A LETRA COMO IMAGEM, A IMAGEM DA LETRA: AS METÁFORAS GRÁFICAS DE PAUL KLEE Maria do Carmo de Freitas Veneroso Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais Resumo: Este é um estudo a respeito do diálogo e das relações intertextuais no processo escritural nas artes do século XX. O papel de Mallarmé é enfatizado no processo de recuperação dos vínculos entre a palavra e a imagem, assim como o trabalho pioneiro de Picasso e Braque, seguidos por vários artistas, entre eles Paul Klee, que faz várias referências à escrita em suas obras. Palavras-chave: Palavra e imagem; relações intertextuais; Paul Klee; escritura Abstract: This essay aims at studying the dialogue and inter-textual relationships which operate in the process of écriture within the arts in the 20th Century. The role of Mallarmé is emphasized in the process of rescuing links between word and image, as well as the pioneering work of Picasso and Braque, followed by many other artists, as Paul Klee, who refers many times to writing in his works. Keywords: Word and image; inter-textual relationships; Paul Klee; écriture
Apresentação Este é um estudo a respeito do diálogo e das relações intertextuais no processo escritural nas artes do século XX. Nele serão discutidas as relações entre imagem e texto focalizando o trabalho de Paul Klee, que com suas “metáforas gráficas” uniu arte e escrita em seu trabalho, eliminando a existência de uma hierarquia entre ambas. Ao justapor as figuras e a sintaxe dos signos, esse artista abole o princípio ocidental que afirma a diferença entre representação plástica e referência lingüística (Foucault). Uma leitura abrangente das relações entre imagem e texto aponta como, em determinado momento, se deu uma ruptura entre signos lingüísticos e elementos plásticos. Há no século XX uma reintegração das palavras no discurso plástico, quando elas irrompem no espaço do quadro, ao mesmo tempo em que a visualidade dos signos lingüísticos e do espaço da página é resgatada pelos poetas. É grande a importância de Mallarmé nesse processo e também o trabalho pioneiro de Picasso e Braque, seguidos por vários artistas, como Klee, com suas referências à escrita. Para trabalhar a questão do diálogo entre imagem e texto, os conceitos de écriture (Barthes) e intertextualidade (Bakhtine/Kristeva/Compagnon) compõem o quadro teórico.
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A aplicação do conceito de écriture às artes plásticas leva a pensá-la não como uma função da linguagem, mas como uma desfuncionalização, pois explora não as “riquezas infinitas” de um texto, mas seus pontos de resistência, forçando-o a significar o que está além de suas funções. A questão da intertextualidade percorre, também, todo esse estudo, já que a arte do século XX pode ser analisada como um processo intertextual de reescrita de outros textos. A idéia da intertextualidade está implícita nos procedimentos dos poetas e artistas que se apropriam de fragmentos de jornal, bilhetes de trem e rótulos de produtos. Também a apropriação de textos literários, textos veiculados pelos meios de comunicação de massas, signos e símbolos e diferentes alfabetos a a ser uma presença constante na arte do século XX estando relacionada à introdução de novas mídias. Enfim, através da análise das “impurezas textuais” (Hal Foster), investigarei de que maneira a quebra de limites rígidos entre as diferentes linguagens, que se precipitam umas nas outras, afetou as artes no século XX e continua a fazê-lo nosso século, com ênfase na quebra de fronteiras entre o texto e a imagem. A letra como imagem, a imagem da letra Essa aparição da letra no espaço do quadro e a exploração da visualidade da letra na poesia está ligada a vários fatores. A dissolução dos limites precisos entre as linguagens artísticas e o diálogo cada vez maior entre as categorias artísticas pode ser apontada como uma das possíveis explicações para isso. A desconstrução da escrita tem feito com que escrita e desenho se encontrem num lugar limítrofe que é um local privilegiado para se pensar as relações entre imagem e palavra. Também o movimento pendular na arte tem levado os artistas e poetas a buscar a visualidade da letra, reafirmando a origem visual da escrita. Esse diálogo que a arte do século XX estabelece com a escrita, ao mesmo tempo em que a escrita dialoga com a visualidade da letra, reata, de certa maneira, antigos vínculos existentes entre a palavra e a imagem, entre o traço do desenho e o traço da escrita, revelando que a escrita não é apenas um meio de transcrição da fala, mas é uma realidade dupla, dotada de uma parte visual.
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Ao analisar a questão do diálogo entre as artes, notamos que parâmetros tidos como imutáveis têm sofrido abalos e questionamentos. A arte da segunda metade do século XX tem se encaminhado em direção a um questionamento dos seus conceitos básicos. É um movimento pendular “para lá e para cá, para a frente e para trás” (Bhabha 1998:23),
apontando para a impossibilidade de progresso na arte.
Não mais preocupada com a pureza formal dos veículos artísticos tradicionais a arte recente se volta para as “impurezas textuais”. O campo da arte mudou na medida em que as formas distintas de expressão (visual versus literária, temporal versus espacial), enraizadas em áreas separadas de competência, já não são mais obedecidas. Assim como não há mais um limite preciso entre o visual e o literário, também tempo e espaço se articulam e o que Hal Foster chamou de “impureza” textual pode se estender até a quebra dos limites entre as diferentes linguagens. Na busca da origem da visualidade da escrita, nos deparamos, na história da escrita, com um momento em que se torna quase impossível separar escrita e desenho, de tal maneira eles se relacionam. A imagem pintada, desenhada ou gravada pode ser considerada uma forma de escrita, e a escrita é também um veículo gráfico, que comunica através das formas. Como afirma Anne-Marie Christin (Christin, 1995:5) a escrita nasceu da imagem, considerando o termo escrita no seu senso estrito de veículo gráfico de uma fala. Assim sendo, a arte do século XX pode ser vista como uma tentativa de reatar os antigos vínculos existentes entre escrita e imagem, tendo como precursores Mallarmé, com Un Coup de Dés e Picasso e Braque, com os papier-collés. Ao mesmo tempo em que poetas como Mallarmé restauram a visualidade do poema, artistas plásticos vão buscar no texto além da sua visualidade, a sua materialidade. Essa estreita relação entre imagem e escrita, embora tenha se modificado através dos tempos, nunca deixou de existir totalmente. Pelo termo escrita, entendem-se as suas várias formas, que vão desde as pinturas rupestres da pré-história, ando pela escrita cuneiforme, pelos hieroglifos egípcios, pelos diferentes alfabetos e pelos caracteres da escrita ideogramática, até a narrativa visual, presente na arte grega e romana e também nas histórias em quadrinhos e no cinema. Entretanto, por muito tempo (do século XV ao século XX), vigorou, na sociedade ocidental, um princípio que afirmava a separação entre signos lingüísticos e elementos plásticos. Esse princípio estabelece : “a separação
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entre representação plástica (que implica a semelhança) e referência lingüística (que a exclui). Faz-se ver pela semelhança, fala-se através da diferença. De modo que os dois sistemas não podem se cruzar ou fundir” (Foucault, 1989:39). Desse modo, mesmo quando esse encontro se dava, ele era regido por alguma forma de subordinação, de hierarquia entre imagem e texto, indo da forma ao discurso ou do discurso à forma: a legenda, o título, a ilustração, a crítica de arte e todo discurso que gira em torno da pintura. No ocidente, foi, portanto, somente a partir do final do século XIX e início do século XX que uma relação mais estreita entre arte e escrita se restabeleceu, através do trabalho de poetas e artistas plásticos. Há um lugar fronteiriço, onde imagem e texto se encontram, sendo que, ao mesmo tempo em que a escrita explora a sua visualidade, a arte restitui à escrita sua materialidade, sua qualidade de “coisa desenhada”. Mallarmé provocou uma verdadeira ruptura ao lançar mão de recursos visuais na composição de seu poema-constelar, Un Coup de Dés. O poeta não somente faz uso da tipografia, mas também quebra a linearidade (fundamento da escrita ocidental) e rompe com a sintaxe e a pontuação, de modo que as relações entre as palavras serão sobretudo relações espaciais. Dos espaçamentos, dos brancos, da disposição das palavras é que emergem os significados. Opera-se, assim, uma recuperação do valor visual dos signos lingüísticos e um resgate dos vínculos entre palavra e imagem, obscurecidos por muito tempo, na sociedade ocidental, pela consideração exclusiva do aspecto sonoro da palavra. A exploração de recursos gráficos junto ao texto, realizada por Mallarmé, com Un Coup de Dés, teve vários desdobramentos, entre eles, o trabalho de Apollinaire, com seus Calligrammes e também as experiências futuristas de neotipografia, como Les mots en liberté, de Marinetti e L’antitradition futuriste, de Apollinaire, vindo a se cristalizar mais tarde nas obras de Joyce, Pound e cummings. Explorando ainda os recursos gráficos junto ao texto, podemos citar os experimentos dos dadaístas, como por exemplo o manifesto de Tristan Tzara, DADA souleve tout e vários poetas, entre eles Giuseppe Ungaretti, com seu poema Perfections du noir e ainda a poesia concreta. A exploração dos valores plásticos do poema vai ter continuidade por todo o século XX, também com poetas como Joan Brossa, cuja obra está situada entre o semântico e o visual.
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Paralelamente a esse movimento em direção a uma poesia que utiliza, cada vez mais, elementos plásticos, ocorria uma situação análoga nas artes plásticas, com os artistas utilizando, cada vez mais, recursos da escrita em seus trabalhos. Podemos dizer que a palavra apareceu pela primeira vez no espaço do quadro, de uma maneira mais sistemática e integrada ao discurso plástico, na produção dos pintores cubistas, na década de 1910. As idéias do progresso e da modernidade vão substituir o culto da natureza e a fascinação pela paisagem, presentes na produção pictórica do século XIX. As cidades com seus signos, marcas e grafismos dos anúncios de rua vão substituir as paisagens impressionistas. Através da apropriação de fragmentos da realidade urbana, como textos tipográficos, jornais, partituras musicais, embalagens, bilhetes de metrô, os pintores cubistas introduzem a palavra em suas colagens. A seguir, esses artistas começam a pintar as palavras sobre a tela, porém mantendo suas características tipográficas. Com Picasso, a desconstrução se deu através de uma investigação sobre os elementos que constituem o quadro, e também através de uma profunda análise do espaço, fracionando a realidade em planos superpostos e simultâneos. Com suas colagens Picasso inaugura uma forte tendência da arte contemporânea, incorporando na obra artística materiais não artísticos, letras e elementos textuais. Num processo intertextual, fragmentos retirados de jornais, partituras musicais, papéis de parede, etc., foram incorporados à obra, para que, tal como num quebra-cabeças, as partes se ajustassem ao todo. Ao mesmo tempo, Apollinaire realizava trabalho semelhante com seus caligramas, nos quais ele também discute as relações espaço/tempo, e nos quais a letra é imagem e a imagem é letra. Através da aproximação do trabalho desses dois artistas percebe-se, de uma maneira clara, como, nesse momento artes plásticas e literatura confluíram para um terreno comum, discutindo questões semelhantes. Vários foram os artistas que seguiram o caminho aberto por Picasso com suas colagens. Em alguns artistas, a aproximação entre imagem e texto se dá através da apropriação de elementos da escrita no espaço do quadro, como em Braque e Schwitters. Já no trabalho de outros artistas, como Klee, Motherwell e Cy Twombly, a escrita remete às garatujas e a diferentes alfabetos. A palavra transgressora surge nos graffiti e nos trabalhos de artistas como Basquiat. O restabelecimento das relações entre arte e literatura se dá em trabalhos de artistas como Arlindo Daibert e Kiefer, ao mesmo tempo
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em que a materialidade da palavra está presente em obras de Ann Hamilton e Barbara Kruger. Também na poesia visual recente nota-se uma ênfase maior na imagem, como em Joan Brossa, apontando, mais uma vez, para a ruptura dos limites entre as categorias artísticas. A aparição da letra no espaço do quadro e a exploração da visualidade da letra na poesia estão ligadas, portanto, a vários fatores: a dissolução dos limites precisos entre as linguagens artísticas, sendo que as categorias artísticas têm se misturado cada vez mais, com a aproximação entre as artes; a desconstrução das categorias tradicionais tem feito com que escrita e desenho se encontrem; a questão do movimento pendular na arte, que tem levado os artistas a buscar a visualidade da letra, reafirmando a origem visual da escrita. Foi grande a presença de artistas desconstruindo textos e criando intertextos escriturais no decorrer do século XX e nota-se que ela ainda é constante. As metáforas gráficas de Paul Klee: o símbolo, a letra, o ideograma, a escritura Paul Klee foi um artista que uniu arte e escrita em seu trabalho, através de um trabalho intertextual, no qual ele incorpora signos, letras e ideogramas, reafirmando a visualidade da escrita e extinguindo o princípio ocidental que estabelece a diferença entre representação plástica e referência lingüística, abolindo a existência de uma hierarquia entre ambas. Nos trabalhos de Klee, a referência à escrita ocorre de muitas maneiras, indo desde a menção explícita a letras do alfabeto, como por exemplo a presença da letra R na pintura intitulada Villa R, até a referência caligráfica em desenhos como O playground das crianças ou ainda formas ideográficas. Existe, portanto, uma qualidade de escritura em seu trabalho, que é constante e marcante, e é isso que se pretende analisar. Muitas das pinturas de Paul Klee são como uma forma de escrita com seus signos, setas, letras flutuantes, vírgulas, claves. Durante muito tempo, considerou-se que a escrita fosse meramente um substituto visual para a fala. Já Roy Harris, em Signs of Writing (Harris, 1995:4), trata a escrita como um modo independente de comunicação, considerando que existem formas de escrita como a musical, a matemática e outras que obedecem os mesmos princípios da escrita verbal: “a comunicação é vista não como um
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processo de transferir pensamentos ou mensagens de uma mente de um indivíduo para outra, mas consistindo da integração contextualizada de atividades humanas por meio de signos”(Harris, 1995:4). A escrita seria, pois: “uma função da versátil capacidade humana para criar signos" (Harris, 1995:4), e é dentro dessa perspectiva que podemos analisar o trabalho de Paul Klee. Como disse Robert Hughes, a respeito dos trabalhos desse artista: ...seu código para qualquer objeto, das nervuras de uma folha ao modelo das grades de irrigação tunisianas, não se empenha em uma descrição sensual, mas em vez disso declara ser simplesmente uma imagem mental, um hieróglifo existindo em um espaço emblemático (Hughes, 1991: 306).
Pode-se fazer uma aproximação entre Flora Cósmica e o Banquete na festa do vale, pintura mural egípcia. O primeiro aspecto que chama a atenção é a organização espacial de ambas. Klee utiliza a mesma composição em barras que aparece na arte egípcia, com as imagens seguindo uma seqüência linear. Todas as figuras se encontram no mesmo plano, não havendo sugestão de perspectiva. Mas o que é mais instigante nessa pintura é a sua qualidade de hieróglifo. Os hieróglifos egípcios são um sistema de escrita que mistura símbolos semânticos que substituem palavras e idéias, também conhecidos como logogramas, e signos fonéticos, fonogramas, que representam um ou mais sons. Alguns hieróglifos são imagens reconhecíveis de objetos, como um pássaro ou uma cobra, isto é, são pictogramas, mas a imagem não representa necessariamente o sentido do signo (Robinson, 1995: 34). Como os hieróglifos, os signos de Klee são muitas vezes imagens reconhecíveis de objetos, e através deles o artista cria seu próprio sistema de escrita. Outras vezes, ele usa símbolos que remetem a idéias ou significados, sem no entanto, representar objetos. Um outro aspecto que nos interessa, em Klee, é a maneira como ele direciona nosso olhar, sugerindo a maneira como o quadro deve ser lido. Enquanto no texto escrito, de uma maneira geral, há um caminho único para o olhar - da esquerda para a direita e de cima para baixo nas civilizações ocidentais - a leitura de um quadro oferece uma outra dinâmica para o olhar.
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Assim, pinturas como Flora Cósmica possuem uma certa simetria que remete aos hieróglifos. Os hieróglifos egípcios eram lidos tanto da direita para a esquerda quanto da esquerda para a direita. Porém: sempre, qualquer que fosse a direção escolhida, os signos individuais ficavam numa posição tal que os olhos do leitor assem por eles da frente para as costas. Assim, se alguém olha para uma linha de hieróglifos e vê os signos (aves, humanos, animais, etc) virados para a direita, então a direção da escrita é da direita para a esquerda - e vice-versa (Robinson, 1995:94).
Em alguns casos da escrita egípcia, acontecia uma mudança de direção na leitura, em uma mesma peça. Isso acontece, por exemplo, na chamada “falsa porta” de Khut-enPtah. Esse tipo de porta marcava os limites em uma tumba egípcia entre o domínio dos mortos, fechado e proibido, e uma área relativamente ível, onde amigos e parentes do morto pudessem fazer preces e oferendas. Khut-en-Ptah é mostrado duas vezes no canto inferior esquerdo da porta e duas vezes à direita, nos dois casos voltado para dentro. Também a coluna de hieróglifos diretamente acima de sua imagem, está toda ela voltada para dentro, formando imagens espelhadas. Essas mudanças de direção na leitura dos hieróglifos estavam ligadas à estética e à simetria, à demonstração de respeito por imagens de deuses, reis e outros e também para facilitar a leitura. Também na pintura de Klee existe essa mudança de direção na leitura, com todos os elementos do quadro voltados para dentro, criando uma impressão de simetria, como nos hieróglifos. Em algumas obras, Klee utiliza símbolos tais como a flecha1 que servem para direcionar nosso olhar, criar uma dinâmica interna no quadro que nos diz como ele deve ser lido. A flecha é um “signo que traz consigo uma semelhança de origem, como se fosse uma onomatopéia gráfica, a figura que formula uma ordem” (Foucault, 1989: 41). Klee pretende, com a flecha, dar uma forma ao movimento: “Que forma dar ao movimento daqui para lá? - Questão capital que contém um momento temporal. Porque daqui para lá implica no tempo um antes e um após”. (Klee apud Geelhaar, 1975: 52) Com essa idéia do antes e do depois, ele insere o tempo na obra. Esse é o caso, por exemplo, da obra Em suspenso (sobre o ponto de se elevar) [En suspens (sur le point de 1
No curso na BAUHAUS que Klee consagra à análise dos símbolos de formas em movimento pião, espiral, pêndulo e flecha - o artista enfatiza a flecha. GEELHAAR, Christian. Paul Klee et le Bauhaus. Neuchâtel: Editions Ides et Calendes, 1972, p.51.
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s’élever)], onde a flecha mostra um sentido de deslocamento das figuras no sentido ascendente. Também os ângulos formados pelas linhas do desenho direcionam o movimento para cima, indo culminar na flecha. Já em outras obras como Le réveil du printemps, há uma semelhança com a escrita chinesa, quando a comparamos com os “ossos de oráculo” da Idade do Bronze. Na China, na Idade do Bronze, esses “ossos de oráculo” eram cascos de tartaruga e escápulas de boi que serviam como oráculos, onde se escreviam questões sobre o futuro; o casco ou o osso era aquecido até rachar, e o significado da rachadura era interpretado, fornecendo uma resposta para as perguntas gravadas. Muitos dos signos dos “ossos de oráculo” são considerados antecedentes reconhecíveis de modernos caracteres chineses. Na pintura de Klee, os signos são gravados sobre a tela e parecem fazer parte de alguma escrita ideográfica, ou seja, são caracteres capazes de comunicar idéias sem a intervenção do fonetismo ou da linguagem falada, como são definidos os ideogramas. Tudo isso mostra que Klee, ao trabalhar com a escrita, produz um conjunto gráfico que não faz parte de nenhum alfabeto ou código conhecidos. É como ler um texto escrito em uma língua que não se domina, mas da qual se pode intuir os significados. Pode-se dizer também que ao tentar “ler” seu trabalho, nós nos conscientizamos de como é automático o processo de se ler uma língua que se conhece. Ele nos obriga, portanto, a desconstruir esse processo de leitura, retomando, o a o, seu aprendizado. Nós percebemos, também, a visualidade da letra, sua qualidade de imagem. Aquela imagem que está ali é letra e é também desenho. Ao se observar sua obra, nota-se que, em meio a tanta diversidade, o artista repete certos elementos (como a flecha, as letras, a composição), que servem como guias. Ele parece criar seu próprio alfabeto. Foi grande a presença de artistas desconstruindo textos e criando intertextos escriturais no decorrer do século XX e nota-se que ela ainda é constante. Tendo encontrado condições propícias para seu desenvolvimento, essa forte tendência da contemporaneidade se radicalizou no trabalho de alguns e surgiu de forma mais sutil no trabalho de outros. A subordinação entre imagem e texto foi quebrada, não existindo mais uma hierarquia entre ambos. Não há mais a preocupação em explicitar uma imagem, como acontece nas legendas ou nos títulos, assim como não se trata de ilustrar um texto
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ou de um discurso que gira em torno da pintura. As palavras se integram ao discurso plástico, tornadas, elas mesmas, imagens. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. _________ O rumor da língua. Lisboa, Edições 70, 1984. (Coleção Signos). BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. BORGES, Jorge Luis. Otras inquisiciones. Madrid: Alianza Editorial, 1981. CAMPOS, Augusto de, PIGNATARI, Décio, CAMPOS, Haroldo de. MALLARMÉ. São Paulo: Perspectiva, 1991. CHIPP, H.B. Teorias da Arte Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1988. CHRISTIN, Anne-Marie. A History of Writing. From hieroglyph to multimedia. Paris: Flammarion, 2002. _________ L’image écrite - ou la déraison graphique. Paris: Fammarion, 1995. COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Belo Horizonte: Editora UFMG,1996. DI SAN LAZZARO, G. Klee. London: Thames and Hudson, 1957. FOSTER, Hal; KRAUSS, Rosalind; BOIS, Yve-Alain; BUCHLOH, Benjamin H. D. Art since 1900. Modernism, Antimodernism, Postmodernism. New York: Thames & Hudson, 2004. _________ Recodificação. São Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996. FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. GEELHAAR, Christian. Paul Klee et le Bauhaus. Neuchâtel: Editions Ides et Calendes, 1972. GOMBRICH, E.H. A História da Arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. HARRIS, Roy. Signs of Writing. London and New York: Routledge, 1995. HUGHES, Robert. The shock of the new. London: Thames and Hudson, 1991. MORLEY, Simon. Writing on the Wall. Word and Image in Modern Art. Berkeley, Los Angeles: University of California Press, 2003. PERLOFF, Marjorie. The poetics of indeterminacy - Rimbaud to Cage. Evanston: Northwestern University Press, 1993. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, Crítica, Escritura. São Paulo: Ática, 1993. ROBINSON, Andrew. The story of writing. London: Thames and Hudson, 1995. VENEROSO, Maria do Carmo de Freitas. Caligrafias e Escrituras: Diálogo e Intertexto no Processo Escritural nas Artes no Século XX. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2000. Tese de Doutorado em Letras (Literatura Comparada).
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