalharem nessas empresas.

Empatia

Seja empático. Procure compreender as necessidades dos seus interlocutores individuais. Não assuma que o seu sistema e os seus produtos são melhores do que os dos Chineses. Adapte os seus processos de fabrico e as estratégias de marketing, de modo a ajudar os Chineses a alcançarem os respectivos objectivos económicos.

Intermediários

Recorra a intermediários. Eles permitem o o a elementos das redes guanxi. Escolha especialmente intermediários qualificados que possuam boas e extensas redes, que conheçam ambas as culturas e línguas, e que possam ajudá-lo a recolher informação sobre o mercado chinês e os seus potenciais parceiros de negócio. Um dos modos eficazes de alcançar estes intermediários consiste em seleccionar empregados da China continental, e não de Hong Kong, de Taiwan, de Macau ou de Singapura.

A ponte

“Não retire a ponte depois de atravessar o rio”. Ou seja: actue consistentemente na relação com os seus intermediários, responda com favores aos favores que eles lhe dirigem, assuma uma postura a longo prazo.

O bom e o mau guanxi

a todos os membros da sociedade. Privilegia os

Todavia, o guanxi (pelo menos, algumas das

indivíduos com guanxi, em detrimento de ou-

suas formas) pode ser perverso, do ponto de

tras pessoas que, embora tenham mais mérito,

vista ético, legal, económico e social. Eis algu-

não estão inseridas nessas redes de relações.

mas ilustrações:

• Pode permitir que determinados agentes económicos contornem a legislação, assim com-

• O guanxi relega o mérito para plano secundá-

prometendo a saúde e a segurança do público.

rio, em detrimento das “cumplicidades” pes-

• Pode induzir os funcionários públicos a con-

soais. • Permite que determinados indivíduos obte-

prejudicando a sociedade como um todo.

nham benesses indevidas em prejuízo da so-

• Pode induzir os gestores da empresa a favorece-

ciedade/comunidade/organização. Por exem-

rem os seus parceiros de guanxi, em detrimen-

plo, o empregado Chen faz um desconto ao

to da empresa e dos seus diversos stakeholders.

cliente Su, usando recursos da empresa. Deste

Por exemplo, para pagar o favor recebido, o

modo, Chen cria em Su uma obrigação para

gestor Luo compra mercadoria à organização

com ele.

de Tung por um preço exagerado.

• O guanxi transforma a lei em “letra morta”, evitando assim a sua aplicação justa e generalizada 160

cederem favores a determinados indivíduos,

Su e Littlefield (2003).


Os próprios académicos que fazem a apologia do

Por conseguinte, importa distinguir o “bom” e

guanxi como estratégia de entrada no mercado

o “mau” guanxi. É também importante que a

chinês (veja Quadro A4.8) aduzem alguns argu-

análise das vantagens e desvantagens não se

mentos de precaução. Por exemplo, Su e Little-

circunscreva às lógicas instrumentais . É igual-

field, depois de terem facultado orientações acer-

mente necessário atender aos aspectos éticos e

ca do modo como criar e desenvolver essas redes,

normativos. Mais especificamente: ainda que o

redigiram o seguinte conselho: “evite relacionar-

guanxi possa ser um instrumento eficaz para a

-se directamente com qualquer forma de quanli

realização de determinados negócios ou a ob-

guanxi, já que o mesmo pode envolver algumas

tenção de vantagens empresariais, daí não de-

transações ilegais, subornos e favoritismos”.

corre necessariamente a sua aceitabilidade. Os prejuízos potencialmente causados à sociedade e ao funcionamento justo e transparente do

Caixa A4.14

O guanxi no quadro confuciano – irmandade e reciprocidade

sistema económico devem ser considerados. A violação de determinados princípios éticos não pode ser ocultada.

Eis como Su e seus colaboradores se referiram ao guanxi e à sua génese no pensamen-

Deve, pois, reconhecer-se o pendor positivo

to confuciano:

impregnado no sentido da reciprocidade e na tendência para responder de modo “civilizado”

“O guanxi é guiado por dois conceitos rela-

àqueles que prestam ajuda. Mas não podem ser

cionados com o código de conduta chinês: o

ignorados os riscos da corrupção e do tráfico de

código de irmandade (yi) e o código de reci-

influências. Quando o guanxi está inculcado no

procidade (bao). Tal como Confúcio (551-478

quotidiano de um povo e no funcionamento

A.C.) ensinou, ‘Todas as pessoas de um dado

concreto das instituições, pode transformar-

país são irmãos’. Os Chineses consideram um

se num factor inibidor do progresso em prol

acto moral ajudar os outros, sem qualquer

de uma sociedade mais moderna e civilizada.

segunda intenção associada. Contudo, as

Lucian Pye, na lição Intercultural relations in Asia:

pessoas que recebem ajuda devem actuar

Culture, nation and state, já antes mencionada

reciprocamente para evitar o sentimento

neste capítulo, pronunciou-se acerca da maté-

de culpa e a “perda da face”. Por conseguin-

ria do seguinte modo:

te, oferecer presentes permite às pessoas expressar agradecimento pelo apoio recebi-

“Os fortes laços entre pessoas conhecidas nas

do. Para a parte que proporciona o apoio, o

culturas asiáticas tendem a gerar redes sociais

presente significa gratidão. Para a parte que

muito fortes. Mas a grande ausência de relações

recebe apoio, significa a expressão de reci-

impessoais é um problema sério, pois estas são

procidade. Assim, oferecer presentes é um

precisamente as relações básicas necessárias

modo cultural típico de desenvolver guanxi,

às operações de uma sociedade moderna e de

isto é, respeito, amizade e confiança.”

um estado moderno com uma política aberta.

161

161

Su et al. (2003, p. 305); Veja, também, Trigo (2006).

213

214


As normas impessoais da civilidade essenciais

A consequência é a tendência das pessoas para

a uma moderna sociedade dependem de uma

mascararem os seus interesses. Uma das con-

ética universalista, e não de relações particula-

sequências é que “não há modo de identificar

ristas típicas de uma sociedade tradicional. A

facilmente a utilização do guanxi para o alcance

ausência de normas acerca das relações com

de interesses respeitáveis e diferenciá-la dos ca-

estranhos ajuda a explicar a tendência asiática

sos em que é usado para prosseguir interesses

para suspeitar de outros com relações muito

indignos.” Frise-se que este raciocínio assim ex-

fortes, pois tendem a acreditar que tais pessoas

pendido é o de um asianista reconhecido (“uma

não lhes trarão nada de bom.”

autoridade sobre a China moderna”) de origem chinesa – por conseguinte conhecedor insus-

O especialista prossegue afirmando que o guan-

peito da cultura do país.

xi acaba por representar, em certa medida, um embaraço nacional para os Chineses – e que é

É possível, todavia, que o processo de transição

difícil debelá-lo. O problema, no seu entender,

encaminhe a China para uma situação mais

é que não há padrões públicos distinguindo o

compaginável com o primado da lei e menos

“bom” do “mau” guanxi.

Todas as sociedades

atreito à predominância do guanxi. Um dos au-

devem honrar as práticas de reciprocidade

tores deste livro, em viagem à China, testemu-

apropriadas, mas isso não deve ser confundido

nhou haver hoje, especialmente entre os mais

com os actos indignos que marcam os con-

jovens, a consciência de alguns efeitos perver-

luios, as maquinações e intrigas, e a corrupção.

sos do guanxi. Embora seja meramente impres-

Os Chineses nunca estabeleceram padrões que

siva, esta análise é consistente com a tendência

distingam entre: (a) as formas respeitáveis de

que alguma literatura vem apontando.163

162

networking que podem produzir associações sociais produtivas e os laços da estrutura social;

Há razões para presumir que o o com

(b) as formas de corrupção que tornam possível

parceiros de outras culturas e o investimento

a lei da Máfia. Assim, todas as networking aca-

estrangeiro tornem o guanxi menos atractivo e

bam por ficar sob suspeita, numa área cinzenta,

a observância da lei mais relevante. Os jovens

pouco definível do ponto de vista da sua acei-

sem o ao guanxi mas providos de com-

tabilidade ou rejeição.

petências, de educação e de mérito sentem-se progressivamente menos inclinados para

O problema é agravado pelo facto de, no qua-

apoiar essas práticas. Alguns agentes econó-

dro dos princípios confucianos, as afirmações

micos e políticos chineses vão compreenden-

do auto-interesse serem detestadas. “O último

do que, em contexto de competição global, é

pecado confuciano é o egoísmo e o erro de

necessário dispor de um sistema que obedeça

não conceder primazia à colectividade”. Por

a princípios e regras universais. Vão também

conseguinte, as pessoas evitam expressar que

adquirindo a consciência de que algum tipo de

possuem interesses materiais, receando que tal

guanxi pode ser perverso para o mérito e para

seja interpretado como sinónimo de egoísmo.

a competitividade das empresas em contexto

Su e Littlefied (2001), aduziram um argumento distinto: os Chineses estão bem cientes dos parâmetros éticos que distinguem moralmente o guanxi apropriado da corrupção e do suborno (p. 199). Veja, também, Trigo (2006). 163 Dunfee e Warren (2001); Su et al. (2003). 162


de competição global. A maior mobilidade no emprego também tem dificultado a criação e a

Recomendações aos Expatriados na China

manutenção de redes de relações pessoais fortes que constituem o núcleo do guanxi.

Os custos e as dificuldades de compreensão da China profunda

Em suma: é provável que o guanxi continue a

Em diversas partes deste livro tem sido argu-

ser um meio de interacção social relevante na

mentado que o ajustamento sociocultural dos

sociedade chinesa, um “recurso” nos negócios e

expatriados é fulcral para o respectivo desem-

um factor importante na relação com o gover-

penho. Há poucos locais em que esta afirmação

no e as autoridades.

Mas alguns dados suge-

é tão lapidar quanto na China. É premissa deste

rem que sofrerá alguma mutação e que o modo

capítulo que uma parcela substancial dos pro-

de fazer negócios na China se vá impregnando

blemas e das dificuldades antes referidas pode

progressivamente de lógicas mais compatíveis

ser evitada/resolvida através da proficiência e

com o mercado.

da “competência adaptativa” dos expatriados.

164

Importa, por conseguinte, prestar atenção reImporta acrescentar uma nota final de pesqui-

dobrada a três aspectos:

sa, para que se compreendam as limitações da tese que considera o guanxi imprescindível

• aos riscos que os expatriados enfrentam;

para as empresas. A nota é: ainda que o guanxi

• aos critérios de selecção/nomeação que de-

possa contribuir para a crescimento da empre-

vem nortear a escolha dos expatriados;

sa em termos de expansão do mercado, não

• aos cuidados que os expatriados podem ob-

melhora necessariamente os lucros líquidos.165

servar para que a experiência seja positiva

Tal sucede porque, embora as redes melhorem

(para si próprios e para a empresa), e para que

o o a parceiros e a interlocutores, também

o regresso não seja antecipado por razões de

incorporam os custos da reciprocidade. Ou seja:

fracasso e frustração.

é necessário responder a favores com favores, sob pena de perda da face e da confiança. Ou-

Custos muito elevados e consequências para

tras investigações convergem para esta ideia,

a cooperação. A expatriação de gestores para o

ao mostrarem, por exemplo, que o guanxi entre

país comporta custos muito elevados. Isso deri-

compradores e vendedores aumenta as vendas

va das remunerações e dos benefícios comple-

destes – mas à custa de preços baixos e de pror-

mentares, nos quais se incluem casa, automóvel,

rogações nos prazos de pagamento.166

despesas de educação dos filhos, custos com o apoio ao cônjuge, assistência médica e viagens periódicas ao país de origem. Daqui podem decorrer grandes diferenças entre as remunerações dos gestores ocidentais e as dos seus congéneres chineses. Alguns dados167 chegaram a apontar para rácios de 1 para 100... ou, até,

Zou e Gao (2007). 165 Park e Luo (2001). 166 Luo e Chen (1996). 167 Bonache e Fernández (2005), citando um trabalho de Chen et al. (2002), referem cifras entre 20 e 50 vezes mais. Quaisquer que sejam os valores considerados, a diferença é claramente grande – não parecendo haver dúvidas das dificuldades que daí podem advir para o relacionamento entre locais e expatriados. Um dos autores deste livro observou uma situação similar em Timor-Leste, devido às disparidades salariais entre os funcionários da Nações Unidas timorenses e os expatriados. 164

215

216


Quadro A4.9

As duas faces do guanxi168

O lado mais positivo e as vantagens para os negócios

O lado mais “sombrio”

• Ajuda a ultraar a ineficiência de um sistema burocrático.

• Representa um modo de contornar a lei e impede a aplicação generalizada da mesma a todos os membros da sociedade.

• Representa um factor de cooperação interpessoal e um elemento congregador da sociedade.

• Pode gerar corrupção, “luvas”, favoritismo.

• Pode ser um substituto do o directo com o Estado e as autoridades.

• Ao privilegiar os membros da rede em detrimento de outras pessoas, pode gerar discriminações e impedir o reconhecimento do mérito. Ou seja: permite que progrida quem tem guanxi, e não quem tem o mérito.

• Pode ser usado para aceder a novos clientes ou manter os actuais, para facilitar as operações diárias e para evitar investigações governamentais.

• Permite que determinados indivíduos obtenham benesses indevidas em prejuízo da sociedade/comunidade/organização.

• Pode auxiliar as pessoas que buscam emprego.

• Ao privilegiar as obrigações sociais em detrimento das relações transparentes no mercado, cria distorções que podem penalizar agentes económicos mais capazes – assim penalizando o mercado e os próprios consumidores.

• Pode permitir ao gestor que venda bens a pessoas que, de outro modo, não seriam vendidos.

• Pode actuar como uma ameaça latente dos indivíduos com guanxi sobre as pessoas desprovidas do mesmo.

• Pode auxiliar no recrutamento de colaboradores.

• Mediante a concessão de favores, pode ser usado por um indivíduo para criar obrigações e fidelidades noutro, colocando este em posição de não poder “recusar”.

• “Abre portas” para a realização de negócios com determinados parceiros.

• Pode gerar decisões de financiamento e de apoio a empreendimentos e negócios ineficientes – assim afastando os recursos financeiros de actividades mais eficientes.

• Pode ser um modo de os intervenientes numa relação comercial confiarem mutuamente.

• Pode induzir os funcionários públicos a conceder favores a determinados indivíduos, prejudicando a sociedade como um todo.

• Representa um laço de entreajuda e de cooperação negocial entre os Chineses espalhados pelo mundo.

• Pode induzir os gestores da empresa a favorecerem os seus parceiros de guanxi em detrimento da empresa e dos seus diversos stakeholders.

• Permite partilhar recursos escassos e lidar com incertezas.

• Pode permitir que determinados agentes económicos contornem a legislação, assim comprometendo a saúde e a segurança do público.

de 1 para 300. Dados mais recentes apontam

Dois expatriados, pelo menos? A dimensão

para rácios menores, mas ainda enormes : en-

dos custos tende a gerar, nas empresas, algu-

tre vinte e cinquenta vezes mais. Quaisquer que

mas inibições em recorrer aos expatriados. Por

sejam os valores considerados, a diferença é

isso, é relativamente comum que recorram a

claramente grande – não havendo dúvidas das

um único indivíduo. Esta situação pode ser des-

dificuldades que daí podem advir para o rela-

confortável para o nomeado devido à sensação

cionamento entre locais e expatriados.

de isolamento social e profissional que pode

169

Luo (1997); Tsang (1998); Dunfee e Warren (2001); Park e Luo (2001); Su e Littlefield (2001); Su et al. (2003). 169 Bonache e Fernández (2005), citando um trabalho de Chen et al. (2002). 168


experimentar. Mas incorpora outra dificuldade.

mente referido: os Chineses valorizam relações

Devido ao comportamento “peculiar” dos au-

pessoais de longo prazo.

tóctones, as empresas ocidentais sentem por vezes a necessidade de adoptar um sistema de

Juventude e senioridade. Muitos Chineses con-

controlo financeiro rigoroso. Quando essa fun-

cedem maior valia aos gestores seniores do que

ção está a cargo do único expatriado, as tran-

aos jovens. São, também, especialmente sensí-

sacções financeiras ficam suspensas quando tal

veis à competência técnica dos gestores. Quan-

pessoa se ausenta. Por conseguinte, por ambas

do percepcionam que esta é inferior à desejável,

as razões, recomenda-se que as empresas re-

consideram-nos incompetentes na função e de-

corram, pelo menos, a dois expatriados.

votam-lhes menos respeito. Esta particularidade coloca desafios às empresas que, porventura, se

Penetrando na China profunda. A eficácia dos

confrontam com o facto de apenas colaborado-

gestores depende, em medida considerável,

res mais jovens e sem compromissos familiares

da sua capacidade para estabelecer a já referi-

aceitarem uma aventura na China.

da rede de relações (guanxi) que lhes permita minados fornecedores e obter autorizações das

Como seleccionar, preparar e fomentar a adaptação dos expatriados

autoridade. Depende, também, da compreen-

Desta moldura decorrem várias consequências

são de outros aspectos da cultura. Por exemplo,

e implicações para: (1) a selecção dos gestores a

enquanto muitos Ocidentais valorizam a fran-

expatriar; (2) a formação prévia dos mesmos ten-

queza, a linguagem directa e a assertividade,

do em vista a sua preparação para a incumbên-

os Chineses concedem lugar preponderante à

cia na China; (3) a respectiva adaptação ao país e

harmonia, à linguagem indirecta e à preserva-

as razões de alguns regressos prematuros.

obter recursos, fazer negócios, aceder a deter-

ção da face. A inobservância desse requisito de relacionamento social fere muitas oportunida-

Selecção. No que diz respeito especificamente

des de relacionamento e de negócio.

à selecção de expatriados, é fundamental assegurar algumas condições e observar as seguin-

Em suma, o ajustamento sociocultural e a cria-

tes orientações:

ção das redes interpessoais exigem um conhecimento da cultura local que nem sempre

• Parece haver vantagens em recorrer a, pelo me-

é apanágio dos Ocidentais e que requer um

nos, dois expatriados. Nesse caso, recomenda-se

período de permanência no país relativamente

que um deles seja proficiente em matéria finan-

longo. Todavia, a distância cultural e as dificul-

ceira, e o outro nas matérias técnicas que repre-

dades de adaptação daí oriundas inibem muitos

sentam o núcleo da actividade da empresa.

gestores de se aventurarem na China por largos

• O conhecimento da língua é relevante para o

períodos de tempo. O efeito mais provável é o

ajustamento cultural e o estabelecimento do

regresso antes da verdadeira compreensão do

guanxi. Consequentemente, o recurso a Chi-

país. O caso é agravado pelo facto já anterior-

neses não-continentais (e.g., de Hong Kong)

217

218


pode representar uma solução atractiva. Há,

língua e assumir uma atitude menos presun-

todavia, razões para menor optimismo quan-

çosa quando se trata de procurar respostas

do se sabe que eles são por vezes falhos na

perante os problemas. Há, por conseguinte,

compreensão da China continental, do seu

forças contraditórias – que as empresas de-

protocolo e das suas peculiaridades. Acresce

vem ponderar quando tomam decisões de

que alguns Chineses continentais consideram

selecção de expatriados.

arrogantes os seus concidadãos do ultramar, e projectam menor sentido de autoridade sobre

Formação e preparação. Não parece haver

eles do que sobre os expatriados ocidentais. Fi-

dúvidas de que a formação e a preparação são

nalmente, há razões para pensar que os conti-

fundamentais para facilitar o ajustamento e re-

nentais são menos pacientes com os seus con-

forçar as possibilidades de sucesso da missão.

géneres étnicos do que, por exemplo, com os

Eis cinco aspectos pertinentes:

Ocidentais – pois esperam que os seus congéneres compreendam a etiqueta e as maneiras

• A preparação técnica é crucial. Os Chineses

chinesas, desculpando-lhes menos a violação

requerem de um gestor que conheça a área

das regras sociais protocolares.

técnica que constitui a actividade nuclear da

170

• Os Chineses valorizam a idade e a senioridade nas posições de gestão, denotando mais respei-

• O conhecimento da língua também repre-

to pelos séniores do que pelos mais jovens. Este

senta um capital relacional e cultural essen-

risco recomenda a preferência das empresas

cial. Mas esta competência cuja aquisição é

estrangeiras pelos seniores. A esse argumento

especialmente difícil devido à diversidade de

acresce a vantagem de, em caso de fracasso,

dialectos existentes no país. Em qualquer caso,

os mais velhos se ajustarem mais facilmente

a simples compreensão de algumas palavras

do que os jovens high flyers. Estes, se experi-

em mandarim e o esforço para pronunciá-las

mentarem insucesso em fase inicial da carreira,

podem gerar entre os Chineses um capital de

podem reagir mais negativamente. Finalmente,

simpatia assinalável.

dada a maior probabilidade de os mais velhos

• Importa que o futuro expatriado receba for-

terem constituído família, esta pode facultar o

mação nas particularidades culturais chinesas.

apoio emocional fundamental para viver em

Não basta compreender a língua – é necessá-

espaço cultural adverso (veja Capítulo 5).

rio compreender o contexto, as regras de con-

• A maior reverência dos Chineses pelos gesto-

170

empresa.

duta e de etiqueta, a China “profunda”.

res seniores pode, todavia, colidir com a lógica

• Alguma experiência prévia internacional pode

subjacente à expatriação. Na verdade, devido

ser relevante para que o gestor adquira com-

à ausência de compromissos familiares, é co-

petências de sensibilidade transcultural e de

mum haver maior disponibilidade para a mis-

adaptação a contextos estranhos. Por conse-

são entre os mais jovens do que entre os sé-

guinte, no processo de preparação, pode ser

niores. Por outro lado, os mais jovens podem

benéfico que o futuro expatriado na China

denotar maior facilidade de aprendizagem da

adquira alguma experiência transcultural.

Selmer (2002a).


• Pode haver vantagens em que o expatriado

China: “Você tem que ser muito diplomático,

acabado de chegar à China conviva, durante

denotar muito 'tacto' quando transmite às

algum tempo, com o expatriado que dentro

pessoas o que elas devem fazer... deve ter um

em breve será repatriado.

ror de perseverança. Também necessita de desenvolver um forte laço de confiança entre si e

Adaptação. Relativamente à adaptação dos

os gestores chineses... Deve haver um esforço

expatriados ao país e às razões de alguns re-

colaborativo. Trabalhe com a sua contrapar-

gressos prematuros, importa fazer menção aos

te chinesa, sob pena de fracassar... Não tente

seguintes aspectos:

mudar a China, mas aprenda a trabalhar nos bastidores para atingir os seus objectivos.”171

• Recomenda-se que os expatriados ocidentais

• A frustração adveniente da incapacidade para

compreendam a importância da preservação

rapidamente “mudar as coisas” pode gerar no

da face, da harmonia interpessoal e do guanxi.

gestor expatriado o desejo impetuoso de “re-

A insensibilidade nestas matérias pode gerar

gresso a casa”. A sugestão é: seja paciente, ad-

efeitos perversos na adaptação ao país e no

quira conhecimento progressivo do terreno,

próprio desempenho de gestão.

encare a situação como ela é realmente.

• Os gestores ocidentais recém-chegados à

• Alguns dados sugerem que os Chineses tes-

China tendem a encarar os “modos de fazer

tam os expatriados na fase inicial da missão, e

as coisas” no país como merecedores de mo-

tentam obter favores. A sugestão é: seja firme

dificação – por não se ajustarem aos padrões

com o seu parceiro chinês e os empregados,

de desempenho eficaz no Ocidente. O ímpeto

mas nunca favoreça abertamente a sua pró-

para actuar tende a induzi-los a actuações de-

pria organização. Com o decurso do tempo, a

cisivas, assertivas e vigorosas – muitas vezes,

confiança advirá – e as tentativas de tomada

contrariando as normas e os valores locais.

de vantagem sobre si decrescerão.

A ausência de oposição aberta dos Chineses

• São frequentes os problemas de adaptação

(que dificilmente respondem “Não”) impele

– do próprio expatriado e do seu cônjuge.

estes gestores a julgarem que a decisão ou a

Para isso contribuem factores como a vida em

ordem serão cumpridas – mas em breve des-

hotéis, a ausência de vida social, a escassez de

cobrem que as decisões não estão a ser im-

actividades extralaborais e a poluição do ar. O

plementadas. A hostilidade daqui decorrente

ajustamento parece ser especialmente difícil

pode hipotecar o sucesso da missão e precipi-

em áreas rurais. Importa, sobretudo, criar laços

tar o regresso.

sociais no país – o que pode exigir grande ver-

• Mudar o modo como a organização funciona

satilidade social e forte sensibilidade cultural.

é uma tarefa demorada e exigente, que requer

• A distância geográfica tende a reforçar a sensa-

ao gestor estrangeiro a aprendizagem do

ção de isolamento. Por outro lado, as particula-

modo de funcionamento do sistema chinês.

ridades locais nem sempre são compreendidas

Os comentários seguintes ilustram a experiên-

pela casa-mãe (veja o caso “Uma americana na

cia de gestores estrangeiros trabalhando na

Ásia”, no Capítulo 1). Esta incompreensão pode 171

Wills e Barham (1994).

219

220


gerar no expatriado o sentimento de incom-

e por conseguinte o governo, deveria trabalhar para re-

preensão e uma atitude negativa perante os

presentar os interesses da crescente economia chinesa,

seus congéneres no país de origem. Esta é

o desenvolvimento da cultura chinesa e as necessidades

uma demonstração cabal de como as com-

do povo chinês. Por outras palavras, o crescimento eco-

petências transculturais não são importantes

nómico é um pilar do futuro desenvolvimento chinês,

apenas para os gestores em missões no es-

mas é inseparável das necessidades sociais e culturais

trangeiro – mas também para os gestores que

do país e da sociedade como um todo.”172

se mantêm na casa-mãe. “Ainda que haja muitas culturas organizacionais ‘estrangeiras’ nas multinacionais instaladas na China,

Súmula conclusiva

relacionadas com a propriedade – seja esta britânica, sa, japonesa, norte-americana ou qualquer outra

“No 16.º Congresso do Partido Comunista Chinês, em

– as ‘características chinesas’ do sistema de relações

2002, foi adoptada a filosofia das ‘três bandeiras’ que

de trabalho são as que, em última análise, verdadeira-

havia sido apresentada pelo então Presidente Jiang Ze-

mente contam.”173

min. De acordo com esta filosofia, o Partido Comunista,

Quadro A4.10

172

Orientações e precauções no envio de gestores em missão para a China (resumo)

Selecção

• Seleccione, pelo menos, dois expatriados. • Pode ser recomendável a selecção de gestores seniores. • Gestores com competência técnica são fundamentais. • Seleccione gestores com experiência internacional, com competências transculturais e que conheçam a língua.

Formação/ preparação

• Faculte-lhes formação linguística e cultural. • Proporcione-lhes formação técnica nas matérias que constituem o núcleo técnico da empresa chinesa. • Faculte ao expatriado recém-chegado a oportunidade de conviver durante algum tempo com o expatriado que está prestes a regressar. • Prepare a missão com bastante antecedência. Se possível, assegure que o futuro expatriado adquire experiência transcultural prévia à missão.

Adaptação

• Importa que os gestores compreendam a importância da salvaguarda da face e do guanxi. Eis como um expatriado australiano na China se referiu ao assunto: “Definitivamente, a coisa mais difícil de lidar é a perda da face. Mesmo quando as pessoas denotam mau desempenho, é difícil repreendê-las.”174 • Recomenda-se que os gestores sejam perseverantes, diplomáticos e respeitadores das normas e dos valores chineses. • Há sérios riscos em desejar “mudar as coisas” ao estilo ocidental. A sensibilidade para trabalhar nos bastidores e desenvolver laços de confiança com os Chineses são fundamentais. • A ausência de oposição aberta por parte dos Chineses não significa que estão a aderir ou a implementar as decisões/orientações – pode simplesmente reflectir a tendência para o evitamento de uma postura de confrontação aberta. • As dificuldades de adaptação (do próprio e da família) podem provocar frustração e o desejo de um regresso prematuro. Importa ser paciente.

Witzel (2005b, pp. 90-91). 173 Zhu e Warner (2000, p. 358). 174 Hutchings (2003, p. 384).


A China é o mais estrangeiro dos países es-

que adere, em medida considerável, aos pa-

trangeiros.

Ou, parafraseando um estudante

drões de uma economia de mercado. Mas pare-

português da língua chinesa na China, é “o mais

ce insensato supor que, pelo menos no médio

difícil país do mundo”, de tal modo que “quem

prazo, o resultado será uma economia de mer-

conseguir viver um ano na China fica apto a vi-

cado à la americaine. Por um lado, a liberdade

ver em qualquer parte.”176 Estas imagens fazem

política não tem acompanhado a económica177

jus às particularidades culturais, sociais, polí-

– e é presumível que do regime político prove-

ticas e económicas de uma potência com um

nham influências sobre a transição económica

imenso território, uma massa populacional que

e a empresarial. Por outro lado, os “genes” cultu-

representa um quinto do globo, e taxas de cres-

rais chineses não se compaginam com muitos

cimento económico invejáveis. O país tem as-

elementos do modelo americano/ocidental de

sim atraído caudaloso investimento estrangeiro

gestão.

175

– e não há qualquer razão para presumir que o potencial de atracção declinará. Mas diver-

O capítulo procurou abrir uma porta de aces-

sos insucessos têm sido experimentados pelas

so interpretativa acerca do que é a China e dos

empresas estrangeiras – devido, sobretudo, à

modos de aí fazer gestão. Desenhou as traves

incompreensão daquelas particularidades.

mestras da cultura chinesa, tendo colocado o confucionismo, as relações interpessoais,

As regras de uma boa gestão de pessoas na “es-

o status, a preservação da face e as relações

cola ocidental” podem ser contraproducentes

hierárquicas no seu cerne. Salientou as razões

na China. Não se lideram colaboradores chi-

dos fracassos das t ventures entre Chineses

neses do mesmo modo que se lideram norte-

e parceiros estrangeiros. Mostrou como o fim

-americanos, australianos, ses, portugue-

da “tigela de arroz de ferro” não significou a re-

ses ou espanhóis. Na China, “negociar bem” não

moção completa dos antigos traços da gestão

é fazê-lo ao estilo ocidental. A lógica ocidental

das pessoas nas empresas. Aludiu à carência de

tem pouca lógica no quadro da lógica negocial

competências de gestão. Sublinhou a necessi-

chinesa! A assertividade americana/ocidental

dade de os gestores expatriados aprenderem a

pode colidir com a preservação da face que é

cultura e a língua, e de compreenderem a Chi-

apanágio da cultura chinesa.

na “profunda” – para melhor se ajustarem, para melhor lidarem com os Chineses (e.g., as auto-

Estas são apenas ilustrações simples de uma re-

ridades, os gestores chineses, os colaboradores

alidade idiossincrática, cuja compreensão pode

locais) e para melhor exercerem as suas funções

ser impedida pelo etnocentrismo de alguns in-

e obterem mais elevados desempenhos. Mos-

vestidores estrangeiros. Este capítulo procurou

trou como as mudanças económicas podem

sensibilizar o leitor para a matéria – descreven-

gerar situações laborais que raiam a escravidão

do uma realidade distinta, e sugerindo orienta-

e produzem danos sociais e psicológicos de

ções também distintas. A China está a envere-

grande envergadura.

dar por um processo de transição económica 175

Semler (2003a, 2005). 176 Citado em Caeiro (2004, p. 32). 177 Engardio et al. (2007).

221

222


Explanou também as particularidades da lógica

Acreditamos que o termo ‘economia de merca-

negocial chinesa e enunciou orientações sobre

do socialista com características chinesas’ é um

os modos apropriados de negociar com estes

slogan mesclado que proporciona legitimidade

parceiros orientais. Frisou a grande relevân-

ao controlo político do Partido Comunista (man-

cia do guanxi, e distinguiu os seus potenciais

tendo a identidade ‘socialista’), que cria a oportu-

efeitos positivos dos negativos. Sugeriu que o

nidade para introduzir os mecanismos de merca-

guanxi pode ser um “capital social” importante

do conducentes ao desenvolvimento económi-

para a sociedade chinesa, desde que liberto das

co, e que permite que valores tradicionais como

suas facetas de nepotismo, favoritismo, corrup-

os confucianos preencham o vazio ideológico e

ção e prejuízo para o mérito e a eficiência.

rejeitem a ‘ocidentalização’. Esta é uma mistura ´pragmática’ de elementos que podem parecer

Descreveu recomendações úteis para as em-

contraditórios, mas que, até ao momento, têm

presas que pretendem enviar expatriados para

funcionado. Todavia, se aparecerem dificulda-

o país – apontando pistas sobre: (a) “quem” deve

des económicas severas (...) e as tensões sociais

ser seleccionado para a missão; (b) como pre-

crescerem até um nível crítico, então o equilíbrio

parar e formar o expatriado; (c) como fomentar

sistémico pode ser gravemente perturbado.”178

as condições para que este se ajuste de modo apropriado. Traçou linhas de acção sobre o que podem fazer os gestores expatriados em prol

Caixa A4.15

do desenvolvimento de gestores locais que

Duas gerações de gestores chineses – ou a necessidade imperiosa e pragmática de manter um esforço paradoxal?

possam vir posteriormente a substitui-los. O capítulo não pode ser interpretado como

A propósito da Rússia, o Capítulo A2 subli-

uma descrição exaustiva do cenário chinês.

nhou a existência de dois tipos de gestores:

Mas é porventura uma boa base de partida para

os da velha guarda versus os mais jovens.

quem pretende compreender o país, estudá-lo

Algumas pesquisas sugerem que algo si-

e nele investir. É uma fonte de compreensão do

milar pode estar a ocorrer na China, como

processo de transição no país e da incerteza

consequência das reformas económicas, da

do panorama económico/gestionário chinês

abertura do país aos ímpetos da globaliza-

vindouro (veja ilustração na Caixa A4.15). É tam-

ção, e da influência dos valores e da “escola”

bém uma indicação da complexidade da China,

de gestão ocidental.179 Argumenta-se que

da aparente paradoxalidade dos sistemas eco-

os gestores mais velhos são mais confucia-

nómico e empresarial chineses, assim como do

nos e valorizam mais o colectivismo. E que a

pendor pragmático que parece ser um apaná-

“nova geração” propende mais para o indivi-

gio do país. Eis como Zhu e Warner se pronun-

dualismo e a abertura à mudança, e menos

ciaram acerca desta matéria:

para o colectivismo e os valores confucianos – sendo, por conseguinte, mais próxima dos gestores ocidentais.

178

Zhu e Warner (2000, p. 358). 179 Child e Warner (2003).


Esta tendência é, todavia, parcialmente des-

Segundo Child e Warner, “a natureza apa-

mentida por outras investigações , que

rente da mudança dos valores gestionários

sugerem que os gestores mais jovens con-

chineses reflecte, ao nível individual, o es-

tinuam a pender para determinados valores

forço para competir e ser bem sucedido no

confucianos. Aduz-se, então, que a exposi-

moderno mundo económico, embora man-

ção ao (ou mesmo a adopção do) estilo de

tendo as tradições sociais (as ‘características

vida ocidental não reduz a adesão a valores

singulares’ chinesas) que têm preservado a

confucianos básicos como a benevolência,

unidade do país ao longo de mais de 2000

a temperança (incluindo a harmonia) e a

anos.” No entender dos autores, a identidade

persistência (abarcando a perseverança, a

social dos gestores chineses pode ser mais

paciência e a adaptação). Há também ou-

complexa do que tem sido geralmente con-

tros estudos que sugerem que as situações

siderado. E pode requerer uma teoria cultu-

divergem consoante as zonas geográficas.

ral também mais complexa do que aquelas

180

de que hoje dispomos.182 Na globalidade, os estudos sugerem que os gestores jovens das zonas costeiras têm vindo, de facto, a adoptar novos valores.

Como nota de curiosidade para o leitor, suge-

Esta mudança resulta da modernização do

rimos-lhe que realize, novamente, os exercícios

país, das influências da globalização e do

n.os 5.4 e 5.7 situados neste CD. Será que, depois

o progressivo dos Chineses com

de ter lido o presente capítulo, as suas pon-

o mundo ocidental. Todavia, pelo menos

tuações são diferentes daquelas que obteve

quatro questões fortemente relacionadas

aquando da leitura do Capítulo 5?

se mantêm em aberto. Primeira: a de saber se os valores confucianos estão ou não a ser diluídos. Segunda: a de saber se o padrão de valores da nova geração de gestores será uma combinação peculiar de valores novos e tradicionais. Terceira: a de saber se os gestores distinguem entre os (ocidentais) valores aplicados ao contexto de trabalho e os (tradicionais) respeitantes à vida familiar e comunitária. Quarta: a de saber se os gestores chineses não serão suficientemente flexíveis e pragmáticos181 para importar os valores e as práticas que se lhes afiguram acarretar efeitos positivos, e rejeitar os que não lhes interessam.

180

Hefferman e Crawford (2001). 181 Warner (2002, 2003). 182 Child e Warner (2003).

223

Testemunho

TESTemunho

Uma história de prendas Manuel Monge, Secretário Adjunto para a Segurança, no Governo de Macau, no período de Set. 1996 até Dez. 1999183

Conheci o Dr. Wang quando ele veio a Lisboa integrando uma delegação chinesa, que foi recebida pelo então Presidente da República Dr. Mário Soares. Pretendia a referida comissão conseguir apoios para o seu projecto de lançamento dum satélite de comunicações luso-chinês, utilizando um lançador (foguetão) chinês, em cujo desenvolvimento as autoridades da República Popular da China estavam muito empenhadas. O projecto, bastante interessante, acabou por não vingar por razões que não interessam a esta história. Quando cheguei a Macau, em Setembro de 1996, o Sr. Wang apressou-se para conseguir ser, e foi, das primeiras pessoas que me convidou para jantar. Ofereceu-me um jantar magnífico num luxuoso restaurante chinês, que se anunciava regado com uma espampanante garrafa de caríssimo cognac francês. Com algum cuidado, sugeri a troca do dito cognac por vinho tinto, se possível português. Depois da vinda sucessiva de duas garrafas de vinho Dão com o vinho já “marado”, e das consequentes peripécias envolventes, lá acedi ao “invasor” cognac que mal provei, bebendo sim um belíssimo chá. Mas o Sr. Wang fixou o meu apreço pelo vinho e, num posterior jantar, tive oportunidade de dissertar sobre o vinho português. Uma noite, estava eu a jantar com um grupo de amigos no restaurante “Galera”, um esplêndido restaurante dos melhores de Macau, e entrou o Sr. Wang. Depois de alguns minutos de conversa, chamou um empregado e deu-lhe uma ordem, naturalmente em chinês. Poucos minutos depois, o empregado regressou e o Sr. Wang ofereceu-me, exuberante, uma garrafa de vinho francês. O Sr. Wang sabia que eu já conhecia um pouco dos hábitos chineses, já era um low pang iao (velho amigo), falávamos com alguma facilidade no mesmo comprimento de onda. Assim, um dia em que apreciava uma bela sopa de barbatana de tubarão num jantar por ele oferecido, ele disse-me: “É boa, Brigadeiro? Trezentas patacas (ao câmbio da época, cerca de seis contos)!” Podia eu pois, sem o ofender, perguntar-lhe: “Sr. Wang, quanto custa esta garrafa?” A garrafa de Chatel Neuve du Pape, ao câmbio da altura, custava cerca de 630 contos! Ele pedira ao empregado que trouxesse a que mais cara houvesse na boutique de vinhos (quase todos ses), que havia ali ao lado num dos corredores do Hotel Lisboa.

183

Actual Governador Cívil de Beja.

227

228


“Sr. Wang, eu não vou aceitar este vinho. E não vou por três razões. A primeira, este vinho é velho, pode estar estragado com a viagem e mudanças de temperatura da Europa para aqui. E eu nunca lhe iria dizer que o vinho estava estragado, saíamos os dois enganados. A segunda razão é que, mesmo estando bom, nenhuma garrafa de vinho vale uma exorbitância destas. E a terceira razão, é que temos vinho português tão bom ou melhor que este, e muito mais barato”. “Têm?”, perguntava o bom Sr. Wang. “Temos”, afirmava eu pegando numa garrafa de esplêndido tinto “Barca Velha” com que regávamos o jantar. O Sr. Wang chama de novo o empregado, dá-lhe mais umas ordens, e sorri misterioso. Poucos minutos depois, o empregado regressa e fala, em surdina, com o Sr. Wang. O meu low pang iao abre um enorme sorriso e diz-me: “Sr. Brigadeiro, já tem no seu carro duas caixas de Barca Velha, ou seja, doze garrafas. O restaurante não quis disponibilizar-me mais. Custaram cerca de 240 contos. Fizemos pois, os dois, um óptimo negócio. O Sr. em vez de uma leva doze garrafas, e eu pago cerca de um terço do que ia pagar só por uma garrafa”. E ria feliz e realizado, o bom do meu amigo Sr. Wang.

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