A Virtude Soberana 1a4y3z

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U-342.71.2 lndkes para catálogo oistemãlicm l. Igualdade c:iv;J e polll:ka: Direito 342.722

Todos os direitos desta edíçfio parn o Brnsi/ reservada.o à Livraria Martins Fontes Editora Ltda. Rua Conseflleiro Ramalha, 330 01325"()1)0 Siio Paul-O SP Brasil Te!. (11) 3241.3677 Fax (11) 3101.1042 e-mail; [email protected]:om.br hltp;/fwww.mnrtin.sft.mtes.com.br

Para Betsy, como sempre

Índice

Introdução: A igualdade é importante?............................ Apresentação à edição brasileira..................................... PAI~TE

IX XIX

I

TEORIA

1. Igualdade de bem-estar......................................... 2. Igualdade de recursos............................................. 3. O lugar da liberdade............................................... 4. A igualdade política................................................ 5. A comunidade liberal............................................. 6. A igualdade e a vida boa......................................... 7. Igualdade e capacidade..........................................

3 79 157 253 291 331 399

PARIB II

PRÁTICA 8. A justiça e o alto custo da saúde .......... ... ............... 9. Justiça, seguro e sorte............................................. 10. Liberdade de expressão, política e as dimensões da democracia......................................................... 11. Ação afirmativa: funciona?....................................

431 451 493 543

12. Ação afirmativa: é justa?......................................... 13. Brincar de Deus: genes, clones e sorte .................. 14. Osexo,amorteeostribunais................................

581 609 645

Fontes.............................................................................. Índice remissivo..............................................................

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Introdução

A igualdade é importante?

1 A igualdade é espécie ameaçada de extinção entre os ideais políticos. Até poucas décadas atrás, qualquer político que se declarasse liberal, ou mesmo de centro, acreditava que a verdadeira sociedade igualitária era, pelo menos, um ideal utópico. Atualmente, porém, até os políticos que se declaram de centro-esquerda rejeitam o próprio ideal da igualdade. Dizem que representam um "novo" liberalismo ou uma "terceira via" de governo e, embora rejeitem enfaticamente o credo de insensibilidade da "antiga esquerda", que deixa à mercê de um mercado quase sempre cruel o destino do povo, também rejeitam o que chamam de pressuposto teimoso da "velha esquerda", segundo o qual os cidadãos devem dividir equanimemente a riqueza da nação. Podemos dar as costas à igualdade? Nenhum governo é legítimo a menos que demonstre igual consideração pelo destino de todos os cidadãos sobre os quais afume seu domínio e aos quais reivindique fidelidade. A consideração igualitária é a virtude soberana da comunidade política sem ela o governo não a de tirania - e, quando as riquezas da nação são distribuídas de maneira muito desigual, como o são as riquezas de nações muito prósperas, então sua igual consideração é suspeita, pois a distribuição das riquezas é produto de uma ordem juódica: a riqueza do ci-

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A VIRTUDE SOBERANA

dadão depende muito das leis promulgadas em sua comunidade - não só as leis que governam a propriedade, o rou bo, os contratos e os delitos, mas suas leis de previdência social, fiscais, de direitos políticos, de regulamentação ambiental e de praticamente tudo o mais. Quando o governo promulga ou mantém um conjunto de tais leis e não o·utro, não é apenas previsível que a vida de alguns cidadãos piore devido a essa escolha, mas também, em um grau considerável, quais serão esses cidadãos. Nas democracias prósperas, é previsível, sempre que o governo restringe os programas de previdência social, ou se recusa a ampliá-los, que tal decisão deteriore a vida dos pobres. Devemos estar preparados para explicar aos que sofrem dessa maneira por que foram, não obstante, tratados com a igual consideração que lhes é devida. Talvez possamos - isso depende do que requer a igual consideração genuína, o que é o assunto des'te livro. Se não pudermos, porém, devemos agir para resgatar nossa virtude política. O que podemos e devemos fazer, então, também é assunto deste livro. A "nova" esqlterda não rejeita a igual consideração: quando rejeita a .igualdade como ideal, pretende rejeitar somente uma determinada concepção daquilo que a igual consideração requer. Responsabiliza a "velha" esquerda pela idéia de que a igualdade genuína entre cidadãos só se aplica quando todos têm riquezas iguais, do berço à sepultura, independe11temente de optar por trabalhar ou que tipo de trabalho escolhe~ que o governo deve constante1nente tirar das formigas para dar aos gafanhotos. Creio, no entanto, que niI1guém proporia isso como ideal político: a igualdade absoluta e h1discriminada não é apenas 11m valor político fraco, ou um valor que seja facilmente sobrepujado por outros valores. Não é de modo algum um valor: não há nada que se possa dizer em defesa de t1m mundo no qual aqueles qlte optam pelo ócio, embora pudessem trabalhar, são recompensados com o produto dos trabalhadores. Porém, se a igual consideração não significa que o governo deva garantir que todos tenham igt.1al riqueza, sejam

lNTRODUÇÃO: A IGUALDADE É IMPORTANTE?

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quais forem, então o que significa? Não existe resposta objetiva ou indiscutível para essa pergunta. A igualdade é um conceito controverso: quem a louva ou deprecia discorda com relação àquilo que louvam ou depreciam. A teoria correta da igualdade é em si uma questão filosófica difícil: os filósofos defendem uma diversidade de respostas, muitas das quais são discutidas neste livro. Então, seria sensato seguir a nova tendência e deserdar totalmente o ideal, exatamente por esse motivo? Se não conseguimos concordar que a verdadeira igualdade significa igualdade de oportunidades, por exemplo, ou de resultados, ou algo completamente diferente, então por que continuar quebrarido a cabeça para descobrir o que ela é? Por que não perguntar, diretamente, se uma sociedade decente deveria ter como meta que seus cidadãos tivessem riquezas iguais, ou que tivessem oportunidades iguais, ou somente que cada um tivesse o bastante para satisfazer suas necessidades mínimas? l)or que não esquecer a igualdade abstrata e nos concentrarmos, pelo contrário, nessas questões obviamente mais precisas? Porém, se a igual consideração é pré-requisito da legitimidade política - um pré-requisito como direito de a maioria impor s·uas leis contra aqueles que as consideram insensatas ou mes.mo injustas -, não podemos deixar de lado a questão relativa àquilo que a igual consideração requer. Seria suficiente a comunidade garantir um nível mínimo de nutrição, alojamento e cuidados médicos para todos e, então, não se interessar pcir saber se alguns cidadãos possuem muito mais riquezas do que outros? Devemos perguntar: essa política atenderia à demanda por igual consideração para aqueles q·ue continuam sem poder nem mesmo sonhar com a vida que alguns de seus concidadãos têm como certa? Pode parecer uma questão sem sentido ou, pelo menos, prematura. As democracias prósperas estão muito lo11ge de proporcionar uma vida ao me11os minimamente razoável para todos - embora algumas se aproxime1n mais dessa meta do que outras - e talvez seja, portanto, sensato nos concen-

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trannos em incentivar esse requisito de menor importância e ignorar, pelo menos para o futuro previsível, o requisito mais exigente da igualdade total. Não obstante, quando se ite que os membros da comunidade que estão em situação confortável não precisam igualar-se aos concidadãos sem conforto, mas somente um padrão de vida mínimo e razoável, então concede-se demais para despertar a questão essencialmente subjetiva de quão mínimo é o padrão razoável, e a história contemporânea demonstra que aqueles que gozam de conforto talvez 11ão ofereçam uma resposta generosa para essa pergunta. Portanto, mesmo com o que há de lamentável nas atuais circunstâncias, não seria sensato deixar de questionar se a igualdade, e não apenas uma atenuação da desigú_aldade, deve ser a meta legítima da comunidade. Este livro argum.enta que a igual consideraçãc;i requer que o governo aspire a uma forma de igualdade material que chamo de iguilldade de recursos, embora possa haver outros nomes também adequados. A argumentação está dividida em duas partes. A Parte I começa com grandes questões teóricas e recorre a exemplos principalmente à maneira comum na filosofia- como casos artificiais inventados para ilustrar e examinar as hipóteses teóricas. A Parte II, pelo contrário, inicia-se com acaloradas controvérsias políticas contemporâneas, entre elas os debates nacionais sobre assistência médica, programas de previdência social, reforma elt->i.toral, ação afirmativa, experiências genéticas, eutanásia e homossexualismo. AB discussões dessa parte funcionam às avessas, das questões políticas fundamentais para as estntturas teóricas que pareçam pertinentes e ajudetn a julgá-las. Algtunas dessas discussões, como a do Capítulo 11, apresentam o argumento muito detalhadamente, tentando oferecer não só uma estrutura para se enfrentar determinada questão, mas também os fatos necessários à aplicação de tal estrutura. Outros pretendem apenas revelar a estrutura, isto é, mostrar quais são os fatos de que precisamos. A diferença entre as duas partes está no modo de apresentação, e não no nível geral de abstração ou de complexi-

INTRODUçAO: A IGlL1f.DADE É IMPORTANTE?

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dade alcançado. A Segunda Parte, em especial, não consiste simplesmente em aplicações de teorias elaboradas na primeira: vários dos capítulos "às avessas" realizam importantes avanços teóricos com relação aos capítulos da primeira parte. O Capítulo 10, sobre a reforma do financiamento de campanhas, por exemplo, toma mais inteligível ateoria da democracia latente nos capítulos anteriores e, embora os Capítulos 8 e 9, sobre a reforma da assistência médica e da previdência social, sejam exemplos ampliados do dispositivo hipotético de seguro descrito no Capítulo 2, levam mais adiante a elaboração teórica desse artifício. Enfatizo a interdependência entre a teoria política e a controvérsia prática porque acredito ser essencial que a filosofia política responda à política. Não quero dizer que os filósofos políticos d~vam evitar a complexidade teórica nem alego que este livro o faça. Não devemos hesitar em seguir uma argumentação que comece na política prática e entre em quaisquer terrenos abstratos da filosofia política, ou mesmo da filosofia em suas partes mais gerais, que nos levem a explorar, até chegar ao que nos pareça uma resolução intelectual satisfatória, ou pelo menos uma resolução tão satisfatória quanto nos julguemos capazes de alcançar. Todavia é importante que a argumentação que termina na filosofia geral deva começar na nossa vida e na nossa vivência, pois só então terá probabilidade de alcançar a fonna correta, nã.o só para finalmente nos ajudar, mas tambén1 para-demonstrar que os problemas que acomparihamos até as nu\'ens, mesmo que intelectualmente, são genuínos, e não espúrios. II

Enfatizo o caráter às avessas do livro por mais uma razão: para apresentar um nível mais filosófico da argumentação· que está praticamente indistinto nestas páginas, mas que me proponho a aprofundar em um livro posterior que

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A VIRTUDE SOBERANA

terá como base o Seminário John Dewey que minislrei na Columbia University, no quarto trimestre de 1998, com o título de "Justiça para ouriços". Naquelas palestras, argumentei que uma teoria da moralidade política, como a formulada neste livro, devia localizar-se dentro de uma teoria mais geral dos valores humanitários da ética e da moralidade, do status e da integridade do valor, e do caráter e da possibilidade da verdade objetiva1. Devemos desejar uma teoria plausível de todos os valores pol)'ticos fundamentais - da democracia, da liberdade e da sociedade civil, bem como da igualdade -que mostre que cada um deles é oriundo e expressa em todos os outros uma teoria que perceba a igualdade, por exemplo, não apenas como compatível com a liberdade, mas como um valor que o indivíduo que prezasse a liberdade também prezaria. Sobretudo, devemos desejar que uma teoria com todos esses valores expresse compromissos ainda mais fundamenta is com relação ao valor de uma vida humana e com relação à responsabilidade de cada indivíduo de descobrir esse valor em sua própria vida. Em espírito esses objetivos são contrários a duas das mais potentes influências contemporâneas sobre a teoria liberal- o liberalismo político de John Ra.wls e o pluralismo dos valores de Isaiah Berlin - e as conseqüências desse espírito contrário vem à tona 11este livro. Berlin fazia questão de afirmm que os valores políticos importantes estão em i11tenso conflito - ele salientava especial1nente o conflito entre liberdade e igualdade-, porém os Capítulos 3 e 5, ei1tre 01ttros, esforçam-se por dissipar tais conflitos e integrar esses valores. O contrato social de I~wls pretende isolar a moralidade política dos pressupostos éticos e das controvérsias a respeito do caráter da vida boa. Por consegui11te, o argumento deste livro 11ão utiliza nenhum contrato social: espera encontrar qualquer apoio que suas declarações po1. Para minha própria tese acerca da objetividade que os juízos morais podem reivindiçar, ver Ronald Dworkin, "Objectivity and Truth: You'd Bt'tter Believe It", Pllilosophy & PublicA_ffcârs 25 (1996): 87.

INTRODUÇÃO: A IGUALDADE É IMPORTANTE 7

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líticas venham a afirmar, não em um acordo ou consenso, mesmo que seja hipotético, mas nos ·valores éticos mais gerais aos quais apela-à estruturada vida boa descrita no Capítulo 6, por exemplo, e aos princípios da responsabilidade individual descritos nos Capítulos 7, 8 e 9. A comparação é exemplificada, no Capítulo 9, na distinção entre dois projetos para a previdência social: o princípio da diferença de Rawls, que prescinde de qualquer análise da responsabilidade individual, e o método do seguro hipotético, que tenta orbitar o máximo possível em tomo da responsabilidade. Dois princípios do individualismo ético me parecem fundamentais para qualquer teoria liberal abrangente, e juntos eles dão forma e apoio à teoria da igualdade defendida neste livro. O primeiro é o princípio da igual importância: é importru1te, de um ponto de vista objetivo, que a vida humana seja bem-suéedida, em vez de desperdiçada, e isso é igualmente importante, daquele ponto de vista objetivo, para cada vida humana. O segundo é o princípio da responsabilidade especial: embora devamos todos reconhecer a igual importância objetiva do êxito na vida humana, uma pessoa tem responsabilidade especial e final por esse sucesso - a pessoa dona de tal vida. O princípio da igual importância não afirma que os seres humanos em nada são iguais: não que sejam igualmente racionais ou bons, ou que as vidas que geram sejam igualmente valiosas. A igualdade em questão não se vincula a nenhuma propriedade da pessoa, mas à importância de que sua vida tenha algum resultado, em vtõ.l de ser desperdiçada. As conseqüências dessa importância para a .retidão ou iniqilidade do comportamento de qualql1er pessoa é, ademais, outra questão. Muitos filósofos aceitam o que se costuma chamar de princípio da beneficência: que cada pessoa tem a obrigação moral de sempre agir com tanta consideração pelo destino de todas as outras pessoas db mundo, assim como pelo próprio destino ou pelo da família e dos amigos. Alguns filósofos qtte aceitam esse princípio conclti.e1n que os indivíduos devem sempre agir de maneira

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que beneficie ao máximo todas as outras pessoas, em média, do mundo; outros filósofos concluem que as pessoas devem agir de maneira que beneficiem ao máximo as pessoas desprivilegiadas do mundo. Porém, embora o princípio da igual importância seja compatível com qualquer princípio da beneficência, dele não se deduz esse princípio. Everdade que, se eu acatar o princípio de igual importância, não posso oferecer como justificativa o fato de eu vir a dedicar mais atenção .aos meus filhos do que aos seus e que é objetivamente mais importante que os meus filh.os prosperem do que os seus. Contudo, posso ter outras justificativas para minha consideração especial pela ntinha própria filha: o fato de ser minha filha, por exemplo. Mas o princípio da igual importância exige que os indivíduos ajam com igual consideração em relação a alguns grupos de pessoas em certas circunstâncias. A comunidade política que exerce domínio sobre seus próprios cidadãos, e lhes exige fidelidade e obediência às leis, deve adotar uma postura imparcial, objetiva, com relação a eles, e cada um de seus cidadãos devem votar, e seus representantes devem promulgar leis e elaborar políticas governamentais, com essa responsabilidade em mente. Como já disse, a igual consideração é a virtude especial e indispensável dos soberanos. O segundo princípio do individualismo ético, o princípio da responsabilidàde especial, não é metafísico nem sociológico. Não nega que a psicologia ou a biologia possam oferecer explicações causais convincentes sobre o motivo por que cada pessoa opta por viver como vive, nem que tais teorias recebam influência da cultura, da educação ou das circunstâncias materiais. O princípio é, pelo contrário, relacional: afirma enfaticamente que, quando é preciso optar com relação ao tipo de vida que a pessoa viva, dentro de qualquer escala de opções que lhes sejam pennitidas pelos recursos ou pela cultura, essa pessoa é responsável por suas próprias escolhas. O princípi_o não endossa nenhuma opção de valor ético. Não despreza a vida que seja tradicional e enfadonha, nem a qtte seja inovadora e excêntrica, con-

IN'IRODUÇÃO: A IGUALDADE É IMPORTANTE?

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tanto que essa vida não tenha sido imposta a alguém pelo juízo alheio de que é a vida certa para essa pessoa viver. O argumento deste livro - a resposta que oferece ao desafio da consideração igualitária -é dominado por esses dois .Princípios agindo em conjunto. O primeiro princípio requer que o governo adote leis e políticas que garantam que o destino de seus cidadãos, contanto que o govern.o consiga atingir tal meta, não dependa de quem eles sejam - seu histórico econômico, sexo, raça ou determinado conjunto de especializações ou deficiências. O segundo princípio exige que o governo se empenhe, novamente se o conseguir, por tomar o destino dos cidadãos sensível às opções que fizeram. As doutrinas e os dispositivos principais que o livro apóia - a escolha de recursos pessoais e impessoais como medida de igualdade, do custo das oportunidades para os outros corri.o medida do direito de posse de recursos impessoais, e de um mercado hipotético de seguros como modelo para a tributação redistributiva - podem todos ser vistos como modelados por essas duas exigências. Não suponho que as pessoas escolham suas convicções ou preferências, ou, de modo mais geral, sua personalidade, mais do que escolham sua raça ou capacidades físicas ou mentais. No entanto, presumo un1a ética que supõe - como quase todos nós supomos na nossa própria vida-que somos responsáveis pelas conseq·üências das escolhas que fazemos com base nessas convicções, nessas preferências ou nessa personalidade. Disse anteriormente que muitos políticos estão ansiosos por endossar o qt1e chamam de "novo" liberalismo, ou "terceira'' via entre os velhos rigores da direita e da esquerda. Essas descrições são sempre criticadas como meros slogans sem substância. Em geral, a crítica é justificada, mas o apelo aos slogans comprova algo importante. Os velhos igualitaristas afirmavam que a comunidade política tem a responsabilidad.e coletiva de demonstrar igual consideração por todos os cidadãos, pois definiram essa igual consideração de maneira que ignore as responsabilidades pes-

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soais desses cidadãos. Os conservadores - novos e velhos -

insistiam naquela responsabilidade pessoal, porém eles a definiriam de maneira que ignorasse a responsabilidade coletiva. A escolha entre esses dois equívocos é tanto des11ecessária quanto desestimulante. Se a argumentação a seguir for sólida, poderemos alcançar uma teoria unificada da igualdade e da responsabilidade que respeite ambas. Se essa for a terceira via, então que seja como a nossa via.

III Alguns capítulos foram publicados anteriormente - os dois primeiros capítulos, por exemplo, em 1981. aram

por críticas abrangentes e, por isso, resolvi alterar apenas pequenos detalhes tipográficos ou estilísticos. Mas tirei muito proveito das críticas e, embora discuta algumas delas somente em um capítulo - Capítulo 7 -, espero que seu impacto também fique evidente nos capítulos da !.:tarte li, escritos para este volume ou publicados poste1iormente aos comentários sobre os primeiros capítulos.

Apresentação à edição brasileira

Em um contexto profundamente marcado por quebras de paradigmas, a Martins Fontes Editora oferece ao público brasileiro este A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade, de Ronald Dworkin. Divide-se o livro em duas partes. Na teórica, Dworkin debruça-se sobre a igualdade, almejando um conceito e:idgente diante das perspectivas existencial, econômica e jurídico-política. Em sua forma prática, perquire sobre o modo pelo qual a igualdade se concretiza nas nuanças que mais diretamente afetam o mundo atual, ou seja, a política de saúde, a garantia de o às mesmas oportunidades de trabalho e as políticas de superação do confinamento social. Embora parta de uma perspectiva britânico-americana, sua reflexão almeja validade universal. E é nesse ten1po de profundas e velozes transfonnações qlte ele pretende tecer um conceito de igualdade aplicável às sociedades plurais contemporâneas. A teoria da igualdade de Dworkin deve disciplinar um cenário que é marcado por ao menos três dimensões: jurídico-política, econômica e moral. Perante essas dimensões, Dworkin oferece uma reflexão que pretende superar conflitos e traçar um novo caminho. E essas dimensões constituem intrinsecamente o 1n11ndo moden10. As veredas do Direito e da Política no atual cenário internacional desdobram-se na multiplicidade de conflitos re-

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gionais, resumidos em um projeto de igualdade cultural. Molda-se, lenta, mas progressivamente, uma incompatibilidade radical entre "nós", os ocidentais, e "eles", os que professam um outro credo e uma outra forma de vida. }'orja-se essa distinção de modo muito sutil por meio da massificação cultural que, entre nós, é expressa pela indústria cultural. Cada vez mais há uma padronização d.os modos de vida. Pode-se dizer que os habitantes daqui e os dos Estados Unidos, por exemplo, vestem as mesmas roupas, ouvem as mesmas músicas e assistem aos mesmos filmes. De repente, esse estilo de vida é contraposto a todos os demais. E aquilo que é c'Ulturalmente elaborado a a ser entendido como natural e próprio a uma civilização específica. É justamente quando esse aparato simbólico reveste-se de institucionalidade, como política estatal, que as annas am a ser o invólucro que institucionaliza a imposição cultural Essa preten.sa incompatibilidade cultural estaria na base de uma política de eliminação progressiva de estilos de vida distintos. -Eis o ponto central. Paulatinamente, tenta-se, a partir de uma política que é ao mesmo tempo cultural e estatal, eliminar o outro, a alteridade. No fundo, os conflitos recentes, como o do Iraque, são bem mais do que uma intervenção regional cuja finalidade seía afirmar a supremacia militar e económica no Oriente Médio. Pretende-se estabelecer uma superioridade civilizatória planetária. I>ergunta-se: como o Direito pode responder legitima. mente aos dilemas postos por nossas dicotomias? Como no seio desta sociedade complexa, altamente especializada, podem-se ordenar condutas de modo legítimo? Não parece aceitável esquecer que a legitimidade para o exercício do poder tende a se perder nos aparatos burocráticos. Tendo essa advertência como pano de fLmdo, tanto na Filosofia quanto no Direito, há um consenso de que a tarefa específica do Estado consiste em efetivar e instih1cionalizar os direitos fundamentais. Por que efetivar e institucionalizar? r.1orque quem dispõe da faculdade de efetivar pode negarse a realizar tal tarefa. Daí por que é preciso mais do que a ta-

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refa de efetivação. É necessário que a estrutura estatal seja concebida como instituição dos direitos fundamentais. Como fazer isso? Criando mecanismos institucionais que tomem os direitos fundamentais origem e finalidade não apenas do Estado, mas de todas as instihrições, inclusive as não-estatais. Um primeiro o seria a criação de uma burocracia al·tarnente profissionalizada, restringindo ao máximo a perspectiva do governante de nomeações para cargOs de confiança. Do mesmo modo, rtão é permitido esquecer que o mandato no Estado Democrático de Direito é representativo. Aqui, como alhures, é como se o mandato fosse imperativo, isto é, os governantes dispõem do serviço público da forma que lhes é mais conveniente, a fim de acomodar seus interesses e distribuir benesses. Como entendem que o Estado lhes pertence, fazem das políticas estatais moeda de troca. Com uma burocracia estatal, profissional e especializada, os direitos fundamentais podem ser institucionalizados como gêncse e, ao mesmo tempo, propósito das políticas públicas. Assim, blinda-se o exerácio do mandato representativo contra os voluntarismos típicos dos Estados ditatoriais. Na esfera econômica, por conseguinte, há um realinhamento do eixo capital-trabalho. Aquilo que, desde a Revolução Industrial, define a produção de riquezas a a coexistir co1n, ao menos, mais dois vetores econômicos: o mercado de capitais e o capital especulativo. Esses dois novos atores do cenário econômico propiciam o surgimento de uma dimensão desconhecida pela Economia clássica e que agora obriga as políticas econômicas a reverem suas estruturas. Trata-se dos pólos incluídos-excluídos. Ora, o eixo da relação fabril de produção baseia-se no processo estabelecido entre trabalho e detenção dos meios de produção. Tem-se com isso a form.alização do trabalho mediante a limitação das oportunidades de emprego e a oferta ilimitada de mão-de-obra. O deficit entre oferta e procura é a mola propulsara do capitalismo fabril. É por meio deste processo que a mais-valia é possível. Pode-se dizer que a estrutura simbólica do século XX circunscreve-se à relação capital-trabalho. Não apenas ideo-

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logjcamente, com a formação de sindicatos de trabalhadores e associações patronais, mas também as políticas sociais têm em vista a organização da sociedade em torno do trabalho. Em seu entorno, baseia-se toda a teia de políticas e programas sociais. Contudo, a sofisticação das relações económicas redundou em aproveitamento cada vez menor de mão-de-obra desqualificada, reservando a esta trabalho esporádico e informal; à produção fabril, fundada na apropriação do trabalho pelos que detêm os meios de produção, sucede a automação da produção, com a conseqüente dispen.sa permanente e extinção dos postos de trabalho, e à produção sucede um movimento de capitais cujo eixo se encontra na reprodução autopoietíca do capital. A esse movimento se seguiram forte onda de desemprego e esfacelamento das políticas sociais, inclusive com falência das previdências sociais. As perguntas que emanam desse contexto são: como enfrentar o problema do desemprego? Como remunerar o trabalho e a aposentadoria? Vale lembrar que o aparato estatal tnbuta os meios de produção e o trabalho, tendo em vista o finai1ciamento dos projetos sociais que visam salvaguardar os sujeitos ivos da maisvalia: os trabalhadores. O paradoxo desse processo é que tudo gira em tomo de uma relação própria às fábricas. De algo que surge pautado por um tipo específico de vinculação, baseado na apropriação ql.1e tem, no trabalho, o elo frágil da cadeia de produção. Ao redor disso são articulados sindicatos, partidos, legislações etc. Some-se o fato de que a economia não se movimenta somente em função da produção, mas, ainda, que o capital i1nprodutivo assume as rédeas do processo. Em decorrência, aqueles que são atores do processo econômíco atual permanecem circunscritos às st1as inovações e direhizes. Eles são, ao mesmo tempo, pólo ivo e ativo do sistema das necessidades que lhe é intrínseco. E as políticas pítblicas são o repositório que tenta corrigir as distorções ou aviltamentos próprios ao desequilíbrio entre oferta e procura.

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APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA

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O problema é que este processo econôn1ico, e seu sistema das necessidades, refere-se àqueles que gravitam em torno da atividade económica, deixando à mercê do anonimato e da anomia todos os apátridas do trabalho. Em resumo, o processo gira ao redor daqueles que agora são definidos como economicamente ativos ou inativos. E aqueles que estão definitivamente afastados de tal processo, aqueles que não são nem ativos nem ínatívos, ou seja, os excluídos? Nesse cenário, a dimensão moral impõe-se pela importância que assumiu na modernidade. Sabe-se que, na transição do anden régi.me para a modernidade, a orientação da conduta funda-se em um duplo aspecto: a sanção estatal e a reprovação moral. Essas duas nuanças são o repositório prático emang._do de um longo processo de secularização que tem, na cisão religiosa, o ponto mais alto da derrocada de uma normatividade acrítica. Embora o mundo clássico tenha conhecido formas de ordenação de condutas e a Roma antiga, o conceito de Jurisprudência, ambos não conheceram nem o conceito de autonomia, nem o de direito subjetivo, tampouco o de Estado nacional. Estes são corolários de uma forma de vida em que há a apropriação subjetiva da realidade. A apropriação subjetiva da realidade é operada medi.ante a diferença entre sujeito e objeto. Essa distinção eleva-se a patamar especulativo por meio de Descartes. No Discurso do método (1637), é introd11zida a dúvida metódica como a forma de o sujeito distinguir entre ficção e realidade e, assim, chegar a um conhecimento segi.uo. Ocorre que o ato de conhecer se funda na subjetividade, pois o sujeito cognoscente pode de tudo duvidar, exceto do fundamento sobre o qu.al a dúvicLa é estruturada. Assim, cunha "penso, logo existo" como matriz a partir da qual a certeza da existência do "Eu" se constitui como sede do conhecimento. Por ter oconhecimento uma sede, há a apropriação subjetiva daquilo que é conhecido. Com a distinção entre aquele que conhece e aquilo que é conl1ecido, molda-se, portanto, a separação entre sujeito e objeto. Mediante essa distinção, será possível

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a Descartes fundar a apropriação da realidade atual ou transcendente no sujeito, para constituí-lo a fonte geradora de todas as dimensões cognoscíveis. A apropriação da realidade pelo sujeito permitirá a transição da culpa objetiva para a subjetiva. Isso significa que os desvios de conduta não mais serão creditados à coletividade, nem mais exigirão expiação coletiva. O sujeito será responsável pelos seus atos, eliminando a idéia escatológica de inexorabilidade ou a soteriológica de predestinação. Esse processo de constituição da autonomia encontrará o ápice em Kant. Por meio da distinção entre pensar e conhecer, operada na Primeira Crítica, a Metafísica clássica é abandonada, em virtude de seus objetos não poderem ser conhecidos, apenas pensados. Com isso, Kant dará um novo télos à liberdade: o dever. Agir por dever será o mandamento sublime da moralidade. Por conseguinte, livre é somente aquele que é capaz de se autodeterminar. Às perguntas "como ser livre?" e "como agir morahnente?", Kant oferece, como resposta, o imperativo categón'co, ou seja, age de tal modo que a tua ação seja elevada à máxima universal, pois a todos cabe responder pela exigência geral de W1iversalização, isto é, de oferecer razões plausíveis íveis de receber o assentimento geral de todos os concernidos. É assim q11e a Teologia cede lugar à moralidade e à juridicidade como matriz ordenadora de conduta. No cenário moderno, esse antropocentrismo realiza-se mediru1te a bifurcação das possibilidades do agir, pois, se é certo que, como em Descartes,· o conhecimento encontra guarida na ~ubjetividade, é igualmente correto que o conhecimento do dever necessariamente não implica sua execução. Assim, as possibilidades do agir guardam uma dupla dimensão: a dimensão moral e a dimensão jurídica. Não obstante, a juridicidade exerce um papel de complen1entaridade funcional com a moralidade. Assim, teríamos uma orientação de conduta não-institucional, pertinente à moraJidade, e 11ma outra propriamente institucional, a jurídica. A dimensão normativa da juridicidade caracteriza-se pela introdução de um mecanismo institucional de reprova-

APRESENTAÇÃO A EDIÇÃO BRASILEIRA

ção e de determinação de conduta, pois as condt1tas desviantes e as ahnejadas obtêm exigibilidade por meio do monopó,lio estatal da força. E para esse cenário, extremante complexo, que é necessário lançar um olhar a fim de constituir urna igualdade - fincada na liberdade. Este é o desafio enfrentado por Dworkin. Convém, assim, que a igualdade possa ao menos navegar entre as demandas de um tempo que se centra na multiplicidade de suas vozes. Corno, então, articular um conceito de igualdade que contemple a diversidade cultural? Como perquirir sobre a igualdade de fato quando se é excluído do processo de produção de riquezas? Como exigir de alguns o cumprimento de normas que nem mesmo podem ser consideradas como obrigação para muitos? Requerer igualdade quando são oferecidas as mesmas oportunidades e horizontes é bem diferente de exigir o seguimento de normas que não fazem sentido exatamente por desconhecerem sua materialidade cultural, econômica ou juridica. Por que seguir a lei se seu descumprimento faz parte do padrão comportamental da elite? A resposta a essas perguntas faz parte de um itinerário critico que precisa ser superado - esta é apretensão deste livro. Por fim, ainda que a igualdade seja uma exigência universal, ela deve relacionar-se com a liberdade e com as exi.gências factuais de uma sociedade concreta. As páginas que se se&'llirão representam um esforço de superação das dicotomias e contradições de um tempo que se notabiliza por políticas de inclusão que antes excluem do que incluem. Um dos maiores méritos de A virtude soberana é discutir com bastante clareza as desigualdades atuais e os modos para sua superação. LUIZ MOREIRA*

~Professor e Coordenador de Graduação do Curso de Direito da 'Escola Superior Dom Helder Câmara, Belo Horizonte (MG). Pesquisador associado de Filosofia do Direito da Urúversidade de Tübingen, Alemanha.

PARTEI

Teoria

Capítulo 1

Igualdade de bem-estar

1. Duas teorias da igualdade

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A igualdade é um ideal político popular, mas misterioso. As pessoas podem tomar-se iguais (ou, pelo menos, mais iguais) em um aspecto, com a conseqüência de tomar-se desiguais (ou mais desiguais) em outros. Se têm renda desigual, por exemplo, é quase certo que venham a diferir na quantidade de satisfação que encontram na vida. Não se conclui, certamente, que a igualdade não tenha valor como ideal. Contudo é necessário declarar, com mais exatidão do que se costuma fazer, que forma de igualdade é decisivamente importante. Não é uma questão lingüística nem mesmo conceitual. Não requer uma definição da palavra "igual" ne·m uma análise de como essa palavra é utilizada na linguagem comum. Requer que diferenciemos diversos conceitos de igualdade para decidir quais desses conceitos (ou qual combinação) define um ideal político atraente, caso isso aconteça Podese descrever esse exercício, de maneira um tanto diferente, por meio de uma distinção que elaborei em outros contextos. Existe uma diferença entre dar um tratamento igualitário às pessoas, com relação a uma ou outra mercadoria ou oportunidade, e tratá-las como iguais. Quem argumenta que as pessoas deveriam ser mais iguais quanto à renda afirma que a comunidade que alcança essa igualdade é a

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que realme11te trata as pessoas como iguais. Quem afirma que as pessoas deveriam ser, pelo contrário, igualmente felizes oferece uma teoria diferente e adversária com relação a qual sociedade merece tal título. A questão é, então: qual é a melhor teoria dentre as tantas teorias desse tipo? Neste capíhtlo e no próximo discorrerei sobre um aspecto dessa questão, que se pode denominar problema da igualdade distributiva. Suporemos que certa comunidade précise escolher entre esquemas-alternativos de distribuição de dinheiro e de outros recursos para os i11divíd11os. Qual dos possíveis esquemas trata as pessoas como iguais? Este é apenas um aspecto do problema mais geral da igualdade, porque descarta uma série de questões· que se poderia chamar, à guisa de comparação, de questões acerca da igualdade política. A igualdade distributiva, conforme a defino, não trata da distribuição de poder político, por ºexemplo, ou dos direitos individuais que não os direitos a certa quantidade ou parcela de recursos. É óbvio, creio, que essas questões reunidas sob o rótulo de igualdade política não são tão independentes das questões da igualdade distributiva quanto talvez insinue a diferença. Quem não pode desempenhar um papel na decisão, por exemplo, quanto à preservação contra a poluição de um ambiente que preze é mais pobre do que quem pode ter um papel importante nessa decisão. Não obstante, parece provável que se possa elaborar melhor uma teoria completa da igualdade, que abranja uma série de questões relativas à igualdade distribtttiva e política, aceitando-se diferenças iniciais, embora um tanto arbitrárias, entre essas questões. Tratarei de duas teorias gerais da igualdade distributiva. A p_rimeira (que chamarei de igualdade de bem-estar) afirma que o esquema distributivo trata as pessoas como iguais quando disbibui ou transfere recursos entre elas até que nenhuma transferência adicional possa deixá-las mais iguais em bem-estar. A segunda (igualdade de recursos) afirma que as trata como iguais quando distribui ou transfere

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de modo que nenhuma transferência adicional possa deixar mais iguais suas parcelas do total de recursos. Cada uma dessas duas teorias, conforme as enunciei, é muito abstrata, porque, como veremos, há muitas interpretações da definição de bem-estar, e também diversas teorias sobre o que se poderia considerar igualdade de recursos. Por conseguinte, mesmo nessa forma abstrata, deve estar claro que as duas teorias oferecem conselhos diferentes em muitos casos concretos. Suponhamos, por exemplo, que um homem razoavelmente abastado tenha alguns filhos, um dos quais é cego, outro é um playboy com preferências dispendiosas, um terceiro tem pretensões políticas com aspirações dispendiosas, outro é um poeta com necessidades humildes, outro é um escultor que trabalha com material caro etc. Como ele deve elaborar seu te.stamento? Se tiver como meta a igualdade de bem-estar, levará em conta as diferenças entre os filhos e não lhes deixará frações iguais. Evidentemente, deverá decidir-se quanto a uma interpretação de bem-estar e se, por.exemplo, as preferências dispendiosas devem entrar nos cálculos da mesma forma que as vantagens ou as aspirações dispendiosas. Mas, se, do contrário, ele tiver como meta a igualdade de recursos, então, supondo-se que os filhos já possuam mna, riqueza praticamente igual, ele pode muito bem decidir que sua meta requer divisão igual da riqueza. Em qualquer caso, as questões que ele deverá resolver serão bem diferentes. É verdade que a.diferença entre as duas teorias abstratas será menos clara em um contexto político comum, principalm.ente quando as autoridades têm pouquíssimas informações sobre as preferências e as aspirações de determinados cidadãos. Se um igualitário do bem-estar não sabe nada disso com relação a um grande grupo de cidadãos, pode sensatamente decidir que sua melhor estratégia para garantir igualdade de bem-estar seria estabelecer a igualdade de renda. Todavia, a diferença teórica entre as duas teorias abstratas da. igualdade, não obstante, continua importante na

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política, por diversos motivos. Em geral, as autoridades têm informações suficientes sobre a distribuição de preferências e deficiências para justificar ajustes gerais na igualdade de recursos (por exemplo, por meio de políticas fiscais especiais), se sua meta for a igualdade de bem-estar. Mesmo quando não têm, algumas estruturas econômicas que viessem a criar seriam antecipadamente mais bem calculadas para reduzir a desigualdade de bem-estar em condições de incerteza, e outras para reduzir a desigualdade de recursos. Mas a principal importância da questão que agora levanto é teórica. Os igualitaristas devem decidir se a igualdade que procuram é a igualdade de recursos ou de bem-estar, ou uma combinação, ou algo bem diferente, para argumentar de maneira plausível que vale a pena haver igualdade. Não quero dizer que somente os igualitaristas puros precisam se interessar por essa questão, pois mesmo os que não considerem qt1e a igualdade é o mais importante na moralidade política costumam itir que faz parte da questão, de modo que seja pelo menos um ponto a favor de um arranjo político, mesmo se não decisivo ou mesmo central, q11e reduza a desigualdade. Mesmo quem atribui à igualdade esse peso 1nodesto deve, porém, identificar o que se considera igualdade. Devo salientar, contudo, que os dois conceitos abstratos de igualdade que vou analisar não esgotam as possíveis teorias da igualdade, mesmo quando combinados. Existem outras teorias importantes que só se pode captar artificialmente por meio de qualquer um desses dois. Vários filósofos, por exemplo, defendem teorias meritocráticas da igualdade distributiva, algumas das quais apelam ao que se costuma chamar de igualdade de oportu·nidades. Essa teoria assume diversas formas, mas uma das de maior destaque afirma que se nega igualdade às pessoas quando sua posição superior em bem-estar ou recursos conta contra elas na concorrência por vagas nas universidades ou empregos, por exemplo. Não obstante, as pretensões tanto de igualdade de bem-estar quanto de igualdade de recursos são familiares e

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manifestas, e são essas que analisarei. Neste capítulo, examino, e rejeito em geral, diversas versões da primeira pretensão. No Capítulo 2 elaborarei e defenderei uma versão da segunda. Talvez eu deva acrescentar mais duas advertências.Acredita-se, em geral, que certas pessoas (por exemplo, çriminosos) não merecem a igualdade distributiva. Não consldero esse argumento, embora levante algumas questões com relação a mérito ou demérito ao analisar o que é igualdade distributiva. John Rawls (entre outros) questionou se a igualdade distributiva não deveria exigir desvios de uma base igual quando fosse para benefício do grupo mais desprivilegiado, de modo que, por exem.plo, a igualdade de · bem-estar seja mais bem distribuída quando os desprivilegiados têm menos bem-estar do que outros, porém mais do que teriam de outra forma. Discorro sobre essa afirmação no próximo capítulo, com relação à igualdade de recursos, m.as não neste, em que proponho que a igualdade de bem-estar não é uma meta política desejável nem quando a desigualdade de bem-estar não melhora a situação dos mais desprivilegiados.

II. Exame preliminar

Há uma atração imediata na idéia de que, se a igualdade é importante, deve ser principalmente a igualdade de bem-estar que importa, pois o conceito de bem-estar foi inventado, ou pelo menos adotado, pelos economistas precisamente para definir o que é fundamental na vida, e não o que é apenas instrumental.. Foi adotado, de fato, para proporcionar um meio de atribuir o devido valor aos recursos: os recursos são valiosos contanto que produzam bem-estar. Se decidirmos a favor da igualdade, mas depois definirmos a igualdade segundo os recursos não vinculados ao bem-estar que trazem, parecerá que estamos confundindo meios com fins e nos permitindo uma fascinação fetichista pelo que deveríamos tratar como apenas instnunental. Se quiser-

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mos tratar as pessoas genuinamente como iguais (ou assim possa parecer), devemos nos empenhar em tomar suas vidas igualmente desejáveis para elas ou lhes oferecer meios para fazê-lo, e não apenas igualar seus saldos bancários. Essa atração imediata da igualdade de bem-estar ampara-se em um aspecto do exemplo doméstico que descrevi. Quando surge a questão de como distribuir as riquezas entre os filhos, por exemplo, parece que os portadores de deficiências físicas ou mentais têm, com toda justiça, direito a uma parcela maior que os outros. O ideal da igualdade de bem-estar pode parecer a explicação plausível para isso. Por serem deficientes, os cegos precisam de mais recursos para alcançar a igualdade no bem-estar. Mas o mesmo exemplo doméstico também oferece pelo menos um problema difícil para esse ideal, pois a maioria das pessoas resistiria à conclusão de que os que têm preferências mais dispendiosas fazem jus, por esse motivo, a uma fatia maior que a dos outros. Quem gosta de champanhe (segundo a nossa deScrição de sua situação) também precisa de mais recursos para alcançar o mesmo bem-estar dos que bebem cerveja. Todavia, não parece j'usto que deva ter mais recursos por esse motivo. O caso do aspirante à política, que precisa de muito dinheiro para realizar seu anseio de fazer o bem, ou do escultor an1bicioso, que precisa de material mais caro do que o poeta, talvez esteja em uma posição intermediária. Seu motivo para receber uma parcela maior dos recursos do pai parece rnais forte do que o do filho que tem preferências dispendiosas, porém mais fraco do que o do filho cego. Surge, portanto, a questão de se o ideal de igualdade do bem-estar pode ser aceito, em parte, como um ideal que tem um lugar, mas não o único lugar,· na teoria geral da igualdade. A teoria total poderia, então, decidir que o deficiente deve ter mais recursos, porque, caso contrário, seu bem-estar será menor do que poderia ser, mas não o homem que gosta de champanhe. Há inúmeras maneiras de se gerar esse meio-termo dentro da idéia de igualdade. Por exemplo, poderíamos itir que, em princípio, os recur-

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sos sociais devem ser distribuídos de modo que as pessoas se igualem o máximo possível em bem-estar, mas garantir, à guisa de exceção, que não se considere nenhuma diferença em bem-estar atribtúveis a certas fontes, tais como diferenças em preferências por bebidas. Isso proporciona à igualdade de 'bem-estar o lugar predominante, porém expurga do ideal certas conseqüências claras e pouco atraentes. Ou poderíamos, no outro extremo, itir somente que as diferenças no bem-estar oriundas de fontes específicas, tais co.mo deficiências, fossem reduzidas ao mínimo. Nesse caso, a igualdade de bem-estar só teria um papel- talvez bem pequ.eno ~em qualquer teoria geral da igualdade, cuja principal força política deveria provir, então, de direção bem distinta. Adiarei, até um capíhllo posterior, a questão de até que ponto tais meios-termos, combínações ou qualificações estão, de fato, disponíveis e são atraentes, e também adiarei até lá a análise dos problemas particulares das preferências dispendiosas e das deficiências. No entanto, quero pôr em destaque e isolar antecipadamente uma forma de objeção à viabilidade dos meios-termos na igualdade de bem-estar. Pode-se apresentar como objeção, contra tal meio-termo, que o conceito de bem-estar não está claro o bastante para permitir as distinções necessárias. Não sabemos (pode-se di·· zer) quanto quaisquer diferenças em bem-estar entre duas pessoas que têm riquezas iguais se devem, de fato, a diferenças no preço de seus gostos ou à falta de adequação de suas faculdades físicas ou mentais, por exemplo. Assim, qualquer teoria que adote a igualdade de bem-estar social deve dar atenção ao bem-estar das pessoas como mn todo, e não ao bem-estar oriundo ou perdido de uma determinada fonte. É evidente que esse tipo de objeção é bem profundo, embora o grau da objeção deva depender da forma do meiotermo proposto. Quero, porém, descartar todas as objeções acerca da viabilidade de distinguir as fontes de bem-estar. Também quero deixar de lado a objeção mais geral de que o próprio conceito de bem-estar seja, mesmo sem dis-

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tinções quanto à fonte, vago demais ou pouco prático para proporcionar a base de qualquer teoria da igualdade. Disse anteriormente qtte há muitas interpretações ou conceitos de bem-estar, e que uma teoria da igualdade de bemestar que utilize uma dessas interpretações terá conseqüências bem diferentes, e requererá um diferente amparo teórico, de uma teoria que utilize o·utra. Alguns filósofos encaram o bem-estar como uma questão de prazer ou satisfação, ou algum outro estado consciente, por exemplo, ao o que_ outros o vêem como o êxito na realização de planos. Mais tarde precisaremos identificar os principais conceitos de bem-estar e examinar os diversos conceitos de igualdade de bem-estar que oferecem. Mas podemos observar, antecipadamente, que cada um dos conceitos conhecidos de bem-estar dá origem a óbvios problemas conceituais e práticos com relação ao teste e à comparação dos níveis de bem-estar de cada pessoa. Cada um deles tem como conseqüência que as comparações de bem-estar serão sempre indeterminadas: sempre acontecerá que entre duas pessoas nenhu.ma delas terá menos bem-estar, embora seu bem-estar social não seja igual. Por conseguínte, não se segue que o ideal da igualdade de bem-estar, em qualquer interpretação, seja incoerente ou inútil, pois esse ideal afinna o princípio político de que, na medida do possível, ninguém deve ter menos bem-estar que qualquer outra pessoa. Se esse princípio for sólido, então o ideal da igualdade de bem-estar pode perceptivelmente deixar em aberto o problema prático de como tomar decisões quando a comparação de bem-estar fizer sentido, mas seu resultado não for claro. Também pode itir que haverá .diversos casos em que a comparação seja mesmo teoricamente inútil. Contanto que esses casos não sejam muito numerosos, o ideal continua sendo prática e teoricamente importante.

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III. Concepções de igualdade de bem-estar Há várias teorias sobre o que é bem-estar e, portanto, várias concepções de igualdade de bem-estar. Dividirei o que considero as teorias mais importantes e plausíveis em dois grupos principais, sem, contudo, supor que todas as teorias encontradas na literatura se encaixem bem em uma ou em o·utra. Chan1arei o primeiro grupo de teorias bem-sucedidas do bem-estar. Estas presumem que o bem-estar individual é uma questão de êxito na satisfação de preferências, na realização de metas e aspirações e, assim, a igualdade de êxito, como conceito de igualdade de bem-estar, recomenda a distribuição e a transferência de recursos até que nenhuma transferência adicional possa reduzir as diferenças entre os êxitos das pessoas. Porém, como as pessoas têm tipos diferentes de preferências, a princípio estão disponíveis diversas versões de igualdade de êxito. Em primeiro lugar, as pessoas têm o que chamo de preferências políticas, embora eu empregue esse termo de maneira mais estreita e mais ampla do que normalmente se em.prega. Falo de preferências com relação a como deve ser feita a distribuição dos bens, dos recursos e das oportunidades da comunidade. Essas preferências podem ser teorias políticas formais de tipo conhecido, como a teoria de que se deve distribuir os bens segundo os méritos ou deméritos, ou preferências mais informais que não são teorias, como a preferência que muitas pessoas têm de que aqueles de quem gostam ou por quem sentem especial empatia devem ter mais que os outros. Em segundo lugar, as pessoas têm o que chamarei de preferências impessoais, que são preferências com relação a coisas que não lhes pertencem ou à vida ou a situações de outras pessoas. Algumas pessoas prezam muito o progresso dos conhecimentos científicos, por exemplo, embora não sejam elas (ou qualquer pessoa que conheçam) que realizarão tal progresso, enq·uanto outras têm igual estima pela conservação de certos tipos de beleza que jamais verão. Em terceiro lugar, as pes-

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soas têm o que chamarei de preferências pessoais, que são preferências com relação a suas próprias vivências ou situações. (Não nego que esses tipos de preferêncías possam coincidir, ou que algumas preferências resistam à classificação em qualquer das três categorias. Felizmente minhas argumentações não exigirão a hipótese contrária.) A forma mais irrestrita de igualdade de êxito que analisarei afirma que a redistribuição deve prosseguir, tão longe quanto possível, até que as pessoas sejam iguais em um grau em que sejam satisfeitas suas diversas preferências. Analisarei, então, a versão mais restrita de que só se deve considerar as preferências não políticas nesse cálculo e, depois, a versão ainda mais restrita de que· só se deve contemplar as preferências pessoais. É claro que existem versões mais complexas de igualdade de êxito, que combinam a satisfação de algumas mas não todas as preferências doS diversos grupos, embora espere que as minhas argumentações não exijam que eu identifique e analise tais combinações. Chamarei de teorias de estado de consciência a segunda classe de teorias do bem-estar. A igualdade de bem-estar vinculada a esse tipo de teoria afirma que a distribuição deve tentar deixar as pessoas no rúvel máximo possível de igualdade em algurn aspecto ou qualidade de sua vida consciente.Elaboram-se diversos conceitos desse ideal pela escolha de teorias ou descrições do estado em questão. Bentham e outros pioneiros do Utilitarismo acreditavam que o bem-estar consistia em prazer e fuga da dor; a igualdade de bem-estar, assim definida, exigiria uma distribuição com propensão a deixar as pessoas iguais no saldo do prazer sobre a dor. No entanto, a 1naioria dos utilitaristas e outros adeptos do conceito de estado de consciência acreditam que "prazer" e "dor" são estritos demais para representar toda a escala de estados de consciência a serem incluídos. IJor exemplo, "prazer", que deri.ota um tipo específico de fulgor sensual, inal descreve o que produz uma angustiante peça teatral 011 poesia, uma experiência que, não obstante, as pes~

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soas às vezes aspiram ter; e "dor" não capta com facilidade o tédio, o desconforto ou a depressão. Não pretendo discorrer sobre as questões que essa discussão levanta. Pelo contrário, usarei as palavras "satisfação" e "insatisfação" de maneira indiscriminada para dar nome a toda a escala de estados de consciência ou emoções, desejáveis ou .não, que qualquer versão da concepção de igualdade de bem-estar baseada no estado de consciência possa presumir importante. Esse emprego dá àquelas palavras, evidentemente, um se11tido mais amplo do que elas possuem no linguajar comum, n1as pretendo usar esse sentido amplo, contanto que designem estados de consciência que as pessoas possam desejar alcançar ou evitar por conta própria, e estados que sejam introspectivamente identificáveis. As pessoas qu.ase sempre sentem satisfação ou insatisfação diretamente, graças a estímulos sensitivos por intermédio de sexo, alimentos, calor, frio ou metal. Mas também sentem sati.sfação ou insatisfação por meio da realização ou da frustração de suas preferências de diversos tipos. IJor·· tanto, há versões irrestritas e restritas da concepção de igualdade de bem-estar pelo estado de consciência, paralelas às versões que assinalei de igualdade de êxito. Uma dessas versões visa tornar as pessoas mais igt1ais em satisfação sem restrições quanto à fonte; outra somente na satisfação que experimentam diretamente ou de preferências não políticas; e outra ainda, na satisfação que sentem diretamente e ori11nda apenas de preferências pessoais. Assim como no caso da igualdade de êxito, também há versões mais diferenciadas que combinam a satisfação proveniente de subdivisões desses tipos distintos de preferências. Também analisarei, embora de maneira mais reduzida, uma terceira classe de concepções de igualdade de bem-estar, que chamarei de concepções objetivas. Seria preciso considerar muitas subdivisões e outras classificações entre essas três classes de concepções em qualquer exposição completa das possíveis teorias do bem-estar, e existem teorias do bem-estar que não estão representadas nesta lista.

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Todavía, essas parecem ser as candidatas mais plausíveis para a elaboração de teorias de distribuição. Apenas mencionarei, porém, dois tipos de complexidades que deveríamos pelo menos ter em mente. Em primeiro lugar, muitas das concepções e versões que enumerei levantam a questão de se a igual~ade nessa concepção é alcançada quando as pessoas são de fato iguais no bem-estar assitl) concebido, ou, pelo contrário, quando iguais se estivessem completamente informadas acerca dos fatos pertinentes. Alguém alcança dado nível de êxito, para fins de igualdade de êxito, quando acredita que suas preferências foram satisfeitas até dado grau, ou quando acreditaria nisso se conhecesse os fatos? Tentarei, quando questões desse tipo puderem prejudicar a argumentação, discutir ambas as possibilidades ou itir a versão que me parecer mais plausível no contexto. Em segundo lugar, muitos dos conceitos que discutirei levantam problemas com relação ao tempo. As preferências individuais mudam, por exemplo, e a questão de até que ponto as preferências qtte uma pessoa elegeu para sua vida foram satisfeitas em geral dependerá de qual conjunto de preferências for escolhido como pertinente, ou qual função das diversas preferências ela possui. em ocasiões diversas. Creio que nenhum desses problemas temporais afetam as diversas afirmações que farei; mas os leitores que acham que afetam devem examinar se minhas arguinentações se mantêm quando comparadas com versões alternativas. Há, porém, mais wna questão preliminar que deve nos deter mais demoradamente. Distinguimos duas questões: (1) O bem-estar total de alguém- seu bem-estar essencial - é, realmente, apenas uma questão do grau de êxito ao .realizar suas preferências (ou apenas questão de satisfação)? (2) A igualdade distributiva realmente requer que se aspire a igualar as pessoas nesse êxito (ou satisfação)? A primeira dessas questões encara de certa fonna a ligação entre as teorias de bem-estar, como as que descrevi, e o conceito de bem-estar propriamente dito. Supõe. que essa ligação é bem semelhante à ligação entre as teori.as ou con-

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cepçõcs de justiça e o seu próprio conceito. Concordamos que a justiça é um importante ideal moral e político, e peiguntamo-nos qual das diversas teorias sobre qual justiça realmente consiste na melhor de tais teorias. Poderíamos, então, supor (para uma ou outra finalidade) que o bem-estar das pessoas, definido corno seu.bem-estar essencial, é um importante conceito moral e político, e então nos indagamos sobre das teorias tradicionais (ou das novas teorias que elaboramos) é realmente a melhor teoria de qual bem-estar, assim concebido. Não obstante a segunda questão não requer, em si, que façamos frente à última - ou mesmo que reconheçamos seu sentido. Podemos crer que a igualdade genuína requer que as pessoas sejam igualadas no êxito (ou na satisfação) sem acreditar que o bem-estar essencial, devidamente entendido, seja apenas urna questão de êxito {ou satisfação). Podemos, de fato, acreditar que a igualdade requer igualdade no êxito, mesmo que sejamos céticos com relação a toda idéia de bem-estar essencial, considerado um fato profundO ou adicional relativo às pessoas e conceitualmente independente de seu êxito ou de sua satisfação. Isto é, podemos aceitar a igualdade de êxito como ideal político atraente, mesmo rejeitando o próprio sentido da questão acerca de serem duas pessoas iguais em êxito também iguais em bemestar essencial. E podemos fazê-lo até se negannos que essa questão é análoga à questão de se produzir a máxima utilidade média possível toma justa uma instituição. Faço essas observações porque é importante distinguir entre duas estratégjas que alguém ansioso por defender determinada concepção de igualdade de bem-estar possa adotar. Poderia começar, em primeiro lugar, aceitando a idéia de bem-estar como bem-estar essencial e, depois, aceitru~ pelo menos como premissa temporária de sua argumentação, a proposição de que a igualdade genuína requer que as pessoas sejam iguais em bem-estar essencial. Ele poderia, então, defender determinada teoria do bem-estar (do êxito, por exemplo) como melhor teoria daquilo em

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que consiste o bem-estar essencial e, assim, concluir que a igualdade requer que as pessoas se tornem iguais no êxito. Ou, em segundo lugar, poderia defender alguma concepção de igualdade de bem-estar, como a .igualdade de êxito, de maneira mais direta. Talvez não assuma posição sobre se o bem-estar essencial consiste ou não em êxito, ou mesmo à questão anterior, se faz ou não sentido aquela questão. -Ele argumentaria que, em qualquer caso, a igualdade de êxito é necessária por motivos de eqilidade, ou por algum 011tro inativo que se relacione com a análise da igualdade e que seja independente de qualquer teoria acerca do sentido ou do teor do bem-estar essencial. Por conseguinte, é necessário levar em conta ambas as estratégias ao avaliar a defesa de qualquer concepção de igualdade de bem-estar? Creio que não, pois a derrota da segunda estratégia (pelo menos de certa forma) ·deve contar também como derrota da primeira. Não pretendo afir1nar que a idéia do bem-estar essencial, como conceito que ite diversas concepçôes, seja bobagem, de modo qlte a primeira estratégia, livre de absurdos, é exatamente a segunda. Pelo contrário, acho que a idéia, pelo menos conforme definida por certos contextos, é importante, e que a questão sobre onde está o be1n-estar essencial da pessoa, quando apropriadamente formulada, às vezes é, naqueles contextos, uma questão de profunda importância. Nem acho que a conclusão seja que as pessoas não devam se igualar em alguma concepção de ben1-estar, que essa seja uma concepção pobre de bem-estar (definida como bem-estaressencial). l)retendo, no entanto, negar algo semelhante à afir1nação contrária: que se existe wna boa concepção de bemestar, segue-se que as pessoas devem igualar-se no bem-estar assim concebido. Isso não acontece. Talvez eu aceite, por exemplo, que as pessoas sejam iguais em bem-estaressencial quando cada uma delas tem êxito praticamente igual na satisfação de certo conjunto de suas preferências, sem por isso itir qlte um progresso ru1no a essa situação seja ao menos até certo ponto um progresso rumo à genuí11a

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igualdade distributiva. Mesmo que inicialmente eu aceite ambas as proposições, devo abandonar a segunda se estiver convencido de que há bons motivos na morahdade política para não igualar as pessoas nesse tipo de êxito, e que esses motivos afirmam se a primeira proposição é sólida ou não. Assim, quaisquer argumentos capazes de derrotar a segunda estratégia, demonstrando que há fortes motivos na moralidade política para que a distribuição não aspire a igualar as pessoas no êxito, também devem ser considerados fortes argumentos contra a primeira estratégia, embora, evidentemente, não como argumentos que derrotem a conclusão provisória daquela estratégia: de que o bem-estar essencial consiste no êxito. No que se segue, tentarei contestar a segunda estratégia dessa maneira.

IV. Teorias do êxito

Agora quero examinar a igualdade de bem-estar formulada das diversas maneiras que descrevi, a começar pelo grupo de teorias que chamei de te·orias do êxito. Como já disse, não pretendo me deter nas dificuldades práticas (como tais) de aplicar essas ou quaisquer outras concepções da igualdade de bem-estar. Se qualquer sociedade se dedicasse a alcançar qualquer versão da ib'11aldade de êxito (ou de satisfação), realizaria, na melhor das hipóteses, um serviço tosco, e só poderia ter uma idéia tosca de seu próprio progresso. Algumas diferenças no êxito estariam além do alcance da ação política, e algumas só poderiam ser eliminadas por condutas que custariam caro demais para outros valores. A igualdade de bem-estar assim definida só poderia ser aceita como ideal de igualdade, a ser usada como modelo para decidir quais dos diversos arranjos políticos práticos pareceriam mais ou menos íveis de promover tal ideal integralmente, co:mo uma questão de tendência antecedente. Mas, exatamente por esse motivo, é importante exa1ninar os diversos conceitos de igualdade de bem-

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estar como ideais. A nossa questão é: se (imivelmente) pudéssemos alcànçar a igualdade de bem-estar em alguma dessas concepçõcs, seria desejável fazê-lo em nome da igualdade?

Preferências políticas Começarei pela análise da igualdade de êxit_o no sentido mais amplo e mais ir que enumerei, isto é, a igualdade na satisfação das preferências-das pessoas quando estas são preferências políticas e também de outras formas. Devemos perceber uma dificuldade inicial na aplicação desse conceito de igualdade em uma comunidade em que algumas pessoas afirmam, como preferência política, exatamente a mesma teoria. As autoridades somente saberiam se as preferências políticas dessas pessoas foram satisfeitas quando soubessem que sua distribuição satisfaz igualmente às preferências de todos, inclusive as políticas, e há risco de se cair em t1m círculo. No entanto, suporei que seria possível alcançar a igualdade de bem-estar, assim definida, por ineio de tentativa e erro. Os recursos poderiam ser distribuídos e redistribuídos até que todos declarassem que a igualdade de êxito foi atingida em seu conceito mais amplo. No entanto, também devemos perceber mais uma dificuldade inicial: que talvez fosse impossível alcançar um grau razoável de igualdade nessa concepçâo, mesmo recorrendo a métodos de tentativa e erro, em uma comunidade cujos membros defendessem teorias políticas muito diferentes e radicais com relação à justiça diStributiva, pois, qualquer que , fosse d distribuição de bens que formulássemos, haveria al, gum grupo profundam.ente insatisfeito com stla própria situação, ao o que outros talvez ficassem bem satisfeitos por serem partidários de teo1ias políticas que aprovassem o resultado. Porém, já que propon.ho ignorar dificuldades práticas ou contingentes, suporei qt1e uma sociedade na qual é possível alcançar uma igualdade aproximada na quantidade

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de preferências irrestritas satisfeitas, isto é, êxito quase igualitário nesse conceito amplo, seja porque quase todos apóiam as mesmas teorias políticas, ou porque, embora discordem, a insatisfação de qualquer um com detenninada solução em termos políticos poderia ser compensada pelo favoritismo em sua situação pessoal, sem gerar antagonismo suficiente em outros a ponto de derrotar por esse motivo a igualdade assim concebida. Esta última possibilidade - de que as pessoas .derrotadas em virtude da rejeição de suas teorias políticas poderiam receber em compensação mais bens para si - torna esse conceito de bem-estar, porém, imediatamente desestimulante. Mesmo pessoas atraídas por outros aspectos da idéia de igualdade de bem-estar, em qualquer de suas concepções, talvez não desejassem que seus ganhos ou perdas em bemestar fussem atribuíveis a preconceito racial, por exemplo. Portanto, presumo que quase todos gostariam de qualificar a igualdade de êxito estipulando, pelo menos, que um intolerante não deveria ter mais bens que outros, só porque ele desaprovaria uma situação na qual os negros percebessem tanto quanto os brancos a não ser que sua própria situação fosse suficientemente favorecida para compensar a diferença. Mas não está claro o motivo pelo qual essa estipulação não deveria aplicar-se a todas as teorias políticas que estejam em conflito com o ideal geral de igualdade de êxito, e não só à intolerância racial. Deveria aplicar-se do mesmo modo a quem pensa que os aristocratas deveriam ter mais do que os plebeus, ou a meritoêratas que acham que, no que diz respeito à moralidade política, os mais talentosos deveriam termais. De fato, deveria aplicar-se até mesmo aos igualitários que acham que as pessoas deveriam ser iguais em recursos ou satisfação, ou no êxito que cada uma alcança em sua própria vida, e não na satisfação de todas as suas preferências, entre elas as políticas. Essas teorias igualitárias "equivocadas" logicamente parecem mais respeitáveis para as autoridades que aceitam a última concepção de igualdade do que as teorias intolerantes ou meritocráticas. Mas ainda

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parece esquisito que mes1no os igualitários equivocados devessem ter recursos extras creditados a suas contas individuais apenas para co.mpensar o fato de que sua aprovação geral da situação seria, caso contrário, inferior à daqueles que defendem a teoria política que se presun1e correta, e na qual deve1n basear-se, de alguma forma, quaisquer afirmações que a primeira fizesse no tocante a recursos extras. Parece estranho (entre outros motivos) porque a boa sociedade é aquela que trata a concepção de igualdade endossada pela soc"'i.edade, não apenas como uma preferência·que alguma'> pessoas possam ter, e portanto como fonte de realização que possa ser negada a outros e que deve ser, então, compensada de outras maneiras, .mas como uma questão de justiça que deve ser aceita por todos porque está certa. Tal sociedade não vai compensar ninguém por ter preferências que s·uas instituições políticas fundamentáis declarem equivocadas. O motivo pelo qual a intolerância racial não deve contar como justificativa para oferecer maís bens pessoais ao intolerante é que essa teoria ou postura política é condenada pela própria concepção de igualdade, e não porque o intolerante seja obrigatoriamente insincero, irracional ou perverso. Por conseguinte, outras formas de teoria política nãoigualitária, ou mesmo forrr.as mal-interpretadas da teoria igualitária, devem ser da mesma forma descartadas. Ademais, suponhamos que ninguém tenha uma teoria política não-igualitária ou igualitária incorreta de qualquer tipo formal, mas que algumas pessoas sejam simples1nente egoístas e não tenham convicções políticas riem no sentido mais amplo - e, porta.nto, sua aprovação geral das circunstâncias após qualquer distribuição é apenas conl relação a sua própria situação particular ao o que outros são benevolentes, de modo que sua aprovação geral aume11ta com, digamos, a eliminação da pobreza na sociedade. A menos que nos recusemos a considerar essa benevolência como fonte positiva de êxito na satisfação das preferências gerais daqueles que são benevolentes, vamos acabar novamente concedendo mais aos egoístas para compensar o êxito que outros

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ten.ham com tal benevolência. Todavia é, com certeza, um marco contra qualquer concepção de igualdade que se recomende uma distribuição em que quanto mais as pessoas desaprovem, ou não se deixem comover pela igualdade, mais recebam para si. Analisemos, por fim, uma situação diferente. Suponhamos que ninguém defende, pelo menos profundamente, qualquer teoria política formal, mas todos são benevolentes em geral. Muita gente, porém, por meio do que chamei teoria política no sentido mais amplo, solidariza,-se em especial com a situação de um grupo de pessoas menos afortunadas - digamos, órfãos - e tem preferências especiais para que essas pessoas sejam bem-tratadas. Caso essas preferências sejam contempladas, deve-se chegar a um ou outro de dois resultados. Os órfãos receberão, só por esse motivo, tratamento um tanto melhor do que a própria igualdade exigiria na ausência dessas preferências especiais, inevitavelmente à custa de outros grupos~ entre eles os dos desprivilegiados de outras maneira<;, como os, digamos, inválidos; ou, caso se evite isso com base em argumentos igualitários, os que se preocupam mais com os órfãos do que com os inválidos receberão recursos extras para compensar a falta de realização dessa preferência diferenciada (recursos que podem ou não encaminhar aos órfãos). Nenhum desses resitltados faz justiça a uma teória igualitária. Temos, então, bons motivos para rejeitar a concepção ir restrita de igualdade de êxito, eliminando do cálculo do êxito comparativo as preferências-políticas tanto formais q·uanto informais, pelo menos para comunidades cujos me1nbros terlharn divergên('ias nessas preferências políticas, isto é, para quase todas as comunidades reais das quais venhamos a tratar. Talvez convenha fazer uma pausa para analisar, porém, se devemos também rejeitar essa concepção para todas as 01ltras comunidades. Imaginemos uma comunidade na qual o povo tenha, em geral, as mesmas preferências políticas. Se essas preferências em. comum aprovam a igualdade de êxito, nela incluindo o êxito nas preferências po1í-

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ticas, então essa teoria, para todas as finalidades práticas, resume-se a uma teoria mais restrita de que as pessoas devem ter êxito igual em suas preferências apolíticas. Pois, caso se chegue a uma distribuição à qual todos-aprovam de maneira geral, e a força das convicções políticas individuais, expressa no juízo de cada um sobre quão bem a endossa, é simplesmente aprovar o resultado porque todas as outras pessoas pensam da mesma forma, então a distribuição deve ser tal que cada pessoa considere suas próprias preferências pessoais e impessoais também igualmente realizadas. Suponhamos que Artur esteja menos satisfeito com sua situação pessoal e impessoal do que Bete. Artur pode não ter, por hipótese, nenhuma teoria ou postura política que justifique ou requeira uma distribuição com a qual ele esteja dessa forma menos satisfeito do que Bete; logo, Artur pode não ter motivo para considerar da mesma maneira que Bete adistribuição com tanta aprovação geral, combinando avaliações políticas, impessoais e pessoais. No entanto, suponhamos que a teoria política compartilhada não seja o ideal de igualdade de aprovação geral, mas alguma outra teoria não-igualitária que oferecesse tal motivo. Imaginemos q11e todos aceitem urna teoria de castas, de modo que, embora Amartya seja um tanto mais pobre que as 011tras pessoas, a distribuição deixe todas as suas preferências igualmente satisfeitas porque ele crê que, sendo membro de uma casta inferior, dt:.>ve receber menos, de modo q11e suas preferências, no todo, estariam menos satisfeitas se recebesse mais. Bimal, de uma casta superior, também estaria menos satisfeito em geral se Amartya recebesse mais. Nessa situação, a igualdade de êxito irrestrita recomenda uma diStribuição que nenhuma outra concepção de igualdade de bem-estar recomendaria. Mas é inaceitável por esse mesmo motivo. Um sistema político não-igualitário não se toma justo simplesmente porque todos acreditam equivocadamente que é justo. A igualdade de êxito irrestrita só é· aceitável quando as preferências políticas das pessoas são bem fundadas, e não

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apenas quando são populares, o que significa, é claro, que no fundo é um ideal vazio, que só tem utilidade quando endossa uma distribuição que já se mostrou justa independentemente, por meio de alguma concepção mais restrita de igualdade de êxito ou por inten:nédio de algum outro ideal político_. hnaginemos que alguém negue isso e argumente que é bom, em si, quando todos aprovam completa e igualmente um sistema político, ~eja qual for o sistema. Isso parece tão arbitrário, e tão· distante dos valores políticos comuns, a ponto de colocar em questão se essa pessoa entende o que é e para que serve uma teoria política. De qualquer forma, essa pessoa não afirma uma interpretação da igualdade, muito menos uma interpretação atraente.

Preferências impessoais Devemos, com certeza, restringir ainda mais a igualdade de êxito, eliminando do cálculo que ela propõe pelo menos algumas das preferências impessoais das pessoas. Pois a igualdade claramente não requer que todos sejam iguais, mesmo quando a distribuição seja capaz de fazê-lo, a ponto de realizarem todas as suas esperanças não-políticas. Suponhamos que Carlos tenha uma esperança profunda de que seja descoberta vida em Marte, ou que o Grande Romance An:i.ericano seja escrito enquanto ele estiver vivo, ou que o mar pare de erodir a costa de Martha's Vineyard*, como continua a fazer inevitavehnente. A igualdade não requer que se tirem verbas de outros, com esperanças mais fáceis de realização, e que sejam transferidas para Carlos de modo que ele possa, ao satisfazer suas preferências, reduzir a desigualdade geral à medida que suas preferências não-políticas sejam satisfeitas. Alguma preferência impessoal deveria ser poupada da restrição adicional que isso sugere? Pode-se dizer que as di*Ilha de Massachusetts, EUA.

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versas preferências impessoais que utilizei como exemplos são todas sonhos impossíveis ou, de qualquer forma, sonhos que o governo n.ada pode fazer para realizar. Mas não sei por que isso importa. Se é justo aspirar a diminuir a desigualdade em decepções em todas as metas ou preferências não-políticas, então o governo deve fazer o qtte puder nessa direção, e embora não possa revelar que existe vida em Marte, pode ao menos parcialmente compensar Carlos por suas esperanças frustradas ao lhe permitir que tenha mais êxito em 011tras preferências. De qualquer forma, eu poderia utilizar como exemplos esperanças que não são impossíveis, ou mesmo especialmente difíceis, para o governo realizar. Vamos supor que Carlos deseje que nenhuma espécie seja extinta, não porque gosta de ver uma diversidade de plantas e animais, nem mesmo porque acha que outros gostam, cor1htdo apenas porque acredita que o mundo se deteriora quando perde uma espécie. Ele prefere mttitíssimo que não se construa uma represa utilissima que extinguiria o peixe Percina tanasi. (Ele não se dedicou deliberadamente a cultivar suas o·piniões acerca da importância da espécie. Caso o tivesse feito, talvez levantasse questões especiais sobre o cultivo deliberado de preferências dispendiosas, do que falarei adiante. Ele apenas tem essa opirtião.) Porém., depois que o processo político analisou a questão e chegou a uma decisão, a represa foi construída. A decepção de Carlos é tão grande (e ele se importa tão pouco com todo o resto) que só o pagamento de uma vasta quantia de dinheiro público, que ele poderia empregar para fazer pressão contra futuros crimes contra outras espécies, propiciaria-lhe que seu bem-estar, definido como a satisfação de todas as .preferêrtcias nâo-·políticas, voltasse ao nível da comunidade em geral. Acho que a igualdade não requer essa transferência, nem creio que muitas pessoas achariam que sim, mesmo aquelas que se sentem atraídas pela idéia geral da igualdade de bem-estar. É claro que a igualdade exige que Carlos tenha um lugar no processo político que descrevi. Ele deve ter direito it,'1.tali-

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tário de voto na escolha das autoridades que tomarão a decisão, e oportunidade igual de expressar suas opiniões acerca da decisão dessas autoridades. Ademais, é pelo menos discutível que as autoridades devam levar em conta essa decepção, talvez mesmo ponderada por sua intensidade, no balanço geral de custo-beneficio que fazem para decidir se devem construir a represa apesar de tudo, que stta insatisfação deva contar em um cálculo benthamita e ser pesada contra os ganhos que a repfesa-traria a outros. Talvez queiramos ir além e dizer que se a comunidade se depara com uma série continua de decisões que põe em confronto a eficácia económica e a preservação de espécies, não deve tomar essas decisões separadamente, por meio de cálculos de custo-benefício independentes, nos quais Carlos perderia, mas em uma série em que a comunidade deva submeter-se a sua opinião peló menos uma vez. Nada disso se aproxima de argumentar que a comunidade só trata Carlos como igual se reconhecer sua postura excêntrica de maneira diferente, propondo-se a assegurar, na medida do possível, que seu êxito na satisfação de todas as suas preferências não-políticas continua tão grande quanto o de todas as outras pessoas quando for conduída a série de decisões, por mais singulares que sejam suas preferências impessoais. De fato, essa proposta 1nais contradiz do que valoriza o que os ideais convencionais da igualdade política recomendam, pois, se a comunidade reconheceu tal responsabilidade, as opiniões de Carlos muito provavelmente teriam um papel bem superior ao que essas idéias tradicionais lhe concedem. Não obstante alguém talvez ainda proteste que meus argumentos dependem de atribuir às pessoas preferências impessoais nada razoáveis 11as circunstâncias ou, antes, que não é razoável esperar que a comunidade as home compensando seu fracasso. Meus argumentos não sugerem, cabe dizer, que não se deva honrar daquela forma as preferências impessoais razoáveis. Mas isso introduz uma idéia bem diferente na discussão, pois agora precisan1os de uma teoria independente acerca de quando uma preferência impessoal

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é razoável ou quando é razoável compensar uma preferência. Parece provável que tal teoria ita que se deva dedicar certa parcela justa de recursos sociais às preocupações de cada indivíduo, de modo que uma pretensão de compensação possa ser adequada quando essa parcela justa não for de fato posta à sua disposição, mas não se a decisão conforme seu desejo ou a compensação por sua frustração invadisse a parcela justa de outros. Analisaremos, mais adiante nesta mesma seção, as conseqüências do emprego da idéia de parcelas justas dessa maneira dentro da teoria de igualdade de êxito. Basta observar agora que seriam necessários muitos aprimoramentos para que as preferências impessoais se qualificassem para o cálculo da igualdade de êxito. Nem parece implausível restringir uma concepção de igualdade de bem-estar ao êxito na realização de aspirações pessoais, distintas tanto das políticas quanto das impessoais, pois tal distinção é atraente de outras formas. É claro que as pessoas se importam, e se importam n1uito, com suas preferências políticas e impessoais. Contudo, não parece insensível dizer que, à medida que o governo tem o direito o1i. o dever de igualar as pessoas, ele tem o direito ou o dever de torná-las iguais em stta situação ou em suas circunstâncias pessoais, inclusive em poder político, e não no grau de aceitação pela comunidade de suas convicções políticas divergentes, nem no grau de realização de suas visões divergentes de um mundo ideal Pelo contrário, essa meta mais limitada da igualdade parece ser a meta apropriada de um Estado liberal, embora ainda seja preciso descobrir o que significa tomar as pessoas iguais em suas circunstâncias pessoais.

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Igualdade de êxito pessoal

P.xito relativo. Devemos, por conseguinte, analisar a forma mais restrita de igualdade de êxito, a qual requer que a distribuição se arrange de modo que as pessoas sejam tão iguais quanto a distribuição possa fazê-las no grau de realização

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das preferências de cada pessoa com relação a sua própria vida e circunstâncias. Esse conceito de igualdade de bemestar pressupõe uma teoria especial, porém plausível, de psicologia filosófica. Supõe que as pessoas sejam agentes ativos que distinguem entre êxito e fracasso ao fazer as escolhas ou tomar as decisões que lhes estão pessoalmente disponíveis, por um lado, e sua aprovação ou desaprovação total do mundo em geral, por outro, e procuram tornar sua própria vida o mais valiosa possível segundo sua própria concepção do que toma a vida melhor ou pior, embora reconhecendo, talvez, restrições morais ao perseguir esta meta e as demais concorrentes oriundas de suas preferências impessoais. Não resta dúvida que há um grau de idealização nesse quadro; talvez não venha nunca a ser uma descrição exata do comportamento de qualquer pessoa, e pode exigir uma qualificação sígnificativa em muitos casos. Mas parece um modelo melhor para descrever e interpretar o que são as pessoas do que as alternativas predominantes e talvez mais conhecidas. Não vou, portanto, confrontar-me com essa teoria psicológica. Mas devemos observar de imediato uma dificuldade na afirmação de- que os recursos da comunidade deveriam ser distribuídos, na medida do possível, de modo que igualem as pessoas no êxito obtido para tornar sua vida valiosa a seus próprios olhos. AB pessoas fazem suas opções, relativas a que tipo de vida levarão, recorrendo, grosso modo, a hipóteses sobre o tipo e a quantidade de recursos que terão disponíveis para levar diversos tipos de vida. Consideram este ponto de fundo em conta ao decidir quanto ao tipo de experiência, relações pessoais ou realizações de determinado caráter devem sacrificar em troca de experiências, relações pessoais ou realizações de outro caráter. Portanto, precisam de alguma idéia sobre quais recursos estarão à disposição em diversas alternativas para poder elaborar algo semelhante ao plano de sua vida, do tipo que esse conceito de igualdade de êxito presume que já tenham elaborado, pelo menos aproximadamente. Alguns desses re-

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cursos são nahtrais: as pessoas precisam fazer suposições acerca de quanto tempo viverão, saúde, talentos e capacida~ des, e compará-las com as de outras pessoas. Contudo, também precisam formular hipóteses sobre os tipos exatos de recursos que a sociedade lhes reservaria sob qualquer esque1na de igualdade de bem-estar: prosperidade, oportunidades etc. Mas se alguém precisar de uma idéia de quais riquezas e oportunidades lhe estarão disponíveis em determinado modo de vida antes de o escolher, então o esg_uema de distribuição de riquezas não pÕde simplesmente medir o que a pessoa deve receber calculando as despesas da vida que escolheu. Não obstante, existe nisso o risco de um círculo fatal. Mas proponho deixar esse problema de lado, como uin outro exemplo de problema técnico de que prometi não tratar. Novamente, pressuporei que o problema pode ser resolvido pelo método de tentativa e erro. Imaginemos uma sociedade na qual as pessoas possuam de fato recursos iguais. Descobre-se qt1e alguns estão muito mais satisf~itos que outros com o modo como estão vivendo. Assim, retiram-se recursos de alguns para dar a outros, em um esquema de tentativa e erro, até chegar ao ponto em que, se as pessoas estão totalmente informadas sobre os fatos de sua situação, e pergunta-se a cada uma delas se acham que realizaram seus planos dado o nível de recursos de que dispõem, todas indicrun mais ou menos o mes1no grau de êxito. Todavia, essa "solução" da dificuldade prática quedescrevo traz à tona um problema teórico para o qual a dificuldade prática aponta. Cada pessoa dá valores diferentes ao êxito e ao fracasso pessoal, não só qt1ando comparados a su,as convicções m.orais e políticas e a suas metas impessoais, mas simplesmente como parte de suas circunstâncias ou de sua situação pessoal. Pelo inenos o fazem em um sentido de êxito e fracasso, pois devemos agora perceber uma distinção importante que desprezei até aqui As pessoas (pelo menos concebidas da forma que acabo de descrever) escolhem planos ou esquemas conforme o cenário de re-

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cursos naturais e físicos de que cüspõem, em virtude dos quais têm metas distintas e fazem escolhas distintas. Preferem uma ocupação ou emprego a outro, vivem em uma comunidade e não em outra, procuram um tipo de amor ou amizade, identificam-se com um grupo ou conjtmto de grupos, desenvolve1n um rol de habilidades, praticam um conjunto de hobbies ou interesses etc. Certamente, mesmo aquelas pessoas que mais se aproximam do ideal desse modelo não fazem todas essas escolhas de maneira deliberada à luz de algum esquema geral, e talvez nenhuma dessas escolhas seja deliberada. Sorte, oportunidade e hábito terão papéis importantes. Porém, depois de fazer as escolhas, essas pessoas definem um conjunto de preferências, e podemos perguntar até que ponto alguém teve êxito ou fracassou na realização das pref~rências que definiu. Isso (devo dizer) é a questão de seu êxito relativo - seu êxito na realização das metas distintas que definiu para si. 11as as pessoas fazem essas escolhas, formam essas preferências, à luz de uma aspiração cüferente e mais abrangente, a aspiração de fazer algo de valor da única vida que têm para viver. Acredito que seja enganoso definir essa aspiração abrangente como cm si mesma apenas mais uma preferência das pessoas. É muito importante para encaixarse bem em tal denominação, e também muito carente de conteúdo. As preferências representam o resultado de u1na decisão, de um processo de realizar o que a pessoa quer de mais concreto. Porém a aspiração de encontrar valor na vida não é uma escolha entre outras alternativas, pois não há uma alternativa no sentido ordinário. A aspiração não gera planos mais concretos; é simplesmente a concüção para se ter qualquer plano. Depois de escolher um esquema, mesmo que provisório ou parcial, para a própria vida, depois de definidas dessa forma as preferências distintas, a pessoa pode avaliar seu próprio êxito relativo de maneira razoavelmente mecânica, comparando sua situação com tal esquema. No entanto, não pode dizer se sua vida teve êxito ott fracassou na procura de valor apenas comparando suas rea-

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lizações com qualquer meta definida dessa forma. Deve avaliar a própria vida como um todo para descobrir o valor que tem, e esse é um juízo que deve conter convicções que, por mais inarticuladas e por mais que a pessoa relute em confessá-las inarticuladas, são mais bem descritas como convicções filosóficas sobre o que pode dar significado ou valor a qualquer vida humana. Chamarei o valor que alguém atribui dessa forma à própria vida de juízo do êxito total dessa vida. Há discordâncias com relação à in1portância do êxito relativo na realização do êxito total. Uma pessoa pode pensar que o fato de ter probabilidade de grande êxito em determinada carreira (ou caso amoroso, ou esporte, ou outra atividade) conta multo a favor de sua escolha. Se não tiver certeza se quer ser artista ou advogado, mas acredita que seria um advogado brilhante ou apenas um bom artista, talve2 considere essa ponderação decisiva para a escolha da advocacia. Outra pessoa pode atribuir peso bem menor ao êxito relativo. Poderia, nas mesmas circunstâncias, preferir ser um bom artista a ser um advogado brilhante, pois acha que a arte é muito mais importante do que qualquer coisa que os advogados façam. E~se fato - de que as pessoas avaliam de maneiras diversas o êxito relativo-é importante aqui pelo seguinte motivo: a atração fundamental e imediata da igualdade de bem-estar, na forma abstrata em que a defini, está na idéia de que o bem-estar é o que reahnente importa para as pessoas, ao contrário do dinheiro e dos bens, que só lhes importam instrumentalmente, contanto que sejam úteis para a produção de bem-estar. A igualdade de bem-estar propõe igualar as pessoas no que é real e fundamentalmente importante para todos. Pode-se muito bem pensar que a nossa conclusão anterior, de que a realização das preferências políticas e impessoais não deve figurar em nenhum cálculo que se destine a igualar as pessoas no bem-estar por meio da distribuição, talvez estrague essa atração, pois restringe as preferências que as pessoas devem realizar equani-

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memente ao que chamo de preferências pessoais, já que as pessoas nãci dão a mesma importância à realização de suas preferências pessoais e a suas conviéções políticas e metas impessoais. Algumas dão mais importância a preferências pessoais, ao contrário de outras. :rvfas uma parte substancial da atração imediata que descrevo se mantém, embora agora

a questão se defina de maneira um pouco diferente. A igualdade de bem-estar (pode-se agora dizer) equipara as pessoas no que todas valorizam do mesmo modo e fundamentalmente, contanto que envolvam suas próprias situações ou circunstâncias pessoais. I\.ias mesmo essa afirmação restante se perde quando a igualdade de bem-estar é formulada de maneira que equipare as pessoas, contanto que a distribuição possa fazê-lo, em seu êxito relativo, isto é, no grau de realização das metas que definem pára si. Nesse conceito, dá-se o dinheiro a um e não a outro, ou se tira de um para dar a outro, a fim de alcançar a igualdade em um aspecto que alguns valorizam mais que outros e alguns valorizam muito pouco, à custa da desigualdade no que alguns valorizam mais. Uma pessoa de talentos bem limitados poderia escolher uma vida bem limitada, na qual suas possibilidades de êxito sejam grandes porque é muito importante ter êxito em algo. Outra pessoa escolhe metas quase impossíveis porque, para ela, o im.portante é o desafio. A igualdade de êxito relativo se propõe a distribuir recursos ~ talvez muito poucos para o primeiro desses dois e muito mais para o segundo - de modo que cada um tenha oportunidades iguais de êxito na realização dessas metas bem distintas. Imaginemos que alguém agora replique que a atração da igualdade de bem-estar não se situa onde a coloquei. Sua finalidade não é nivelar as pessoas no que valorizam fundamentalmente, mes1no que seja para sua própria vida, mas, pelo contrário, no que deveriam valorizar fundamentalmente. No entanto, essa mudança n.as pretensões de igualdade de bem-estar não chega alugar nenhum, pois é absurdo supor que se deve encontrar valor somente no êxito relativo1

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sem considerar o valor intrínseco ou a importância da vida em que se tem êxito relativo. Talvez algumas pessoas - as portadoras de deficiências graves - sofram tantas restrições qtianto ao que podem fazer que precisam escolher para serem capazes de ter o mínimo de êxito em algo. Conhtdo, relativamente ao que teria êxito em realizar, a maioria deveria desejar a mais.

Êxíto total. Pode-se pensar que esta discussão oferece uma melhor interpretação de bem-estar, isto é, igualdade de êxito total, e não relativo. Mas, se formos explorar a igualdade de bem-estar nessa concepção, devemos fazer uma distinção desnecessária (ou, de qualquer maneira, não tão claramente necessária) na comparação do êxito relativo. Devemos distinguir o juízo que a pessoa faz de seu próprio êxito (ou, se preferirmos, o juízo que faria se estivesse completamente informada dos tipos comuns de fatos pertinentes) do juízo objetivo de quanto êxito total ela de fato alcançou. O juízo da própria pessoa (mesmo que completamente informada sobre os fatos) expressará suas próprias convicções filosóficas sobre o que dá valor à vida, e essas devem ser, do ponto de vista do juízo objetivo, confusas ou imprecisas, ou simplesmente erradas. Press1.tporei, aqui, que a igualdade de êxito total significa igualdade no êxito total das pessoas conforme julgado por elas mesmas, da perspectiva, talvez, de suas próprias crenças filosóficas divergentes. Mais tarde analisarei, sob o título das teorias objetivas de bem-estar, o conceito diferente que requer a igualdade no êxito da vida dessas pessoas, julgado de maneira mais objetiva. Exercitemos agora o que imaginamos. Reorganizemos os recursos, na 1nedlda do possível, para que quando terminarmos cada pessoa possa oferecer, pelo menos se totalmente informada, a mesma avaliação, não de seu êxito relativo na realização das metas que escolheu para si, mas de seu êxito total em uma \.ida valiosa. Porém precisamos tomar cuidado ao descrever exatamente o que acreditamos ser essa última opinião, pois há muitas crenças distintas e pode-se

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pensar que cada uma delas conta como avaliação do próprio êxito total, e é de suma importância decidir qual delas deve ter um papel na reorganização dos recursos em nome da igualdade. Também não é possível encontrar muita orientação na literatura da eco.nomia de bem-estar ou do Utilitarismo, que são os locais naturais onde procurar, pois parece que a maioria dos autores que argumentam ou presumem que o bem-estar consiste na satisfação de preferências tem _em mente o êxito relativo, e não o total, e, de qualquer forma, não discute os problemas gerados pela segunda idéia quando as duas estão separadas. A linguagem que empregam - a linguagem das preferências (ou desejos) -parece crua demais para. expressar o juízo especial e abrangente do valor de uma vida como um todo. Podemos começar distinguindo a questão do valor que alguém crê ter sua própria vida, como um todo, da questão de quanto esse alguém deseja que sua vida continue. São, com certeza, assuntos diferentes. Algumas pessoas decerto desejam o fim da própria vida, ou são quase indiferentes quanto a sua continuidade, pois a consideram um fracasso. Outras desejam morrer só porque acham que tiveram uma vida brilhante demais para manchá-la com um lento declínio. E outras acham que a vida bem-sucedida pode tor·nar-se ainda mais bem-sucedida com o recurso oportuno ao suicídio como ato de criatividade. Isto é, as pessoas podem querer pôr fim a uma vida da qual se orgulham. Poden1os dizer, pelo menos, que se alguém deseja morrer deve considerar a vida futura que teria como uma vida de pouco ou nenhum valor? Isso certamente será verdade na maioria d.os casos, mas a conexão é, creio, cori.tingente. Essa pessoa pode simplesmente achar que, embora sua vida futura viesse a ser muito bem-sucedida, sua vida inteira o seria mais ainda se t~rminasse agora. Também não se conclui que se alguém deseja continuar vivendo por longo tempo é porque acha sua vida bem-sucedida, ou ao menos que sua vida futura o será mais ainda. Essa pessoa pode, pelo contrário,

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querer uma vida mais longa porque acha que sua vida não teve êxito, porque precisa de mais tempo para fazer algo que valha a pena, embora seja mais provável que simplesmen-

te tenha medo de morrer. Talvez eu possa resumir da seguinte maneira a distinção que desejo fazer: as preferências quanto à duração da própria vida são apenas preferências, do mesmo modo que escolhas de empregos e amores, de-

finidas como partes do exercício predominante de decidir qual vida, dado o cenário de hipóteses quanto aos recursos, seria a mais valiosa no fim das contas. Não são, em si, juízos de êxito ou fracasso total.

Podemos fazer uma distinção adicional entre o valor que a pessoa encontra em sua própria vida e o valor que acredita ter sua vida para ela? Não _sei o que a segunda frase poderia significar como parte dessa comparação. Às vezes dizemos que determinada pessoa dá pouco valor à própria vida quando queremos dizer, não que ela não se orgulhe da vida que tem ou terá, 1nas, pelo contrário, que dá pouco valor a essa vida em comparação com o valor que dá a seu dever ou à vida de outrem. No entanto, estamos agora analisando outra coisa: não o valor que alguém dá à própria vida em comparação com seus valores morais ou impessoais, mas o valor que dá a essa vida como parte da análise de sua própria situação. Talvez "o valor da vida de uma pessoa para si mesma" signifique somente a intensidade de sua preferência pela continuidade de sua vida. Caso afirmativo, a diferença entre o valor que alguém encontra na própria vida e seu valor para si mesmo é a diferença que já discutimos. Mas quem emprega essa frase talvez tenha em mente algo mais complexo e esquivo. Talvez pretenda distinguir o juízo de alguém sobre o valor de qualquer vida humana (ou, de fato, da vida humana em geral) para o universo como um todo, do juízo interior de tal pessoa, do ponto de vista de alguém encarregado de fazer da própria vida algo de valor. Caso seja assim, então é do segundo juízo que agora trataremos. Ou a pessoa pode querer distinguir o juízo que outra pes-

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soa faz de seu êxito naquela missão, dados seus talentos e oportunidades, de seu juízo a respeito de se foi bom para ela ter tido os talentos, as oportu1lidades e as convicções que fizeram dela a pessoa cuja vida teria o maior valor possível ao ser vivida daquela forma. Não é difícil imaginar vidas que ilustrem a diferença assim entendida. É, de fato, lugar-comum dizer que os grandes artistas quase sempre trabalham, não por prazer (mesmo no sentido mais amplo de prazer), mas, pelo contrário, cm un1 estado de eterna infelicidade, simplesmente porque não é possível para eles deixar de criar poesias, músicas ou pinturas. O poeta que diz isso talvez pense que se vivesse a vida de outra forma ele seria, no sentido mais fundamental, um fracasso. Mas também pode pensar que a conspiração de talentos e cqnvicções que fizeram com que isso acontecesse tenha sido ruim para ele, o que significa que sua vida seria mais agradável se esses talentos lhe faltassem ou se ele não tivesse a certeza inabalável de que uma vida infeliz e desesperada de criação de poesia fosse, no fim das contas, a vida mais valiosa para ele. Então imaginemos que lhe fizéssemos a obscura pergunta que só os filósofos e os romancistas piegas fazem: teria sido melhor se você nunca tivesse nascido? Se ele dissesse que sim, como em certos estados de espírito, saberíamos o que quis dizer, não significando que não tenha feito nada de valor na vida. Se a diferença entre o juízo que alguém faz do valor de sua vida e seu juízo do valor q11e tem para ele for feita dessa forma, então é do primeiro juízo que falo ao mencionar seu juízo acerca de seu êxito total. Mas, -caso não se possa fazer a distinção dessa forma, ou de nenhuma das outras formas tratadas, então não a entendo e desconfio que não haja distinção alguma. Esses comentários fragmentados destinam-se a esclarecer a comparação a que devemos aspirar quando propomos que as pessoas deveriam equiparar-se no êxito total Não podemos realizar essa co1nparação simplesmente descobrindo as preferências fixas de duas pessoas e comparando suas situações a essas preferências. É apenas uma comparação de

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seu êxito relativo. Devemos convidá-las (ou a nós mesmos, a partir de suas pcrspectivas) a fazer um juízo total, e não relativo, que contemple as preferências fixas ao julgar, e não o modelo de avaliação. Se lhes pedirmos que façam essa avaliação elas mesmas, porém, e depois tentarmos comparar a avaliação de cada um, talvez venhamos a descobrir a seguinte dificuldade. Suponhamos que peçamos a Jack e Jill, individualmente, q11e avaliem o êxito total de sua própria vida, e deixemos claro, por meio de uma série de distinções, o que queremos dizer ao falar em êxito total, ao contrário de êxito ou satisfação relativa, de quanto desejan1 que sua vida continue e assim por díante. E lhes oferecemos um conjunto de rótulos, de "fracasso total" a "êxito enonne", com várias gradações intermediárias, para que escolham. Não temos garantia de que cada um empregará quaisquer desses rótulos para fazer o mesmo juízo que o outro faria quanto ao .mesmo rótulo. Jack talvez use um ou mais rótulos com significados diferentes do que os empregados por Jill e podem estar empregando escalas diferentes ao julgar os intervalos entre os rótulos. Jack pode supor, por exemplo, que há uma diferença eno1me entre "grande êxito" e "êxito enorme", ao o que Jill entende que essas expressões só representarn uma dife~ rença mínima; de modo que ambos talvez empreguem o último rótulo para relatar juízos que nós, com base _em cori.versa posterior com eles, viéssemos a crer que eram de fato juízos bem diferentes. Essa dificuldade, assim descrita, é de tradução, e itirei que poderíamos, em princípio, resolvê-la, pelo menos com falantes da nossa própria língua, por inter1nédio das conversas posteriores que mencionei. É claro, porém, que tudo isso presume a existência, de fato, de um tipo único de juízo total que estejamos pedindo pa.i;a Jack e Ji11 (ou que nos proponhamos a fazer da perspectiva deles, em nome deles) e que esse juízo seja realmente sobre o valor inerente da vida deles e, por conseguinte, diferente de un1 juízo <.io êxito relativo ou de um juízo sobre quanto a pessoa deseja que s·ua vida continue ou qu.anto prazer nela se desfrute. Muitas pessoas são, evidentemente,

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céticas quanto a tais juízos assim interpretados. Se estiverem certas, os juízos que pedimos a Jack e Jill não fazem sentido. J)or conseguinte, pelo mesmo motivo a igualdade de êXito total não fez sentido. (Embora ainda possa haver quem proponha, por motivos que não precisamos explorar, que as pessoas devem, não obstante, ser iguais no caráter da ilusão que cada qual tenha a respeito.) Se presuminnos qt1e os céticos estão errados, porém (ou mesmo que a igualdade de ilusões é.a verdadeira meta), então a igualdade de êxito total deve, subitamente, parecer uma meta de fato peculiar, pelo menos nas seguintes circunstâncias. itamos que Jack e Jill possuam recursos iguais e que também se assemelhem bastante, menos com relação às convicções que me11cionarei. Ambos são saudáveis, não deficientes, razoavelmente bem-sucedidos nas ocupa ções escolhidas e nenhum dos dois tem um talento ou uma criatividade excepcional. A vida cotidiana lhes proporciona mais ou menos a mesma satisfação. Mas Jack (que recebeu forfe -influência da pintura de gênero) acha que qualquer vida comum dedicada a projetos é uma vida de valor, ao o que Jill (talvez porque sofreu muita influência de Nietzsche) é muito mais exigente. Jack pensa, por exemplo, que a vida de um camponês muito esforçado, que realiza m-uito pouco e não deixa nada de herança está repleta de valor, ao o que }ili acha que tal vida está repleta apenas de fracassos. Se pedem a cada um que avalie o valor total de s11a própria vida, J.cick dá uma nota alta e Jill uma nota baixa. Mas cert~enté não há motivo nesse fato para transferir reatrsos de Jack para Jill somente porque assim Jill daria uma nota um pouco maior à própria vida, embora ainda com pouco êxito total. Talvez pareça que a dificuldade exposta nesse exemplo provém apenas do fato de que nosso método tenta comparar juízos de valor aos quais se chegou com base em teorias bem diferentes sobre o que dá valor à vida, que é igual a comparar maçãs com laranjas. Alguém.poderia objetar que seria melhor pedir a Jack e Jill que fizessem juízos campa-

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rativos utilizando seus própri_os modelos para cada comparação, e depois confronta<>sem esses juízos de modo que neutralizassem as diferenças em suas convicções filosóficas. Creio que isso é um erro, mas devemos explorar a sugestão mesmo assim. Poderíamos pedir a Jack, por exemplo, que comparasse o valor;. a seus olhos, de sua vida presente com o valor da vida que levaria sob quaisquer condições de poder físico e mental e qualquer conjunto de recursos materiais e oportunidades a sUa disposição por ele considerados ideais. Ou poderíamos pedir que comparasse dessa forma sua vida atual com a vida que teria no que ele considerasse as piores condições. Poderíamos perguntar-lhe até que ponto sua vida é melhor do que teria se tivesse poucos recursos ou oportunidades, ou mesmo se não tivesse nenhum recurso ou oportunidade. Faríamos, então, as mesmas perguntas a Jill. Ou poderíamos fazer uma pergunta diferente a cada um, não lhes pedindo que imaginassem circunstâncias materiais diferentes, mas que comparasse1n sua vida atual com uma vida na qual não encontrassem valor nenhum1. Poderíamos perguntar a cada um até que ponto sua vida excedeu, cm valor, aquela vida. E assim por diante. Uma vez escolhidas algumas dessas perguntas (ou talvez um grupo razoável delas) por algum motivo apropriado à finalidade, a igualdade de êxito total, enquanto ideal político, recomendaria a redistribuição até que a proporção ou a quantia hipoteticamente mencionada à guisa de resposta estivesse tão próxima a ela em todos os casos que pudessem ser realizados dessa maneira. Direi de imediato que há espaço para duvidar, pelo menos, se todas ou mesmo uma sequer dessas perguntas poderiam mesmo ser respondidas, ou ser respondidas por todos menos o de maior inclinação filosófica. Deixarei as dúvidas de lado, porém, e itirei que as pessoas costumam ter um conhecimento suficiente das teorias de valor 1. Devo esta última sugestão a Derek Parfit e, por intermédio dele, pelo que sei, a J. P. Griffin e f. McMuhon.

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para poder respondê-las de maneira inteligente. Mas é claro que as diversas comparações que as diversas questões propiciam, se cada um estivesse voltado para o ideal da igualdade de êxito total, poderiam resultar em recomendações diferentes para a redistribuição. itamos, por exemplo, que Jack acha sua vida atual muito melhor do que a pior vida que consegue imaginar, mas também muito pior do que a melhor vida, ao o que Jill acha sua vi$ não muito melhor que a pior e não muito pior que a melhor. A direção da redistribuição dependeria, então, de qual dessas duas comparações fosse considerada mais importante para comparar níveis de êxito total. Mesmo que todas as respostas a_todas as perguntas que inventássemos apontassem na mesma direção para a redishibuição, ainda teríamos de provar que pelo menos uma dessas era a pergunta certa a se formular. Quando examinamos mais de perto as questões enumeradas, porém, elas se revelam erradas. Suponhamos que Jack e Jill (que, como imaginei, agora estão quase iguais em recursos, satisfação e êxito relativo na vida que escolheram) discorden1 radicalmente nos juízos acerca de quanto sua vida seria mais valiosa se tivessem tudo o que poderiam ter, por exemplo. Jack acredita que com todos esses recursos poderia resolver a cl1arada da origem do universo, que seria a maior façanha imaginável para os seres humanos, ao o que Jill acha que essa charada não tem solução e não tem nenhum sonho comparável. Assim, Jack acredita que sua vida atual é apenas uma pequena fração do que poderia realmente ser, enquanto Jill acha que sua vida não é tão pior do que poderia ser. Decerto não temos motivos de igualdade para transferir recursos de Jill para Jack (destruindo sua presumida igualdade de recursos, de satisfação e de êxito relativo), mesmo que tal transferência fizesse com que Jack classificasse sua nova vida como um tauto mais próxima da vida "ideal, que seria a da solução da charada. Imaginemos que Jack considera sua vida atuai muito mais valiosa do que qualquer vida que ele possa considerar totalmente sem valor, ao o que Jill acha que sua vida está

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um pouco mefuor, em qualquer escala simples de valor da vida, do q11e uma vida que ela imaginasse completamente desprovida de valor, mas isso pelo motivo já afirmado. Jack considera qualquer vida completamente ativa e ocupada, com tanta satisfação cotidiana quanto a sua vida, de enorme valor, algo que se deve estimar, proteger e desejar. Ele consegue imaginar uma vida com relação à qual seria indiferente, mas é uma vida tão empobrecida que ele não tem dificuldade para afirmar que sua vida é muito melhor do que aquela. Jill te1n maís ou menos o mesmo prazer ou satisfação cotidiana. Não é depressiva, mas muito exigente em sua convicção de qual vida poderia ser considerada realmente bem-sucedida. Ela não sabe dizer, quando lhe pedem que analise com seriedade e filosoficamente essa qucstã.o grave, se sua própria vida, mesmo com toda sua óbvia riqueza, é uma vida de muito valor; para ela, é fácil imaginar tlma vida totalmente destituída de valor e não sabe dizer se acha, com sinceridade, que sua vida seja 1nesmo, no fim das contas, muito mais valiosa do qt1e essa 011tra.1.1ais uma vez, parece implausível que a igualdade exija a transferência de recursos de Jack para Jill. Por qtte todas essas perguntas comparativas são tão claramente equivocadas? I'orque nã.o escaprunos de fato, ao ar das perguntas diretas para as comparativas, da dificuldade que encóntramos nas anteriores. Porque as diferenças que percebemos entre Jack e Jill ainda são diferenças entre co11vicções, mas não entre a vida de ambos. São diferenças em suas fantasias especulativas sobre sua vida ser boa ou ruim em circunstâncias diferentes e grotescas, ou diferenças em suas convicções filosóficas sobre o que daria t,:rrande valor a qualquer vida; m.as não, por esse motivo, uma diferença em sua vida atual. Cada um dos juízos de Jack ou Jill, ao responder às diversas perguntas que fizemos, pode ser considerado mn juízo do valor ou do êxito total de sua vida. No entanto não são, em hipótese alguma, juízos iguais, e nenhum dos juízos que descrevemos até aqui parece adequado para uma teoria da igualdade do êxito total.

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Quero agora sugerir uma comparação do êxito total na vida de pessoas bem diferentes das comparações feitas em todas aquelas perguntas, e que parece ao menos vinculada aos problemas da igualdade distributiva. Diferenças de juízo no tocante a estar a vida indo bem ou mal só são diferenças na própria vida, e não simples diferenças em suas crenças, ape11as quando são diferenças, não em fantasia ou convicção, mas em realização, que é, acredito, uma questão de avaliar o êxito ou o fracasso individual fazendo uma comparação com algum modelo de como deveria ter sido, e não de como talvez pudesse ter sido. A comparação importante, e pertinente neste momento, parece-me ser essa. Quanto mais essas pessoas possam razoavelmente lamentar que não tenham feito algo na vida, menor será o êxito total de sua vida. O "razoavelmente", é claro, tem bastante peso. rvtas é um peso necessário. Ninguém pode, razoavehnente, lamentar-se por não ter tido a vida qtte alguém com poderes físicos ou mentais sobrenaturais, ou com a duração da vida de Matusalém, teria tido. Assim, ninguém tem uma vida menos bem-sucedida, filosoficamente, do que a vida que tem. Contudo, é possível lamentar-se razoavelmente por não ter tido os poderes normais ou a duração normal de vida que a maioria das pessoas tem. Ninguém pode, razoavehnente, lamentar-se de não ter tido a vida que alguém com uma parcela exagerada dos recursos mundiais teria levado, de modo que a vida de uma pessoa não é menos be1n-sucedida do que a de outra porque a primeira pensa que sua vida teria sido muito mais valiosa naquelas circunstâncias, ao o que a outra não pensa assim. No entanto, as pessoas podem se lamentar, razoavelmente, por não ter uma parcela qualquer dos recursos materiais a que têm direito. Talvez agora a questão esteja esclarecida. Qualquer teoria da igualdade de êxito total que não tome fundamental a idéia de lamentar-se razoavelmente (ou alguma idéia semelhante) é irrelevante para uma teoria sensata da igualdade de distribuição. I"'ode elaborar uma concepção de êxito

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total útil para alguma finalidade, mas não para esta. Porém, ql1alquer teoria que torne essencial essa idéia deve conter, em sua definição de igualdade de êxito total, assunções sobre o que seria uma distribuição justa, e isso significa que não se pode usar a igualdade de êxito total para justificar ou constituir uma teoria da distribuição justa. Não quero dizer simplesmente que não se possa aplicar a igualdade de êxito em alguns casos sem que se tenha uma teoria independente da justa distribuição como complemento para tais casos. Se a questão fosse apenas essa, demonstraria somente que a igualdade de êxito total não poderia ser toda a história de uma teoria da distribuição. A questão é mais marcante. Não se pode estabelecer de modo a!gLUn a igualdade de êxito total como ideal atraente sem tomar central a idéia da lásti ma razoável. Todavia, essa idéia requer uma teoria independente das parcelas justas de recursos sociais (essa poderia ser, por exemplo, a teoria de que todos têm direito a uma parcela igi1al do::> recursos) que contradiria a igualdade de êxito total, não apenas em alguns casos, mas completamente. itamos que alguém conteste essa im.portante conclusão da seguinte maneira. Ele ite que o objetivo da igualdade de êxito, devidamente definida, é equiparar as pessoas no que têm de razoável a lamentar. Mas crê ser possível elucidar a idéia de lástima razoável de alguma for1na que não exija qualquer teoria da parcela justa dos recursos, a não ser por meio de alguma versão ou aprimoramento da própria teoria do êxito i6rt1al. IJoderia propor o seguinte: ninguém pode lamentar-se razoavelmente por não estar levando a vida de alguém com poderes sobrenaturais, ou a vida de um sádico bem-sucedido, ou uma vida na qual tem recursos tais que, com esses recursos, poderia levar uma vida com menos razões para se lamentar do que outros poderiam ter com os recursos que lhes foram deixados. Mas isso não basta. Nosso objetivo é equiparar as pessoas no que têm a se lastimar razoavelmente. Suponhamos (como antes) que Jack e JiJl tenham.recursos iguais. Jack tem (co.mo vimos) aspirações grandiosas e, embora não acredite fazer jus a nada

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em especial, sempre lamentará o fato de não ter mais do que tem. Queremos saber se Jack eJill são, todavia, iguais no que

têm razoavelmente a lamentar. No teste proposto, devemos perguntar a Jack (ou a nós mesmos, a partir daquela perspectiva) até que ponto a vida que ele leva agora deixa de al-

cançar a vida que levaria se tivesse (entre ot1tras coisas) a quantidade de recursos que o faria, caso os tivesse, lamentar-se razoavehnente no mesmo nível que outros se lamenta-

riam. Jack não consegue responder a essa pergunta (nem nós). Ele pode escolher qualquer distribuição aleatória dife-

rente-digamos, uma distribuição na qual ele tenha um milhão de dólares a mais e as outras pessoas no agregado um

milhão a menos. Mas ele não sabe dizer se sua vida com essa nova distribuição é um parâmetro seguro contra o qual Comparar sua vida atual, sem saber se sua lástima razoável com um milhão a mais não seria maior que a de outras pessoas, e não sabe dizer isso sem escolher outra nova distribuição aleatória (na qual, talvez, ele tenha dois milhões a mais) contra a qual comparar sua lástima na vida de um milhão a mais. E assim por diante, em uma regressão ao infinito. Não podemos, é claro, reparar esse fracasso (como tentamos reparar outros) com algum dispositivo de tentativa e erro. IJois o problema não é não podermos oferecer um algoritmo nãocircular para atingir uma distribuição inicial para testar, mas, antes, não podermos oferecer método nenhum para testar qualquer distribuição, qualquer que tenha sido o modo de cl1egar até ela2. 2. No caso de algumas pessoas, mas não de Jack, talvez possamos encontrar luna parcela de recursos para que sua lástima atual, por não ter mais, seja tão fraca que não precL~emos computar sua lástima razoável quanto à quantia para dizer que esta deve ser menor do que a lástima real que outros sentiriam se aquele tivesse tal quantia. No entanto, mesmo assim, surgem muitas questões. Não seria necessário ainda computar o lástima rawáveL diferenciada da lástima real, do segundo grupo, antes de deddir que o primeiro não pode ter mais do que aquela quantia? Pode-se fazer isso sem retrocesso? Seja como for, as parcelas totais definidas como máximas para determinadas pessoas, dessa maneira, decerto excederiam o total disponível para a distribuição. Não me aprofundarei com esS
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Concluo que a lástima razoável não pode figurar nas assunções distributivas contra as quais se vá tomar a decisão quanto a alguma lástima ser razoável. Nem posso pensar em q·ualquer outra concepção o·u aprimoramento da igualdade de êxito total que possa ter esse papel. Se isso fosse possível, a meta de igualar as pessoas no que têm a lamentar razoavelmente é autocontraditória, no modo como descrevi. Não estou dizendo que as comparações de realizações - de até onde as pessoas conseguiram tornar bemsucedidas suas vidas em sua própria opinião - não tenham lugar nas discussões acerca da igualdade. Muitas diferenças na lástima total - muitas ocasiões que as pessoas têm para lastimar-se razoavelmente pelo que não fizeram - provêm de deficiências, azar, falta de força de vontade ou mudanças súbitas (tardias demais para qualquer coisa além do lamento) nas percepções que as pessoas têm do que crêem ser, realmente, de valor. Mas talvez seja o derradeiro dos males de uma genuína distribuição desigual de recursos que algumas pessoas tenham razão para lamentar-se precisamente do fato de terem sido trapaceadas com relação à oportunidade que outros tivera1n de fazer algo de valor na vida. As idéias de realização e de razão para lástima só são competentes para expressar esse argumento final contra a desigualdade porque são idéias que expressam independe11temente, em suas assunções, o que significa a desigualdade. Não posso, é claro, provar que ninguém inventará um teste ou uma análise do êxito-total que seja ao mes1no tempo pertinerlte para a igualdade e independente de assunções prévias sobre a igualdade de distribuição. Por isso levei em conta um número razoável de testes desse tipo, esperando demo11strar por que acho improvável encontrar algum. Decerto nada que eu conheça na literatura atual servirá. Mas vamos agora supor que alguém defendendo a igualdade de êxito total ita ser im.possível descobrir tal teste que seja independente da distribuição. Suponho que ele deva itir, então, que a igualdade de êxito total é inútil como meta

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política distinta porque, na n1edida e1n que esta recome11da mudanças na distribuição independente, a qual presume justa, deve recomendar distribuições qtte condena como injustas. Mas será essa uma conclusão precipitada? itamos que essa pessoa argumente que devemos distinguir entre a medida e os meios de alcançar a igualdade de êxito total. Poderíamos afir1nar, por exemplo, qu.e a distribuição justa para finalidades de cálculo do êxito presente total de alguén1 é umaigual distribuição de recursos. Calculamos o êxito total de Jack e Jill perguntando-lhes até que ponto cada um considera a própria vida menos bcmsucedida do que a melhor vida que poderia ter, se os recursos fossem compartilhados igualmente na sociedade. Se o êxito total de Jack, assim avaliado, for maior que o de Jill, transferimos recurs_os de Jack para Jill até conseguirmos reduzir a diferença. É verdade que Jack e Jill não terão, então, recursos iguais. Jill terá mais recursos que Jack. Mas serão (mais) iguais no êxito total, conforme o aferido pelo modo apropriado, orientado pela idéia de lástima razoável. Não há contradição em usar a idéia de recursos iguais internamente, dentro da métrica para detenninar o êxito total, e depois efetivamente distribuir de modo que alcance a igualdade de êxito total, e não a igualdade de recursos. Não obstante essa réplica não entendeu a argumentação. A métrica da lástima razoável para decidir o êxito total faz assunções sobre qual é a distribuição justa, a qual distribuição as pessoas têm direito. Se essa métrica presume que a distribuição justa é uma distribuição igualitária de recursos, e Jill, então, recebe mais do que sua parcela igualitária, ela recebe mais do que o argumento teórico, que supostamente justifica a transferência, diz que é seu justo quinhão. É claro que Jill talvez não reclame por ter recebido mais do que a parcela de recursos à qual, hipoteticamente, faria jus. Mas Jack vai reclamar de ter menos do que a justificativa presume que ele tem direito, e a única maneira de dar a Jill m.als do que aquela parcela é dar menos. a Jack (ou a outra pessoa).

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V. Igualdade de satisfação

Agora me proponho a discutir o segundo grupo de concepções de igualdade de bem-estar que enumerei no início, segundo o qual a igualdade de bem-estar consiste em iguais quantidades ou graus de um estado de consciência. Simplificarei essa discussão, como já disse aqui, presumindo que o conceito de satisfação significa uma versão especialmente ampla do estado ou dos estados de consciência em. qtiestão. Felizmente, também podernos simplificar essa discussão de outra forma, pois grande parte da argumentação que empreguei na análise das \rersões irrestritas da igualdade de êxito se aplica às versões irrestritas da igualdade de satisfação. A satisfação das pessoas, conforme já disse, provém da satisfação de suas preferê11cias políticas e impessoais, bem como diretamente de suas preferências pessoais, e sua insatisfação provém das preferências políticas e impessoais frustradas. Mas as mesmas ponderações que defendem un1a forma restrita de igualdade de êxito, que 11ão leva em conta o êxito ou o fracasso na realização dessas preferências nos cálculos que ela recomenda, defendem restrições semelhantes na igualdade de satisfação. Presumiei, então, que a igualdade de satisfação, como teoria da igualdade de distribuição, afirma que se deve distribuir os recursos, na medida do possível, de modo que as pessoas sejam iguais na satisfação direta e proveniente de convicções de que suas preferências pessoais foram realizadas. Meu primeiro argumento contra essa versão restrita da igualdade de satisfação também se baseia no argumento que empreguei contra a igualdade de êxito relativo. O principal atrativo de uma forma restrita de igualdade de satisfação está na afirmação de que elâ toma as pessoas iguais no que todas valorizam do mesmo modo e fundamentalmente no que diz respeito a sua posição pessoal. Mas não se pode sustentar esse atrativo, pois as pessoas diferem, de fato, na importância que cada uma dá à satisfação, até no sentido mais runplo

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que faz desse termo a definição de estados de consciência. Quando se tomam iguais em um aspecto, tornam-se desiguais em outros aspectos que muitos valorizam mais. Para quase todos, o sofrimento ou a insatisfação é um mal e torna a vida menos desejável e valiosa. Para quase todos, o prazer ou a satisfação de alguma outra forma tem valor e contribui para o desejo de viver. Os estados de consciência de algumas dessas formas, positivos ou negativos, figuram como componentes da concepção da vida boa de todos, mas somente como componentes, porque quase ninguém procura apenas a satisfação ou sacrifica outra coisa a que dê valor para evitar um sofrimento de pequena monta. E cada pessoa atnbui pesos diferentes até a esses estados de consciência. Dois pesquisadores, por exemplo, podem valorizar o trabalho criativo, mas um pode estar disposto a abrir mão de um quinhão maior de prazer social ou dos prazeres da fama, ou da satisfação oriunda do término de uma pesquisa bem-feita, para fazer trabalhos que sejam de fato mais originais. Alguém pode agora objetar que o primeiro pesquisador não dá menos valor ao prazer, porém o encontra em uma fonte diferente - não nos prazeres da sociedade ou no brilho da fama, mas nas satisfações mais pro:ft.mdas das descobertas genuínas. Contudo, isso não é necessário nem é o que acontece em geral Alguns dos pesquisadores mais ambiciosos (e também artista<>, estadistas e atletas) seguem uma direção que prevê somente fracasso, e sabem que não encontrarão deleite nem satisfação só por terem colocado suas aspirações tão alto, mas apenas infelicidade na medida em que não as realizam. Podem dizer com sinceridade (no espírito do poeta cujas opiniões descrevi anteriormente) que desejariam que certa meta ou certa projeto não lhes tivesse ocorrido ou surgido em seu caminho, ou que não tivessem os talentos que provocaram a necessidade de tentar alcançar esses fins, pois sua vida teria sido, então, mais satisfatória, mais agradável no fim das contas. Dizer que encontraram realmente 1nais satisfação na vida que levaram é

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deturpar o relato, entender mal sua situação complexa, pois a questão é exatamente que levaram aquela vida apesar, e não em virtude, da qualidade de vida consciente que ela lhes trouxe. É claro que não são tantas as pessoas que se dedicam a alguma aspiração de maneira tão extenuante.1.ías a maioria de nós, creio, dedica-se a alguma coisa cujo valor para nós não se esgota nem é captado pela satis_fação que sua realização trará, e alguns de
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seja irracional, porque não dá esse valor. Isto é, a pessoa que faz essa objeção abandona o que eu disse ser a atratividade imediata de qualquer conceito de igualdade de bem-estar, qtte é o que afirma nivelar as pessoas no que dão valor do mesmo modo e fundamentalmente. Esse opositor argume11ta que a atratividade do ideal político é, pelo contrário, o que nivela as pessoas no que devem dar valor do mesmo modo e fundamentalmente. Teriamas, creio, duas respostas. Em primeiro lugar, ele erra em sua opinião acerca do que as pessoas devem valorizar. Erra ao supor que a vida mais valiosa é uma vida de satisfação máxima, por mais generosa que seja a definição de tal estado de consciência, ou que todos devem ter aquela opinião acerca da melhor vida. Em segundo lugar, mesmo que essa teoria. sobre o que as pessoas devem valorizar seja mais plausível do que creio, mesmo que seja de fato verdadeira, uma teoria política da igualdade baseada nessa concepção de vida boa não é atraente para ttma sociedade na qual muitos, senão a maioria, rejeitam essa concepção, e alguns a rejeitam por ser alheia a suas mais profundas convicções sobre a qualidade de suas próprias vidas. Podemos, além disso, encontrar um segundo argumento contra a forma restrita de igualdade de satisfação nos argumentos que a11alisarnos contra a igualdade de ~xito total. Embora eu tenl1a salientado o erro de supor que todas as pessoas com altas aspirações encontram prazer em sua vida e:>..i:enuante, ou procuram levar esses tipos .de vida cm troca da satisfação que obterãCi, também é verdade que as pessoas de ambição sempre encontram insatisfação no fracasso de seus grandes objetivos, e na lástima por não terem os recursos adicionais em talento e meios que tornariam o êxito mais provável, apóiem ou r1ão as teorias políticas que presumem que eles fazem jus a mais do que efetivamente têm. Embora isso não fizesse parte da n1inha história de Jack e Jill, podemos alterá-la para supor, por exemplo, que Jack encontrava grande decepção e insatisfação cotidiana no fato de não ter os talentos e os meios para matar cl1aradas. Mas pa-

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receria tão errado transferir recursos para ele em razão dessa maior insatisfação quanto em razão de seu índice mais baixo de êxito avaliado dessa forma. Ninguém, acho, pretenderia levar em conta mais do que a insatisfação que ele encontrava na lástima razoável. Mas, se as argumentações que ofereci anteriormente forem sólidas, introduzir a idéia da lástima razoável em nome daquela limitação introduziria uma teoria diferente e inconsistente da distribuição no próprio enunciado e na justificativa da igualdade de satisfação.

VI. Teorias objetivas do bem-estar As concepções de igualdade de bem-estar até aqui analisadas são todas subjetivas no seguinte sentido. Podem ser aplicadas sem que se pergunte se está correta a avaliação consistente e informada da própria pessoa de até que ponto satisfaz o padrão estipulado de bem-estar. É claro que os ,argumentos favoráveis a escolher uma ou outra concepção de igualdade de bem-estar podem presumir que as pe8soas estão erradas no que acreditam ser importante, ou mesmo no que considerariam importante se estivessem bem informadas quanto aos fatos perti11entes. Analisamos, por exemplo, o argumento a favor da igualdade de satisfação de que as pessoas deve.m dar valor à satisfação como fundamentalmente importante para sua vida, apesar do fato de inuitas não darem. Porém, mesmo q·ue a concepção de estado de consciência seja defendida dessa forma, pode ser aplicada sem qt1a1quer avaliação da satisfação em questão. Ela induz as autoridades a produzir a distribui.ção de forma que cada pessoa tenha a mesma satisfação na vida que leva, sem perguntar se as pessoas estão certas ao ter satisfação no que teriam. A igualdade de êxito total conforme analisamos também é subjetiva da mesma forma. Pretende equiparar as pessoas (como devemos agora dizer) na quantidade ou no grau em que cada pessoa poderia razoavelmente lamentar

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não estar levando a vida que consideraria uma vida de maior valor. É verdade que esse juízo é, em certos aspectos, nãosubjetivo. Por exemplo, impõe restrições à lástima razoável que a pessoa em questão poderia rejeitar. Se a avaliação dessa pessoa sobre o que dá valor à vida mudar no decor·· rer de sua vida, o juízo requer fusão ou seleção entre juízos diversos. Mas o juízo não permite que o cômputo da lástima razoável de uma pessoa se baseie em análises do valor da vida que sejam completamente alheias a ela, as quais ela rejeitaria mesmo que estivesse bem informada acerca dos fatos comuns. Porém, devo agora mencionar uma versão da igualdade de êxito total que é mais objetiva exatamente nesse aspecto. Alguém pode propor que as pessoas se tomem iguais na quantidade de lástima que deveriam ter com relação a sua vida atual. Nesse teSte revisto as autoridades deveriam perguntar se está errado alguém que, de fato, não dá valor à amizade, por exemplo, e acredita que sua vida seja boa, embora solitária e sem amor, e acredita nisso apesar de estar consciente do consolo e da alegria que outras pessoas encontram na amizade. Nesse caso, deve-se transferir recursos para essa pessoa, diretamente ou por meio de uma educação especial acerca dos valores da amizade, em função de seu êxito total baixo, mesmo que ele o considere alto, pelo menos até antes da educação especial. Ora, podemos multo bem contestar que as autoridades não podem basear-se em seus próprios juízos acerca do que dá valor à vida ao redistribuir riquezas. Poderíamos acreditar que tal esquema de redistribuição invade a autonomia ou é, de outra maneira, alheio aos princípios liberais corretos. Mas não precisamos analisar essas objeções, pois essa versão mais objetiva da igualdade de êxito total vai ao encontro do mesmo argumento que usamos contra a versão mais subjetiva. Qualquer teste pertinente sobre o que alguém deveria lamentar na vida que está, de fato, levando, mesmo na melhor teoria, em vez da sua própria, acerca do que dá valor à vida, deve apoiar-se em assunções sobre

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quais recursos um indivíduo tem o direito de ter à disposição ao levar qualquer tipo de vida. Portanto, a versão

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objetiva, assim como a subjetiva, deve prestnnir uma teoria independente da distribuição, e não tem mais poder de jus-

tificar o fato de dar às pessoas mais ou menos do que elas têm direito segundo aquela teoria. Ambas as versões destroem a si mesmas na medida em que recomendam quaisquer mudanças em uma distribuição independente, estando

essa sob uma teoria da distribuição que se tenha demonstrado justa. Devo mencionar, embora rapidamente, outra putativa

concepção de igualdade de bem-estar que também se poderia considerar.objetiva. Ela supõe que o bem-estar consiste nos recursos disponíveis para a pessoa, amplamente concebidos, de modo que inclua co.mpetência física e mental a educação e as oportunidades, bem como os recursos materiais; ou, em algumas versões mais estritas, de modo que inclua ape11as aqlieles recursos que sejam de fato os mais importantes, independente do que as pessoas pensam a respeito. Afirma que duas pessoas ocupam o mesmo nível de bem-estar quando ambas são saudáveis, estão em pleno gozo das faculdades mentais, são bem-educadas e igualmente prósperas, embora insatisfeitas por algum motivo, e ainda que uma dê muito menos valor a esses recursos do que a outra. Essa é uma teoria objetiva no sentido que se recusa a aceitar o juízo da própria pessoa com relação a seu be1n-estar, mas, pelo contrário, insiste que seu bem·-estar é definido pelo 111enos por certos tipos de recursos básicos a sua disposição. A igti:aldade de bem-estar, assim interpretada, só requer que as pessoas sejam iguais nos recursos designados. Essa versão da igualdade de bem-estar não é, portanto, diferente da igualdade de rP.cursos, ou pelo menos da igt1aldade em alguns recursos. É antes uma afirmação da igualdade de recursos na linguagem (10.nganosa) do bem-estar. A afirmação abstrata da igualdade de recursos, obviamente, como já dis-

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se, deixa em aberto a questão acerca do que conta como recurso e de como se deve avaliar a igualdade de recursos. São questões con1plexas que deixo para o Capítulo 2. Mas não há motivo para pensar que essas questões se tornarão mais fáceis se anexarmos ao ideal da igualdade de recursos uma cláusula que estipule que se as pessoas forem iguais em recursos, na concepção correta desse ideal, também serão iguais em algum conceito objetivo de bem-estar. VII. Uma sugestão ecuménica

Devo agora tratar do que poderia parecer uma sugestão sensata e ecuménica. Talvez seja possível encontrar uma concepção atraente de igualdade de bem-estar, não exclusivamente em uma: ou outra das diversas concepções que examinamos e descartamos, porém em uma mistura complexa e judiciosa delas. Nesse caso, a estratégia que segui nas três seções anteriores poderia ser a enganosa e falaciosa estratégia de dividir para conquistar, rejeitando cada concepção de igualdade de bem-estar por supor que, a não ser que essa concepção seja completa, pode ser totalmente ignorada. Talvez só se possa considerar com justiça o ideal de igualdade de bem-estar tratando as diversas versões resbitas e irrestritas da igualdade de êxito e da igualdade de satisfação como fios a serem considerados em um conjunto complexo, e não como teorias isoladas. Seria tolice dizer, antecipadamente, que não se pode definir nenhun1a nova concepção de igualdade de bem-estar que torne atrae11te esse ideal. Devemos esperar para ver qttais novas concepções serão apresentadas. Mas talvez não seja tolice supor que não se pode formar nenhuma concepção bem-sucedida, utilizando as concepções que analisamos como componentes de algum conjunto mais amplo. De qualquer modo, meus argumentos.pretendiam reduzir a confiança nesse projeto. Não argumentei simplesmente que nenhuma das versões discutidas seja satisfatória por

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si só, ou que cada uma leve a conseqüências sem atrativos se não forem conigidas por outra. Se meus argumentos tivessem tido esse caráter, convidariam de fato à afirmação de ql.te se pode combinar essas concepções para complementar ou corrigir as deficiências de cada uma isoladamente. Mas eu pretendia sustentar uma crítica mais radical: de que 11ão temos razão para aceitar nenhuma dessas versões da igualdade de bem-estar como uma teoria da igualdade distributiva, mesmo que condicionalmente. É claro que é desejável, pelo menos até certo ponto, que se aumente o êxito total das pessoas, embora os filósofos e os políticos possam discordar se as versões subjetiva e objetiva dessa meta devam ser as referências quando as duas entram em conflito. Porém, pelos motivos explicados, nenhuma versão consegue oferecer nada além de um princípio de igualdade de distribuição contraproduCente ou ocioso. Nem, pelos mesmos motivos, pode nenhuma delas figurar como componentes úteis de um conjunto complexo de cuncepções de it,rualdade de bem-estar. Na medida em que a igualdade de êxito total figurasse, mesmo como um componente entre vários, figuraria porque se supôs algum teste independente da justa distribuição, e não 11oderia re.comendar, nem poderia o conjunto total, qualquer desvio daquele teste independente. Rejeitamos as outras concepções de igualdade de ben1estar que analisamos por diferentes razões. Não encontramos razão para dar apoio à idéia de que a comunidade deveria aceitar a meta de tornar as pessoas mais iguais em nenhum desses diferentes modos, 1nesmo quando fosse possível fazê-lo sem danos a nen11uma das outras. Se é assim, então é improvável que ela deveria aceitar a meta de tornar as pessoas mais iguais em algum modo que seja ·um composto e um compromisso entre os diferentes modos. As combinações e as compensações são apropriadas quando não se pode satisfazer de imediato um conjunto de metas ou princípios concorrentes, cada 11m dos quais com atrati-

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vos independentes. Não são apropriadas quando nenhuma meta ou principio demonstrou ter qualquer atrativo independente, pelo menos como uma teoria da igualdade.

VIII. Gostos dispendiosos Disse no irúcio que a igualdade de bem-estar, mesn10 quando enunciada simplesmente de maneira resumida, se1n especificar nenhum dos conceitos que depois distinguimos, parece produzir inicialmente contra-exemplos problemáticos. O mais destacado desses é o problema dos gostos dispendiosos (termo que usarei, com maior freqüência, abrangendo também as ambições dispendiosas). A igualdade de bem-estar parece recomendar que aqueles que gostam de champ·anhe, que precisam de renda mais alta simplesmente para alcançar o mesmo nível de bem-estar que os de gostos menos dispendiosos, deviam ter uma renda maior por isso. No entanto isso parece contra-intuitivo, e eu disse que alguém que se sentisse atraído para o ideal desejaria, não obstante, limitá-lo ou qualificá-lo de modo que sua teoria não tivesse tal conseqüência. Quero voltar a essa afirmação agora, não porque o problema dos gostos dispendiosos seja de importância prática na política, mas por dois outros motivos. Primeiro, muitos leitores de início atraídos por alguma concepção de igualdade de bem-estar podem desconfiar que os argumentos que apresentei contra sua concepção favorita, nas seções anteriores, teriam força menor se tivesse embutido na min'ha definição dessa concepção uma limitação ou qualificação adequada para excluir a conseqüência dos gostos dispendiosos. Acho que essa desconfiança, caso de fato exista, é equivocada, porém vale a pena analisar, somente por essa razão, se tal limitação é de fato possível. Em segundo lugar, haverá leitores que não se deixaram convencer por meus argumentos anteriores, mas, não obstante, abandonariam sua concepção favorita de igualdade de bem-estar se acreditassem que ela

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não poderia, de fato, ser qualificada de modo que evitasse tal conseqüência. Deve1nos ter o cuidado de distinguir, quando ai1alisan1os possíveis qualificações de quaisquer dessas concepções, o compromisso de um princípio e sua co11tradição. O compromisso expressa o peso de um princípio independente e adversário; a contradição é uma qualificação que expressa, pelo contrário, a negação do próprio princípio original. A questão que quero salientar é esta: o princípio de igualdade pode.encontrar um compromisso (sob qualquer interpretação da definição de igualdade de bem-estar) de tal modo que bloqueie os resultados iniciahnente contra-intuitivos daquele princípio, como a afirmação de que as pessoas que gostam de champanhe deviam ter mais recursos? Ou seria qualquer qualificação capaz de excluir esses resultados, pelo contrário, uma contradição que conceda a irrelevância final do princípio? Imaginemos que determinada sociedade tenha consegttido alcançar a igualdade de bem-estar em alguma concepção escolhida de tal ideal. Suponhamos também que a alcançou por meio de uma distribuição que de fato (talvez apenas por coincidência) proporciona riquezas iguais a todos. Agora imaginernos que alguén1 (Louis) resolva, deliberadan1ente, cultivar algum gosto ou aspiração que ainda não tem, mas que será dispe11dioso porque, ao cultivá-lo, não terá tanto bem-estar na concepção escolhida quanto tinha antes, a menos que sua riqueza aumente. Esses novos gostos podem ser em alin1entos e bebidas: o exemplo conhecido de Arrow dos gostos por ovos de tararnbola e clarete pré-filoxera4. Ou podem ser (o que é mais plausível) gostos por esportes, como o esqui, com os quais se tem prazer depois de adquirir um pouco de prática; ou pela ópera; ou por uma vida dedicada à arte criativa ou à exploração ou à política. Seria possível negar a Louis os recursos extras, tirados dos 4. Kenneth_J. Arrow, "Some Ordinalist-Utilitarian Notes on Rawls's Theory of Justice", ]outnal of Philoôophy 70, nº 9 (10 de maio de 1973); 254.

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que têm gostos menos dispendiosos (ou simplesmente mantendo os que já têm), sem contradizer o ideal da igualdade

de bem-estar que sua comunidade abraçou? Vamos analisar primeiro como explicar o que Louis fez.

Não há dúvida de que as pessoas adquirem. novos gostos de maneira neglige11te ou por vaidade, sem considerar se será realmente melhor para elas adquirir esses gostos, ou mesmo de maneira perversa, sabendo que será pior. Mesmo

quando acham que será melhor, podem estar enganados. No entanto, quero supor que Louis está agindo de maneira deliberada, e não inadvertida, mas também está agindo com

base no tipo de juízo que as pessoas sempre fazem quando adquirem gostos ou quando os modificam. Ele está tentando melhorar a vida de algutna forma. Isso não toma sua pretensão por reCUfSOS extras mais atraente ou menos contra-intuitiva, acho. Pelo contrário, o fato de estar agindo tão deliberadamente em interesse próprio parece tornar sua pretensão menos atraente do que a de alguém que faz uma experiência cara por capricho, pelo prazer do momento, e depois percebe que está viciado. Louis terá, é claro, idéias próprias sobre o que torna a vida melhor, sobre onde está seu próprio bem-estar essencial. Se porém sua sociedade escolheu uma das diversas concepções de bem-estar, como a do êxito ou da satisfação relativa, como o bem-estar ein que as pessoas devem igualar-se, então Louis não pode acl1ar que seu próprio bemestar consiste no grau máximo de bem-estar nessa concepção. Caso achasse, seu comportamento não faria sentido. Isso significa que mna descrição possivelmente atraente do que ele fez deve estar errada. Muita gente, ao ouvir essa história pela primeira vez, pode supor que Louis cultiva gostos dispendiosos para levar vantagem sobre os outros, de modo que "reco1npensasse" esforços não apropriados se ele tivesse de receber uma renda maior. Mas, se levar vantagem significa adquirir mais bem-estar do que os ot1tros na concepção escolhida, então isso é impossível. É claro que alguém. pode fingir que gosta de ovos de tarambola, embora os de;·,

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teste, para receber uma renda maior e gastar secretamente na compra de mais ovos de galinha e, assim, ter mais satisfação do que outros possam ter. Mas o problema dos gostos dispendiosos não é o problema da fraude ~ é preciso lidar com esse problema separadamente em qualquer sociedade baseada na igualdade de bem-estar, porque alguém pode, afinal, fingir que é inválido. Se Louis está decidido a adquirir o gosto por ovos de tarambola de modo que, se tiver êxi~ to, terá de fato menos bem-estar no conceito escolhido caso não possa comprá-los, então não pode pretender levar vantagem sobre os outros nessa forma de bem-estar por meio dessa decisão. Ele pode, certamente, achar que, no fim, terá mais bem-estar nessa concepção com os ovos de tarambola do que com a mesma quantidade de ovos de galinha, por mais caros que sejam os primeiros. Nesse caso, ele sabe que sua renda será reduzida se tiver êxito. Ou pode achar que não terá ·mais bem-estar por dólar ao cultivar o gosto por ovos de tarambola, mas, pelo contrário, menos. Nesse caso, ele sabe que seu bem-estar (como sempre, na concepção escolhida) cairá no todo (embora não muito em uma comunidade muito grande), porque o bem-estar total que se pode então produzir (do qual, no fim, ele só pode esperar 1/n) dllninuirá. Seria absurdo pensar que ele decide redt1zir o próprío bem-estar para ter uma renda maior, seja absoluta ou relativamente aos outros. Afinal, embora tenha tuna renda maior que os outros, eles não estão, por hipótese, em situação pior do que ele na concepção escolhida de bem-estar, e ele está pelo menos em algum grau em situação pior do que estaria de outra forma. Louis supõe, como eu disse, que se cultivar o novo gosto sua vida será melhor. Mas isso porque ele não aceita que o valor de stta vida seja medido somente pelo bem-estar com base no qual a sociedade se decidiu, por algum motivo, a adotar para equiparar as pessoas. É difícil perceber como o fato de que ele tem essa opinião possa justificar a conclusão de que ele agiu de maneira inadequada, ou a decisão de não lhe dar mais recursos, mas deixá-lo em situação desi-

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gual à dos outros na concepção escolhida. A escolha dessa concepção foi feita pela sociedade, e não por ele, e a sociedade resolveu que as pessoas seriam-iguais nessa concepção, e não na oub:a concepção para a qual Louis dá mais valor. Afinal, não há razão para achar que as pessoas eram iguais em bem-estar na concepção de Louis, mesmo antes de ele

adquirir o novo gosto, e ele pode ainda ter menos que os outros têm daquilo, mesmo que volte à igualdade na concepção escolhida. Louis acha, como eu disse, que sua vida seria mais bem-sucedida no todo - daria menos razão para lástima se tivesse o gosto ou aspiração dispendiosa, mas mesmo que custasse pouco ao bem-estar na concepção escolhida ele perderia-se a sociedade restabelecesse para ele a igu.aldade naquela con\epção. De fato, ele poderia pensar que sua vida seria mais bem-sucedida no cômputo geral mesmo que a sociedade não lhe restabelecesse a igualdade. (As pessoas adquirem gostos dispendiosos mesmo na nossa própria sociedade, quando arcam sozinhas com as despesas adicionais.) itamos que a concepção escolhida é a da satisfação. Se Louis adquirir gosto por ovos de tarambola, deve acreditar que ar a vida satisfazendo gostos dispendiosos é uma vida inelhor no cômputo geral, apesar do fato de que lhe trará menos satisfação, e talvez acredite que seja n1elhor mesmo que lhe traga menos satisfação. Essas podem ser, de fato, convicções plausíveis. Ou pelo menos serem plausíveis se substitulrmoS os exemplos fictícios dos ovos de taram.bola pelos tipos de gostos dispendiosos que as pessoas parecem cultivar deliberadamente e em seu próprio interesse, como o gosto por esportes que exigem o dese11volvimento de habilidades, ou o desejo de ter poderes práticos decorrente de um interesse pelo bem comum. É plausível supor que as crenças desse tipo fib:ruram até mesmo nas melhores teorias sobre por que pessoas em nossa própria economia adquirem os gostos dispendiosos menos iráveis gostos por champanhe -que figuram nos exemplos usuais. Se alguém como Louis deseja levar a vida das pessoas mos-

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tradas nos comerciais da revista New York, deve ser porque imagina que uma vida em que se saboreiam bens raros e caros é uma vida melhor porque conhece uma variedade maior de prazeres, ou prazeres mais requintados, ou, de fato, simplesmente prazeres que os outros não conhecem, apesar de conter menos prazer no cômputo geral. Essa explicação do comportamento de T~ouis refuta a importância da distinção que presumimos até aqui, entre os gostos dispe11diosos de cultivo deliberado e outros aspectos da personalidade ou da pessoa, tais como desejos inatos ou gostos socialmente impostos, que afetem o bem-estar das pessoas, pois a explicação afirma que tais gostos são quase sempre cultivados em decorrência de convicções - convicções sobre que tipo de vida é mais bem-sucedida no total e tais convicções não são, em si, cultivadas nem escolhidas. Isto é, não em qualquer sentido que dê uma razão'para ignorar as diferenças em bem-estar provocadas por tais convicções em uma comunidade de outra forma comprometi:da com o nivelamento das diferenças em bem-estar. Não quero dizer que as convicções sejam deficiências, como a cegueira, que as pessoas descobrem ter e das quais não podem se livrar. As pessoas raciocinam sobre suas teorias a respeito do que valoriza a vida, mais ou menos da mesma maneira que raciocinam sobre outros tipos de convicções. Mas não deciden1 que ttma vida a serviço de outros, por 12xemplo, ou uma vida de arte criativa ou estudo, ou t1ma vida de gostos refinados, seja o tipo mais valioso de vida para viver e, portanto, não decidem que devem acreditar que assim seja. Podemos ainda distinguir entre a decisão voluntária que alguém faz de tornar-se uma pessoa com certos gostos, ou de levar o tipo de vida com probabilidade de ter tal con.seqüência, e sua descoberta dos gostos e aspirações que ela simplesmente tem. Porém a distinção é menos importante do que às vezes se pensa, porque essa decisão é poucas vezes integralmente 'lolu.ntária. Se a sociedade de Louis pretendesse igualar as pessoas, não em uma das distintas concepções de bem-estar que pre-

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sumimos até este ponto na sua história, tais como a satisfação ou o êxito relativo, mas no êxito total subjetivo, então

nós precisaríamos de uma teoria um tanto diferente para o motivo por que ele adquiriria gostos dispendiosos, e para justificar se seria justo negar-lhe os recursos extras. Argumentei anteriormente que qualquer versão atraente da igualdade de êxito total deve dar espaço para a idéia da lástima razoável, e que essa idéia, por sua vez, pressupõe alguma teoria independente, que não seja do bem-estar, para definir adistribuição justa dos recursos. Se isso estiver correto, ninguém

poderia reivindicar recursos extras para gostos dispendiosos em uma comunidade ostensivamente governada pela igualdade de êxito total. Se o seu quinhão de recursos é justo antes do cultivo de um novo gosto, continuará justo depois de cultivá-lo. Mas já que quero oferecer argumentações independentes nesta seção, itamos que meus argumentos anteriores sejrun inconsistentes, e que se pode elaborar uma versão subjetiva atraente da igualdade de êxito total que não seja contraproducente dessa forma. Porém, já que a concepção escolhida agora é a do êxito total, não podemos mais dizer que Louis age como age porque acredita que sua vida teria um êxito total maior embora fosse menos bem-sucedida na concepção escolhida. Suponhamos que, antes de ter idéia de seu gosto dispendioso, Louis estivesse satisfeito com o fato de s11a vida ter um êxito total razoavelmente igual ao de todas as outras pessoas. Ele ou, então, a acreditar que sua vida teria mais valor se praticasse algum hobby caro, por exernplo. Devemos perguntar o que ele agora acha do valor da vida que tinha antes dessa convicção. Ele pode achar que, embora sua vida anterior fosse tão boa quanto ele pensava, e continuaria assim se ele pudesse não praticar o novo hobby, seria muito melhor se o praticasse. Nesse caso, não ocorre o problema dos gostos dispendiosos, pois Louis está reivindicando recursos adicionais para ter mais bem-estar que os outros na concepção escolhida, e ele não fez jus a isso. No entanto ele pode, pelo contrário, ter mudado de convicção acerca do

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valor de sua vida anterior. Pode ter lido mais, ou refletido mais, e chegado à conclusão de que sua vida anterior, com toda a atratividade que exercia sobre ele, era de fato uma vida sem valor e insípida. Ele quer cultivar gostos novos e mais desafiadores para reparar os defeitos de sua vida, segundo seu entendimento atual. Só pede os recursos necessários para tomar sua vida tão valiosa a seus olhos, depois que foram abertos, quanto a de outras pessoas segundo elas mesmas. Como pode uma sociedade comprometida com a igualdade nesse aspecto negar-lhe esses recursos? Não pode dizer que ele estava errado ao continuar a refletir sobre como viver melhor. A vida não examinada é, por aquela razão mesma, uma vida pobre. Se Louis tivesse chegado a sua opinião atual sobre o valor da vida antes da distribuição inicial, teria recebido· então os recursos que agora busca. Por que recusá-los agora e condená-lo a uma Vida que ache menos valiosa do que todas as outras pessoas acham de sua própria vida?5 Convém resutnir a posição a que chegamos dessa forma. Se a concepção escolhida for uma das distintas concepções que analisamos, e não a do 'êxito total, então Louis está tenta11do aumentar seu bem-estar em alguma outra concepção para a qual dê mais valor, embora conservando a igualdade na concepçâo escolhida. Mas se a concepçâo escolhida for a que realmente in1porta para a igualdade, e se de qualquer forma os outros talvez já possuam mais bemestar na concepção preferida por Louis, que fundamento 5. Se a concepção escolhida for alguma versão objetiva da igualdade de êxito, em vez da versão subjetiva discutida neste parágr-<1.fo1a situação ainda é diferente. Se a mudança nas preferências de Louis tiver a conseqüência de que sua vida se tornou objetivrunente rnai8 bem-sucediJa, então ele d<.:ve ter menos, e não mais, recursos. Se (por estarem equivocadas as convicções de Louis) as mudanças tornare1n a vida dele objelivarnentt• pior, então a reivindicação que alguém poderia fazer para si mesmo, pedindo ainda mais recursos para a reeducação, parece especialrnente forte. Mas e5tou supondo que a versão objetiva da igualdade de êxito total te1n pouca atração para unw sociedade liberal e, portanto, não me aprofundarei nesta linha de raciorínio.

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63 tem a sociedade para agora recusar-lhe a,igualdade na concepção escolhid?-? Se a concepção escolhida for a do êxito total (que se supõe, à guisa de argumentação, não ser contraproducente), então se surgir alguma pretensão de recursos extraS, surge porque Louis agota crê que a distribuição anterior se fundamentava em um erro. Ele não pede va.i1ta-

gem especial, mas apenas que a sociedade atinja a distribuição que teria atingido se ele tivesse sido capaz de enxergar antes com 1nai.s clareza. Em que poderia. a sociedade se basear para lhe negar isso? Talvez um fundamento se insinue por si, qtte é o princípio utilitarista comum de que a média de bem-estar na sociedade (que devemos entender por bem-estar na concepção escolhida) deve ser a maior possível. Se a sociedade "recompensa" pessoas qu~ adquirem gostos dispendiosos dandolhe recursos extras com os quais elas satisfazem esses gostos, então as pessoas não serão desencorajadas de fazê-lo. No entanto, os gostos dispendiosos (por definição) reduzem o bem-estar total que se pode produzir com detenninado estoque de recursos. Assim, o princípio independente de utilidade justifica um compromisso com o princípio de igualdade de bem-estar ao recon1endar que as pessoas não tenham igualdade de bem-estar se adquirirem gostos dispendiosos, para não incentivá-las a fazê-lo. Se a concepção escolhida for uma concepção distinta, isso significa que as pessoas devem ser desencorajadas, em benefício da utilidade média, de trazer à tona que precisarão de mais recursos para atingir o mesmo bem-estar, embora possam pensar que sua vida teria mais êxito se o trouxessem. Se a concepção escolhida for a do êxito total subjetivamente julgado, devese, então, desencorajar nas pessoas o reexame de suas vidas de modo que possa deixá-las insatisfeitas com o valor da vida que tem. 1-fas, de fato, o principio da utilidade não esclarece o que precisa de explicação. Na melhor das hipóteses, posso explicar por que compensar os que adquirem gostos dispendiosos é ineficaz. Isso não explica por que o ideal de igual-

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dade não recon1enda fazê-lo. É, afinal, uma idéia conhecida em teoria política que a sociedade justa encontrará algum compromisso entre a eficácia e a distribuição. Às vezes tolera menos que a igualdade perfeita para aumentar a utilidade média. Mas o compromisso intuitivamente exigido pelo problema dos gostos dispendiosos não é um compromisso entre a eficácia e a igualdade. É, pelo contrário, um con1promisso dentro da idéia de igualdade. Nossa dificuldade não é que, embora acreditemos que a igualdade exige que paguemos mais a Louis porque ele se obrigou a gostar de champanhe, devemos negar-lhe a igualdade para proteger o estoq·ue geral de utilidade. Os gostos dispendiosos são constrangedores para a teoria de que a igualdade significa a igualdade de bem-estar precisamente porque acreditamos que essa igualdade, considerada em si e fora das qué'.stões de eficiência, condena, em vez de recomendar, a compensação por gostos dispendiosos deliberadamente cultivados. Devo também assinalar, entre parênteses, que não está claro que o princípio utilitarista, sozinho, possa prover urna explicação do que pretende explicar, isto é, por que a sociedade que deseja encontrar um compromisso na igualdade em benefício da eficiência escolheria os gostos dispendiosos como o ponto de sacrifício para a igualdade. Recusar-se a compensar as pessoas que têm gostos dispendiosos só corrobora a utilidade média se conseguir desencorajar pelo n1enos algumas pessoas de adquirir tais gostos quando, caso co11trário, fariam-no. É impossível prever quanto dessa experiência aconteceria em uma sociedade dedicada à igualdade de bem-estar mesmo sem esse tipo de dissuasão, oµ quão efetiva seria a dissuasão. (Afinal, as pessoas adquirem gostos dispendiosos até mesmo na nossa sociedade, quando não recebem os recursos extras a partir do momento que os adquirem.) Também é impossível prf'.ver as conseqüências de longo prazo para a utilidade sob quaisquer hipóteses acerca do êxito da dissuasão. Qualquer sociedade inclinada a usar a não-compensação como método de dis-

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suasão deve definir uma política bem articulada que estipule, com razoável clareza, quando as pessoas cujos gostos e aspirações mudarem serão compensadas e quando não o serão. Como essa política distinguiria, por exemplo, entre preferências deliberadamente cultivadas e as que simplesmente pegam as pessoas de surpresa? Que nível de despesas que rúvel de eficiência na prod11çãà de satisfação, por exemplo, por dólar - seria estipulado como limite entre o gosto dispendioso e o não dispendioso? A cerveja p.ode ser muito mais barata, nesse caso, do que o champanhe, m.as também é mais cara do que a água. itamos que a comunidade responda a essas dificuldades recusando-se a compensar os novos gostos - se as pessoas tomarem alguma atitude deliberada para adquiri-los ou mesmo comportarem-se de uma maneira que devem.saber que leva à aquisição - sempre que esses gostos forem mais dispendiosos do que os que substituem. Se essa política conseguir desencorajar a experimentação de gostos até determinado ponto, pode muito bem tenninar, por tudo que sabemos, em uma comunidade conformista, sem imagin.ação e, por outro lado, sem atrativos, e em uma comunidade com menor utilidade de longo prazo também. Há muitos motivos para prever esta última conseqüência, mas só mencionarei os dois mais óbvios. Em primeiro lugar, alguns gostos. que são dispendiosos quando adotados por poucas pessoas se tomam baratos - produzem mais utilidade por dólar do qtte os gostos atuais - quando se tomam muito comuns devido ao exemplo daquelas poucas pessoas. Em segundo lugar, a sociedade que se tomar maçante e conformista é uma sociedade na qual ninguém tem prazer em nada, 11em se interessa muito por alcançar as metas que foram mecanicamente recebidas de outrem em vez de elaboradas por si mesmo. Evidentemente não está claro que essa política de não-compensação anexada a um princípio geral da compensação por gostos adquiridos de maneira menos voluntária possa chegar a essas conseqüências. Mas isso porque nenhuma hipótese sobre quais nívejs de

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utilidade alcançaria essa sociedade, tão diferente da nossa, tem muito valor, o que dificilmente recomenda essa explicação de por que uma sociedade com igualdade de bem-estar, q·ue também é utilitarista, recusaria a compensação. Portanto, a suposta justificativa utilitarista de nossa convicção intuitiva, de que a igualdade não requer que aqueles que cultivam gostos dispendiosos deliberadamente tenham o mesmo bem-estar depüis de fazê-lo, fracassa por dois motivos. Ainda nos falta uma justificativa para tal convicção. Mas suponhamos que alguém agora argumente da seguinte maneira. É verdade que as pessoas não escolhem suas convicções sobre o que tornaria sua vida mais bemsucedida no cômputo geral. Mas decidem se agirão, e até que ponto, com relação a essas convicções. Louis sabe, ou pelo menos deve saber, que se cultivar um gosto dispendioso em uma sociedade dedicada à igualdade de satisfação, por exemplo, e for compensado, isso diminuirá a satisfação disponível para os outros. Se, sabendo disso, ele escolhe a vida mais dispendiosa, então não merece compensação. Ele não é mais membro do grupo daqueles que merecem idêntica satisfação na vida. Louis tem escolha. Ele pode resolver manter os recursos igualitários atuais que eu disse que possui e levar uma vida com a satisfação q·ue agora tem, mas sem os gostos ou aspirações que se propõe a cultivar. Ou manter seus rectirsos atuais e levar uma vida que ele julga mais bem-sucedida no cômputo geral do que sua vida ahlal, porém que contém menos satisfação. Seria injttsto ele ter uma terceira opção, de ser capaz, à custa dos outros, de levar uma vida mais dispendiosa do que a deles, sem sacrificar a própria satisfação, só porque, certamen_te, consideraria essa vida mais bem-sucedida no cômputo geral do que quai.squer das outras duas. O motivo por que Louis não merece compensação não é que a vida mais dispendiosa que viesse a escolher seja obrigatoriamente pior. Ele pode estar certo ao pensar que a satisfação não é o mais importante, e que uma vida mais pobre em satisfação pode ser, do ponto de vista pessoal, uma vida mais

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bem-sucedida no cômputo geral. Dizemos apenas que ele faz jus às duas primeiras opções, mas não à terceira. Eu mesmo acho esse argumento tão forte quanto atraente. Thmbém é um argwnento importante pelo seguinte motivo. A objeção de permitir a Louis a terceira opção descrita é colocada espontaneamente assim. T..ouis deve ser livre (pelo menos dentro dos limites permitidos por Uma forma defensável de paternalismo) para viver a melhor vida possível com seu quinhão justo dos recursos sociais. Mas nã.o deve ser livre para invadir o quinhão justo de outrem, pois isso seria injusto para eles. Porém, é claro que quando se expõe assim a questão, ela não pode sustentar-se simplesmente como um aigumento pelo compromisso na igualdade de bem-estar adaptada ao problema dos gostos dispendiosos, pois a idéia das parcelas justas não pode significar apenas parcelas que ptoporcionam igualdade de bem-estar na concepção escolhida, porq1ie é exatamente a concepção para a qual Louis aPela ao pedir recursos extras. Se as parcelas justas forem decididas independentemente dessa concepção, porém, qualquer compromisso que use a idéia das parcelas justas se toma contraditório. Pode a idéia das parcelas justas ser definida para essa finalidade de maneira que não tome automaticamente justas as parcelas que produzem a igualdade de bem-estar na concepção escolhida, mas, não obstante, use essa concepção de modo que evite contradizê-la? Suponl1amos que a parcela justa de alguém é a que se acredita produzir a igualdade de bem-estar nessa concepção, ou produziria se a pessoa em questão não tivesse, deliberadamente, cultivado um gosto dispendioso. Isso não ajuda, como vimos, se a concepção escolhida for a do êxito total, e se Louis acredita que a vida que levaria se não cultivasse novos gostos seria uma vida de menos êxito total do que outras pessoas acreditam que suas vidas sejam. Mesmo que a concepção escolhida seja uma das concepções distintas, como a da satisfação, definir parcelas justas dessa forma não adianta. O argumento que afirmei achnr forte usa a idéia das parcelas justas não

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só para definir a limitação_na igualdade de bem-estar que recomenda, mas também para justificar tal limitação. Propõe explicar por que, apesar das minhas diversas objeções anteriores, ponderações independentes e não-contraditórias acerca da justiça embasam um compromisso na igualdade de bem-estar. Mas, se a definição de parcelas justas simplesmente presume que o compromisso em questão é justo por algum motivo não especificado, então o apelo às parcelas justas não oferece justificativa que não seja de pronto circular. Se a idéia das parcelas justas tiver de funcionar, deverá apelar para alguma teoria independente da justiça na distribuição, e qualquer teoria independente contradiz a concepção à qual está ligada, conforme disse, porque ocupa todo o espaço que a concepção reclama para si. Eu poderia acrescentar que acho que a mais plausível teoria independente, que eu mesmo tinha em mente quando disse que o argumento contra a terceira opção de Louis era forte, é alguma concepção de igualdade de recursos (embora certamente haja outras disponíveis, inclusive, por exemplo, -o prinápio de que os recursos são distribuídos com justiça quando os mais merecedores recebem mais). Talvez a criatividade produzisse alguma explicação ou interpretação do argumento em questão - que Louis não merece mais recursos só porq11e escolheu uma vida mais dispendiosa - que não empregue a idéia das parcelas justas ou quaisquer idéias semelhantes. No entanto, desconfio que qualquer dessas teorias cairia diante do seguinte exemplo adicional. Imaginemos agora uma sociedade recém-dedicada à igualdade de satisfação, na qual, quando os recursos são redistribuídos para que se chegue à igualdade de satisfação, Jude recebe mu.lto menos do que qualq11er outra pess6a porque seus desejos são muito simples e de baixo custo. Un1 dia, porém (talvez depois de ler Heming1i\'ay), ele conclui que sua vida, com tanta riqueza em satisfação, é uma vida de menos êxito total do que poderia ser, e se propõe a cultivar o gosto por um csporte difícil como as touradas. Suponhamos que, depois disso, ele se sinta frustradíssimo

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pela falta de dinheiro para, por exemplo, ir à Espanha, e pede mais verbas por meio de uma redistribuição, após a qual ele ainda teria menos do que todas as outras pessoas. Temos agora fundamento para dizer que ele não merece o amnento, qua11do sabemos que se for negado ele terá menos verbas e menos satisfaçãq.do que todas as outras pessoas? Duvido que alguém queira dizer isso. Porém, caso aconteça, não podemos dizer que o motivo por que Louis não merece um aumento seja simplesmente que o gosto que ele cultiva é dispendioso. A nova preferência de Jude pode ser tão dispendiosa quanto a de T~ouis. A diferença é que Louis pede que uma parcela mais do que igualitária dos recursos sociais lhe seja posta à disposição, ao o que Jude só pede algo mais próximo a uma parcela igualitária. Precisamos da idéia das parcelas justas (nesse caso, em especial, a idéia de uma parcela justa dé recursos) para expressar a força dessa diferença. Suponhamos que se Jude recebe mais verbas e pode viajar para a Espanha, não terá apenas tanto bem-estar quanto todos os outros, terá mais, em qualquer co.ncepção escolhida, inclusive na do êxito total, embora ainda tenha muito menos dinheiro do que todas as outras pessoas. Será que a igualdade agora requer que a verba adicional lhe seja negada? Se não, então o caso de Jude é um argumento ainda mais forte. Além de restabelecer a igualdade de bem-estar, apesar do gosto dispendioso que cultivou deliberadamente, Jude pode até alcançar, ao escolher tal gosto, mais bem-estar. Em ambos os casos é a idéia de igualdade de recursos que está em operação. Espero que a moral desta longa seção esteja clara. Se uma pessoa começa ansiosa por defender alguma versão ou concepção de igualdade de bem-estar, mas também deseja resistir à conseqüência de que os qu.e cultivam gostos dispendiosos devam ter mais, chegará, no fim das contas, a uma teoria da igualdade bem diferente. Descobrirá qt1e deve pressupor alguma outra teoria gue tome sua concepção de igualdade de bem-estar inútil ou contraproducente. É claro

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que essa é exatamente a conclusão à qual chegamos no estudo de algumas dessas concepções separadamente. Falta analisar, na próxima seção, se existem razões fortes para, não obstante, tentar encontrar um espaço pequeno para a igualdade de bem-estar dentro de uma teoria da igualdade geral e diferente.

IX. Deficiências iti, no início, a atratividade imediata da idéia de que a igualdade genuína é a igualdade de bem-estar. Um aspecto dessa atração imediata pode muito bem ter sobrevivido às diversas dúvidas que levantei, que é a força óbvia da igualdade de bem-estar para explicar por que as pessoas com deficiências físicas ou mentais (ou ·com oulTas necessidades especiais) devem ter recursos extras. Decerto (ainda se pode diZer) isso se dá porque estão capacitadas a alcançar menos do que recai no âmbito geral de "bem-estar" do q·ue outros estão com a mesma parcela de recursos. Talvez nos preocupemos com os deficientes porque são capazes de obter menos satisfação ou êxito relativo ou total, ou talvez alguma combinação desses fatores, ou todos. Mas um esforço na direção da igualdade de bem-estar sob alguma interpretação deve fazer parte das nossas intuições acerca dos deficientes. Se é assim, então pode-se pensar que esse fato demonstra que qualquer teoria final da igualdade deve conceder algum espaço à igualdade de bem-estar, einbora talvez só como complemento ou qualificação de outra teoria da igualdade, pelo menos para captar as cláusulas especiais que insistimos em fazer para os desafortunados desse tipo. No entanto, não está nada claro que se precisa de uma co.ncepção de bem-estar para explicar por qu.e os deficientes devem, às vezes, ter mai:-: recursos materiais do que os saudáveis. No próximo capítulo descreverei uma outra maneira de discorrer sobre o problema da deficiência que não de-

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pende de comparações de bem-estar, mas que talvez tam.bém o explique adequadamente. Não há motivo para supor, antes de analisar essa e outras afirmações, que somente uma teoria da igualdade fundamentada no bem-estar pode oferecer a explicação necessária. De fato (e sobretudo) uma teoria fundamentada no bem-estar pode oferecer apenas uma explicação menos satisfatória do que pode parecer à primeira vista. A argumentação que estamos agora analisando é de que a igualdade de bem-estar merece um lugar em qualquer teoria geral da igualdade porque capta com precisão as nossas intuições sobre como se deve tratar os deficientes em nome da igualdade. Mas isso é verdade? Parece plausível dizer, em qualquer concepção de bem-estar, que as pessoas com deficiências graves têm probabilidade, como classe, de ter menos bem-estar do que as outras. Todavia. isso só é verdadeiro eStatisticamente. Em mu_itos casos, os deficientes têm renda inferior e, portanto, não têm nem recursos materiais igu.ais aos dos outros. E algumas pessoas com deficiências gravíssimas precisam de renda extra só para sobreviver. No entanto, muita gente com deficiências graves tem alto nível de bem-estar em qualquer conceito - mais alto do que o de muitas outras pessoas saudáveis. Isso é verdade, por exemplo, no caso de Tiny Tim e Scrooge. Tlffi é mais feliz que Scrooge, aprova mais o mundo ah1a1, é mais bem-sucedido aos seus próprios olhos etc. A intuição de que falei, porém, a de que os deficientes devem ter recursos extras, não se limita àqueles entre os deficientes que de fato têm bem-estar abaixo da média em alguma de suas concepções. Se Tim tivesse tanto dinheiro quanto Scrooge (quando talvez o bem-estar de Tim fosse ainda muito maior do que o de Scrooge), mas não tivesse dinheiro suficiente para pagar uma fisioterapia, muitos de nós acharíamos que ele teria direito a recursos extras para tal finalidade. Certamente, talvez pensemos assim só porque nossas intuições foram instruídas pelo fato estatístico. Nessa hipótese, achamos que o grupo dos deficientes devia receber mais porque o bem-estar desse grupo é inferior, e 1

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aplicamos, então, a il1tuição geral a casos particulares sem averiguar para saber se a regra geral se sustenta. Mas não acho que essa seja uma teoria convincente para o motivo de pensarmos como pensamos. Se, quando sabemos que um deficiente não é especialmente pobre em bem-estai~ e ainda acreditamos que ele fez juz a recursos extras devido à defi.ciência, então essa convicção está mal explicada ao supor que perdemos o poder de discriminação. Assim, nossas convicções acerca dos deficientes não es-, tão, de fato, justificadas com tanta precisão ou força pela idéia de igualçl.ade de bem-estar a ponto de sugerir que qualquer teoria geral deva conter alguma porção desse ideal. A explicação dessas convicções com base no bem-estar inferior também tem defeitos adicionais. itamos que o bem-estar (em qlJalquer interpretação) de tuna pessoa totalmente paralisada, porém consciente, seja muitíSsimo inferior do que o de todas as outras pessoas da comunidade, de tal modo que pôr cada vez mais dinheiro à disposição dessa pessoa aumentaria constantemente seu bem-estar, mas somente em parcelas mínimas, e que se ela tivesse à disposição todos os recursos além dos necessários só para manter vivas as 011tras pessoas, air1da teria muitíssimo menos bem·~estar do que elas. A igualdade de bem-estar recomendaria tal transferência radical, isto é, até que fosse alcançada a últitna situação. Mas não está claro para mim (011 para outros também, creio) que a igualdade, considerada isoladamente, e sem contemplar os tipos de considerações que às vezes possam prevalecer sobre ela, requeira mes1no ou até recomende essa transferência radical em tais circunstâncias. Não afirmo (como essa última observação reconhece) que qualquer comunidade que adote a igualdade de bemestar em. prinápio estaria, então, comprometida com a transferência radical. AJgum outro princípio que a comu.nidade também aceitasse (por exemplo, o prinápio da utilidade) talvez recomendaria um co1npromisso com a igualdade. Mas onde traçar o limite? Talvez a tarefa. de traçar tal limite cai-

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ba à política prática da intuição. Mas, ei1tão, a vítima de paralisia total pode não receber absolutamente nada. O prin-

cípio de igualdade não ofereceria uma razão para a comunidade aceitar uma perda inicial de utilidade ao lhe fazer algum bem que também não se aplicasse à decisão de lhe fazer mais bem, pelo menos nas circunstâncias que descrevo, nas quais sua utilidade marginal pelas transferências adicionais não cai muito. O princípio não ofereceria quase nenhuma orientação à comunidade aqui, além de um pe-

dido de ajuda igualmente estridente para toda a escala de transferências possíveis para essa vítima, um pedido muito pouco prático para que seja honrado por completo, e de-

sestruturado demais para u1n compromisso baseado em princípios. Agora itamos fatos diferentes. Existe um equipamento caro q·ue capacitaria um paraplégico a uma vida tnuito mais normal, e a comunidade pode comprar esse equipamento com grande, porém não avassalador, sacrifício de suas outras necessidades e projetos. A comunidade decide por meio de votação criar um imposto especial para oferecerlhe a máquina. Mas ele é um excelente violinista e responde que preferia ter um Stradivarius excelente, que poderia comprar com a mesma verba. A comunidade pode recusarse a aceitar essa escolha?6 Em qualquer das concepções de bem-estar que escolhêssemos, o bem-estar do paraplégico poderia, de fato, aumentar mais co1n a posse do violino do que tendo a máquina. M<..'Smo que ele tivesse conhecimento de todos os fatos, preferiria o violino, que lhe traria muito mais satisfação, tomaria sua vida mais bem-sucedida, tanto em termos relativos quanto no cômputo geral, a seus próprios olhos e objetivamente. O princípio independente de utilidade recomendaria a mesma escolha, é claro. Mas esses fatos seriam constrangedores para um esquema que não estivesse geralmente comprometido com a 6. Ver a discussão que T. M. Scanlon faz desoe problema em ''Pi:eference and Urgency", Journal of Philosophy 72, nº 19 (6 de novembro d(' 1975): 659-661.

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igualdade de bem-estar e só permitisse um lugar limitado a esse ideal para lidar com o problema especial das deficiências. Pensemos em outra pessoa, não deficiente, que tem um baixo nível de bem-estar em todas as mesmas concepções. Ela tem pouca satisfação na vida, considera-a um fracasso e assim por diante, só porque, embora tenha a mesma parcela de riqueza que todos os outros não-deficientes, não possui o bastante para comprar o Stradívarius que deseja acima de tudo. Se o paraplégico tiver autorização para usar a verba extra na compra do violino, essa outra pessoa poderia muito bem reclamar. O paraplégico trata a transferência, não como uma oportunidade de acabar co1n sua deficiência ou atenuá-la, mas apenas como uma oportunidade de aumentar seu bem-estar em outros aspectos, e o outro amante dos violinos parece ter, em seu baixo estado de bem-estar, tanto direito ao violino qt1anto o paraplégico. Mas, se a Comunidade negar ao deficiente esse uso da verba extra e exigir que ele compre a máquina, sua postura parece perversa. A comunidade lhe oferece a verba extra com base no argumento de que au1nentará seu bem-estar, que é inferior à média, contudo lhe nega o direito de aumentar, com essa verba, seu bem-estar, o máximo possível.

X. Welferismo Se eu ·esti·ver certo nos diversos argumentos que fiz, a igualdade de bem-estar não é um ideal tão coerente ou atraente como geralmente se crê. Temos motivo, portanto, para analisar com atenção o ideal alternativo da igualdade de recursos. Mas convém parar agora para analisar rapidamente se os meus argumentos contra a igualdade de bemestar poderiam ser eficazes contra outras formas de welferismo e, em especial, até que ponto podem ser eficazes contra o utilitarismo. ('Estou usando o tratamento de Amartya Sen para o welferismo como uma teoria geral que define a jus-

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tiça das distribuições exclusivamente pela estipulação de alguma função de bem-estar individual.) 7 As diversas versões de igualdade de bem-estar que temos estudado são variantes do welferismo. O utilitarismo,

que pede uma função maximizadora para- alguma concepção de bem-estar, é uma outra variante, ou melhor, um outro grupo. A princípio, estão disponíveis dois tipos de justificativa para qualquer forma de welferismo. Pode-se defender uma teoria desse tipo com a fundamentação teleológica de que a função estipulada da concepção de bem-estar é boa em si e deve ser produzida para sua própria vantagem. Ou pode ser defendida como uma concepção específica de igualdade, como uma teoria específica a respeito de quando as pessoas devem ser tratadas como iguais. A distinção entre

os dois tipos de fundamentação está razoavelmente clara, creio, no caso do utilitarismo. I-bde-se apoiar e:;sa teoria de maneira diretamente t_eleológica: a dor não é só núm em si, mas o prazer (ou af.guma outra concepção de bem-estar positivo) é bom em si, e quanto mais prazer houver, melhor. Ou pode ser sustentada como uma concepção de igualdade. É, então, compreendida como a teoria de que as pessoas são tratadas como iguais quando, e somente quando, seus prazeres e sofrimentos (ou componentes de algltma outra concepção de bem-estar) são contem.plados a.penas quantitativamente, cada indivíduo, nesse sentido, contando como um e somente um É claro que essa versão igualitária do utilitarismo não pode afirmar, da mesma forma que a versão teleológica que oferece uma teoria política ou moral completa. O utilitarista igualitário precisaria explicar por que não é bom almejar o máximo sofrimento médio como a máxima felicidade média, por exemplo, ou por que há algo a lamentar em uma catástrofe natural que mate milhares, embora melhore a situação de poucos. :Mas poderia encontrar essa 7. A. K. Sen, ''Utilitarianism and Welfarisro",Joumal of Phi/osaphy 76, n? 9 (setembro do 1979): 463"489.

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explicação ou em um princípio político adicional, que afume que quem aponta para o sofrimento ou o fracasso de outrem não demonstra a consideração a que todos os seres humanos têm direito, ou em uma moralidade distinta de resultados, que afirme ser a morte ou a dor, ou algum outro tipo de sofrimento, ruim em sL mas que não empregue a mesma concepção nem a mesma métrica do ben1-estar empregada pelo utilitarismo igualitário. Os argumentos que analisamos contra a igualdade de bem-estar pareceriam, pelo menos à primeira vista, igualmente eficazes contra o utilitarismo quando entendido des..c;a segunda maneira, isto é, como uma concepção de igualdade. Deveriamos proceder, outra vez, conforme as diversas interpretações do utilitarismo, tomando as diversas concepções de 'bem-estar como os maxllnandos para urna detenninada comunidade. E, novamente, parecerá implausível só contemplar ganh0s e perdas em satisfação, por exemplo, ou no êxito relativo, como medida para saber quando se deve tratar as pessoas como iguais, porque elas avaliam diferentemente o bem-estar nessas concepções particulares. Nem será útil tomar como medida ganhos e perdas no êxito total, interpretado subjetiva ou objetivamente, porque, como vimos, essas concepções de bem-estar dependem de já se ter aceito u.m teste diferente, independe11te, de quando se deve tratar as pessoas como iguais. Esses diversos argumentos são claramente irrelevan tes, porém, quando se apóia o utilitarismo da primeira maneira, isto é, como a teoria teleológica de ql1e o be1n-estar, em alguma concepção, é inerentemente bom em si. Contra esse argwne11to, minha afirmação, de que não se pode tratnr igualmente as pessoas ton1ando-as iguais em alguma dimensão à qttal dêen1 valores desiguais, é irrelevante, porque o que está em questão é apenas se o bem-estar nessa concepção é bom em si. Devo acrescentar que acho que a fundamentação teleológica do utilitarismo, na qual n1eus argumentos não tocam, é muito n1enos atraente do que a fundamentação igualitária, na qual eles tocam. É a fundamenta-

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ção igualitária, creio, e não a fundamentação teleológica, que explica qualquer atração que os argumentos utilitaristas ainda tenham para os políticos e os advogados modernos. A diferença entre esses dois tipos de fundamentação para teorias welferistas pode parecer menos plausível quando aplicadEt a formas de welferismo que não sejam o utilita-

rismo. Mas creio que ela está disponível pelo menos em princípio, e podemos construir uma defesa teleológica para pelo menos algumas concepções de igualdade de bem-estar. Alguém poderia dizer que é simplesmente bom que as

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pessoas tenham a mesma quantidade de satisfação, por exemplo, mesmo sem resolver se concordamos Olt não que a satisfação seja fundamentalmente importante e1n nossas vidas, ou mesmo, talvez, sem resolver se devemos concordar que ela é importante dessa maneira. Os argumentos que ofereci não atingerri a igualdade de bem-estar como teoria para tratar as pessoas como iguais. A igualdade de bem-estar, assim concebida, é mais fraca do que poderia1nos ter pensado inicialmente. Será que a igualdade de recursos é mais forte?

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Capítulo 2

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Igualdade de recursos

1. O leilão

No Capítulo 1 tratamos das pretensões de igualdade de bem-estar como\1ma interpretação do tratamento igualitário das pessoas. Agora consideraremos as pretensões adversárias da igualdade de recursos. Mas simplesmente nos ocuparemos, em grande parte, com a definição de 1Jma concepção adequada da igualdade de recursos, e não com sua defesa, a não ser quando tal definição oferecer uma defesa. itirei, para esse fim, que a igualdade de recursos é u·ma questão de igualdade de quaisq·uer recursos que os indivíduos possuam privadru.nente. A igualdade de poder político, inclusive a igualdade de poder sobre recursos públicos ou privados, é, portanto, tratada como outra questão, a ser discutida em uma outra ocasiào. Essa diferença é, evidentemente, arbit~ária por muitos motivos. Do ponto de vista de qualquer teoria económica avançada, o comando de um indivíduo sobre recursos públicos faz parte de seus recursos privados. Quem tem ppder de influência sobre decisões públicas acerca da qualidade do ar que respira, por exemplo, é mais rico do que quem não tem. Assim, uma teoria geral da igualdade deve procurar ·um meio de integrar recursos privados e poder político. Além disso, a propriedade privada não é uma relação singular, única, entre uma pessoa e um recurso material, mas

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uma relação multifacetada, da qual muitos aspectos precisam ser definidos politicamente. Portanto, a questão de qual divisão é uma divisão igual deve, até certo ponto, conter a questão de quais poderes se concede a alguém a quen1 se atribui um recurso, e isso, por sua vez, deve conter a questão adicional de seu direito de vetar quaisquer modificações nesses poderes que a política possa ameaçar. Aqui, porém, itirei quase se:mpre que as dimensões gerais da propriedade são suficientemente bem entendidas, qtte a questão de qual modelo de propriedade privada constitui un1a divisão igualitária dos recursos privados pode ser discutida independentemente dessas complicações. 'Defendo que ttma divisão igualitária de recursos pressupõe alguma forma de n1ercado económico, pri ncipalmente como uma ferramenta analítica, mas também, até certo ponto, como uma instituição política real. Essa afirmação pode parecer paradoxal o bastante para justificar os seguintes corr,entários preliminares. A idéia de um mercado para bens materiais tem figurado na teoria política e cconômica, desde o século XVIII, de duas maneiras bem diferentes. Tem sido elogiada, primeiro, como um mecanismo para definir e realizar certas metas de toda a comunidade, descritas de diversas maneiras co1no prosperidade, eficiência e utilidade geral Tem sido louvada, em segundo lugar, como uma condição necessária da liberdade individual, a condição sob a quaJ as pessoas livres podera exercer a iniciativa e a escolha individuais de modo que seu destino esteja em suas próprias mãos. Isto é, defende-se o mercado tanto por argumentos de prudência política, que enfatizan1 os ganhos gerais que esse mecanismo produz para toda a comunidade, e por argumentos de princípio, que apelan1, pelo contrário, para um suposto direito à liberdade. Contudo o mercado econô1nico, defendido em uma ou em ambas as maneiras, veio a ser considerado, durante o mesmo período, como o inimigo da igualdade, em grande parte porque as formas dos sistemas de mercado econôrnico criadas e implantadas nos países i11dustriais permitiram e,

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de fato, incentivaram uma ampla desigualdade quanto à propriedade. Tanto os filósofos políticos quanto os cidadãos comuns definiram a igualdade, portanto, como adversária ou vítima dos valores da eficiência e da liberdade supostamente oferecidos pelo mercado, de modo que a política sensata e moderada consistiria em atingir algum equilfbrio ou inter-

câmbio entre a igualdade e esses outros valores, seja impondo restrições ao mercadp con10 ambiente econômico, ou substituindo-o, em parte ou totaln1e11te, por outro sistema econômico. Tentarei afirmar, pelo contrário, que a idéia de mercado económico como mecanismo de atribuição de preços a uma grande variedade de bens e serviços deve estar no núcleo de qualquer elaboração teórica atraente da igualdade de recursos. Pode-se· demonstrar de imediato a questão principal construindo-se um exercício bem simples de igualdade de recursos, deliberadamente artificial para abstraí-lo dos proble1nas que deveremos enfrentar depois. Suponhamos que um grupo de náufragos vai parar em uma ilha deserta que tem recursos em abundância e é desabitada, e que o grupo talvez só venha a ser resgatado depois de muitos anos. Esses imigrantes aceitam o princípio de que ninguém tem direito prévio a nenhum dos recursos, mas que devem ser divididos igualmente entre todos. (Ainda não percebe~ raro, digamos, que talvez fosse sensato m.anter alguns recursos como propriedade comum de qualquer Estado que venham a criar.) Também aceitam (pelo menos provisoriamente) o seguinte teste da divisão igualitária de recursos, qt1e cha1narei de teste de cobiça. Nenhuma divisão de recursos será uma divisão igualitária se, depois de feita adivisão, qualquer imigrante preferir o quinhão de outrem a seu próprio quinhão1 .

1. D. Foley, "Resourçe Allocation and the Publiç Sector", Yale Econoniic 7 (primavera de 1967); Fí. Varian, "Equil)'.- Energy a11d Efficiency", Journa/ of Eco11omic Theonj, seten1bro de 1974, pp. 63~91. Es~ays

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Agora itamos que o grupo eleja um imigrante para

fazer a divisão segundo esse princípio. É improvável que ele tenha êxito com a mera divisão física dos recursos da ilha em n porções idênticas de recursos. O número de cada tipo de rec-ursos indivisíveis, como as vacas leiteiras, pode não ser um múltiplo exato de n, e mesmo no caso dos re-

cursos divisíveis, como a terra arável, alguns terrenos seriam melhores que outros, e alguns seriam melhores para uma utilização do que para outra. No entanto, imaginemos que depois de muita tentativa, erro e zelo o responsável pela divisão conseguisse criar n porções de recursos, cada uma

das quais diferente das outras, conseguisse atribuir uma a cada imigrante e ninguém cobiçasse a porção de ninguém. Ainda assim, a distribuição poderia deixar de satisfazer aos imigrantes como distribuição igualitária por "Lrrn motivo que o teste de cobiça não detecta. Suponhamos (para dramatizar a questão) que o responsável pela divisão chegasse ao resultado transformando todos os recursos disponíveis em um grande estoque de ovos de tarambola e clarete préfiloxera (por magia ou troca com un1a ilha vizinha que só entra na história por esse motivo) e dividisse essa fartura em porções iguais de cestas e garrafas. Muitos dos imigrantes - digamos, todos, menos um -ficam encantados. Mas, se um deles detesta ovos de tarambola e clarete pré-filoxera, achará que não foi tratado com igualdade na divisão de recursos. O teste de cobiça funcionou - ele 11ão prefere a porção de ningué1n, n1as prefere o que teria recebido se os recursos inicialmente disponíveis tivessem sido tratados de maneira mais justa. Seria possível produzir uma injustiça semelhante, embora menos dramática, mesmo sem a magia ou as trocas excêntricas, pois a combinação dos recursos que compõem cada porção favorecerá algumas preferências em detrimento de outras, comparada às diversas combinações que se poderia compor. Isto é, seriam criados conjuntos diferentes de n porções por meio de tentativa e erro, cada um dos quais aria no teste de cobiça, de modo que para cada

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conjunto que o responsável pela divisão escolher, alguém preferirá que ele tivesse escolhido outro conjunto, embora essa pessoa não preferisse outra porção daquele conjunto. Algumas trocas depois da distribuição inicial poderiam, é claro, melhorar a situação dessa pessoa. Mas é improvável que o deixem na situação em que estaria com o conjunto de porções que teria preferido, pois alguns outros começarão com a porção que preferem à porção que teriam recebido naquele conjunto, e assim não terão motivo para fazer trocas. Assi.m, o responsável pela divisão precisa de um mecanismo que ataque dois focos distintos de arbitrariedade e possível injustiça. O teste de cobiça não se satisfaz com uma simples divisão mecânica de recursos. Se fosse possível descobrir uma divisão mais complexa que asse no teste, talvez fosse possível descobrir muitas, e portanto a escolha entre elas seria arbitrária. A todos os leitores já deve ter ocorrido a mesma solução. O responsável pela divisão precisa de algum tipo de leilão ou de outro método de mercado para resolver esses problemas. Descreverei um método razoavelmente simples que pareceria aceitável se funcionasse, embora tão demorado que se toma quase impossível. Suponhamos que o responsável pela divisão entregue a cada imigrante um número grande e igual de conchas de mariScos, que são suficientemente numerosas e sem valor intrínseco para ninguém, para usarem como fichas em um .mercado do seguinte tipo. Cada objeto da ilha (sem incluir os próprios imigrantes) é enumerado como lote a ser vendido, a não ser que alguém avise ao leiloeiro (o responsável pela divisão) de seu desefo de fazer um lance por alguma parte de um objeto, por exemplo, uma parte de determinado terreno e, nesse caso, tal parte se toma um lote independente. O leiloeiro propõe, então, um conjunto de preços para cada lote e descobre se tal conjunto de preços se adapta a todos os mercados, isto é, se h.averá apenas um comprador por aquele preço, e todos os lotes serão vendidos. Caso contrário, o leiloeiro ajusta os preços até alcançar

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um conjunto que se adapte a todos os mercados2. Mas o processo não pára porque os imigrantes continuam livres para alterar seus lances, mesmo quando já se tiver alcançado um preço inicial aceitável, ou para propor lotes diferentes. Contudo supondo que, com o tempo, até eRse processo lento chegue ao fim, todos se declarem satisfeitos e, conseqüentemente, os bens sejam distribuídos3. Agora a distribuição ou no teste de cobiça. Ninguém.cobiçará as compras de ninguém porque, hipotetica.o n1ente, poderia ter coinprado tal porção com suas conchas, em vez da porçã.o que comprou. E a seleção de conjuntos de porções também não é arbitrária. Muita gente poderá imaginar um conjunto de porções diferentes que e no teste de não-cobiça que se poderia estabelecer, mas o verdadeiro conjunto de porções tem o mérito de fazer m que cada pessoa desempenhe, por intermédio de suas compras com um estoq11e inicial igualitário de fichas, um papel igualitário q11e determina o conjunto de porções realmente escolhido. Ninguém está na situação da pessoa do nosso pri ·· meiro exemplo, que acabou ficando com algo que detestava. É claro que a sorte tem um papel decisivo na satisfação de cada um com o resultado, em comparação com outras possibilidades que se pudesse ünagi11ar. Se os ovos de taran1-

2. Minha intenção é descrever um !ei!Jo ;valrasiano no qual todos os recursos produtivns são vendidos. Não preswno que os imigrantes façanl contratos emergenciais de reivindicaçáo antecipada, mas só que os mercados pern1anecerão abertos e os bens liquidudos à rnaneira walrasiana qnando terrni·· nar o le\\ão dos recursos produtivos. Faço todas as suposições sobre produção ~ preferêndas feitas em G. Debreu, Theory o/Value (New IIaven: Yale Universit:\r Piess, 1959). De fato, o leili:i.o que aqui descrevo se tornará mais complexo devido ao plano de impostos discl1tido muis adiante. 3. O processo não garante que o leilão chegar,í ao fim dessa maneira, pois pode hm'er vátios eq<úffbrios. Estou supondo que as pessoas entenderão qut= não podem akançar melhores resultados por meio de outras sessões de leilão e irão, por motivos práticos, estabelecer-se em um equilíbrio. Se eu estiver errado, então esse fato proporciona un1 dos aspedos da deficiência que descrevo na próxin1a seção.

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bola e o clarete envelhecido fossem os únicos recursos a leiloar, a pessoa q·ue os detestava ficaria em situação tão ruim quanto no exemplo anterior. Seria azar dele os imigrantes não terem encalhado em uma ilha com mais co'lsas de que ele gostasse (mas sorte dele, é claro, por não ter ainda menos). Mas não poderia reclamar que a divisão dos recursos que encontraram fosse desigual. Ele pode achar-se aforhtnado ou desventurado também em outros aspectos. Seria questão de sorte, por exemplo, o número de pessoas que tivessem as mesmas preferências. Se suas preferências e aspirações fossem relativamente populares, essa circunstância poderia funcionar a seu favor no leilão, caso hou:vesse economias de escala na produção do que ele quisesse, ou contra ele, se o que quisesse fosse raro. Se os imigrantes tivessem decidido estabelecer wn regime de igualdade de beffi-estar, em vez da igualdade de recursos, então esses diversos exemplos de sorte e azar seriam compartilhados com os outros, pois a distribuição não se basearia em um leilão do tipo que descrevi, no qual a sorte tem esse papel, mas em uma estratégia de eliminação das diferenças em qualquer concepção de bem-estar escolhida. A igualdade de recursos, porém, não oferece razão semelhante para corrigir as contingências que decide1n se as preferências de alguém serão caras ou frustrantes 4• Na igua1dade de bem-estar, as pessoas deven1 decidir qt1e tipo de vida qt1erem, independentemente das informações pertinentes para decidir o qt1anto suas escolhas reduzirão ou aumentarão a capacidade de outros tererrl o que querem. Esse tipo de informação só se toma importante em 11m segundo nível, político, no qual os es coletan1 todas as escolhas feitas no primeiro nível para ver qual distribuição dará a cada 11n1a dessas escolhas êxito igual em

4. Ver adiante, contudo, a discussão sobre deficiências que re<:onhece que certos lipos de preferências, que as pessoas desejariam não ter, podem predsar da compensação por deficiêndas.

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alguma concepção de bem-estar interpretada como a dimensão correta do êxito. Na igualdade de recursos, porém,

as pessoas decidem que tipo de vida procurar munidas de um conjunto de informações sobre o custo real que suas es-

colhas impõem a outras pessoas e, conseqüentemente, ao estoque total de recursos que pode ser eqilitativamente utilizado por elas. As llúormações que sob a igualdade de bemestar am a un1 nível político independente são, sob a igualc!ade de recursos, levadas ao nível inicial da escolha individual. Os elementos da sorte no leilão acima descrito são,

de fato, informações essenciais, informações adquiridas e usadas nesse processo de escolha.

Assim, os fatos contingentes da matéria-prima e da distribuição de gostos não servem de fundamento para alguém refutar a distribuição, considerando-a desigual. São, antes, um pano de fundo para determinar o que é~ nessas circunstâncias, a it,111aldade de recursos. Na igualdade de recursos, nenhum teste para calcular o que a igualdade exige pode ser abstraído desses fatos e usado para averiguálos. O leilão como mercado não é simplesmente um dispositivo ad hoc para resolver os problemas técnicos da igualdade de recursos, que surge1n em exercícios bem si1nples como o caso da nossa ilha deserta. É uma forma institucionalizada do processo de descoberta e adaptação que está no núcleo da ética desse ideal. A igualdade de recursos supõe que os recursos dedicados à vida de cada pessoa devem ser iguais. Esse objetivo precisa de uma métrica. O leilão propõe o que o teste de cobiça de fato assun1e, isto é, que a verdadeira medida dos recursos sociais dedicados à vida de u1.na pessoa seja determinada indagando sobre a real importância desse recurso para os outros. Repito que o custo, avaliado dessa forma, aparece na noção que cada pessoa tem do que é seu com justiça, e no juízo que cada llm faz da vida que deve levar, dado aquele mesmo comando da justiça. Qualquer pessoa que insistir que a igualdade é violada por algum perfil particular de gostos iniciais deve,

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portanto, rejeitar a igualdade de recursos e recair na igualdade de bem-estar. É claro que é supremo nesse argumento, e nessa conexão entre o mercado e a igualdade de recursos, que as pessoas entrem no mercado em igualdade de condições. O leilão da ilha deserta não teria evitado a cobiça, e não teria atrativo como solução do problema da divisão igualitária dos recursos, se os imigrantes tivessem lutado na.ilha com quantias diferentes de dinheiro no bolso, os quais tinham a liberdade de usar no leilão, ou se alguém tivesse roubado conchas de outras pessoas. Não devemos perder de vista esse fato, tanto no argumento a seguir quanto em qualquer reflexão sobre a aplicação dele aos sistemas econômicos contemporâneos. Mas também não devemos perder de vista, em virtude de nossq desânimo devido às desigualdades desses sistemas, a importante ligação teórica entre o mercado e o conceito de igualdade de recursos. Existem, evidentemente, outros tipos de objeções bem distintos ao uso de um leilão, mesmo que seja um leilão igualitário do tipo que descrevi. Pode-se dizer, por exemplo, que a jt1stiça do leilão supõe que as preferências levadas ao leilão ou formadas durante ele são autênticas - as verdadeiras preferências do agente, e não as preferências a ele impostas pelo próprio sistema econômico. Talvez qualquer tipo de leilão, no qual uma pessoa faz lances contra outra, imponha o pressuposto ilegítimo de que o que tem valor na vida é a propriedade individual sobre algo, e não as empreitadas mais cooperativas da comunidade ou de algum grupo dentro dela. Contudo, na medida em que essa objeção (em parte, misteriosa) tem pertinência aqui, ela é ·urrta objeção contra a idéia da propriedade privada eih um domínio abrangente de recursos, questão que é mais bem compreendida sob o título de igualdade política, e não uma objeção à afirmação de que algum tipo de mercado deve figurar em qualquer teoria satisfatória sobre o que é a igualdade na propriedade privada.

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II. O projeto

Já que recorrer a um leilão igualitário parece promissor como técnica para se chegar a uma interpretação atraente de igualdade de recursos em um contexto simples, como o da ilha deserta, surge a questão: essa técnica também será útil na elaboração de uma teoria mais geral desse ideal? Devemos .rerguntar se é possível elaborar esse mecanismo a fim de criar um esquema para implantar ou testar a igualdade de recursos em uma corr1unidade que tenha uma economia dinâmica, com trabalho, investimento e comércio. Que estrutura deve um leilão assumir em tal economia - quais ajustes ou complementos seriam feitos na produção e no comércio com tal leilão - para que os resultados continuem a satisfazer nossa exigência inicial de que esteja disponível para cada cldadão uma parcela igual dos recursos? Nosso interesse nessa questão é triplo. Em primeiro lt1gar, o projeto é um teste importante da coerência e da integridade da idéia de igualdade de recursos. Suponhamos que n.enhum leilão ou um modelo de comércio pós-leilão pudesse ser descrito, cujos resultados fossem aceitáveis como igualitários em qualquer sociedade bem mais complexa ou menos artificíal que uma simples economia de consumo; ou que nenhum leilão pudesse produzir uma igualdade livre das restrições que violassem prinápios independentes de jt1stiça. Isso te11deria pelo menos a sugerir que não existe um ideal coerente de igualdade de recursos, ou que o ideal não é politicamente atraente. Poderíamos descobrir, pelo contrário, lacunas ou defeitos menos abrangentes na idéia. Imagirtemos, por exen1plo, que o projeto de leilão que criamos não determine uni'vocamente trma específica distribuição, mesmo havendo um conjunto estipulado de recursos iniciais e t1ma população estipulada con1 interesses e aspirações fixos, mas seja, pelo contrário, capaz de produzir resultados significativamente diferentes, dependendo da ordem das decisões, t1e escolhas arbitrárias na composição da lista inicial de opções, ou i. '

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outras contingências. Poderíamos concluir que o ideal da igualdade de recursos abrange uma série de distribuições cada uma das quais satisfazendo o ideal-, e é parcialmente indeterminado. Isso demonstraria limitações no poder do ideal de discriminar entre certas distribuições, mas nem por isso demo11Straria que ele é incoerente ou praticamente impotente. Assim, vale te11tar desenvolver a idéia de um leilão igualitário como teste da robustez e do poder teóricos do ideal político. Em segundo lugar, uma descrição completamente de·· senvolvida de um leilão igualitário, adequada para uma sociedade mais complexa, poderia proporcionar um padrão para julgar instituições e distribuições no mundo real. É claro que nenhuma sociedade orgânica complexa teria, em sua história, nada remotamente comparável a um leilão igualitário. Mas podemos perguntar, não obstante, com relação a qualquer distribuição, se ela se enq11adra na classe de distribuições que tal leilão poderia ter produzido com uma descrição defensável de recursos iniciais, ou, caso contrário, até que ponto difere da distribuição mais próxima dentro dessa classe. O mecanismo do leilão poderia proporcion~ em outras palavras, 11m padrão para se julgar até que ponto uma distribuição real, qualquer que tenha sido o modo de se chegar a ela, aproxima-se da igualdade de: recursos em dado momento. Em terceiro lugar, tal mecanismo poderia ser útil no projeto das instituições políticas reais. Em certas (talvez bem limitadas) circunstâ11cias, quando se satisfazem pelo menos aproximadamente as condições de um leilão igualitário, então um leilão real poderia ser a melhor maneira de alcançar ou preservar a igualdade de recursos no mundo real. Isso será verdade, em especial, quando os resultados de tal leilão forem previamente indeterminados como acabo de descrever, de inodo que qualquer resultado que o leilão produza respeite a igualdade de recursos, embora não se saiba, a priori, a qual resultado se chegará. Nesse caso, pode ser mais justo fazer urn leilão real do que esco-

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lher previamente, por intermédio de qualquer outro meio político, um dos resultados que o leilão poderia produzir. Mesmo cm tal caso nem sempre será possível ou desejável realizar um leilão real no projeto que nossas investigações teóricas recomendam . .Mas pode ser possível projetar o substituto de um leilão - uma instituição económica ou política que tenha um número suficiente das caracteristicé!-s de um leilão igualitário teórico cujas argumentações, ao recomendar .um leilão real, também recomendassem o subs-

tituto. Os mercados ·econômicos pode1n ser interpretados, mesrno na sua situação atual, como formas de leilões. (fam-

bém o podem muitas formas do processo político democrático.) Depois de criarmos um 1nodelo satisfatório de leílão real (até o ponto em que nos for possível), podemos usar tal modelo para testar essas instituições, e reformá-las para aproximá-las mais do modelo. Não obstante, nosso projeto é, neste debate, completa1nente teórico. Nosso interesse principal está na elaboração de um ideal, e de um dispositivo qtte expresse esse ideal e examine sua coerência, integridade e atratividade. Portanto, ignoremos as dificuldades práticas, co.mo os problemas da coleta de informações, que não inviabilizenl essas metas teóricas, e formular assunções contrafactuais simplificadoras q·ue não as subvertam. Mas devemos tentar perceber quais simplificações estamos fazendo, pois elas serão importantes, em especial com relação à terceira e mais prática aplicação de nossos projetos, em qualquer estágio posterior no qual analisemos concessões de nosso ideal ao mundo real. III. Sorte e seguro

Se o leilão tiver êxito conforme descrevi, en.tão a igualdade de recursos se mantém, por enquanto, entre os imigrantes. Mas talvez só por enquanto, pois, se ficarem à vontade, após encerrado o leilão, para produzir e fazer comér-

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cio como quiserem, em pouco tempo o teste de cobiça não terá mais êxito. Alguns podem ser mais talentosos que outros na produção daquilo que os demais desejam e vão barganhar para obter. Alguns podem gostar de trabalhar, ao o que outros podem não gostar, ou preferir fazê-lo em atividades menos lucrativas. Alguns permanecerão saudáveis, ao o que outros adoecerão, ou as fazendas de outros serão atingidas por raios, mas não as deles. Por quaisquer desses e dezenas de outros motivos, algumas pessoas preferirão as parcelas de outras em, digamos, cinco anos, às suas próprias. Devemos perguntar se (ou, pelo menos, até que ponto) tais fatos são compatíveis com a igualdade de recursos, e começarei pela análise do caráter e do impacto da sorte sobre as fortunas pós-leilão dos imigrantes. Vou diferenciar, pelo menos por ora, dois tipos de sorte. A sorte por opção diz respeito a resultados de apostas deliberadas e calcula das - isto é, a ganhos e perdas de alguém que aceita um risco isolado que devia ter previsto e poderia ter recusado. A sorte bruta diz respeito ao resultado de riscos que não são apostas deliberadas. Se eu comprar uma ação na bolsa e ela subir, então minha sorte por opção vai bem. Se eu for atingido por um meteorito cujo curso não fora previsto, meu azar é bruto (embora pudesse ter saído do local imediatamente antes da queda, se tivesse alguma razão para saber onde ele cairia). Obviamente, a difere11ça entre essas duas formas de sorte pode ser representada como uma questão de grau, e podemos não ter certeza quanto a como descrever determinado revés. Se alguém teve câncer no decorrer de uma vida normal e não houve nenhuma decisão em especial qt1e indicasse uma aposta no risco da doença, podemos dizer que a pessoa sofreu de má sorte bruta. Mas, se a pessoa fumava muito, então talvez seja preferível dizer que fez uma aposta e perdeu. O seguro, contanto que disponível, é um elo entre a sorte bruta e a por opção, pois a decisão de comprar ou rejeitar o seguro contra catástrofes é uma aposta calculada. É claro

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que o seguro não elimina a diferença. Quem compra seguro médico e é atingido por um meteorito inesperado continua sofrendo de azar bruto, pois está em situaç.ão pior do que se tivesse comprado o seguro e não precisasse dele. Mas essa pessoa tem mais so1te por opção do que se não tivesse comprado o seguro, porque sua situação é melhor por não ter feito a aposta de recusar o seguro. 'É compatível com a igualdade de recursos que as pessoas de\ram ter renda ou riqueza diferente devido a divergências na sorte por opção? Suponhamos que alguns dos ilrtigrantes façam plantios valiosos, mas arriscados, ao o que outros sejam mais cautelosos e que alguns dos primeiros comprem seguro contra o mau tempo e outros, não. A habilidade cumpre um papel na decisão de qual desses diversos programas terá êxito, é claro, e n1ais adiante ru1alisaremos os problemas que isso gera. Mas a sort.2 por opção também terá seu papel. Ela ameaça ou invade a igualdade de recursos? Vejamos, primeiro, as diferenças em riqueza entre os cautelosos e os que apostam e ganham. Algumas pessoas gostam de riscos, ao o que outras os detestam, mas essa diferença de personalidade está compree11dida dentro de uma diferença nmis geral entre os tipos de vi.da que cada pessoa quer levar. A vi.da escolhida por alguém que aposta co11tém, corr10 elemento, o fator de risco; quern escolhe não apostar decidiu que prefere uma vida mais segura. Já resolvemos que as pessoas devem pagar o preço da vida que decidiram levar, avaliado n.aquilo de que as outras pessoas abrem mão para que possam viver co·mo escolheram. Essa era a finalidade do leilão como dispositivo para estabelecer a igualdade inicial de recursos. Mas o preço de uma vida ma.is segura, avaliada dessa forma, é precisamente absterse de qualquer possibilidade de ganhos cuja perspectiva induz outras pessoas a apostar. Portanto, não temos razão para refutar, com base no "histórico de nossas decisões anteriores, um resultado no qual quem se recusou a apostar te1n menos do que aqueles que não se recusaram.

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Não obstante devemos também comparar a situação daqueles que aposta1n e ganham com a daqueles que apostam e perdem. Não podemos dizer que estes escolheram uma vida diferente e devem, conseqüentemente, sacrificar os ganhos, pois escolheram a mesma vida daqueles que venceram. Mas poden1os dizer que a possibilidade da perda fazia parte da vida que escolheram, que era o preço justo da possibilidade de ganho, pois poderíamos ter criado o 11osso leilão inicial de modo que as pessoas pt1dessem comprar (por exemplo) bilhetes de loteria com suas conchas. Todavia, o preço desses bilhetes teria sido alguma quantidade de outros recursos (definidos pelas probabilidades e pelas preferências de jogo de outras pessoas) que as conchas, de outro modo, teriam comprado, e que será totalmente desperdiçada se o bilhete não vencer. Também se pódc dizer o mesmo ao analisar os argumentos em prol da redistribuição de ganhadores para perdedores após o evento. Se os ganhadores fossem obrigados a dividir seu ganhos com os perdedores, ninguém apostaria individualmente, e o tipo de vida preferido pelos que ganham e pelos que perdem não estaria disponível. E claro que este não é um bom argumento contra alguém que exige a redistribuição para alcançar a igualdade de recursos; essa distribuição tomaria algumas for1nas de vida menos atraentes ou até impossíveis, pois as exigências de igu.aldade (que pressupomos neste capítulo) antecedem outras aspirações, inclusive a variedade nos tipos de vida disponíveis para as pessoas. (A igualdade, de qualquer forma, impossibilitará certos tipos de vida -- uma vida d.e dominação econômica e política pelos outros, por exemplo.) No caso att1al, porém, a diferença é óbvia, pois a conseqüência da redistribuição de ganhadores para perdedores de apostas privaria a ambos da vida que preferem, o que indica não só que isso prod·uziria um decréscimo indesejado das formas de vida disponíveis, mas também que os privaria de igual voz na construção dos lotes a seren1 leiloados, como no caso do homem que detestava ovos de tarambola e clarete,

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n1as se deparou apenas com essas opções. Todos os ganhadores e perdedores queriam que as apostas entrassem no leilão, seja originalmente, seja representadas por recursos com os quais pudessem assumir riscos mais tarde, e a possibilidade de perder é o preço correto, tnedido co1n o mensurador que temos usado, de u1na vida que contenha apostas com a chance de vencer. Podemos, certamente, ter motivos especiais para proibir certas formas de apostas. Talvez tenhamos motivos paternalistas para limitar quanto cada indivíduo pode aniscar, por exemplo. 'falvez também tenhamos motivos fundamentados na teoria da igualdade política para proibir que alguém aposte sua liberdade ou seus direitos religiosos ou políticos. Esta questão é limitada. Não temos motivo, e1n geral, para proibir completamente as apostas com base no simples fato de que os ganhadores ,possam vir a controlar mais r;ecursos do que os perdedores, muito menos do fato de que osganhadores terão mais do que os que não apostam. Nosso princípio inicial, de que a igualdade de recursos requer que .as pessoas paguem o verdadeiro preço da vida que levam, em vez de condenar, autoriza essas diferenças. Podemos (se quisermos) ajustar nosso teste de cobiça para registrar essa conclusão. Podemos dizer que, ao calcular a extensão dos recursos de alguém em sua vida, com a finalidade de perguntar se alguém os cobiça, quaisquer recursos ganhos por meio de uma aposta bem-sucedida deven1 ser representados pela oportw1idade de fazer a aposta segundo as probabilidad.es do momento, e ajustes comparáveis feitos aos recursos de quem perdeu apostas. O principal objetivo dessa elaboração artificial do teste de cobiça, porém, seria nos lembrar de que o argumento em prol da p~rmissão de difere11ças na sorte por opção que afetam a renda e a riqueza presume que todos têm, em princípio, as inesmas apostas à disposição. Quem nunca teve a oportunidade de correr risco sC'melhante, e gostaria de tê-la se pudesse, continuará com inveja dos que a tiveram. O argumento ta1nbém não se depara com o caso da má sorte bruta. Se duas pessoas levam vidas mais ou menos

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idênticas, mas uma fica subitamente cega, não podemos explicar as diferenças resultantes em suas rendas dizendo que uma correu riscos que a outra decidiu não correr, ou dizen-

do que não poderíamos redistribuir sem negar a ambas a vida que preferem. Pois o acidente em nada se refere (presumimos) às escolhas, no sentido pertinente. Não é necessário à vida que cada um escolheu correr o risco de ficar cego sem uma redistribuição de recursos do outro. Isso se dá a fortiori se um nasceu cego e o outro, não. Mas a possibilidade do seguro é, conforme afirmei, um elo entre os dois tipos de sorte. Suponhamos que exista um seguro contra cegueira no leilão inicial, com qualquer nível

de cobertura que o segurado

resolv~

comprar. E imagine-

m.os também que duas pessoas que enxergam corram, na época do leilão, risços iguais de sofrer um acidente que venha a cegá-las, e saibam disso. Se uma delas escolher gastar parte de seus recursos iniciais com tal seguro e a outra não-g~star, õu se uma comprar mais coberturas que a outra, então essa diferença expressará suas opiniões diferentes com relação ao valor relativo das divei:sas fonnas ou componentes de sua ·vida futura. Pode expressar o fato de que uma atribui mais valor à visão do que a outra; ou, pelo contrário, que wna considera a compensação monetária pela perda da visão sem valor perante tal tragédia, ao o que a outra, mais prática, concentrar-se-ia no auxilio e no treinan1ento especial que tal dinheiro compraria; ou simplesmente que cada qual atribui valores diferenteS para o risco e preferiria, por exemplo, tentar uma vida brilhante que poderia redundar em uma catástrofe, a wna vida segura à custa dos recursos necessários para torná-la brilhante. De qualquer maneira, a simples idéia da igualdade de recursos, sem qualquer acréscimo paternalista, não decidiria pela redistribuição da pessoa que fez seguro para a pessoa que não fez se, infelizmente, ambas perdessem a visão no mesmo acidente, pois a disponibilidade do seguro significaria que, embora ambas tivessem tido azar bruto, a diferença entre elas era uma questão de sorte por opção,

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e os argu1nentos que fizemos cont-ra alterar os resultados da sorte por opção em condições de igualdade de riscos antecedentes também se mantêm aquL Porém, a situação não pode ser diferente se a pessoa que decictiu não fazer seguro for a única a perder a visão. Novamente, a diferença na sorte por opção com base em um histórico de oportunidades iguais para se fazer um seguro. Se nenhum dos dois perdesse a visão, o homem que fez um seguro contra a cegueira teria sido o perde_dor. Sua sorte por opção teria sido azar- embora pareça esquisito defini-la assim-, pois ele gastara os recursos que, conforme se desenrolou a história, teria gasto melhor de outra forrna. Mas ele não teria o direito de reivindicar nada, nesse caso, do homem que não fez seguro e sobreviveu ileso. Assim, caso se satisfizesse a condição acima descrita se todos corressem o mesmo risco de sofrer algurrl acidente que resultasse em deficiê11cia física, e todos soubessem, grosso modo, quais eram as probabilidades e tivessem amplas oportunidades de fazer um seguro - então as deficiências físicas não seriam um problema especial para a Íb>ualdade de recursos. Todavia, certrunente essa condição não se satisfaz. Algumas pessoas nascem com deficiências, ou as adquirem antes de ter conhecimentos ou fundos suficientes para fazer seguro. Não podem comprar o seguro após o evento. Até as deficiências que surgem em um período posterior da vida, contra as quais as pessoas têm a oportunidade de fazer seguro, não são distribuídas aleatoriamente pela população, mas seguem trilhas genéticas, de modo que as seguradoras mais requintadas cobrariam mais caro pela mesma cobertura antes do evento. Não obstante, a idéia de um mercado qe seguros é um guia contrafactual por intermédio do qual a igualdade de recursos poderia encarar o problema das deficiências físicas no mundo real. Sttponhamos que conseguimos entender e até oferecer uma resposta preliminar à seguinte pergunta. Se (ao contrário do fato) todos tivessem, com determinada idade, o mesmo risco de se tomar portador de deficiências físicas ou

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mentais no futuro (o que presume que ninguém as possui ainda), 1nas o número total de deficiências continuasse sempre igual, que cobertura do seguro contra essas deficiências cada membro da comunidade compraria? Poderíamos, então, dizer que, com exceção do azar bruto (não ível de seguro), o qual altera essas probabilidades iguais, cada pessoa compraria o seguro naquele nível, e compensaria os que viessem a ter as deficiências com uma espécie de fundo gerado pelos prémios se as probabilidades fossem iguais. Os qu.e_viessem a se tornar portadores de deficiências teriam mais recursos à mão do que os outros, mas a extensão de set1s recursos extras será definida pelas decisões de mercado que as pessoas teriam supostamente tomado se as circunstâncias tivessem sido mais igualitárias do que são. É claro que este argumento envolve a suposição fictícia de que todos os deficientes teriam comprado a quantia média do seguro, e talvez convenha aprimorar o argumento e a estratégia para que isso não seja mais válidos. Mas não parece uma suposição absurda para esta finalidade. Podemos responder à pergunta contrafactual com confiança suficiente para elaborar um programa de compensação desse tipo? Estamos diante de uma dificuldade inicial de certa importância. AB pessoas só podem decidir quanto de seus recursos dedicar ao seguro contra determinada catástrofe se tiverem alguma idéia da vida que esperam viver, porque só então poderão definir a gravidade de determinada catástrofe, até que ponto os recursos adicionais aliviariam a tragédia etc. Contudo, que1n nasce com determinada deficiência física ou a adquire durante a infância levará em 5. A suposição da média é apenas simplificadora, criada para oferecer um resultado na ausência de inforrnações pormenorizadas (e, talvez, por motivos descritos no texto, indetern1inadas) que nos capacitariam a decidir quanto ca
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conta essa circunstância nos planos que fizer. Assim, para decidir quanto tal pessoa teria aplicado na compra de um seguro, sem a deficiência, devemos decidir que tipo de vida ela teria planejado nesse caso. Mas pode não haver resposta, mesmo em princípio, para essa questão. Não precisamos, porém, emitir juízos contrafactuais tão personalizados a ponto de nos constranger por esse motivo. Mesmo se as pessoas corressem riscos iguais de sofrer todas as catástrofes, e medissem o valor e a importância do seguro de maneira diferente em conseqiiência de suas aspirações e planos, o mercado de seguros, não obstante, estaria estruturado em categorias que designassem os riscos contra os quais a maioria das pessoas faria seguro de uma maneira geral. Afinal, os riscos da maioria das catástrofes são agora considerados pelo mercado de seguros corno· distribuídos aleatoriamente e, assim, devemos obedecer às regras reais dos seguros, modificados de maneira que· removam as discriminações que as seguradoras fazem quando sabem que um grupo tem mais probabilidade, talvez por motivos genéticos, de sofrer determinado tipo de azar bruto. Teria sentido supor, por exemplo, que a maioria das pessoas avalia mais ou menos da mesma maneira o valor do seguro contra deficiências em geral, tais como perda de visão ou de um membro, que afetam uma ga1na bem ampla de tipos de vida. (Convém examinar o mercado real para descobrir as probabilidades e os contornos de seguros mais especializados que venhamos a escolher em esquemas inais complexos, como o seguro de músicos contra danos sofridos nas mãos.) De qualquer forma, daríamos grande atenção a questões tecnológicas e estarlamos dispostos a ajustar os valore$ quando a tecnologia mudasse. As pessoas compram segll'ros contra catástrofes, por exemplo, conforme uma série de pressupostos acerca da tecnologia médica para tratamentos, ou da fortnação especial, ou dos auxilies mecânicos que estão de fato disporúveis, e acerca do custo desses tratamentos ou medicamentos. As pessoas provavelmente procurariam um seguro de maior nível contra a cegueira, por

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exemplo, se a melhoria na cobertura lhes permitisse custear uma tecnologia recém-descoberta de substituição da visão do que se a melhoria na cobertura simplesmente inflasse uma conta bancária que não poderiam, de qualquer forma, usar com grande satisfação. Evidentemente, quaisquer juízos que as autoridades de uma comunidade formulassem acerca da estrutura do mercado hipotético de s_eguros seriam uma especulação e estariam sujeitos a uma série de objeções. Mas não-há-motivo para pensar, pelo menos por antecipação, que um método de compensar os deficientes com base em tal especulação seria pior, em princípio, do que as outras opções, e teria o mérito de mirar na direção da solução teórica mais compatível com a igualdade de recursos. Agora devemos lembrar quais são essas opções. No Capítulo I, disse quC o regime de igualdade de bem-estar, ao contrário das impressões iniciais, não explica nem orienta bem nosso impulso de compensar os portadores de deficiências graves com recursos adicionais. Ela não oferece, em especial, nenhum limite de compensação, contanto que qualquer pagamento futuro viesse a aumentar o bem-estar dos desprivilegiados. Mas isso não é generosidade, como poderia parecer. pois deixa o padrão de compensação real à mercê da política do egoísmo atenuada pela simpatia, política essa que, sabemos, fornecerá menos do que qualquer mercado de seguros hipotético e defensável ofereceria. Analisemos outro método de resolução do pr_oblema das deficiências no campo da igualdade de recursos. Suponhamos que as faculdades físicas e mentais de qualquer pessoa devam ser cons~deradas parte de seus recursos, de modo que quem nasce deficiente comece com menos recursos do que os outros e deva ter o direito de se igualar por meio de transferências, antes que o restante seja leiloado em qualquer mercado igualitário. As faculdades físicas e mentais são recursos, realmente, pois são utilizados em conjunto com os recursos materiais para tomar a vida algo de valor. As faculdades físicas são recursos para tal finalidade de

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modo que os aspcctos da personalidade, como a concepção pessoal sobre o que tem valor na vida, não são. Não obstante, a sugestão de que um projeto de igualdade de .recursos deveria oferecer uma compensação inicial para aliviar as diferenças em recursos físicos ou mentais é proble1nática em diversos aspectos. Requer, por exemplo, algum padrão de poderes "normais" para servir de base de comparação para a compensação6 • Mas de quem são os poderes que se devem considerar nor1nais para tais finalidades? Sofre, aliás, do mesmo defeito que a recome11daçâo paralela cm prol da igualdade de bem-estar. De fato, nenhuma quantia de c~m pensação inicial igualaria em recursos físicos ou mentais uma pessoa cega Olt mentalmente deficiente de nascença a alguém considerado "normal" nesses aspectos. AsSim, o argumento não oferece wn teto para a compensação, mas deve deixá-lo à mercê de um compromisso político q:ue talvez seja inenos generoso, novamente, do que ditaria o mercado hipotético de seguros. Além dessas impropriedades práticas e teóricas, a sugestão é problen1ática por outro motivo. Embora as faculdades sejam recursos, não devem ser consideradas recursos aquelas cuja propriedade deva ser determinada .Pela política segundo alguma interpretação da igualdade de recursos. Isto é, não são recursos para a teoria da igualdade exatamente no sentido em que o são os recursos materiais comuns. Não podem· ser manipulados nem transferidos, n1esmo que a tecnologia \'enha a permiti-lo. Assim, é uma definição errónea do problema das deficiências dizer qtte a igualdade de recursos deve lutar o máximo possível para igualar as pessoas na constituição mental e física. O problema é, pelo contrário, determinar até que ponto a propriedade de recursos materiais independentes seria afetada pelas diferenças que existem nas faculdades físicas e mentais, e a resposta da nossa teoria dt->veria falar com esse vocabulário. 6. O método do seguro hipotéUco não requt>r nenhuma estipulação de poderes "nonnais", pois :permitf'. ao mercado hipot.Stko decidir quais enfermidades são con1pensáveis. 1

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Seria sensato (pelo menos como um resumo prático periódico da argumentação) atualizar a nossa história dos imigrantes. Para complementar o leilão, agora eles criam um mercado hipotético de seguros que instalam por meio de seguros compulsórios para todos"a preço fixo, conforme as especulações sobre o que o inligrante normal con1praria como seguro, se os riscos a11tecedentes de diversas deficiências tivessem sido os mesmos. (Isto é, escolhernos por eles uma das formas mais simples .possíveis de instituir o mercado hipotético de seguros. Veremos, ao discutir o problema das habilidades, que podem muito bem escolher um esquema mais complexo, do tipo aqui discutido.) Mas agora surge uma questão. Coloca essa decisão muito peso na distinção entre deficiências, que os imigrantes tratam dessa inaneira c<:impensatória, e acidentes que afetem preferências e ambições (como: quais os recursos materiais estã? de fat9 disponíveis e quantas pessoas compartilham os gc>"stos de uma determinada pessoa?) Estes também afetarão o bem-estar, mas não são questões para uma compensação em nosso esquema. Não seria justo tratar agora como deficiências os gostos excêntricos, ou os gostos que sejam dispendiosos ou impossíveis de satisfazer devido à escassez de algum bem que poderia ter sido comum? Poderíamos compensar aqueles que têm esses gostos supondo que todos tinham as mesmas probabilidades de estar nessa situação e, depois, criando um mercado hipotético de seguros contra essa possibilidade. Temos à disposição uma resposta curta. Quem nasce com u1na deficiência grave er1cara a vida com menos recursos, nesse aspecto, do q·ue os outros, conforme itimos. Essa circunstância justifica a compensação, em um esquema dedicado à igualdade de recursos, e embora o mercado hipotético de seguros não restabeleça o equilíbrio - nada pode fazê-lo - procura remediar um aspecto da injustiça resultante. Contudo, não se pode dizer que a pessoa cujos gostos são dispendiosos, qualquer que seja o motivo, tem, portanto, menos recursos à disposição, pois não podemos 1

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afumar (sem recair em alguma versão da igualdade de bemestar) o que seria eqüidade na dishibuição de gostos e preferências. Por que há menos igualdade de recursos quando alguém tem um gosto excêntrico, que torna mais baratos os bens para os outros, do que quando tem um gosto popular e, assim, encarece os bens para todos? O leilão, que traz ll1forrnações sobre os recursos que realmente existem e as prefcrê11cias adversárias de fato em ação, é a única medida para saber se determinada pessoa dispõe dos mesmos recursos. Se o leilão foi, de fato, equâ1time, então o homem con1 gostos excêntricos não tem menos do que os mesmos recursos materiais, e o argumento que justifica um hipotético leilão compensatório em caso de deficiências não tem motivo nem para iniciar. É verdade que esse argumento produz uma certa visão sobre a diferença entre uma pessoa e suas circunstâncias, e atribui preferências e aspirações a sua pessoa, e atribuir a suas circunstâncias faculdades físicas e mentais. Essa é a visão de uma pessoa que descrevi na Introdução, de alguém que forma suas ambições com uma noção de seus custos, tendo como pano de fundo uma presmnida equidade inicial de poder econômico. Embora isso seja diferente do quadro suposto pela igualdade de bemestar, é um quadro central da igualdade de recursos. De certa maneira, porén1, pode-se achar que minha argumentação exagera na diferença entre deficiências e pelo menos alguns tipos do que se costuma considerar preferências. Suponhamos que alguém descubra que tem um desejo (ou obsessão, ou um desejo ardente ou, nas palavras de uma psicologia mais antiga, um "impulso 11) que gostaria de não ter, porque interfere no que ele quer fazer da própria vida e provoca frustração e até sofrimento, se não for satisfeito. Pode ser um traço de suas necessidades físicas, que outras pessoas não considerariam uma deficiência: por exemplo, grande apetite sexual. Mas é uma "preferência" (caso essa seja a palavra correta) que ele não quer, e faz sentido dizer que ele preferia viver sem ela. Para algumas pessoas, essas preferências indesejadas incluem gostos que cUltiva-

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ram (talvez inconscientemente), como gostar de determinado esporte ou de un1 tipo de música difícil de encontrar. Lamentam o fato de ter essas preferências e acreditam que viveriam melhor sem elas, mas acham doloroso ignorá-las. Essas preferências são deficiências, embora para outras pessoas sejam pafte essencial daquilo que valoriza suas vidas. Esses casos não constituem, para determinadas pessoas, casos limítrofes entre aspirações e deficiências (embora não há .dúvida de que é possível encontrar outros tipos de casos limítrofes). A cliferença exigida pela igualdade de recursos é a diferença entre as convicções e posturas que definem como seria uma vida bem-sucedida, as quais o ideal atribui à pessoa, e as características de corpo, intelecto ou personalidade q·ue proporcionam meios ou obstáculos a esse êxito, as quais o ideal atribui às circunstâncias da pessoa. Quem considera seus desejos sexuais ou sua preferência por ópera indesejáveis, classificará essas características de corpo, intelecto ou personalidade como deficiências e, por conseguinte, devem enquadrar-se no regime proposto para as deficiências em geral. Podemos imaginar que todos tenham as mesmas oportunidades de, por acidente, adquirir tal desejo. (Certamente, seria diferente para cada pessoa o teor de um anseio que viesse a ter essa conseqüência. Supomos aq1li, não o risco de qualquer anseio, mas o risco de um an-' seio interferir assim nas metas estabelecidas.) Podemos, então, perguntar - com muita ou pouca inteligibilidade, como no caso da cegueira - se as pessoas em geral comprariam seguros contra esse risco e, caso comprassem, qual seria o preço e a abrangência da cobertura. Parece improvável que muita gente viesse a comprar tal seguro, pelo preço que provavelmente custaria se o procurassem, a não ser no caso de anseios tão graves e incapacitantes qi+e recaíssem na categoria da doença mental. Mas isso é -assunto diferente. A questão importante, no momento, é que a idéia de um mercado de seguros está disponível aqui, porque podemos imaginar pessoas que têm tais desejos não os tendo, sem por isso imaginar que elas tenham uma concepção do que que-

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rem da vida diferente do que o que de fato querem. Assim, a idéia do leilão imaginário de seguros é, de .imediato, u1n mecanismo para identificar anseios e distingui-los das características positivas da personalidade, e também nara enquadrar esses anseios no regime geral elaborado para as deficiências.

IV. Trabalho e salários A igualdade de recursos, uma vez estabelecida pelo leilão, e corrigida para suprir as necessidades dos deficientes, seria perturbada pela produção e.pelo comércio. Se um dos imigrantes, por exemplo, fosse especialmente perito i1a produção de tomates, poderia vender o excesso de prodllção por mais do que qualquer outra pessoa conseguisse; nesse caso, começariam a cobiçar sua parcela de recursos. Suponhainos que quiséssemos criar t1ma sociedade na q11al adi-· visão de recursos fosse continuamente a mesma, apesar dos diversos tipos e graus de produção e comércio. Podemos adaptar nosso leilão de modo que produza tal sociedade? Comecemos considerando uma seqüência diferente, após a qual as pessoas cobiçariam os recursos urnas das outras, e a divisão já não seria mais vista con10 equânime. Imagine1nos que todos os i1nigrantes sejam, de fato, suficientemente iguais em talento nas poucas n1odalldades de produção que os recursos lhes permitem produzir, com o mesmo conjunto de recursos. Não obstante, querem levar suas vidas de maneiras diversas e, de fato, adqttirem parcelas diferentes de recursos no leilão inicial e as utilizam de maneiras diferentes dali em diartte. Adrian escolhe recur·sos e os trabalha com a única aspiração de produzir tanto quanto possível aquilo que é valorizado pelos outros; e assim, ao fim de um ano, seu estoque total de bens é maior do que o de qualquer outra pessoa. Todos os ouh·os imigrantes aram a preferir o estoque de Adriana seu próprio; mas, hipoteticamente, ninguém estaria disposto a le-

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vara vida que Adrian levava para produzi-lo. Se procurarmos a cobiça em determinadas épocas, todos anseiam os recursos de Adrian no fim do ano, e a dívisão, portanto, não é equânime. Mas se encarannos a cobiça de outra forma, como uma questão de recursos durante a vida inteira, e acrescentarmos a ocupação da pessoa à sua parcela de bens, ninguém cobiçará a parcela de Adrian, e não se pode dizer que a distribuição é desigual nesse aspecto. Por certo deveríamos tomar a -segunda perspectiva, a sinótica. Nosso objetivo final é que uma parcela simétrica de recursos seja dedicada à vida de cada pessoa, e escolhemos o leilão como maneira certa de avaliar o que se põe à disposição de cada pessoa, por sua própria decisão, para tal finalidade. Se Bruce resolver adquirir um terreno para usar como quadra de tênis, levanta-se a questão de quanto se deveria cobrar de sua conta no cálculo para decidir se ele recebeu uma parcela igualitária devido a tal escolha, pois é correto que lhe cobrem a quantia que os outros estariam dispostos a pagar se, em vez disso, tivessem dedicado o terreno a suas finalid.ades. A atratividade do leilão, como dispositivo para expressar a igualdade de recursos, é precisamente colocar em prática essa maneira de avaliar. Mas esse esquema fracassará, e o dispositivo nos decepcionará, a não ser que Adtian consiga oferecer um preço pelo n1esmo terreno que expresse sua intenção de trabalhar e não de jogar nele e, assim, obter os ganl1os que o levariam a tal decisão. Caso contrário, quem quisesse tomate, e estivesse disposto a pagar o preço de Adrian, não conseguiria fazer lances indiretos, por meio da decisão de Adrian, contra Bruce, que assim conseguiria sua quadra de tênis por um preço que, por ser baixo demais, derrota a igualdade de recursos. Devo acrescentar que não estou argumentando que a eficiência seja diferente da justiça, mas, pelo contráiio, que nas circunstâncias descritas, nas quais os talentos são os mesmos, a eficiência é simplesmente a justiça, pelo menos no modo de se conceber a justiça na igualdade de recursos. Se Adrian

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está disposto a ar a vida se matando de trabalhar em troca do lucro que terá com os preços que os outros pagarão pelo que ele produz, então o terreno no qual trabalharia não deveria ser usado para a construção de uma quadra de tênis, a não ser que seu valor como quadra de ténis seja maior quando avaliado pela vontade de alguém de invadir un1 estoque h1icialmente igual de recursos abstratos. Examinamos a questão totalmente da perspectiva dos que querem os tomates de Adrian, uma perspectiva que trata Adrian apenas como meio. Todavia, chegamos à mesma conclusão se examinarmos a questão também da perspectiva dele. Se alguém escolher ter algo não dispendioso na vida, no regime da igualdade de recursos, sobrará mais para as outras coisas _que ele quiser. Quem aceita o vinho argelino pode tomá-lo para acotnpanhar os ovos de tarambola. Mas a decisão de produzir uma coisa e não outra "com o terreno, ou usá-lo para o lazer e não para a produção, também é uma escolha para a vida de uma pessoa, e tambén1 pode não ser dispendiosa. Imaginemos que Adrian seja louco por ovos de tarambola, mas prefira o trabalho árduo no cultivo do terreno a conformar-se com menos do que champanhe. O total pode não ser mais caro, avaliado por q11anto suas decisões custam aos outros, do que 11ma vida de ócio e suco de uva. Se ele ganhar o suficiente com o trabalho árduo, ou fazendo um trabalho que ninguém 1nais quer fazer, para satisfazer todas as suas preferências dispendiosas, então sua opção para a própria vida não custa ao resto da comunidade mais do que se suas preferências fossem mais si.mplcs e seu trabalho mais leve. Portanto, não temos mais razão para negar-lhe o trabalho árduo e o alto consumo do que para negar-lhe menos trabalho e frugalidade. A escolha deve ser indiferente sob a igualdade de recursos, contanto qtte ninguém cobice o conjunto total de seu trabalho associado ao consumo que ele escolheu - isto é, contanto que ninguém cobice sua vida como um todo. É claro que Ad.rian pode gostar realmente do trabalho árduo e não es-

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tar, portanto, fazendo sacrifício nenhum. Ele prefere o trabalho árduo a qu.alquer outra coisa. Mas sua preferência não proporciona nenhum argumento, sobre a igualdade de recursos, de que ele deva ganhar menos em dinheiro ou em outros bens por meio do trabalho do que se o detestasse, e também não proporciona nenhum argumento contra cobrar de alguém wn preço baixo pela alface, da qual ele gosta mais do que de trufas. Devemos, então, aplicar o teste de cobiça diacronicamente: ele requer que ninguém deseje a parcela de ocupação e recursos à disposição de qualquer pessoa no decorrer do tempo, embora alguém possa cobiçar a parcela de outra pessoa em determinado momento. Por conseguinte, violaria a igualdade de recursos se a comunidade redistribuísse a riqueza de Adrian,. digamos, ao fim de cada ano. Se todos tivessem talentos iguais (como estamos supondo agora mesmo), o leilão inicial produziria uma simetria constante de recursos, embora os saldos nas contas bancárias se tornassem cada vez mais desiguais com o ar dos anos. Essa condição improvável - de que todos têm os mesmos talentos-é absolutamente necessária a essa conclusão? O leilão produziria uma igualdade constante de recursos se (como no mundo real) os talentos para produzir diferissem muiLo de uma pessoa para outra? Nesse caso, o teste de cobiça não daria certo, mesmo que interpretado diacronicamente. Claude (que gosta de agricultura, mas não sabe cultivar a terra) não faria um lance suficiente por um terreno arável para tomar esse terreno de Adrian; ou, caso fizesse, teria de se conformar com menos pelo resto da vida. No entanto cobiçaria o conjunto de ocupação e riqueza de Adrian. Se interpretarmos a ocupação de um modo que seja sensível aos prazeres do ofício, a oc11paçâo de Adrian na agriculttna artesanal, que deve ser então descrita como habilidosa, está simplesmente indisporúvel para Oaude. Se interpretarmos a ocupação de maneira mais estatística, então Claude pode exercer a ocupação de Adrian, mas não pode ter, com

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ela, os recursos adicior1ais que Adrian possui. Portanto, se continuarmos a il1sistir que o teste de cobiça é uma condição necessária da igualdade de recursos, então nosso leilão inicial não vai garantir a igualdade constante no mundo real de

talentos desiguais para a produção. Neste ponto, pode-se objetar que, em princípio, não deveríamos insistir no teste de cobiça, pelo seguinte motivo. Estamos nos aproximando demais do objetivo de que as pessoas não devem cobiçar umas às outras, que é diferente da exigência d.e que não devem desejar as parcelas de re-

cursos umas das outras. As pessoas podem invejar umas às outras por diversos motivos: algumas são fisicamente mais atraentes, algumas se satisfazem com sua situação com

malar facilidade1 outras são mais benquistas, algumas são mais inteligentes ou capacitadas de outras-mane~ras etc. É claro que em um regime de igualdade de bem-estar cada uma dessas diferenças seria considerada e as transferências teriam a finalidade de eliminar suas conseqüências no bemestar até onde possível ou exeqüível. No entanto, a questão da igualdade de recursos é fundamentalmente distinta: as pessoas devem ter à disposição os mesmos recursos externos, para deles fazerem o que pudere1n, dadas essas diversas características e talentos. O leilão inicial resolve essa questão, mas, já que as pessoas são diferentes, não é necessário nem desejável que os recursos permaneçam os mesmos, e é impossível que a distribuição política elimine totla a cobiça. Se uma pessoa, graças a um esforço ou talento superior, emprega sua parcela equánime para criar mais do que outra, faz jus ao lucro, pois seus ganhos não ocorreram à _custa de alguém que faça menos com sua própria parcela. Reconhecemos isso, há pouco, quando itimos que se deveria recompensar a diligência superior, logo permitir que i\drian, ao trabalhar com afmco, conservasse as recompensas de seu esforço. Ora, essa objeção abriga muitos equívocos, mas todos se resumem nisto: confunde a igualdade de recursos com.

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uma idéia fundamentalmente distinta, às vezes denominada "igualdade de oportunidades". Não é verdade, cm primeiro lugar, que quem faz mais com sua riarcela inicial não reduz, ao fazê-lo, o valor do que os outros possuem. Se Adrian não fosse tão bem-sucedido na agricultura, o empenho de Oaude seria mais recompensado, pois as pessoas comprariam seus produtos inferiores por falta de alternativa. Se Adrian não fosse tão bem-sucedido e, por conseguinte, tão rico, não poderia pagar tanto pelo vinho, e Oaude, com sua fortuna menor, poderia comprar mais por preços mais baixos. Essas são, simplesmente, as conseqüências mais óbvias do fato de que os imigrantes fonnam uma única economia, após o leilão inicial, e não um conjunto de economias distintas. É claro que essas conseqüências também provêm da situaç;3:o sobre a qual falamos há pouco. Se Adrian e Bruce têm os mesmos talentos, mas Adrian resolve trabalhar .mais ou de maneira distinta e ganha mais dinheiro, essa circunstância também pode reduzir, para daudc, o valor de seu quinhão. A diferença entre essas duas circunstâncias, caso haja diferença, está em outro lugar; mas é importante rejeitar a afirmação, implícita em alguns argumentos a favor da igualdade de oportunidades, que se as pessoas começam com parcelas iguais, a prosperidade de uma não provoca danos à de outrem. Nem é verdade que, se aspiramos a ·um resultado no qual os menos talentosos não cobicem as circunstâncias dos mais talentosos, destruúnos a distinção entre invejar os outros e cobiçar o que eles têm, pois Adrian tem duas coisas que Claude gostaria de ter e que pertencem às circunstâncias de Adrian, e não a sua pessoa. Os desejos e as necessidades de outras pessoas proporcionam a Adrian, mas não a Oaude, un1a ocupação satisfatória, e Adrian tem mais dinheiro do que Oaude pode ter.1hlvez não se possa fazer nada, em termos de estrutura política ou distribuição, para eliminar essas diferenças e a cobiça. Não podemos, por exemplo, alterar o gosto de outras pessoas por meios elétricos para fazer com

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que dêem mais valor ao que Claude pode produ?ir e menos valor ao que Adrian pode. Mas o fato de não podermos e não devermos fazê-lo não oferece um argumento contra outros esquemas, tais como os esquemas educativos que permitiriam a Oaud.e encontrar satisfação em seu trabalho, ou de tributação, que lhe redistribuía uma parte da riqueza de Adrian. I)oderíamos descrever esses esquemas com justiça, dizendo que têm por objetivo eliminar o desejo de Claude pelo que Adrian tem, e não sua cobiça pelo qu.e Adrian é. P6r mais ilnportaiites que sejam essas questões, é ainda mais import_ante identificar e corrigir outro erro cometido pela presente objeção. Ela não entende nossa conclusão anterior de que, quando os talentos são mais ou menos os mesmos, Q leilão proporciona igualdade constante de recwsos, e não percebe, portanto, a diferença importante entre esse caso e o atual argumento. A objeção supõe qUe chegamos a essa conclusão porque aceitamos, como fundamento da igualdade de recursos, o que poderíamos chamar de teoria da justiça da linha de largada: que se as pessoas partem das mesmas circunstâncias e não trapaceiam nem roubam u1nas às outras, então é justo que as pessoas conservem o que ganham por meio de seu próprio talento. Mas a teoria da justiça da linha de largada está muito longe da igualdade de recursos. De fato, dificilmente poderia ser considerada uma teoria política coerente. A teoria da linha de largada afirma que a justiça requer recursos iniciais iguais. Mas também afirma que a justiça requer laissez-faire a partir de então, talvez segundo alguma versão da teoria lockeana de que as pessoas adquirem propriedades 111esclando seu trabalho com os bens, ou algo parecido. Porém esses dois princípios não poden1 conviver em harmonia. A igualdade não pode ter força maior ao justificar JXlSses iniciais simétricas quando os imigrantes chegam - contra a opiníão adversa segundo a qual todas as propriedades deveriam estar disponíveis para a aquisição lockeana nessa ocasião-do que mais tarde, ao justificar as redistribui-

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ções quando a riqueza se toma assimétrica porque os talentos produtivos das pessoas são diferentes. Também é possível expor a mesma questão ao contrário. A teoria da aquisição lockeana (ou qualquer outra teoria da justiça na aquisição que pretenda justificar um componente de laissez-faire em uma teoria da linha de largada) não tem menos força na i-

nistração da distribuição inicial do que na justificativa da posse por melo do talento e do esforço posterior. Se ateoria for sólidamais tarde, então por que não pede um processo lockeano de aquisição na primeira ocorrência, em vez de

uma distribuição igualitária de tudo o que existe? O momento da chegada dos imigrantes é, afinal, um ponto arbitrário da vida deles para localizar qualquer requisito único de que cada um deles tenha uma parcela simétrica dos recursos dispoIÚveis. Se tal requisito se mantém, também deve manter-se no décimo aniversário dessa data, que é, nas palavras do clichê banal, mas importante, o primeiro dia do resto de suas vidas. Assim, se a justiça exige um leilão igualitário quando chegam, deve exigir um novo leilão igualitário de vez em quando a partir de então, e se a justiça exige o laissez-faire dali em diante, deve exigir quando chegam. Imaginemos que alguém responda que há uma diferença inlportante entre a distribuição inicial de recursos e qualquer redistribuição posterior. Quando os imigrantes chegam, ninguém possui recurso nenhum, e o princípio da igualdade determina, portanto, parcelas iniciais simétricas. Mais tarde, porém, depois de leiloados, os recursos iniciais am a pertencer a alguém, de modo que o princípio da igualdade é superado pelo respeito ao direito das pessoas à propriedade ou algo semelhante. Essa réplica é, de imediato, unta petição de princípio, pois estamos analisando exatamente se é preciso definir um sistema de propriedade, em uma primeira instância, que tenha tal conseqüência, ou se é preciso escolher um sistema de propriedade distinto, que tome qualquer aquisição explicitamente sujeita a esquemas posteriores de redistribuição. Se o segundo tipo de sistema

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for escolhido logo no início, ninguém poderá reclamar depois que a redistribuição é descartada apenas por seus direitos de propriedade. Não estou dizendo que nenhuma teoria da justiça possa distinguir com coerência entre justiça na aquisição inicial e justiça na transferência, com a condição de que qualquer pessoa possa fazer o que quiser com os bens que já lhe pertençam. A teoria de Robert Nozick, por exemplo, faz exatamente isso 7 • Tem coerência, pois sua teoria da justiça na aquisição inicial pretende justificar um sisten1a de direitos à propriedade que tem tal conseqüência: a justiça na transferência flui dos direitos que a teoria da aquisição afirma serem obtidos qltando se adquire a propriedade. Mas a teoria da aquisição inicial em que se baseia a teoria da linha de largada, que é a igualdade de recursos, não pretende nem mes1no justificar a caracterização da propriedade como controle absoluto, sem limite de tempo, a partir de então. Assirrt, a teoria da linha de largada, segundo a qual os imigrantes devem começar com rect1rsos simétricos, mas prosperar ou falir segundo seus próprios esforços a partir de então, é uma combinação indefensável de teorias da justiça bem diferentes. Essa combinação tem sentido em jogos, como o Banco lmobiliário, cujo objetivo é permitir que a sorte e a habilidade tenham um papel limitadíssimo e, em última análise, arbitrário; contudo não pode sustentar uma teoria política. Nosso próp1io princípio, de qt1e se as pessoas de talento igual escolhessem vidas diferentes seria injusto redistribuir no decorrer de suas vidas, não apela à teoria da linha de largada. Baseia-se na idéia bem clifere11te de que a igualdade em questão é a de recursos devotados para a vida in·· teira. Esse princípio oferece u1na solt1ção clara à questão que ConstTange a atual objeção. Nossa teoria 11ão supõe que uma divisão equânime de recursos seja apropriada em determinado momento da vida de alguém, mas não em qualq·uer

7. Robert Nozid, Anardiy, Sta/e, and Utopia (Nova York Basic 1974).

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outro. Argumenta apenas que os recursos disponíveis para essa pessoa devem ser etú virtude dos recursos disporúveis, ou co.nsumidos por ele à custa de outros, para que a explicação sobre o motivo de alguém ter menos dinheiro agora resulte, por exemplo, no fato de ter desempenhado urna atividade de lazer dispendiosa anteriormente. Nada há de disponível para explicar por que Oaude, que trabalhou tanto e da mesma maneira que Adrian, deva ter 1nenos em função de ser menos talentoso. Devemos, então, rejeitar a teoria da linha de largada e reconhecer que as exigências da igualdade (no inundo real, pelo menos) voltam-se para direções opostas. De um lado, devemos, correndo o risco de violar a igualdade, permitir que a distribt.üção de recursos a qualquer momento seja (como poderiamas dizer) ~ensível à ambição. Isto é, deve expressar o custo ou o benefício para outrem das e..scolhas feitas pelas pessoas de modo que, por exemplo, deve-se permitir a quem escolheu il1vestir em vez de consumir, ou consumir menos dispendiosamente, ou trabalhar de maneira mais lucrativa, conservar os ganhos provenientes dessas decisões em un1 leilão igualitário seguido de livre comércio. Mas, por outro lado, não devemos permitir que a distlibuição de recursos em momento nenhum seja senslvel aos atributos, isto é, seja afetada por diferenças de capacidade do tipo que produz diferenças de rendimentos em uma economia de laissez-Jaire entre pessoas que tenham as mes1nas aspirações. Conseguiremos elaborar alguma fórmula qt.te ofereça um compromisso prátíco, ou mesmo teórico, entre esses dois requisitos obviamente em conflito? Mencionaremos, mas só para descartar, urna resposta possível Imaginemos que permitamos ao nosso leilão inicial incluir, como recursos a serem leiloados, o trabalho dos próprios imigrantes, para que cada um deles possa fazer um lance pelo direito de controlar uma parte ou todo seu trabalho, ou o de outras pessoas. As capacidades especiais re11deriam vantagens, não para o próprio trabalhador, mas para toda a comunidade, da mesma forma que qualquer ou-

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tro recurso vaJioso que os imigrantes encontrassem ao chegar. A não ser em casos raros, já que as pessoas começam com os mesmos recursos para os lances iniciais, cada agente faria um lance suficiente para garantir seu próprio trabalho. Mas o resultado seria que cada um teria de ar a vida o mais próximo possível da maneira comercialmente mais lucrativa ou, pelo menos se tiver talento, sofrer alguma privação grave se não o fizer. Já que Adrian, por exemplo, é capaz de produzir rendimentos prodigiosos com a agricultura, outros estariam dispostos a fazer lances altos para ter direito ao trabalho dele e a sua produção agrícola, e se ele fizer um lance superior ao deles, mas optar por escrever poesias em vez de dedicar-se exclusivamente à agricultura, terá gasto u1na grande parte de seu dote inicial com um direito que lhe trará pouca vantagem financeira. Realmente, trata-se de uma escravidão dos talentosos. · Não podemos permitir isso, mas vale fazer uma pausa para perguntar quais são os fundamentos para que não se permita. Diríamos que, por ser dona do próprio corpo e da própria mente, a pessoa possui os talentos que só são capacidades por serem oriundos do corpo e da mente e, por conseguinte, tS dona dos frutos desses talentos? Trata-se, evidentemente, de uma série de non sequiturs. Também é um argumento conhecido a favor do mercado laissez-fàire de trabalho que já definimos como uma violação da igualdade de recursos, quando as pessoas são desiguais em talentos. Mas não poderíamos aceitá-lo de qualquer maneira, porque en1prega a idéia de direito de posse pré-político com base em algo que não é a igualdade, e isso é incompatível com apremissa do esquema de igualdade de recursos que elaboramos. Então precisamos procurar, em out~a parte, o fundan1ento para rejeitar a ídéia de levar o trabalho como recurso ao leilão. Não precisamos procurar muito longe, de fato, pois o princípio de que não se deve punir as pessoas pelo talento simplesmente faz parte do mesmo princípio em que nos baseamos para rejeitar a idéia obviamente oposta, de que se deve permitir que as pessoas conservem os benefí-

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dos do talento superior. O teste de cobiça proíbe ambos os resultados. Se Adrian for tratado como quem possui quaisquer talentos que o capacitem a produzir, Claude cobiçará o pacote de recursos, entre eles a ocupação, que Adrian tem durante a vida toda. Mas, se ele tiver de comprar tempo para o lazer ou o direito a ttma ocupação menos produtiva à custa de outros recursos, Adrian cobiçará o pacote de Oaude. Se entendermos que a igualdade de recursos abrange alguma versão plausível da teste.de cobiça como condição necessária para uma distribuição igualitária, então é preciso neutralizar o papel do talento de modo que nenhum acréscimo simples ao estoque de bens a serem leiloados consiga fazê-lo. Devemos voltar-nos, portanto, para uma idéia mais conhecida: a redistribuição periódica dos recursos por meio de algum imposto de rendaª. Convém elaborar um esquema de redistribuição, na medida do possível, que neutralize os efeitos dos talentos diferentes, mas preserve as consegüências da escolha de ocupação segundo a noção que a pessoa tem do que deseja fazer da vida, escolha essa que é

8. Reparar que nossa análise do problema que os talentos diferenciais apresentam à igualdade de recursos requer um imposto de renda, e nii:o um. imposto sobre a riqueza ou o con.~umo. Se as pessoas começam com recursos iguais, queremos então tributar para haver ajuste entre habilidades diversas, na medida em que estas produzam rendas diferentes, pois é só assim que an1eaçam a igualdade de recursos. A decisão de alguém de gastar em vez de poupar o que ganhou é precisamente o tipo de decisão cujas conseqüências devem ser definidas pelo mercado não corrigido p~ra o imposto nesta análise. Certamente, pode haver motivos técnicos ou de outro tipo para que a sociedade dedicada à igualdade de bem-estar crie impostos diferentes do imposto de renda. Tal sociedade talvez queira incentivar a poupança, por exemplo. Mas esses impostos não seriam reações ao problema agora em análise. A ren~ da que não é fruto do trabalho (investimentos) deve ser tributada no presente argumento? Presumo que esse tipo de renda expressa uma habilidade en1 investllnentos, bem como preferência~ pelo consumo posterior; nes~e caso, o argumento se estenderia à tributação dessa renda. Já que não estou aqui tratando do problema das gerações futuras, não considero a herança nem im~ postos territoriais.

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mais dispendiosa para a comunidade do q·ue a escolha que um outro faz. O imposto de renda é un1 dispositivo plausível para essa finalidade, porque deixa intacta a possibilidade de escolher uma vida na qual se fazem sacriffcios constantes e se impõe uma disciplina contínua em nome do êxito financeiro e dos recursos adicionais que traz, embora, é claro, não endosse nem condene tal escolha. Mas também reconhece o papel da sorte genética. A conciliação que esse imposto cria é um compromisso, mas um compromisso entre duas exigências da igualdade, diante da incerteza prática e conceitual sobre como atender a essas exigências, e não um compromisso da igualdade em beneficio de algum valor independente, co1no a eficiência. Não obstante, evidenten1ente, a atratividade de ttm imposto depende da nossa capacidade de determinar índices de tributação que cheguem a esse compromisso de-maneira adequada. Seria útil, para isso, que fôssemos capazes de descobrir um meio de identificar, na riqueza de qualquer pessoa em qualquer momento, o componente cuja origem sejam talentos diferenciais como algo distinto de aspirações diferenciais. Poderíamos, então, tentar criar um imposto q1.1e recapturasse, para fins de redistribuição, somente esse componente. Mas não podemos pretender identificar tal componente, mesmo com informações perfeitas sobre a personalidade das pessoas, pois a influência recíproca que os talentos e as aspirações exercem mutua1nente nos ilnpecliria de fazê-lo. Os talentos são i11centivados e desenvolvidos, e não descobertos prontos, e as pessoas escolhem quais talentos desenvolver em resposta a suas convicções acerca de que tipo de pessoa é melhor ser. Co11tudo, as pessoas também desejam ctesenvolver e usar os talentos que têm, não só porque preferem uma vida de relativo êxito, mas porque o exercício do talento é prazeroso e, talvez, também por achar que o talento não tttilizado é um desperdício. Quem tem boa visão e mãos talentosas concebe um quadro do que tornaria sua vida valiosa, o que uma pessoa mais desajeitada não conseguiria.

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Não podemos, portanto, desejar uma definição dos índices do nosso imposto de renda de modo que redistribua exatamente a parte da renda de cada pessoa que seja atribuível a seu talento quando diferenciado de suas aspirações. Talentos e aspirações se entrelaçam. Será que nos daríamos melhor se prosseguíssemos por outro caminho? Podemos pretender definir os índices a fim de deixar cada pessoa com a renda que teria se, ficticiamente, todos os talentos para.a produção fossem os mesn1os? Não, porque é impossível dizer, com coerência, que tipo de mundo seria esse. Teríamos de decidir que tipo e que nível de talento todos teriam simetricamente, e então que rendimentos alcançariam as pessoas que explorassem esses talentos em diversos graus de empenho. Deveríamos estipular que nesse n1undo todos teriam os talentos que a maioria das pessoas talentosas do mundo real tem? Com "as pessoas mais talentosas" queremos dizer pessoas capazes de garthar mais dinheiro no mundo real se trabalharem somente pelo clinheiro? Mas, em um mundo em que todos rebatessem uma bola de efeito ou interpretassem papéis sensuais em filmes com a mesma autoridade, não haveria beisebol nem filmes; de qualquer forma, ninguém receberia muito por exercer tais talentos. Nem seriam mais úteis quaisquer outras descrições dos talentos que todas as pessoas deveriam ter no mesmo grau. Porém, embora esse grosseiro exercício contrafactual deva fracassar, ele sugere um exercício mais promissor. Reexaminaremos nossa situação. Queremos descobrir um meio de distinguir as diferenças justas das injustas na riqueza gerada pelas diferenças em ocupação. As diferenças injustas são as atribuíveis à sorte genética, aos talentos que levam certas pessoas à prosperidade mas não outras, as quais os explorariam ao máximo se os tivessem. Mas, se essa conclusão estiver correta, então o problerrta dos talentos diferenciais é, de certa forma, como o problema das deficiências que já examinamos.

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V. Seguro de subemprego

Embora as habilidades sejam diferentes das deficiências, pode-se entender essa diferença como uma questão de grau: pode-se dizer qtte quem não sabe jogar basquete como Wtlt Olamberlain, pitar como Pie.ro ou ganhar dinheiro como Geneen sofre de uma deficiência (comuníssima). Essa definição dá ênfase a um aspecto das habilidades, que é seu componente genético e, conseqüentemente, a sorte, deixando na sombra a interação mais íntima e recíproca que salientamos entre talentos e aspirações. Mas também indica uma solução teórica para o problema de identificar os requisitos mínimos de uma política de distribuição justa para responder às diferenças em talentos. Podemos tirar vantagem das semelhanças entre deficiências e relativa falta de talento para propor que o nível de -compensação seja decidido, em princípio, perguntando-se quanto em seguros alguém teria comprado, num subleilão de seguros com recursos inicialmente iguais, contra a possibilidade da falta de determinado nível de um talento. Evidentemente, 11ão existe mercado de seguros contra a falta do que normalmente consideramos talento, como existe um mercado de seguros contra catástrofes q11e causam deficiências. Em primeiro lugar, os níveis das habilidades de urna pessoa são fixos e conhecidos, pelo menos aproximadamente, antes que a pessoa entre no mercado de seguros. Portanto, a falta de habilidade é, em essência, uma questão de história, e não de acidente futuro. (Existem outros rnotivos também, que identificaremos mais adiante.) FJaboremos, porém, uma pergunta hipotética semelhante às que formulamos no caso das deficiências. itamos um mundo imaginário no qual, embora a distribuição de habilidades por toda a comunidade fosse, no conjunto, o que realmente é, por algum motivo todas as pessoas tivessem as mesmas oportunidades prévias de sofrer as conseqüências da falta de detenninado conj11nto de habilidades, e estivessem todas dispostas a comprar um seguro contra essas

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conseqüências na mesma estrutura de preços. Quanto cada uma compraria e a que preço? Se conseguirmos dar sentido a essa pergunta e respondê-la, mesmo que seja pela definição de pisos aproximados conforme a média, teremos um mecanismo para definir pelo menos o p.iso de um programa de imposto e redistribuição que satisfizesse as exigências da igualdade de recursos. Existem diversas maneiras de criar um mercado de seguros hipotético ou imaginário desse tipo. Podemos tentar imaginar, por exemplo, que as pessoas ignorem' as habilidades que realmente têm, embora saibam quantas pessoas devem ter tal habilidade e, por conseguinte, quais são suas probabilidades. Pode-se, então, esperar que as pessoas façam seguro contra uma eventual falta de certa habilidade em determinado nível, seja uma habilidade bem precisa, como a capacidade ·de pintar a óleo a aurora de setembro, ou uma habilidade mais geral, como uma memória muito boa ou um talento para os números. Esse modelo seria bem semelhante àquele que criamos para as deficiências e, por conseguinte, uma continuidade da nossa teoria completa. Por conseguinte, podeúamos propor a integração dos dois mercados hipotéticos de seguros levando a sério a afirmação de que a falta de determinada habilidade é simplesmente mais uma deficiência, e perguntando quantas dessas habilidades poderiam entrar em urh mercado geral de seguros contra catástrofes. No entanto, esse modelo do mercado hipotético de seguros para habilidades está sujeito a certa refutação. Percebemos, ao tratar do mercado hipotético de seguros contra deficiências, a seguinte dificuldade. Existe certa indeterminação na questão de quais aspirações e gostos um deficiente teria se não fosse deficiente, e essa indeterrrrinação contamina a pergunta acerca da quantidade de qual seguro ele com·· praria. Pode-se lidar com a indetern1inação no caso das deficiências, pois é possível haver generalizações. Mas não se pode lidar com ela no caso das habilidades porque, se presumirmos que ninguém faz idéia de quais talentos tem, des-

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cartamos demasiadamente a personalidade a ponto de solapar uma base inteligível para especular acerca de suas aspirações, mesmo que seja de maneira média ou geral. A ligação entre talentos e aspirações, da qual falei anterionnente, é, prioritariamente, recíproca e próxima demais para permitir esse tipo de especulação contrafactual e está muito mais próxima do que a ligação entre aspirações e deficiências. Então imaginemos não que as pessoas ignorem totalmente quais talentos possuem, mas, pelo co.ntrário, qlie, por algum outro motivo, não têm base concreta para prever seu rendimento econômico - quais rendimentos os talentos podem gerar, ou, mesmo, se a situação será tal que esses talentos encontrarão emprego. Existem, é claro, muitas maneiras distintas de imaginar tal conjuntura, e não importa muito, para o presente objetivo, quais escolhemos. Voltemos, então, mais uma vez aos nossos imlgrantes. Adinitamos que, antes do lellão itücial, transfiram-se para um computador as informações sobre os gostos, as aspirações, os talentos e as atitudes com relação ao risco corrido por cada um dos imigrantes, bem con10 informações sobre as matérias-primas e a tecnologia disponíveis. O co1nputador prevê, então, não só os resultados do leilão, mas também faz uma projeção da estrutura de rendin1entos - o número de pessoas em cada nível de rendimentos-que haverá após o leilão, depoi.s que a produção e o comércio começaram, supondo-se que não haverá imposto sobre a renda. Faz-se ao comp11tador, então, outra pergunta hipotética. Imaginemos que cada imigrante conheça a projeção da estrutura de rendimentos, mas ignore a base de dados do computador, a não ser com relação às i11formações sobre si. ffiesmo, e não tenha certeza nenhuma quanto ao nível que seus próprios talentos lhe pennitiriam alcançar. Ele presume, de fato, que tem as mesmas probabilidades que qualquer outra pessoa de alcançar determinado nível de .rendimentos na economia, embora contemple uma projeção numérica desse nível. Suponhamos que não exista um monopólio na

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área de seguros e que as companhias de seguros ofereçam apólices do seguinte tipo: seguro contra a ausência de oportunidade de alcançar qualquer nível de rendimentos escolhido pelo segurado, dentro da estrutura projetada, e, nesse caso, a companhia de seguros pagará ao segurado adiferença entre o nível de cobertura e a renda que ele de fato tem oportunidade de receber9. Os prêmios variam segundo o nível de cobertura escolhido, devem ser idênticos para qualquer pessoa de cada nível de cobertura e serão pagos, não com o estoque inicial de recursos do segurado (ou conchas), mas dos rendimentos futuros posteriores ao leilão em períodos determinados. Quanto de tal seguro os imigrantes, em média, comprariam, a qual nível de cobertura de rendimentos e por qual preço? Esse problemé!- corresponde, pelo menos em princípio, aos
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se "bem-suced·ida" - se o risco coberto ocorrer, ou se a aposta é ganha-, de:scontado pela improbabilidade de êxito. O seguro com o prêmio de um dólar que paga dez dólares quando houver uma perda cuja probabilidade de não ocorrer seja igualmente alta, ou ainda uma aposta que paga dez para um se o resultado for cara em um cara-e-coroa honesto, são apostas financeiramente vantajosas. A aposta é flnanceiramente desvantajosa se seu preço exceder o ganho esperado assim calculado. Digamos que alguém neutralize a probabilidade de risco se aceitar qualquer aposta financeiramente vantajosa e recusar qualquer aposta financeiramente desvantajosa, seja qual for o tamanho ou outro aspecto da aposta. As empresas comerciais de seguros e os cambistas só oferecem apostas financeiramente vantajosas, é claro, porque seus rendimentos não devem igualar somente o retorno esperado pelos segurados e apostadores, mas também suas despesas, entre elas o custo de oportu:nidade. Assim, se todos ficassen1 neutros em relação aos riscos, ninguém compraria seguros nem apostaria em números ou sorteios. Mas quase ninguém fica neutro em relação aos riscos durante toda a duração de sua curva de utilidade: para quase todos, a utilidade marginal de mais dinheiro cal em pelo menos un1a parte do gráfico que mostra seu bem-estar como uma função de seus rendimentos. É bem fácil perceber como isso explica o fenómeno do seguro comercial (embora, é claro, qualquer explicação a respeito do motivo de determinadas apólices serem o que são exigiria informações mais minuciosas sobre essas funções de utilidade, e portanto seria muito mais cornplexa). Imaginemos que haja uma chance em dez de minha ca.sa de US$ 50.000 serdestruída por um incêndio no ano que vem e que me ofereçam um seguro total por US$ 6.000. Isto é, oferecem-me a oportunidade de escolher entre a certeza de US$ 44.000 (se eu comprar o seguro) e uma aposta com o retomo esperado de US$ 45.000 (se eu não comprar). Se a perda da minha casa fosse mais que nove vezes mais grave do que a perda de

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US$ 6.000 (porque, por exemplo, não tendo como conseguir ou pedir dinheiro emprestado para construir uma casa adequada, meu casamento se arruinaria e meus filhos se tornariam delinqüentes), então vale a pena comprar o seguro, embora seja uma aposta financeiramente desvantajosa. É muito mais difícil explicar apostas. (Kenneth Arrow, discorrendo sobre apostas, mencionou um pastor que chegou a um ponto delicado em teologia e disse que o problema era dificílimo, o qual a congregação deveria encarar com firmeza e então á-lo adiante.) Talvez seja necessário supor que os apostadores se enganem com relação às verdadeiras probabilidades (porque acreditam que a, sorte é mãe, não madrasta) ou agreguem valor à incerteza por si só. Embora esses dois pressupostos às vezes tenham fundamento, parece duvidoso que o tenham suficientemente para explicar como funcionam as'apostas populares. O que se pode dizer, com essa fundamentação, sobre os dois mercados hlpotéticos de seguros que descrevemos? Nosso mercado de seguros para deficiências é bem semelhante aos mercados comuns de seguros e não requer co-· mentários especiais . .Mas o mercado hipotético de seguros de talentos que acabamos de descrever é diferente, porque parece, à priineira vista, permitir decisões que se assemelham mais a apostas do que a seguros, pois sugere que muitos imigrantes agarrariam a oportunidade de comprar apóllces que os protegeriam contra não ter o mais alto nível de renda projetado para a economia. Logo, pagariam-lhes, se não alcançassem esse nível, a diferença entre a renda alta e o que de .fato conseguem ganhar. Mas decerto essa apólice seria u.ma aposta muito ruim1 Interpretamos como dado que o seguro nesse nível seria uma aposta financeiramente desvantajosa. Caso contrário, não seria oferecido pela companhia de seguros. Portanto, se for uma boa aposta, é boa

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10. Se E'U estiver errado nisto, o argumento do seguro hipotético insisti, ria na redistribuição radical e na igualdade substancial de riquezas. Assim. o plano ofereceria um argumento favorável a tal conseqtiência, nessa suposição.

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com base no bem-estar esperado, e não financeiramente, como a apólice do seguro da minha casa. Mas é uma aposta com muito maiorprobabilídade de ser tola do que sensata, em termos de bem-estar. Já que (ao contrário dos bilhetes de loteria em geral) a probabilidade de "ganhar" é extremamente grande -pouquíssimos imigrantes alcançarão tais rendimentos máximos-, o preço do prémio será altíssimo também 11• Aproxi1nar-se-á do valor da renda projetada caso ocorra o risco. Assiln, quem compra esse seguro enfrenta uma probabilidade altíssima de ganhar muito pouco. No entanto, imaginemos que essa pessoa perca e que seja uma daquelas que alcança a renda máxima. Está em uma situação muito pior do que se não tivesse feito seguro, pois agora precisa trabalhar próximo a sua capacidade máxima só para pagar o alto prémio do seguro pelo qual não recebeu nada - isto é, apenas pelo equilíbrio. Será escravo de seus rendimentos máximost 2• Contudo, se isso é t1m mau negócio, dependerá d(Õ fatos não especificados, entre eles a questão de quantas pessoas se pode esperar que tenham os talentos necessários para atingir o mais alto nível de rendimentos. De qualquer forrna, é provável que seja um negócio muito nrim. É bem diferente da situação que obviamente induz um grande número de pessoas a fazer apostas financeiras desvantajosas 11. Omiti a questão da tecnologla.que estará aces~íve! às seguradoras para decidir e sondar quem tem qual rúwl de talento, e o custo dessa tecnologia. Presumo que o computador terá essao; infonnações, em mna base de dados tccno!ógica, e JS usará para prever a estrutura de prê1nios e outros inci, dentes do contrato de seguro. Quando falo de "ganhar'' ou "perdet' a aposta dtJ seguro, falo em qualificar-se para a compensação 1Ju deixar de qualificar-se nos incidentes que o computador prevê. 12_ l:lle também pode correr o risco ainda maior de perder nos testes espedficados na apó!iCe e, contudo, nâo ter a capacidade de ganhar o nível coberto. Não dou ênfase a esse riscu porque ele presume falhas da te(nologi;i sobre as quais é impossívf·i especular. Por conseguinte, pn•sumo, à guisa de argumento, que ninguém estará nessa posição perigosa.

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em tantas loterias, que é pequena a chance de obter uma imensa forhma em troca de um custo muito pequeno. A decisão do seguro seria a aposta financeira, bem diferente e desvantajosa, de uma probabilidade ínfima de perda enorme em troca de uma probabilidade bem grande de um ganho

minúsculo, e nada na literatura da psicologia das apostas (a não ser, talvez, a literatura da roleta russa) dá apoio à idéia de que apostas desse caráter seriam populares. Nem a explicação de por que as pessoas adquirem apólices de seguros co1nuns financeiramente desvantajosas oferece apoio. Faço o seguro da minha casa porque a perda marginal de utilidade por um incêndio não-compensado é muito maior do que o preço de utilidade do prêmio. Mas as ponderações acerca da utilidade marginal iriam, quando muito, condenar, e n~o apoiar, a aposta de qualquer imigrante de que ele não teria os talentos necessários para alcançar a renda mais alta. Pois a 1nelhor aposta é uma disputa entre a probabilidade quase certa de um ganho minúsculo, e talvez imperceptível, contra a minúscula chance de uma perda enorme de bem-estar em termos financeiramente desvantajosos. Evidentemente, fazemos suposições ao presumir que quase ninguém teria uma curva de utilidade que tornasse tal aposta sensata em termos de be1n-estar. Todavia parece plausível que quase ninguém teria. Esse argumento prova muito? Prova que o seguro contra talentos ausentes, no modelo que descrevemos, quase sempre seria uma compra ruim para quase todos? Em caso afirmativo, aparentemente daí se seguiria que o dispositivo de seguro hipotético não ofereceria, afinal, orientações razoáveis para a redistribuição por meio do imposto de renda. Ou, talvez pior, poderia levar à afirmação de que nenhuma redistribuição seria justificada. Mas, de fato, o argumento não tem essa conseqüência, pois quanto mais baixo o nível de renda escolhido como risco a ser coberto, melhor se torna a presunção de que a maioria das pessoas, quando lhes é dada a oportunidade de comprar seguros em termos igualitários, compraria, de fato, naquele nível. O argumen-

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to toma-se atraente, eu acho, ao sancionar uma cobertura bem acima do nível de renda atualmente usado para acionar as transferências de pagamentos por desemprego, ou dos níveis de salário m.ínimo tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos. O argumento torna-se mais forte, enquanto o nível de rendin1entos escolhido declina pelos seguintes motivos. Primeiro, com a queda no rúveL aumenta a probabilidade de que qualquer pessoa tenha os talentos necessários para alcançar tal rendimento no auge de sua capacidade e, para um setor substancial de níveis de rendimentos em economias normais, aumenta ainda mais depressa do que o índice de declínio. Muito mais que o dobro das pessoas tem a capacidade necessária para ganhar a quantia que se ganha na casa dos 50% do que na dos 99% de uma distribuição normal de renda. Assim, o prêmio cai, pelo menos em uma escala considerável, mais rapidamente do que o índice de cobertura. Algo correspondente deve ocorrer com as probabilidades contra "ganhar'', é claro, mas a situação vai se aproximando estavelmente do caso normal de seguro, no qual as pessoas incorrem em uma determll1ada perda pequena para evitar uma improvável grande perda cujos custos marginais de utilidade são suficientemente graves para justificar uma transação financeira desvantajosa. Embora a perda financeira na queda em rendimentos, digamos, dos 70% para os 60%, seja muitíssimo maior do que a perda na queda dos 40% para os 30o/o, as c.onseqüências em bem-estar provavelmente seriam, em média, muito piores para a segunda queda. Além disso, quando o nível de renda coberta cai, também caem em importância as penalidades da "perda" da a.posta de seguro, que é ter a capacidade de alcançar pelo menos aquele nível de renda - o que, novamente, parece provável ocorrer em uma taxa mais veloz. Que1n "perde" nesse sentido precisa trabalhar com afinco suficiente para pagar o prêmio, antes de ter a liberdade de .fazer as comutações entre trabalho e consumo que poderia fazer se não tivesse se-

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guro. Se o nível de cobertura for alto, o segurado ficará escravizado, não apenas porque o prêmio é alto, mas porque é extremamente improvável que seus talentos superem em muito o nível que ele escolheu, o que significa que precisará realmente trabalhar à capacidade total, e que não terá muita escolha quanto ao tipo de trabalho a fazer. Só un1a forma de trabalho, e em tempo integral, teria a probabilidade de produzir a renda necessária para pagar o prêmio, o que a a ser um fardo. Assim, sua penalidacte apresenta desvantagens especiais de bem-estar, não men$uráveis em termos financeiros normais. São elas que tornam apropriado falar em escravidão . Porém, quando o nível de cobertura e, por conseguinte, de prêmio cai, essas desvantagens especiais de bem-estar não são mitigadas, mas na verdade desaparecem completamente.Toma-se provável, portanto, que qualquer pessoa com as qualificações necessárias para ganhar, digamos, no JÚvel dos 30%, terá também os talentos necessários para alcançar um nível mais alto e, assim, terá uma considerável libeI'dade de escolha em relação ao caráter do trabalho, e à mistura de trabalho e esforço e consumo adicional que prefere. Mesmo que ela "perca" por pouco a aposta de seguro, e tenha exatamente os talentos necessários para alcançar o nível de re.ndin1entos que cobriu, porém não mais, é provável que continue com uma grande liberdade de escolha. O prémio será pequeno e suficiente para sustentá-la, mesmo que trabalhe em um nível de renda mais batx:o do que p_oderia, em especial se estiver disposta a sacrificar bens de consumo. Ademais, há uma variedade maior de serviços que produzem um nível de renda mais baixo do que mais alto (pelo menos na maioria das economias complexas e em uma gama de níveis de renda), de modo que uma pessoa empenhada em ganhar tanto quanto possa terá, não obstante, mais escolhas de trabalho naquele nível mais baixo. Mesmo que tenha de trabalhar a toda velocidade e não tenha escolha de trabalho, sua situação é muito menos ruim do que se não tivesse feito seguro, pois, se o nível de cobertura é tão

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baixo que quase todos precisem ganhá-lo para ter uma vida razoável, essa pessoa teria trabalhado daquela maneira e, praticamente, somente dessa 1naneira, e se o prêmio fosse baixo demais, como de fato seria, ela não teria de trabalhar 1nuito mais para cobri-lo. Não seria escravizada de maneira muito diferente pelo próprio taJento, fazendo seguro, do que sua falta de talento a escravizaria se não o fizesse. Não obstante, o mercado hipotético de seguros poderia produzir anomalias óbvias. itamos que Deborah e Emest comprem seg1rro no nível dos 60%. Debora11 é bonita e poderia, de fato, alcançar o nível dos 90o/o como esh·ela de cinema.1.\'os outros aspectos ambos têm os mes·mos talentos e interesses, e esses outros talentos não chegariam ao nível dos60o/o. Emest se recupera sob a apólice, mas Deborah não. Ela se depara com a opção de uma carreira no cinema, que detesta, ou de tentar pagar o prémio e suas outras despesas com o salário que conseguir ganhar nos empregos que ela e En1est preferem. Emest consegue ter esse emprego e a compensação da apólice, e está, portanto, en1 situação muito melhort3. Essa vantagem é injusta? Aco:ntece que Deborah. está escravizada por seu talento singular. Mas isso porque ela correu o risco descrito pela compra do seguro em um nível de cobertura que exige um alto prê1nio de modo que poucos e1npregos poderiam produzir rendimentos que se aproximassem daquele nível. Emest correu o mesmo risco, mas teve u1na sorte opcional n1elhor. I)ortanto, a anomalia é so.mente mais um exemplo (e mais complexo) dos riscos indesejáveis em bem-estar do seguro de alto rúvel. Se Deborah e Ernest tivessem comprado seguro em um nível mais bilixo, o prêmio teria sido mais baixo e Deborah teria tido op, ções de emprego bem melhores do que a carreira cinema: tográfica. Ainda viveriam de maneiras difere11tes, mas adiferença seria bem menor, e seria, então, um marco (defensavelme11te) adequado do fato de que Deborah tinha uma 13. Thomas Sçanlon fon1eceu esse exe1nplo.

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opção que Emest não tinha. De qualquer forma, essa injustiça, se for injustiça, desapareceria em qualquer tradução plausível do mercado hipotético de seguros em um esquema real de tributação como o descrito na próxima seção. VI. Tributação como prêmio

Imagine.mos agora que o computador determine o nível médio de cobertura que se atingiria no mercado hipotético de seguros e declare que determir1ado prémio é o exigido por tal nível. Os prê.mios seriam uma proporção sufi:cientemente pequena da cobertura, de tal modo que (para a média) o bem-estar esperado com o seguro seria mais alto que o esperado sem que o faça. }'aderíamos traduzir essa estruhlra hipotética de seguros em um esquema de tributação? Poderíamos basear os índices de impostos no prêmio presumido e, depois, fazer a redistribuição pagando, àqueles que não têm capacidade para alcançar o nível presumido de cobertura, a diferença entre esse nível e o que pode1n ganhar? É possível assumir que qualquer esquen1a de tributação criado com base no mercado hipotético de seguros dessa forma teria defeitos b:rraves. Em primeiro lugar, parece injusto que todos, tanto ricos quanto pobres, paguem o mesmo imposto, mas isso seria uma aparente co11seqüência de basear os índices de tributação em prémios hipotéticos. Em segundo lugar, a exigência de que tanto a incidência quanto a quantidade de pagamentos provenientes do fundo dependam do que o beneficiário poderia ganhar, se estivesse disposto, parece ineficaz e problemático em diversos aspectos. Poderia ser muito caro fazer vigorar tal exigência, e na prática ela incentivaria algumas pessoas a trapacear e omitir as habilidades. De qualquer maneira, nem as pessoas honestas têm condições de saber o que poderiam ganhar em determinada ocupação sem tentar e, no caso de algumas profissões, é impossível tentar sem ar metade da

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vida se preparando. Assim, seria necessária uma bateria de novos testes para descobrir talentos latentes, q11e estaria vulnerável a todos os tipos de erros. Mas essas objeções fazem certas suposições sobre co.mo

seria o mercado hipotético de seguros, e essas suposições são injustificadas e provavelmente falsas. Imaginemos que as companhias de seguros oferecesse1n, no lugar de um prêmio fixo para deter.minada cobertura, presumindo nas objeções, um prêmio definido como percentual crescente da renda que o portador da apólice venha a receber. O prémio

de quem mal con·segue atingir a quantia da cobertura média seria inferior ao prêmio que o mercado de seguros teria

determinado com base em uma taxa fixa, embora o prémio àquele que recebesse muito mais fosse bem maior. As companhias de seguros teriam razão para oferecer esse esquema diferente se o total de prêmios pagos fosse maior, e os in1igrantes que comprassem seguros teriam razão para aceitálo se a mudança aumentasse seu bem-estar esperado sob as condições de riscos iguais que estipulamos. Já qtle presumimos o decréscimo da utilidade marginal do dinheiro na faixa em questão, como parte das hipóteses sobre as quais especulamos que o seguro seria comprado, essas condições serão atendidas. Os imigrantes prefeririam uma "aposta" cujo custo fosse uma função crescente de sua renda, e prefeririam-na no rúvel suficiente para dar lucro às companhias de seguros, mesmo contabiliza11do os custos istrativos mais altos de um esquema de prêmios progressivos. Ai; companhias também teriam motivos para reduzir o que as seguradoras chamam de "risco moral" de tal seguro - a probabilidade de que o seguro venha a tomar o risco coberto ainda mais provável de acontecer, ou o nível de cobertura mais alto, caso acontecer- para transferir parte de sua poupança aos segurados como incentivo para aceitarem as restrições necessárias. Uma técnica que as seguradoras utilizam atualmente com essa finalidade é o co-seguro. As apólices de seguro de automóvel, por exemplo, estipulam que o proprietário deve assumir as primeiras centenas de dóla-

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res em danos antes que a seguradora cubra o restante das despesas. Em nosso caso, oco-seguro significa que, se um dos imigrantes não conseguir ganhar o suficiente para pagar o montante da cobertura média, ele receberá um. pouco menos que tal montante em contrapartida. É claro que as pessoas querem comprar seguros com cobertura superior que inclua co-seguro, e não sem co-seguro, embora um prêmio mais baixo que o valor mais alto também fosse atraente, o que significa que o rúvel médio de cobertura seria mais alto do que em um esquema sem co-seguro. Mas, se a redução do risco moral resultasse em uma economia significativa para a companhia de seguros (é o que inicia o ressentimento popular em relação aos engodados existentes nos programas de assistência social nos Estados Unidos), então a economia no prêmio ao longo da faixa também seria substancial; caso isso aconteça, a cobertura pre"sumida seria, de fato, mais alta em um regime de co-seguro. Quanto de co-seguro se obteria -por quanto o pagamento dos que deixassem de receber o montante coberto deixaria de alcançar aquele montante e qual seria a conseqüência sobre a estrutura de prêmios e o nível presumido de cobertura - só depende das informações que já foram fornecidas ao computador. O problema e o custo da exatidão para definir as capacidades reais de ganho das pessoas tornam-se, com o coseguro, menos prementes para a seguradora. ElE: reduz nitidamente os motivos que as pessoas têm para não ganhar pelo menos o montante coberto, a fim de declarar que não consegue1n obter tal ganho. Mas a seguradora tem outro recurso para reduzir o custo da exatidão o suficiente para baratear os prêmios e, assim, tomá-lo atraente para os segurados. Já que os segurados quase sempre terão mais informações sobre suas capacidades e oporturúdades que a seguradora, há espaço para uma poupança conjunta, cabendo aos segurados o ânus da prova. É de esperar que esse ônus será mais rígido para a cobertura nos níveis mais altos do que nos mais baixos, porque sempre é difícil provar que alguém não poderia ter tido uma profissão para a qual

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A VlRTUl)E SOBERANA

é necessária uma formação ou treinamento especial, a não ser que a pessoa. a tenha exercido. Contudo, se estou certo ao dizer que o nível médio de cobertura seria relativamente

baixo, não precisamos nos dedicar a esse problema. Nos níveis mais baixos, será fácil fornecer a prova por meio das

tentativas fracassadas de encontrar emprego ou por provas

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de capacidade física ou mental abaixo da média etc. Ac;sim, o perfil do seguro previsto pelo computador pro-

vavehnente será-muito mais complexo do ql1e a estrutura simples que o nosso precário sistema de tributação copiou. Se os imigrantes traduzirem esse esquema mais complexo de seguros em um programa de tributação, chegarão a um modelo mais reconhecível de impostos. Eles podem definir

um imposto de renda graduado que financie a transferência de pagamentos no montante da diferença entre q nível médio de cobertura e o fator de co-seguro, e o que o requerente pode discutir de maneira plausível é a mais alta renda que ele possa de fato exigir. Esse exercício, certamente, não precisa nem deve parar neste ponto. Ponderações adicionais sobre o mercado hipotético de seguros poderia elaborar n1ais aprimoramentos e ajustes ao programa correspondente de tributação. E poderiamas decidir que um esquema de tributação deveria diferir da n1elhor aproximação desse mercado hipotético por outros motivos. Poderíamos decidir que um programa de tributação tão intimamente modelado pelo mercado agride a privacidade, ou é caro demais em custos adnúnistrativos, ou ineficaz em outros aspectos. Ibderiamos decidir, por essas ou outras razões, que um programa que vinculasse a redistribuição aos rendimentos reais, e não à ca; pacidade de ganho, por exemplo, seria uma melhor segu.n. da aproximação do ideal da simulação do mercado de seguros do que qttalguer outro programa que elaborássemos. Mas quero deixar de lado, por ora, qualquer estudo aprofundado dessas quest0es, pois creio que a levamos suficientemente longe para justificar que nos voltemos agora para outra questão. É a abordagem geral sensata? O progra-

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ma de tributação criado como tradução prática de um mercado hipotético de seguros, que presume bens iniciais iguais e riscos iguais, é uma solução adequada para o problema dos talentos diferentes na igualdade de recursos? Ele pode ser criticado de dois pontos de vista: ou porque não justifica uma redistribuição suficiente ou porque justifica demasiadame11te a redistribuição. A segunda objeção parece a mais fraca das duas. Recordemos as restrições adversárias que descobrimos. A igualdade requer que aqueles que escolhem meios inais dispendiosos de viver - o que in dui a escolha de ocupações menos produtivas avaliadas pelo que os outros querem- tenham como conseqüéncia menores rendimentos residuais. Mas também requer que ninguém tenha menos rendimentos simplesmente por ter menos talento inato. Qualquer objeção de que a transferência de pagamentos orientada pelo mercado hipotético de seguros é grande de1nais deve indicar um sério perigo que se correu ao atribuir pouco peso ao primeiro desses reqltisitos. Se o mercado hipotético de seguros, porém, justificar a escolha de det~rmi11ado nível como cobertura média presumida, este será um forte argumento a favor da probabilidade de que qualquer imigrante está disposto a trabalhar em uma das ocupações que produziria rendimentos daquele rúvel, em vez de um rendimento inferior, se a opção estivesse disporúvel. Caso contrário, ele correria um risco grande demais ao assumir o pagamento de um prémio que só faz sentido para quem estiver disposto a auferir os rendimentos necessários para sustentá-lo, em especial se o nível médio for suficientemente baixo para que houvesse grandes chances de ele fazer exatamente isso. Ele pode estar disposto a fazê-lo porque uma vasta gama de ocupações, adequadas a personalidades bem diferentes, produziria tal nível de renda, ou porque esse nível é necessário para levar o que a cultura popular considera um estilo de vida aceitável, ou, mais provavelmente, ambos os motivos. É claro que na realidade essa opção contrafactual favorárel seria insustentável no caso dos que carecem

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dos talentos apropriados, ou dos q11e não encontram en1prego no mercado de trabalho por algum outro motivo. Alguns desses imigrantes não fariam seguro no nível médio de cobertura, mesmo que estivesse disponível. Mas isso apresenta a questão de avaliar a importância relativa das duas restrições a uma teoria da redistribuição para talentos diferentes. Tomar o nível médio de cobertura como decisivo, o que nós fizemos, é u1n modo adequado de avaliá-las de maneira igualitária14. lsso supõe que não é pior errar do lado da redistribuição para alguém que não teria feito seguro do que negar a redistribuição a quem o tivesse feito. Talvez alguém seja capaz de demonstrar que isso está errado e, conseqüentemente, justificar, como modelo de redistribuição pela tributação, um número mais baixo para que sejam bem fortes as chances, talvez até esmagadoFas, de que qualquer pessoa fizesse seguro naquele nível. Porém não conheço nenhum argumento a favor dessa tese. Thlvez a diferença entre o nível médio de cobertura e algum nível mais baixo não fosse muito grande. Isto é, talvez as curvas de tttilidade da maioria das pessoas fossem muito parecidas nos percentuais mais baixos da possível cobertura. I\.fas essa é apenas uma dentro da legião de questões quase técnicas que não tento discutir aqui. À objeção contrária, de que a transferência de pagamen·· tos com base i10 nível médio de cobertura não é suficiente, é mais difícil responder. Poderia ter apoio em dois modos diferentes.Poder-se-ia dizer que a abordagem do se&ru.ro hi-

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14. Como no c.aso das deficiências, optei por fazer com que o pagamento dos pr€mios e, portanto, dos impostos ficasse no nível médio de cobertura para simplificar. Eu poderia, naturalmente, terescolhi
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patético é a maneira equivocada de tentar conciliar as duas exigências que descobrimos; ou que a abordagem do seguro hipotético é correta, mas requer a transferência de pagamentos em 1úvel mais alto. O segundo argumento talvez concorde com a objeção que acabo de dCscrever, de que os dois requisitos da igualdade na estrutura de recompensa não têm o mesmo peso, mas insiste que é muito pior negar pagamento a alguém que teria feito seguro do que oferecêlo a alguém que não o teria feito. Insiste, em outras pala·vras, que o nível escolhido de cobertura presumida deve ser um nível que tome bem improvável que alguém fizesse seguro acima de tal rúvel. Novamente, vale observar que esse nível poderia não estar muito acima do nível médio de cobertura. Vimos, anteriormente, os motivos por que qu,ase ninguém faria seguro em um nível muito alto de renda. Mais uma vez, contudo, rião explorarei a questão técnica levantada, mas apenas deixar a sugestão de lado até que se faça uma argumentação substancial em favor da deferê.nda especial a uma exigência de igualdade na estrutura de recompensa em detrimento da outra. Não obstante agora devemos entmciar e analisar o importante argumento de que o mercado hipotético de seguros é a abordagem inadequada para o problema de reconciliar essas duas exigências, pois deprecia as transferências de pagamentos devido às pessoas cujos talentos não sejam muito solicitados. A abordagem do mercado hipotético de seguros pretende deixar essas pessoas na posição em que estariam se _o risco de seu destino tivesse sido subjetiva e simetricarriE!nte compartilhado. Mas isso não as toma tão bem de vida, afinal, quanto aquelas cujos talentos são mais procurados, ou aquelas com talentos semelhantes que têm a sorte de encontrar empregos mais lucrativos. Algumas pessoas (estrelas de cinema, empresários e astros do bcisebol) de fato têm rendimentos muito mais altos do que o índice de cobertura gue qualquer pessoa racional escolheria em um m.ercado de seguros, como restou demonstrado. O mercado hipotético de seguros não vem ao caso (pode-se dizer)

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exatamente porque não oferece resposta a alguém que, não conseguir1do emprego, aponta para a estrela de cinema e declara, de modo preciso, que faria tal trabalho por aquela remuneração, se lhe pedissem. O fato de. que ninguém compraria uma cobertura no nível de uma estrela de cinema em

um mercado igualitário de seguros sublinha a injustiça. A estrela de cinema não tinha necessidade de comprar tal seguro. Conquistou sua vida de glarnour e luxo sem ele. Permanece o fato de que algumas pessoas têm muito mais que outras daquilo que ambas desejam, embora não haja nisso um motivo vinculado à escolha. O teste de cobiça que parecíamos respeitar foi decididamente derrotado, e nenl1um

conceito defensável de igualdade pode argumentar que a igualdade recomenda i:al resultado. Essa é uma queixa poderosa, e não há resposta, acho,--. além de resumir e reapresentar nossos argumentos anteriores para ver se ainda convencem com essa queixa .ressoando em nossos ouvidos. Voltemos aos imigrantes. Claude não pode argumentar, com base na igualdade, a favor de um mundo no qual ele tenha oS rendime11tos d~ estrela de cinema. Os imigrantes não podem criar um mundo no qual todos que estivessem dispostos a trabalhar tantas horas quanto as estrelas de cinema recebessem um pagamento de estrela de cinema. Se Claude está descontente com essa situação, mesmo depois que o progran1a de tributação entra em vigor, ele deve propor um mundo no qual ninguém terá tal renda e sua renda será relativamente (e talvez absolutamente) mais alta em conseqüência disso. Mas tal mundo proposto por ele será modificado não só para aqueles que, sob o nosso programa, teriam mais do que ele, como para todas as outras pessoas também, inclusive aquelas que, por ·quaisquer motivos, entre os quais suas preferências de trabalho, lazer e consumo, terão 1nenos. Se, por exemplo, ninguém conseguiu auferir os mesmos salários das estrelas de cinema, as pessoas que desejan1 ver fihnes talvez encontrem um preço diferente para os ingressos, e que, com ou se1n razão, não co11siderarão d.o mesmo modo o quanto e]as têm

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agora. Certamente é impossível dizer com antecedência quais seriam as conseqüências de qualquer mudança profunda em um sistema económico e quem ganharia ou perderia a ·longo prazo. Essas mudanças não poderiam ser.adequadamente rastreadas em uma simples dimensão. Não poderiam ser avaliadas simplesmente nas rubricas ou outros "bens primários" disponíveis para uma ou outra classe económica, por exemplo, pois também afetam os preços e a escassez de diversos bens e oportunidades aos quais os membros.de qualqt1er classe, até mesmo uma classe económica, valoriza_ção de modo muito diferente uns dos outros. Foi exatamente por isso que os imigrantes escolheram um leilão, sensível ao que as pessoas queriam de fato para si, como seu motor primário para alcançar a igualdade. Assim, embora.Claude possa dizer que a diferença entre ele e a estrela de cinema não expresse nenhuma diferença em gostos, aspirações ou teorias do bem, e logo não implica, em s·~ nossa primeira exigência de igualdade na estrutura de recompensa, sensível à ambição, ele não poderia recomendar nenhl.tma mudança geral nas posições económicas relativas que não infligissem mudanças totais e impressionantes na posição de outros, mudanças que implicam essa exigência. É claro que esse fato em si não elimina nenhuma mudança que· Oaude pudesse propor. Pelo contrário, o status quo alcançado pela produção e pelo comércio laissez-faire a partir de um início igualitário não tem status natural 01.1 privilegiado, como tenho 1ne empenhado em salientar, principalmente em meu argumento contra a teoria da igualdade da linha de largada. Se Oaude conseguir provar que uma concepção adeq11ada de igualdade de recursos recomenda alguma mudança, o fato de que muita gente, de diversos setores, ficaria então em situação pior, dados seus gostos e aspirações, não oferece nenhuma objeção, assim como o fato de Oaude estar em situação pior sem alguma mudança não oferece por si mesmo um argumento favorável a tal mudança. Pretendo salientar somen-

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te que Claude precisa de um argumento a favor da mudança recomendada, que é independente de sua própria situação relativa. Não basta que indique pessoas, mesmo as que têm as mesmas aspirações e gostos que ele, que se dêem melhor nas circunstâncias atuais. O argumento do mercado hipotético de seguros é exatamente esse. Ele contrasta dois mundos entre si. No primeiro, aqueles que estão em p.:>sição relativamente desvantajosa devido aos gostos e às am.bíções de outrem, vis-à-vis seus próprios talentos para produzir, são conhecidos antecipadamente e arcam com todas as conseqüências de tal desvantagem.No segundo, mantém-se o mesmo padrão de desvantagem relativa, mas todos têm, subjetivamente, uma oportunidade a11tecedente simétrica de sofrê-la e, assim, todos têm as mesmas oportunidades de mitigar a desvantagem fazendo seguro contra ela. O argumento presume que a igualdade prefere o segundo mundo, porque é um mundo no qual os recursos do talento estão, em um sentido importante, mais igualme11te divididos. O argumento do seguro hipotético pretende reprod11zir as conseqüências do segundo mundo, da maneira mais aproximada possível, em um mundo real. Atende àqueles que se dariam melhor no primeiro mundo (entre eles, n1uitos dos que teriam muito mais dinheiro à disposição no outro) por meio da simples proposição de que o segundo é um mundo que, independentemente de-como as coisas funcionam para eles, dados seus gostos e aspirações, está mais próximo da igualdade de recursos. A disponibilidade desse argumento não impede a produção de outros que demonstrem como alguma mudança posterior aprimoraria ainda mais a igualdade de recursos. ; Contudo, é difícil prever que grande motivo teríamos para procmar mais argumentos, se o argumento do seguro hipotético fosse de fato aceito e posto em vigor, por exemplo, no caso dos nossos imigrantes. Isso dependeria, entre outras coisas, de como demonstrar qual nível de renda seria o rúvel médio de cobertura nessa sociedade. Talvez as disparidades entre fortunas fossem tão reduzidas pelas características da

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economia que já descrevemos, que teríamos muito menos problemas do q11e poderíamos prever com antecedência com base nas desigualdades de riqueza que permaneceriam. De fato, talvez os custos da eficiência geral até mesmo dessas características fossem tão altos, que aqueles que estivessen1 preparados para comprometer a igualdade de recursos, em prol da utilidade geral ou de algum? estratégia para melhorar ao máximo a vida das pessoaS; em pior situação, acabariam argumentando que até mesmo essa igualdade seria condenada por sua concepção mais abrangente de justiça. É claro que muitos dos filósofos e teóricos políticos que se opõem à desigualdade estão preocupados não somente com a pobreza em termos absolutos dos que estão na base da pirâmide, todavia com o que se poderia chamar de custos morais d~ uma sociedade com substancial desigualdade de riquezas, custos que permanecem, e às vezes chegam a ser exacerbados, quando a posição dos mais desprivilegiados melhora nitidamente, mas a desigualdade permanece. Seria um erro, porém, supor que as posturas bizarras e mutuamente dependentes em relação à riqueza que marcam a nossa própria sociedade - as idéias de que a acumulação de riqueza é um sinal de uma vida bem-sucedida e que quem organizou sua vida para isso é um objeto adequado de cobiça, em vez de solidariedade _ou consideração - encontrariam apoio em um sistema econômico livre da pobreza genu.ína e que incentive as pessoas, como o leilão inicial as incentiva, a considerar a riqueza na conta bancária mero ingrediente, entre outros, do que poderia fazer uma vida valer a pena ser vivida. Em nosso mundo, essas posturas são mantidas e alimentadas pela suposição de que a vida dedicada à acumulação de riquezas ou ao consumo de luxos - cujo grande apelo reside no fato de estarem reservados aos muito ricos-é uma vida de valor para as pessoas que só têm uma chance para viver. Essa afirmação aproxima, tru1to quanto pode, qualquer teoria da vida boa do mais puro absurdo.

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Não há dúvida de que é uma questão importante para a psicologia social e para a história intelech1al saber como tal afirmação encontra amparo em qualquer sociedade. F..la foi, afinal, condenada em toda literatura, ou qualquer outra forma de arte levada a sério por longo tempo, até em comunidades profundamente capitalistas, e embora eu compreenda a possibilidade de que sua rejeição na arte seja parasitária de sua aceitação impensada na vida, até os protestos das formas mais populares de arte, não obstante, aumentam o mistério. Minha presente questão é muito mais banal do que qualquer tentativa de resolver esse mistério. É simplesmente esta: que somos tão ignorantes com relação à genealogia complexa das atitudes implaus'Íveis sobre a riqueza que encontramos à nossa volta, às quais são deploradas pelos que indicam os custos morais do sistema de mercado, que seria errado supor com antecedência.que essas mesmas atitudes surgiriam em um sistema de mercado cuja própria finalidade fosse incentivar o tipo de exame reflexivo com relação a custos e ganhos, sob o qual essas atitudes muito provavelmente definhariam e desapareceriam. Porém, é importante tentar descobrir argurne11tos que demonstrem que a igualdade de recursos, enquanto ideal distinto, recomendaria eliminar até mesmo as diferenças em riquezas que a argumentação do seguro hipotético permitisse, e esse projeto não é ameaçado pela minha incerteza quanto a se deveriamos nos sentir desanimados, ou considerar nossas intuições a·baladas, se, de fato, não descobríssemos nerthum. Não duvido que seja possível descobrir tais argumentos, e provocá-los faz parte do meu objetivo. Mas vale mencionar certos argumentos que não parecen1 , prom.issores. Pode-se dizer, por exemplo, que a igualdade de recursos aprovaria ainda um outro m·undo, no qual as pessoas de fato tivessem talentos iguais para a produção, mais do que os outros dois que descrevi, de modo que devêssemos lutar pela criação de um sistema no qual as diierenças em riquezas com origem na ocupação não fossem 1naiores do que seriam nesse mundo. Há uma questão im-

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portante nessa afirmação: que uma sociedade igualitária deve1 simplesmente cm notne da igualdade, dedicar recursos especiais para treinar aqueles cujos talentos os colocam em uma posição mais baixa na escala de rendimentos. Isso faz parte da questão mais ampla da teoria da igualdade na educação, que não tentei abordar aqui Porém, a questão mais geral sofre com o fato de que não poderíamos nem mesmo começar a fazer a réplica da distribuição da riqueza que emergiria nesse mnndo diferente sem formular hipóteses sobre a 1nistura de talentos que todos nesse mundo compartilhariam em igual abundância, e nenhuma especificação da mistura poderia ser neutra enl:re as diversas aspirações e gostos do mundo real no qual tentamos realizar tal réplica. Suponhamos que alguém diz simplesmente (e com uma respeitável impaciência) ·que a igualdade de recursos deveria preferir um mundo no qual as pessoas tenham mais igualdade de riquezas do que provavelmente terian1 em um mttndo de livre comércio, mesmo com um pano de fundo das mesmas riquezas iniciais e corrigidas pelo mercado hipotético de seguros. Negar isso (pode-se dizer) é simplesmente preferir outros valores à igualdade, para não d.izer urna concepção aceitável da própria igualdade. 'É claro que isso é exatamente o que meus argumentos pretendiam refutar. Quando entendemos a importância, na igualdade de recursos, da exigência de que qualquer teoria da distribuição deva ser sens.ível às aspirações, e entendemos os efeitos gerais de qualquer programa de distribuição ou redistribuição na vida que quase todas as pessoas da comunidade querem e têm permissão para levar, devemos encarar com desconfiança qualquer afirmação categórica de que a igualdade de recursos precisa apenas ser definida de maneira a ignorar esses fatos. A igualdade de recursos é um ideal complexo. É, provavelmente (assim como a:finnam os diversos argumentos que discutimos aqui), um ideal indeterminado que aceita, dentro de certa variação, uma série de distribuições. Mas esta parte parece clara: qualquer concepção defensável

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desse ideal deve estar atenta para suas diversas dhnensôes, . e não rejeitar de antemão a exigência de que seja sensível ao custo da vida de uma para outra pessoa. A presente sugestão, de que as genuínas teorias da igualdade devem se preocupar somente com a quantidade de bens disponíveis ou ativos líquidos no poder das pessoas em determinado momento, é um dogma pré-analítico que não protege de fato as fronteiras do conceito de igualdade da confusão com outros conceitos, mas, pelo-contrário, distorce a tentativa de exp.rimir a igualdade como um ideal político independente e poderoso.

VII. Outras teorias da justiça Não vale a pena repetir quão distantes estaS observações estão de uma teoria completa da igualdade de recursos, mesmo em condiçQ~_s simples e artificiais como as da sociedade de imigrantes:Nada se disse, por exemplo, sobre até que ponto a igualdade, propdamente dita, restringe as pessoas a dar aos outros
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cial, significaria para o mundo real. Também reservei para outra ocasião toda a questão da igualdade de poder político, embora, como assinalei no início, seja ilegítimo considerar a igualdade política um assunto completamente distinto da igualdade económica. Não obstante, já percorremos wn bom caminho e seria útil comparar a direção na qual estamos seguindo com as direções de certas teorias importantes da justiça atualmente em voga. Deve estar razoavelmente claro como a concepção de igualdade aqui defendida é diferente da igualdade de bemestar, a teoria analisada no Capítulo 1. Não há nada na idéia de um leilão igualitário inicia~ seguido por comércio e produção limitados por uma bibutação que imita o mercado hipotético de seguros, que ou tenha por objetivo a igualdade em qualq·uer conceito de bem-estar, ou venha a convergir na direção de tdl igualdade. De fato, não há lugar na teoria, conforme até aqui elaborada, mesmo para comparações dos níveis de bem--estar das diversas pessoas. A teoria emprega a idéia dos níveis individuais de utilidade, por exemplo, nos cálculos que recomenda com relação a como as pessoas se comportariam em certos mercados hipotéticos. Mas esses cálculos só u,tilizam o conceito bem anti-séptico de utilidade proposto por John von Neumann e Oskar Morgenstern15, entre outros, em vez das outras concepções mais complexas e criteriosas de bem-estar que são necessárias para as comparações interpessoais, sobre cujas deficiências discorri no Capítulo 1. Pode muito bem haver conexões interessantes entre a teoria aqui descrita e alguma fonna de utilitarismo, que comanda a maximização de algum conceito de bem-estar geral, em vez da igualdade em sua distribuição. É claro que não se pode esperar que a nossa teoria, na íntegra, maximize qualquer conceito de bem-estar em toda a sociedade, a não ser adotando suposições especiais e bem extravagantes 15. John von Neumann e Oskar Morgensten1, Thr: Th.eory o/Games and ~ ed. (Princeton: Princeton Ulliversity Press, 1980).

Eco11omic Behaviar,

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sobre as funções de utilidade individual. A sup0sição de que as pessoas devem entrar na atividade económica com recursos iniciais simétricos, por exemplo, seria um teorema duvidoso para o utilitarista, e não um axioma fundamental. Não obstante, a idéia de um leilão igualitário de bens e serviços, partindo de uma distribuição abstrata igualitária do poder econômico, pareceria insinuar uma tendê11cia utilitarista na teoria, porque o leilão promoveria a utilidade geral melhor do que uma divisão mais mecânica dos bens disponíveis em quinhões iguais. Acho que essa semelhança, se realmente existir, não é inteiramente acidental. Pelo contrário, o utilitarismo deve parte de sua atração, creio, ao fato de que em certas circunstâncias uma distribuição qt1e eleve ao máximo a utilidade marginal geral, a partir de uma distribuição fundamental intuitivamente justa, também seria recomendada pela presente concepção de igualdade. Isso é verdadelro de forma ainda mais evidente para a teoria da j11stiça aplicada. à maximização da riqueza, que é prima do utilitarismo e atualmente com bastante popularidade entre os advogados acadêmicos. Essa teoria argumenta que, pelo menos em certas circunstâncias, a distribuição que maximize a riqueza marginal é justa. As circunstâncias nas quais a teoria d.a maximização da riqueza parece intuitivamente plausível16 são, de fato, apenas as circunstâncias nas quais a nossa concepção de igualdade talvez recomendasse a decisão que realmente maximize a riqueza. A con1binação geral entre nossa concepção de igualdade e a teoria da maximização da riqueza talvez seja mais íntima do que a con1binação da riossa concepção de igualdade com o utilitarismo17. Mas, em ambos os casos, conquanto se mantém 16. Como sempre aconteçe, penso eu, nos çasos concretos da (.Wnrrw11 law quando os que se beneficiariam e os que perderiam çon1 a introdução de

qualquer nova lei são, ou deve-se assunúr que sejan1, classes tnais ou 1nenos e1n seu comando de recursos. Ver R. Posncr, "The Ethical and Political Basis of the Efficiency Norrn in Cornmo11 Law Adjudication", Hofetro Law Revíew 8 (1980); 487. 17. Ronald Dworkin, ''Why Efficiency?'', Hofatro LmoReview 8 (1980): 563. iguai~

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0 presente argumento, a conexão é apenas unilateral A dístribuiçâo que une as duas teorias é justa porque a igualdade, e não a maximízação da utilidade ou da riqueza, arecomenda. Existem conexões pelo menos superficiais entre a teoria da igualdade de recursos aqui sugerida e as diversas formas da teoria lockeana da justiça na propriedade privada, especialmente na ilustre e influente versão de Robert Nozick. É claro que as diferenças, mesmo as s11perficiais, são mais marcantes. Não há lugar cm uma teoria como a de Nozick para algo semelhante à idéia de uma distribuição igualitária do poder económico abstrato para todos os bens sob controle social. Mas tanto a teoria de Nozick quanto a igualdade de recursos, conforme descríta aqui, atribuem uma posição de importância à idéia de mercado, e recomendam a distribuição obtida por um Ínercado adeq11adamente definido e . Pode ser que as partes dos argumentos de Nozick que parecem h1tuitivamente mais persuasivas se baseiem em exemplos nos quais a presente teoria alcançaria resultados bem semelhantes. O famoso exemplo de Wilt Chamberlain é um caso en1 questão. Nozick supõe uma distribuição igualitária da riqueza seguida por um comércio não obrigatório para vantagens mútuas, no qual muitas pessoas pagam uma pequena quantia para ver Chamberlain jogar basquete e, depois disso, ele enriquece e a riqueza deixa de ser equânime. A igualdade de recursos não denunciaria tal resultado, considerado em si. A riqueza de Charnberlain expressa o valor que tem para os outros o fato de levar a vida do jeito que ele leva. Sua riqueza maior, no fim do processo, atribui-se, evidentemente, a seu maior talento, e somente em pequena parte (podemos supor) ao fato de que está disposto a levar uma vida que outras pessoas não estariam inclinadas a levar. Mas quase ninguém teria comprado, no mercado hipotético de seguros que descrevemos, um seguro contra a ausência dos talentos que proporcionam tal riqueza. Esse seguro seria, para quase todos, um investimento nitidamente

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irracional. Nossa discussão, portanto, não justificaria a tributação da riqueza de Chamberlain pára redistribuição a ouITos não tão afortunados, se atentarmos somente para o fato, como faz Nozick, de que os outros têm muito menos riqueza do que ele. No entanto nossa discussão deixou em aberto- ao contrário da de Nozick - se os argumentos que justificam tal redistribuição encontrar-se-iam em um estudo mais profundo das circunstâncias reais nas quais se acumulam riquezas como a de Chamberlain. Suponhamos que Chamberlain jogue basquetc, não em uma comunidade cuja única disparidade de riquezas esteja na enorme fortuna dele em comparação com a riqueza simétrica de todos os outros, cada um dos quais tendo apenas um pouquinho me11os do que a distribuição mais igualitária que possamos imagjnar, porém no início da década de 1970 na Filadélfia. Muita génte, contudo, ganha menos que a cobertura média presumida de um mercado hipotético de seguros plausível para tal sociedade; portanto, mesmo que venhamos a supor que as complexas diferenças em riqueza que encontramos sejam todas oriundas da falta de talento, e não da falta de um início igualitário (o que é absurdo), ainda precisamos elaborar um sistema de tributação que faça a redistribuição para essas pessoas, e será necessário que Chamberlain contribua com esse sistema. De fato, já que a nossa argun1entação justificou a conclusão de que os prêmios do 1ncrcado hipotético de seguros teriam taxas progressivas, com base nos rendünentos recebidos, Chamberlain teria de contribuir mais do que qualquer outra pessoa tanto absolutamente quanto como percentual de seus rendimentos. Quando se amplia adiscussão dessa forma, a igualdade de recursos ultraa bastante os limites do Estado 1nínimo. A diferença no uso que as duas teorias fazem do mercado está, portanto, bem clara. Para Nozick, o papel do m.ercado na justificativa das distribuições é negativo e contingente. Se alguém adquiriu algo com justiça, e decide trocá-lo por bens ou serviços posteriores de 011trem, não se

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pode fazer objeção, em nome da justiça, à distribuição resultante. A história da transação preserva-a contra ataques e, em seu modo negativo, autentica seu pedigree moral. Não há espaço, nessa teoria, para nenhuma forma de mercado hipotético, a não ser no caso especial do ressarcimento de injustiça demonstrada no ado, pois Nozick não utiliza o mercado (como, por exemplo, alguns maximizadores da riqueza o fazem) sin1plesmente para definir mais uma das que ele chama de teorias da justiça "padronizadas". A justiça nãoconsiste na distribuição a que chegaria um mercado justo de pessoas racionais, mas na distribuição a que se chegou, por questão de contingência histórica, por meio de um processo que poderia, mas não necessita, incluir quaisquer transações de mercado. Na igualdade de recursos, o mercado, quando entra, o faz de maneira mais positiva, porém também mais servil. Entra porque foi endossado pelo conceito de igualdade como o melhor n1cio de garantir, pelo menos até certo ponto, o requisito fundamental de que somente uma parcela igualitária dos recursos sociais seja dedicada à vida de cada um de seus membros, confo.nne avaliada pelo custo de oportunidade de tais recursos para os demais. Mas o valor das transações reais no mercado termina exatmnente nesse ponto, e é preciso abandonar ou restringir o mercado quando a análise demonstra, de qualquer direção, que fracassou em sua missão, ou que um dispositivo teórico ou institucional completamente diferente seria melhor. Os mercados hipotéticos têm, com esse intuito, nítida importância teórica para os mercados reais. Temos menos certeza quanto a seus resultados, mas temos muito mais flexibilidade na sua criação, e a objeção de que não têm validade histórica ~implesmente não vem ao caso. Direi algo, finalmente, sobre as semelhanças e as diferenças entre nossa concepção de igualdade de recursos e a teoria da jttstiça de Jolm Rawls. Essa teoria é suficientemente rica para proporcionar uma base de comparação em dois níveis distintos. Em primeiro lugar, até que ponto os ar-

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gumentos a favor da igualdade de recursos, conforme descrita, obedecem. à estrutura do argumento de l~wls? Isto é, até que ponto se baseiam na hipótese de que as pessoas na situação original descrita por Rawls escolheriam os princípios da igualdade de recursos sob o véu da ignorância? Em segtmdo lugar - e independentemente - até que ponto as exigências da igualdade de recursos diferem dos dois princípios de justiça que Rawls afirma que as pessoas em tal situação escolheriam de fato? É obviamente melhor começar com a segunda das perguntas. A comparação em questão é entre a igualdade de recursos e o segundo princípio de justiça de Rawls, cujo principal componente é o princípio da "diferença", que não requer variação da igualdade absoluta nos "bens primário-s", exceto para o benefício da classe econômica em pior situação. (O primeiro princípio de Rawls, que estabelece o que ele chama de prioridade da liberdade, tem mais a ver com os tópicos que deixei de lado por pertencerem à igualdade política, discutidos no Capítulo 4.) O princípio da diferença, assim como a nossa concepção de igualdade de recursos, só funciona de maneira contingente na direção da igualdade de bem-estar, etn qualquer concepção de be1nestar. Se fizermos uma distinção ampla entre as teorias da igualdade de bem-estar e de recursos, o princípio da diferença é uma interpretação da igualdade de recursos. Contudo, é ltma interpretação bem diferente da i1ossa concepção. Do ponto de vista de nossa concepção, o princípio da diferença não está suficientemente aprimorado em diversos aspectos. Existe um grau de arbitrariedade concedido na escolha de qualquer descrição do grupo em pior si,tuàção, que é, de qualquer forma, um grupo cujas fortunas só podem ser registradas por meio de alguma média mítica ou de um membro representativo daquele grupo. Em especial, a estrutura parece insuficientemente sensível à posição das pessoas com d.eficiê11cias naturais, físicas ou mentais, que não constituem, em si, um grupo em pior situação, pois este é definido economicamente e, portanto, elas não po-

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A igualdade de recursos, conforme aqui descrita, não isola i1enhum grupo cujo status esteja em tal situação. Ela pretende oferecer uma descrição da igualdade de recursos (ou um conjunto de dispositivos para tal intuito) pessoa por pessoa, e considerações sobre a história de cada pessoa que afeta o que deveria ter, em nome da igualdade, não incluem sua participação em nenhuma classe econômica ou social. Não quero dizer que a nossa teoria, mesmo conforme até aqui detalhada, afirme _qualquer grau impressionante de exatidão pára tais dispositivos. Pelo contrário, mesmo no caso artificial e simples que tratamos,_ várias vezes tivemos de ceder à especulação e ao compromisso, e às vezes até à indeterminação, no enunciado do que a igualdade exigiria em específicas circunstâncias. Mas a teoria, não obstante, propõe que a igualdade é, em Princípio, na questão de direito individual, e não de posição de grupo. Não, é claro, no sentido que cada pessoa tenha um quinhão predeterminado à disposição, faça ela o que fizer ou aconteça o que acontecer com os o·utros. Pelo contrário, a teoria estabelece um vínculo entre os destinos das pessoas no modo que os dispositivos predominantes dos mercados reais e hipotéticos descrevem, porém no sentido diferente de que a teoria supõe que a igualdade define uma relação entre cidadãos que é individualizada para cada um e, por conseguinte, é pensada como oferecendo direitos de posse, tanto do ponto de vista de cada pessoa quanto do ponto de vista de qualquer outro membro da comunidade. Mesmo quando nossa teoria emprega a idéia de uma curva média de utilidade, como o faz na criação do mercado hipotético de seguros, ela o faz como questão de juízos de probabilidades ,com relação aos gostos e às aspirações de determinadas Pessoas, para dar-lhes aquilo a que têm direito individual, e não como parte de qualquer premissa que afirme que a igualdade é uma questão de igualdade entre grupos. Rawls, por 011tro lado, presume que o princípio da diferença vincula a justiça a uma classe, não como uma questão prática para acomodar (como segunda opção) alguma versão mais

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profunda de igualdade que seja, em princípio, mais indivi~ dualizada, mas porque a e.scolha na situação original, que define o que é a justiça na base, estaria organizada, por motivos práticos, em termos de classes d.esde o início18. É impossível dizer a priori se o princípio da diferença

ou a igualdade de recursos apontam para uma igualdade absoluta maior no que l~wls chama de bens primários. Isso dependeria das circunstâncias. Suponhamos, por exemplo,

que os impostos necessários para oferecer a cobertura aos deficientes e aos desempregados tenha a conseqüência de longo prazo de desestimular os investimentos e, assim, reduzir as perspectivas de bens primários para o membro repre-

sentativo da classe mais pobre. Certos membros do grupo dos mais pobres que são deficientes ou estão, e permanecerão, desempregados estariam em melhor situação nesse programa de tributà.ção (bem como certos membros de outras classes), contudo o membro representativo, ou médio, da classe mais pobre estaria em situqção pior. O princípio da diferença, que encara o grupo dos mais pobres como uma unidade, condenaria o imposto, mas a igualdade de recursos o recomendaria mesmo assim. Nas circunstâncias das conhecidas hipóteses bizarras que acabamos de apresentar, quando uma perda pouco perceptivel para o membro representativo da classe mais pobre, em uma base justa, só poderia ser evltada por meio de perdas substanciais das classes em melhor situação, o princípio da diferença se empenha em evitar essa pequena perda, mesmo a tal preço. A igualdade de recursos, pelo contrário, seria sensível às diferenças quantitativas, e:Xatamente como os que se opõem à teoria de Rawls nesse caso acreditam que deveria prevalecer. Se a base for wna divisão igualitária de recursos, isso não significa que qualquer transferência para o grupo mais pobre acarretaria uma perda a 18. John Rawls,A Theory of]Hstice (Cambridge, Mass.: The Belknap Press of Harvard Univer&ity Press, 1971), p. 98. [Trad. bras. Uma temia da jllStiça, São Paulo, Martins Fontes, 2~ ed., 2002.]

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longo prazo para o próprio grupo, o que poderia acontecer ou não, mas que qualquer transferência desse tipo seria injusta para os outros. O fato de os mais pobres não terem mais não indicaria que é impossível dar-lhes mais, pelo contrário, que têm tudo aquilo a que têm direito. Se houver agora uma ameaça de catástrofe econômica, um governo que permita uma perda muito maior para um cidadão, a fim de evitar uma perda muito menor para um segundo, não estaria tratando o primeiro com igualdade, porque, já que a igualdade propriam,ente dita não requer atenção específica adicional ao segundo, esse governo devia preocupar-se muito mais com o destino do primeiro do que com o dos demais. Assim, se a ameaça de perda para os que estão na pior situação financeira fosse, realmente, irrelevante paia ele, cómo a questão bizarra assume, então o assunto está encerrado. Mas não se segue que a igualdade de recursos se transforme err1 utilitarismo diante de exemplos como esses. Ela é, de fato, sensível a mais informações quantitativas do q1Je o princípio da diferença ou o utilitarismo. Portanto, suponhamos que a catástrofe iminente ameace o grupo mais pobre, não com uma perda trivial como na pergunta original, mas com uma perda substancial, embora não tão grande, no conjunto, quanto a perda que ameaça os qlie estão em melhor situação. A igualdade de recursos deve perguntar se os cálculos do mercado hipotético de seguros, e do programa de tributação em vigor, consideravam devidamente o risco da ameaça prestes a se materializar. Pode não ter considerado. A possibilidade de u.ma perda substancial inesperada, se tivesse sido prevista, poderia ter levado o comprador médio desse mercado a comprar seguro contra catástrofes 011 desemprego em um nível mais alto de cobertura, e esse fato poderia afetar uma decisão oficial atual com relação a como distribuir a perda iminente. Esse comprador poderia se convencer de que, por exemplo, permitir que a perda re~ caia sobre os mais ricos, apesar da perda geral em bem-estar, atinghia uma situação próxima à situação em qlte todos estariam se o programa de· tributação tivesse pensado me-

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lhor no que as pessoas teriam feito no mercado hipotético com tais informações adicionais. Essas comparações nos conselhos práticos de que o princípio da diferença e a igualdade de recursos oferecem em determinadas circunstâncias são, de fato, milhares, e esses exemplos só pretendem insinuá-los. Essas comparações organizam-se ao redor da distinção teórica que já assinalei. O princípio da diferença só se harmoniza com uma das dimensões da igualdade ·que a igualdade de recursos reconhece. O primeiro presume que a igualdade generalizada nos bens primários, sem contemplar as diferenças em aspirações, gostos, ocupação ou consumo, muito menos diferenças e1n condições físicas ou deficiências, é a igualdade fw.1damental ou verdadeira. Já que (uma vez atendida a prioridade da liberdade) a justiça consiste em igualdade, e já que a verdadeira igualdade é apenas essa igualdade pura, qualquer compromisso ou desvio só pode ser justif:icado na medida em que for favorável às únicas pessoas que poderian1 reclamar desse desvio com razão. Essa análise unidimensional da igualdade seria simplesmente insatisfatória se aplicada pessoa a pessoa. Cairia perante o argumento de que tal divisão não é uma divisão igualitária de recursos sociais quando quem consome mais daquilo que os outros querem tem, não obstante, tantas sobras quanto quem consome menos; nem que alguém que resolva trabalhar em uma ocupação mais produtiva, avaliada pelo que os outros querem, não deva, em conseqüência, ter mais recursos do que quem prefere o ócio. (Cairia diante desses argumentos, isto é, a menos que fosse convertida em uma forma de igualdade de be1n-estar por intermédio da duvidosa proposta de que a igualdade nos bens primários, apesar das histórias diferentes de consumo e de ocupações, é a melhor garantia de ígualdade de bem-estar.) Assim (como Rawls deixa claro), o princípio da diferença não se vincula a grupos, em vez de vincular-se a indivíduos, como segunda opção de acomodação, como se a primeira opção fosse um ideal mais profundo de igualdade, que

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é individualista. Qualquer ideal desse tipo condenaria

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princípio da diferença por ser inadequado. Pois este vincula-se inicialmente a grupos, desde que a idéia de igualdade entre grupos sociais, definida em termos econômicos, seja especialmente afim à interpretação pura de igualdade. De fato, a idéi.a de igualdade como igualdade entre grupos econômicos não permite outra interpretação. Já que os membros de qualquer grupo económico terão gostos, aspirações e con-

cepções de vida boa bem diferentes, devem afastar-se de qualquer princípio que declare ó que a verdadeira igualdade entre grupos requer, e ficamos somente com a exigência d.e qt1-e sejam iguais na única dimensão em que talvez lhes seja possível, como grupos, diferir. O vínculo entre o prin-

cípio da diferença e o grupo interpretado como sua unidade de avaliação social é quase definidor (definítíonaO. Devemos tomar cuidado ao saltar desse fato Para conclusões sobre toda a teoria da justiça de I
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mais gerais e abstratos. Portanto, perbiunta-se se seria possível oferecer esse tipo de defesa e, em especial se ela poderia ser encontrada no método geral de Rawls. O fato de

que a igualdade de recursos difere, em diversos aspectos, alguns deles fundamentais, do próprio princípio da diferença de Rawls não é decisivo contra essa possibilidade, pois talvez possamos demonstrar que as pessoas que habitam a posição original de Rawls escolheriam, por trás do véu de ignorância, não seu princípio da diferença, mas a igualdade

de recursos ou alguns princípios constitucionais intermediários de modo que, quando se erguesse o véu, descobrirse-ia que a igualdade de rectrrsos satisfaz a esses princípios mcll1or do que o princípio da diferença. Espero que esteja claro que não apresentei aqui nenhuma argumentação nesse sentido. É verdade que argumentei q11e a distribuição igualitária resultaria das escolhas das pessoas em certas circunstâncias, algumas das quais, como no caso dos mercados hipotéticos de seguros, exigem a suposição contrafactual de que as pessoas ignoram o que, de fato, teriam chances de saber. Mas esse argumento é diferente de um argumento com base na posição original em dois aspectos. Em primeiro lugar, minhas argumentações foram elaboradas para permitir às pessoas tantos conhecimentos quanto fossem possíveis, sem cancelar o exercício completamente. Em especial, permitem às pessoas um autoconhecimento suficiente, como indivíd.uos, para manter relativamente intacta a noção de suas próprias personalidades e, principalmente, sua concepção sobre o que é mais valioso na vida, ao o que é essencial à posição original que seja exatamente esse o conhecimento que falta às pessoas. Em segundo lugar, e mais in1portante, as minhas argumentaç6cs foram montadas sobre um alicerce de suposições acerca do que a igualdade exige em princípio. Não pretende, como pretendia Rawls, definir esse alicerce. Nfinhas argumentações impõem, em vez de construir, um modelo fundamental de justiça, e esse modelo precisa encontrar apoio, se encontrar, em outros lugares que não em tais argumentações. ! 1

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Não pretendo insinuar, porém, que sou simplesmente agnóstico com relação ao projeto de dar apoio à igualdade de recursos como ideal político, provando que as pessoas na posição original a escolheriam. Acho que um projeto assim deve fracassar, ou melhor, que é malconcebido, pois é necessária alguma teoria da igualdade, como a igualdade de recursos, para explicar por que a posição original é um dispositivo útil - ou um dos ir1úmeros dispositivos úteis para se analisar o que é a justiça. O projeto, conforme acabo de descrever, seria, por conseguinte, autónomo demais. ÍO_ (;tt;.gositiyQ_9.e UIT!ª-_J?.ostção _9!J~.al (conforme discuti bastante noutra parte) 19 nffi9_Qode ser plat1sivelmente aceito como ponto de partida áa filosofia política. Re9.1::!er o emba-

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19. Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1977), cap. 6. [Trad. bras. Levando os direitos a sério, 51\o Paulo, Martins Fontes, 2002.]

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Capítulo 3

O lugar da liberdade

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1. Introdução: liberdade e igualdade

Prefácio Nos Capítulos 1 e 2 argumentei por uma concepção de igualdade segundo a qual a igualdade ideal consiste em cir·· cunstâncias nas quais as pessoas não são iguais em bemestar, mas nos recursos de que dispõem. Quais são as conseqüências para a liberdade dessa afirmação acerca da igualdade? A questão pode ser limitada em dois aspectos. Em primeiro lugar, chamo de liberdade o que às vezes se chama llberdade negativa - liberdade de restrições legais - e não liberdade ou poder de maneira mais geral. Em segundo lugar, não estou interessado na liberdade em geral, porém somente na ligação entre a liberdade e a igualdade distributiva. Portanto, embora venha a defender uma tese característica do liberalismo, de que a liberdade das pessoas com relação a questões de caráter pessoal não deve ser infringida, defenderei essa tese somente contra as refutações fundamentadas em seus argumentos distributivos. Não contemplarei as refutações moralistas ou paternalistas ao liberalismo; não considerarei, por exemplo, o argumento de que se deve abolir a liberdade religiosa para garantir a sal-

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vação de todos. Existem, é claro, movimentos políticos fundamentalistas, como a Maioria Moral (Moral Majority), que se opõem ao liberalismo com argumentos daquele tipo. Mas

as refutações em termos da questão distributiva ao liberalismo têm atualmente, creio, maior importância política do que as moralistas ou políticas. É de aceitação popular que certas liberdades, entre elas a liberdade de escolha na educação, devam ser limitadas para que se alcance a verdadeira igualdade económica, por exemplo. "fambém é uma opinião popular, embora em setores distintos, que outras liberdades, inclusive a de opção sexual, devam ser limitadas para dar à maioria o ambiente moral que deseja ter e ao qual tem o direito em nome da justiça distributiva. Tratarei dos argumentos desse tipo contra o liberalismo. Tento defender, porém, ltma afirmação muito mais geral: de que se aceitam1os a igualdade de recursôs como a melhor concepção de igualdade distributiva, a liberdade se toma um aspecto da igualdade, em vez de um ideal político independente possivelmente em conflito com ela, como se costum.a pensar. Meus argumentos a favor dessa tese são co:mplexos, e talvez convenha oferecer, antecipadamente, uma descrição info1mal das principais idéias que o argumento desenvolve. Muitos acreditam que aquilo que consideramos as liberdades moralmente importantes - liberdade de expressão, religião e pensamento, e liberdade de escolha em assuntos pessoais importantes, por exemplo - deveria ser protegido, a não ser nas circunstâncias mais extremas, e relutaríamos em pensar que se devesse restringir essas liberdades em nome de maior igualdade. Porém a segunda opinião é dificílima de defender. Afinal, estamos dispostos a liinitar até liberdades importantes em nome de outras metas. I.. imitamos vários aspectos da liberdade de expressão para nos proteger contra ruídos indesejáveis em momentos inconvenientes, e limitamos a liberdade de escolha em educação para garantir uma educação competente às crianças. Mas, se essas importantes liberdades cedem a esses tipos de

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valores adversários,-por que não deveriam ceder aos requisitos normalmente mais imperativos da justiça distributiva? Se a liberdade fosse valiosa do modo como as pessoas acham que a arte é valiosa - por si só, sem que se contemple o impacto resultante sobre quem dela desfruta -, conseguiríamos entender, se não aprovar, a tese de que a liberdade tem tamanha importância metafísica que deva ser protegida, sejam quais forem as conseqüências para as pessoas. Mas a liberdade só nos parece valiosa devido às conseqüências que pensamos acarretar para as pessoas: achamos que a vida levada em circunstâncias de liberdade é melhor simplesmente por esse motivo. Será mesmo mais importante que a liberdade de algumas pessoas seja protegida.-para melhorar a vida que essas pessoas levam, do que outr'as pessoas, que": jiÍ estão na pior situação, disponham dos diversos recursos e de outras oportunidades de que elas precisam para levar uma vida decente? Como poderíamos defender essa tese? Talvez o dogmatismo seja tentador: declarar nossa intuição de que a liberdade é um valor fundamental que não se deve sacrificar à igualdade, e afirmar que não é preciso dizer mais nada. Mas isso é por demais superficial e inse11sível. Se a liberdade tem importância transcendente, deveríamos estar aptos a dizer algo, pelo ~enos, que a justificasse. Essas estão entre minhas razões para pensar que qualquer defesa atraente das liberdades moralmente importantes deve seguir por outro caminho, menos co11vencional: não pela insistência de que a liberdade é mais importante que a igualdade, mas mostrando que essas liberdades devem ser protegidas segundo a melhor definição da igualdade distributiva, a melhor explicação de quando a distribuição de propriedades na sociedade trata cada cidadão com igual consideração. Essa afirmação parece plausível se aceitannos a igualdade de recursos como a melhor tese. Outras concepções da igualdade definem a distribuição igualitária por meio de uma métrica insensível à qualidade distinta e ao valor da liberdade. A igualdade de bem-estar compreen-

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de seja definida e garantida. Isso não transforma a liberdade em instrumento da igualdade distributiva mais do que esta em instrumento da liberdade: as duas idéias, pelo contrário, fundem-se em uma tese mais completa sobre quando a lei que governa a distribuição e o uso dos recursos trata a todos com igual consideração . Segue-se que a igualdade de recursos requer de nós uma interpretação diferente das controvérsias políticas, como a controvérsia com relação à educação e à medicina privadas, que se acredita apresentar uma escolha angustiante entre liberdade e igualdade. Se limitar a liberdade de escolha em educação e medicina aumentasse realmente a igualdade de recursos - como certas limitações claramente aumentariam-, não se comprometeria nenhum ideal defensável de Iibetdade, e ninguérrt se oporia aos liberais. Mas nem todo cerceamento da liberdade que se diga promover a igualdade de recursos realmente o faz, e infringir as liberdades que os liberais se preocupam muito em proteger- as liberdades moralmente mais importantes - raramente, se tanto, poderia contar como contribttição à igualdade assim entendida. A igualdade de recursos oferece uma explicação mais convincente de nossas convicções intuitivas sobre a importância da liberdade do que qualquer teoria segundo a qual liberdade e igualdade são virtudes independentes e, às vezes, conflituosas. Este é um resumo antecipado das questões tratadas e das conclusões propostas neste capítulo. Devo tentar mostrar, com alguns detalhes, quais liberdades são especialmente importantes para um processo adequado de reflexão e decisão a serviço da igualdade, e quais liberdades, pelo contrário, precisam ser limitadas para se aperfeiçoar esse processo. Preciso tentar demonstrar por que as liberdades moralmente importantes devem ser consideradas especialmente invulneráveis a tal restrição, e até que ponto a igualdade de recursos serve de orientação prática para as etapas pelas quais uma sociedade desigt1al deve ar, limitando a liberdade, rumo a uma igualdade maior. São assuntos complexos, e meu argun1ento é, conseqüentemente, denso.

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A. Um conflito famoso A liberdade e a igualdade estão sempre em conflito, como se presume com freqüência? A sociedade igualitária deve trair a liberdade de seus cidadãos? Ou podem as duas virtudes se reconciliar, de modo que possamos todos ter tudo o que devíamos querer de ambas. Caso afirmativo, essa reconciliação seria um acidente feliz e talvez temporário? Ou estarão as duas virtudes vinculadas de maneira mais conceihtal, de modo que comprometer uma obrigatoriamente viole a outra? Precisaremos de exemplos de situações nas quais se veja a liberdade e a igualdade em conflito, e eu os retiro de controvérsias políticas reais na Inglaterra e nos Estados Unidos. Gastos em campanha. Em 1974 o Congresso promulgou um decreto que limitava a quantia que uma pessoa poderia gastar legalmente para promover os interesses de qualquer candidato político1. O objetivo do decreto era igualitário: uma pessoa rica a quem se permite gastar tanto quanto quiser na política provocará impacto muito maior sobre o processo político do que uma pessoa pobre. A Suprema Corte, não obstante, afirmou que tal restrição violava a liberdade de expressão protegi.da pela Primeira Emenda e declarou que parte do estatuto era inconstitucional2 . A decisão da Coite vem sendo bastante refutada 3 • Iniciatíva privada nas necessidades básicas. A segunda questão é discutida com intensidade na política britânica. A Grã-Bretanha tem um serviço pUblico de saúde nacional. AB pessoas com recursos suficientes ot1 cujo emprego ofereça o necessário seguro-saúde como benefício adicio1. Ver Federal Electlon CampaignAct Amendments of 1974, Public Law n~ 93-443,

88 Stat. 1263 (1974).

2. "Bucl Bask Liberties a.nd Their Priority'', in Liberty, Equality, and Law: Selected Tanner Lectures on Moral Philosaphy, ed. Sterling M. McMurrin (Sal! Lake City: University ofUtah Press, 1987), pp. 1·89.

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nal podem, todavia, pagar poi tratamentos médicos particulares, o que lhes permite, entre outras vantagens, furar a fila para o tratamento de doenças dolorosas e incapacitantes. Alguns setores do Partido Trabalhista defendem o fun da medicina privada, por meio de leis que proibiriam serviços médicos particulares, em prol da igualdade. Mas a 1naioria dos políticos britânicos e, aparentemente, a maioria do povo britânico rejeita essa política porque violaria uma parte importante de sua liberdade: a liberdade de escolha em tratamentos médicos.

Legi.slação sobre o salário mínimo e o número máximo de horas de trabalho. Meu terceiro exemplo tem caráter mais histórico, embora o problema que apresenta seja, como argumentarei mais adiante, de importância contemporânea constai1te. No início do século XX, os estados americanos começaram a regulamentar os contratos de emprego, limitando o número de horas de trabalho durante a semana ou o dia, ou estipulando salários mínimos que os patrões podedarn oferecer aos funcionários. Nova York, por exemplo, proibiu os padeiras de trabalhar mais de 60 horas por sem.ana. Embora os objetivos de tais leis fossem indubitavelmente ambíguos - o estatuto de Nova York foi defendido como medida de saúde-, as leis eram muito bem-vindas como melhorias na selvagem desigualdade económica que muita gente começava a achar intolerável. Não obstante, a Suprema Corte declarou inconstitucional a lei de Nova York porque, segundo a Corte, infringia outra importante liberdade constitucional: a liberdade de escolha em contrato e emprego4 • Tal decisão não é mais consideradas, e é quase sempre citada como a segunda pior decisão da história da Corte, perdendo em infâmia somente para Dred Scott, e como exemplo ameaçador dos riscos de incentivar os juízes a pôr em prática suas próprias opiniões acerca da moralidade política. Parece que

4. Lochner v. Nova York, 198 U.S. 45 (1905). 5. Ver Day-Brite Lighting, Inc. v. Missouri, 342 U.S. 421 (1952); West Coast Hotel Co. v. Parrish, 300 U.S. 379 (1937).

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a maioria dos críticos da decisão concorda, porém, que realmente havia um co.nflito entre a liberdade e a igualdade; eles só criticam a Corte por insistir em sua própria classificação dos dois ideais políticos, em vez da classificação exposta pelo

Legislativo de Nova York. Esses exemplos são notáveis não só como casos em que se diz que a liberdade e a igualdade estão em conflito, mas como fatos que parecem demonstrar o quanto a igualdade é irrelevante para algumas pessoas. Poucas pessoas se oporiam a limites em liberdades importantes se tais limites servissem a outras finalidades extraordh1árias. Todos concordam que se pode restringir a liberdade de expressão para evitar tumultos, por exemplo, e ninguém se opõe à regula-

mentação da medicina em nome da saúde ou da segurança. A Suprema Corte, no processo Lochner, concordou que se as provas tivessem demo11strado que o estatuto de Nova York se justificava como necessário para proteger a saúde dos padeiras, o decreto seria constitucional. Nossos exemplos - e as inúmeras co11trovérsias políticas que representan1 -· são controversos somente porque em cada caso se acredita que a liberdade está em conflito com a igualdade, e não com outra coisa. Podemos, então, acrescentar mais uma pergunta à nossa lista inicial: l)or que tanta gente pensa que a igualdade tem muito menor importância, em supostos conflitos com a liberdade, do que outros valores ou interesses? Se alguém ite que o direito à liberdade deve ceder a uma série de importantes interesses adversários, por que não itiria que, pelo me11os às vezes, a igualdade está entre esses interesses adversários? Un1a resposta cínica se insinua, é claro: que muitos rejeitam a igualdade por serem egoístas. Existe, ' creio, uma resposta melhor (embora talvez não incompatível). A maioria das pessoas que parecem rejeitar a igualdade, em casos como nossos exemplos, não a rejeita realmente. Elas acham que a igualdade é importantíssima, mas acl1am que a forma na qual a igualdade está em jogo nesses casos não seja a forma importante ou genuína de tal virhtde. Preciso explicar e e).pandir essa sugestão.

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B. Dois sentidos de duas idéias 1

Empregamos as palavras "liberdade" e ' igualdade" com dois sentidos. Utilizamos cada um deles como uma definição clara que não traz em si sugestões de endosso ou querela, e também utilizamos cada uma para identificar uma virtude política ou ideal que endossamos. Usamos "liberdade" em seu sentido simples apenas para indicar a ausência de restrição. Pode-se dizer, recorrendo-se a esse sentido, que a liberdade é reduzida por leis que proíbem o homicídio e o roubo, sem insinuar oposição a essas leis. Utilizamos "liberdade" em seu sentido 11ormativo, por outro lado, para definir as maneiras como acreditamos que as pessoas deveriam ser livres. Os americanos empregam "liberdade" nesse segundo modo, normativo, quando dizem que a liberdade floresce ei:n seu país e definha en1 outros locais. Não querem dizer que as pessoas tenham mais liberdade nos Estados Unidos, mas que as pessoas sã-0 mais livres em aspectos específicos contemplados pela liberdade como virhtde política: pensar e falar como quiserem, por exemplo. Utilizamos "igualdade" em seu sentido comum simplesmente para indicar a equivalência ou a identidade em uma dimensão específica ou subentendida sem insinuar que seja desejável que o falante acredite na equivalência na mesma dimensão. Pode-se dizer, recorrendo ao sentido comum, que a igualdade se mantém entre pessoas que tenham as mesmas riquezas (ou capacidades, ou felicidade) sem insinuar que a equivalência de riquezas (ou de capacidades, ou de felicidade) seja apropriada. Utilizamos "igualdade" em seu sentido nor.mativo, pelo contrário, precisamente para indicar o aspecto ou os aspectos em que o falante acha que as pessoas deveriam ser iguais, ou tratadas do mesmo modo, por questão de justiça. Quando alguém diz que a igualdade só é possível no socialismo, está dizendo que o socialismo é necessário, não para que as pessoas sejam iguais em um ou outro aspecto, mas iguais no aspecto em que esse alguém declara ser o mais importante. Os filósofos políticos gue se

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preocupam com os conflitos entre a liberdade e a igualdade têm em mente o sentido normativo, e não o sentido comum dessas idéias. Preocupam-se porque temem um conflito entre ideais políticos, e não só entre propriedades descritivas. De qualquer forma, é o conflito dos ideais normativos que explorarei aqui.

C. Liberdade: direitos, não pennissividade Qualquer pessoa que adote a liberdade ou a igualdade como ideal normativo deve ter alguma opinião sobre os modos como as pessoas deveriam ser livres e os aspectos nos quais deveriam ser iguais ou tratadas como iguais, e cada pessoa terá uma opirúão diferente. A liberdade e a igual-

dade, em outras palavras, são conceitos que adµlitem diversas interpretações ou concepções. Se achamos que a liberdade e a igualdade entram em conflito como ideais dependerá, indubitavelmente, de quais concepções de cada adotamos. Podemos, com facilidade, elaborar uma concepção de hberdade em que esta deve, clara e inevitavelmente, entrar em conflito com qualquer concepção plausível de igualdade. A concepção anarquista extrema de liberdade, por exemplo, que estipulava que as pessoas devem ser livres para fazer tudo o que possam desejar, sejam quais forem as conseqiiências para outrem, entraria em conflito com a igualdade, bem como com quase todas as outras virtudes ou n1ctas políticas. Uma sociedade que não proíbe o homicídio, o roubo ou pisur na grama quando isso prejudicaria a propriedade comum não pode ser equânime, nem segura, próspera, poderosa ou agradável. Também podemos elaborar , uma concepção de liberdade com· a conseqüência oposta: 'que a liberdade jamais entrasse em conflito co1n a igualdade. Se estipularmos, por exemplo, que respeitar a liberdade significa permitir que os cidadãos se comportem de maneira q·ue produzam e protejam a igualdade entre eles, fica trivialmente claro que a liberdade e a igualdade não podem entrar em conflito.

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Nenhuma dessas concepções avulsas de liberdade ésatisfatória, porém, pois nenhuma delas apresenta a liberdade como um ideal político distinto e extraordinário, como algo ct1jo sacrifício ou concessão deva ser, em si, motivo para arrependimento. Uma concepção mais plausível de liberdade surgirá do argumento adiante. Já que a defesa dessa concepção partirá da hipótese de que a liberdade e a igualdade não entram em conflito, não devemos nos basear nela q·uando analisarmos, nas primeiras partes deste capítulo, se devemos aceitar ou rejeitar tal hipótese. Será melhor, de fato, não confiar em nenhuma concepção detalhada de liberdade para tal finalidade. Só precisamos presumir que qualquer concepção aceitável que capture a importância especial da liberdade satisfará certas condições, e depois p_erguntar se e em quais circunstâncias a concepção de liberdade que satisfaça tais condições entrará em conflito com as exigências da igualdade. Presumo que qualquer concepção q.ceitável rejeitará a definição anarquista da liberdade como permissividade; não considerará todas as restrições à liberdade dos cidadãos de agirem como desejarem como invasão de sua liberdade. Pelo contrário, identificará direitos a cei;tas liberdades designadas como essenciais à liberdade e estipulará que o governo não deve limitar essas liberdades sem uma justificativa especial mais poderosa ou irresistível do que a justificativa que· requer para outras decisões políticas, inclusive restrições a outras liberdades não protegidas por tais direitos. Entre esses direitos, figuram, no mínimo, os direitos à liberdade de consciência, compromisso, expressão e religião, e à liberdade de escolha em assuntos relativos aos aspectos centrais ou importantes da vida privada do agente, como emprego, organização familiar, privacidade sexual e tratamento médico. Cada pessoa acrescentará outros direitos a essa lista. Classificará de maneira diferente os diversos direitos que reconhece e terá opiniões diferentes sobre quais emergê11cias o·u metas sociais urgentes justificariam restrições às liberdades cujos direitos, caso contrário, protegeria. Mas as

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concepções predominantes de liberdade em nossa comunidade política têm esta estrutura geral: protegem a liberdade, não co1no permissividade, mas como um conjunto de direitos distintos a determinadas liberdades. Quase sempre se acha que a liberdade está em perigo nos casos que selecionamos, por exemplo, só porque se considera que a liberdade ameaçada em cada um desses casos é especial e protegida por um direito: o direito à liberdade de escolha em expressão, tratamento médico ou trabalho.

D. Igualdade: a so1nbra sobre a líberdade Analisaremos principalmente se a liberdade, assim entendida, entra em conflito com determinada concepçào de igualdade- a igualdade de recursos-que defendi no Capítulo 2. Mas antes será conveniente tratar das conseqüências de um conflito entre a liberdade e qualquer concepção de igualdade, inclusive aquela. Acredita-se que, se a liberdade e a igUaidade estiverem em co.nflito, é preciso fazer uma escolha angustiante entre as duas virtudes. Um mapa conhecid6 dos argumentos políticos, de fato, posiciona os partidos ou grupos políticos ao longo de uma escala definida pelas escolhas que cada um faz em tal situação. A escala vai do absolutismo da liberdade em um extremo (a liberdade não deve nunca ceder à igualdade quando estiverem em conflitcj}e um absolutismo inverso da igualdade 110 ot1tro extremo. As opilliões mais moderadas posicionam-se supostamente entre esses dois pólos, atribuindo pesos relativos diversos às dtlél-S virtudes políticas. Contudo essa topografia popular é, i acredito, profundamente equivocada como relato da escala · de opiniões existentes em nossa cultura política. Nenhuma teoria que .respeite os press_upostos fundamentais que definem essa cultura poderia subordinar a igualdade à liberdade, concebidas como ideais normativos, em hipótese alguma. Qualquer disputa genuína entre a liberdade e a igualdade é uma disputa que a liberdade deve perder.

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Faço essa afirmação ousada porque acredito estarmos hoje unidos na aceitação do princípio igualitário abstrato: o governo deve agir para tomar melhor a vida daqueles a quem governa, e deve demonstrar igual consideração pela vida de todos. Qualquer pessoa que aceita esse princípio abstrato aceita a ígualdade como ideal político, e embora a igualdade ita concepções distintas, essas concepções distintas são interpretações adversárias de tal princípio. Assim, quem pensa que a liberdade e a igualdade realn1ente entram em conflito em algum momento deve pensar que proteger a liberdade significa agir de modo que não demonstre igual consideração por todos os cidadãos. Duvido que muitos de nós pensássemos, após reflexão, que seja possível justificar isso. Não estou dizendo que o princípio igualitário abstrato seja tão vazio ou trivial que ninguém seja capaz de negá-lo. Pelo contrário, é possível que as pessoas tenham uma série de motivos para rejeitar o princípio totalmente ou qualificá-lo de n1aneira importante. Podem rejeitá-lo totalmente ao negar que o governo deva interessar-se pela melhoria da vida dos cidadãos. Ou afirmar que, da perspectiva do bom governo, a vida de alguns - talvez os de determinada raça ou casta, ou os que pertencem a determinada religião, ou os que sejam mais virtuosos - é mais importante do que a de outros. ÜLt talvez aceitar o princípio igualitário abstrato, mas qualificá-lo negando que seja um princípio absoluto. Poderiam argumentar, por exemplo, que embora o governo deva den1onstrar igual consideração pela vida de todos os cidadãos, também deveria atentar para outros valores não atingidos ou redutíveis a tal consideração. Poderiam pensar, por exemplo, que o governo também deveria ter como objetivo aumentar a influência e o poder da nação por amor à glória, e não pelo bem de cada um dos cidadãos, ou, o que seria mais plausível, que o governo deveria ter como objetivo oferecer conhecimentos ou proteger e desenvolver a arte e outras formas de cultura elevada, novamente por amor ao próprio saber e à própria arte, e não pelo papel

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que tenham na melhoria da vida do povo. Nesse caso, poderiam pensar que, em algumas ocasiões, seria melhor, no fim das contas, negligenciar certos atos políticos que sejam recomendados pelo princípio da igu.al consideração para atingir outras metas. Poderiam pensar que seria melhor, por exemplo, subsidiar a arte com verbas que poderiam ser uti-

lizadas em programas econômicos que, nesse caso, aproximariam mais a distribuição das riquezas do que exige a igual consideração. O princípio igualitário abstrato pode ser, teoricamente, rejeitado por completo ou qualificado de todas essas maneiras. Mas nenhum corpo significativo de opinião política entre nós o rejeitaria por completo ou o qualificaria de maneira que permitisse que a liberdade vencesse no conflito com ele. Rejeitar completamente o princípio parece fora de cogitação para nós; não é mais discutível, pelo menos em público, que as autotidades devam preocupar-se mais com a vida de alguns cidadãos do que com a vida de outros. Nem faz sentido aceitar o principio abstrato, mas qualificá-lo supondo que a liberdade é uma adversária independente que pertence a algum catálogo pluralista de virtudes políticas. Algumas pessoas tratam a arte como valor fundamental independente e rival da igualdade abstrata. Mas só podem ser1satamente pensar ass.im porque acham que a arte tem valor por motivos independentes da contribuição que faz à vida daqueles que a produzem, dela desfrutam ou dela se beneficiam. Isto é, as pessoas aderem à arte pela própria arte. Todavia a liberdade não pode, da mesma forma, ter valor intrínseco fora do papel que a liberdade desempenha na vida daqueles que a possuem6, pois parece estranho que o fato ; de as pessoas terem algum direito em especial, como o di6. Minha intenção é duvidar que a liberdade possa ter valor inerente ou fundamental independente de sua contribuição para o valor das vidas. Pude, é dru:o, ter valor instrumental para alguma outra meta, como a arre ou o s;iber, que seja considerada inerentemi:'nle valiosa em si por motivos que tomem seu valor independente de sua çontribuição para o valor das vidas.

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reito à liberdade de expressão, tenha valor objetiVo, intrínseco, independentemente das conseqüências desse direito para elas. Não estou dizendo o que é evidentemente falso: que ter direitos é sempre bom para as pessoas no sentido estrito de aumentar seu bem-estar. Os críticos do liberalismo não raro assinalam que as pessoas às vezes são mais felizes com menos liberdades e os liberais prudentes o item; Mas ninguém poderia ser entusiao;ta da liberdade, como algo de valor intrínseco, se não achasse que a vida levada em certas condições de liberdade fosse, exatamente por esse motivo, mais valiosa, por ser uma vida mais autônoma ou mais autêntica, ou ter mais dignidade, ou melhor em qualquer outro aspecto. Assim, embora possa parecer plausível que não se esgote o valor da arte nas diversas 1naneiras em que torna melhor a vida pelo menos de algumas pessoas, uma afumação paralela não parece plausível para direitos como a liberdade de escolha em expressão, tratamento médico ou trabalho. Se a liberdade tem valor porque a vida vivida em liberdade tem mais valor, então o princípio igualitário requer que o governo cuide da liberdade, pois requer que o governo tenha consideração pela vida daqueles a quem governa. Então, como poderia a igualdade estar em conflito com uma concepção adequada de liberdade? Somente se duas condições se reunirem: (1) apesar do fato de que a liberdade tem valor para a vida das pessoas, a postura de algum grupo dentro da comunidade melhoraria, não obstante, no fim das contas, eliminando-se certas liberdades; e (2) a igual consideração por tal grupo exige que se faça isso. Suponhamos, por exemplo, que os pobres teriam melhor atendimento médico e levariam uma vida melhor em geral, se a medicina particular fosse eliminada, e qt1e demonstrar igual consideração por eles exija isso. Se o governo se recusar a eliminar a medicina particular, então, hipoteticamente, os pobres ficarão em situação pior do que permitiria a igual consideração. Já que a liberdade, supomos, só tem valor ou importância pela contribuição que faz à vida das pessoas,

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esse resultado não pode ser justificado com menção a algum princípio ou meta não relacionado com a consideração que o governo deva ter pelos cidadãos. Só poderia ser justificado, e11tão, se aceitássemos um princípio claramente inconsistente com o princípio igualitário: que nessas circunstâncias a vida dos pobres é menos importante do que a vida dos outros. A igualdade pode coexistir com a arte como duas metas independentes que às vezes entram em conflito, pois podemos aceitá-las como valores sem que uma contradiga a outra. Mas não podemos itir que o governo seja obrigado a ter consideração por todos os cidadãos e possa, às vezes, demonstrar mais consideração por alguns do que por outros. Isso não seria pluralismo, porém incoerência. Devemos consolidar esse importante argumento. As questões que estamos explorando têm um lado negro, uma sombra que paira sobre a liberdade. Qualquer conflito genuíno entre a liberdade e a igualdade - qualquer conflito entre a liberdade e os requisitos da melhor concepção do princípio igualitário abstrato - é uma querela que a liberdade deve perder. Não podemos rejeitar completamente o princípio igualitário, porque é absurdo que o governo não den1onstre consideração pela vida de seus cidadãos, e imoral que demonstre mais consideração pela vida de alguns do que pela de outros. Nem é plausível, pelos motivos que acabamos de analisar, tratar a liberdade como um valor independente e adversário do princípio abstrato, e às vezes predominante sobre ele. Não podemos, então, de plena co11sciência, exigir nenhum direito à liberdade que entre em conflito com as exigências da igualdade na concepção que escolhemos. Qualqlter conflito genuíno não é apenas uma descoberta filosófica, mas uma derrota emocional. Temos esse motivo importante para nos en1penhar por demonstrar que não existe nenhum conflito genltÍno, que nenhum direito à liberdade que quiséssemos reconhecer seria prejudicado pelas políticas que nossa concepção de igualdade exige.

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E. Concepções de iguald~de Disse anteriormente que podem surgir conflitos genuínos para algumas concepções de igualdade, e n.ão para outras, e está na hora de elaborar melhor essa observação. Se estiver certo quando digo que a tradição predominante da cultura política ocidental moderna aceita o princípio igualitário abstrato, seja como absoluto ou em alguma forma qwi.lificada, então é preciso que as argumentações acerca da jú~ça política dentro dessa tradição possam ser entendidas Como argumentações sobre o que realmente significa a igual consideração e a que se destina. É preciso que possam ser entendidos, em outras palavras, como interpretações ou concepções da igualdade no sentido abstrato. De fato, a maioria das teorias da justiça da literatura contemporânea da filosofiá política pode, de pronto, ser entendida dessa forma7. Nessa literatura, há muitas concepções de consideração igual. Encontramos concepções utilitaristas que afirmam que o governo demonstra igual consideração quando contempla o bem-estar de cada membro da comunidade da mesma forma, identificando e procurando pôr em prá_:·~:-

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7. Uma concepção interessante e razoavelmente completa de igualdade - uma teoria geral sobre como a comunidade política trdta seus membros com igual consideração - clive ser complexa: deve descrever a igualdade política, por exetnplo, e a igualdade sob a lei, bem como a igualdade na distribuição dos recursos materiais. Saliento este último aspecto da igualdade ao analisar o conflito entre liberdade e igualdade, porém, porque geralmente se considera que o suposto conflito é mais grave quando esse aspecto da igualdade está em cena. Em cada llln dos exemplos que ofereci anteriormente, por exemplo, defende-~e uma restrição proposta à liberdade de escolha como algo que alivia as conseqüêndas-de' uma distribuição desigual de riquezas. Simplificarei ainda mais a minha explanação sem, acredito, comprometer seu valor, supondo que as concepções de igualdade em questão sô contemplam a propriedade privada de recursos. A coneepção de igualdade, então, descreve urna distribuição de bens na propriedade privada que resultaria de decisões políticas que, juntas, demonstrain uma perfeita consideração igual por todos, e que, portanto, contam, en• tal concepção, com uma distribuição igualitária ideal.

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tica políticas que prometam o maior bem~estarmédio a longo prazo. Encontramos igualitários partidários do laissez-faire que argumentam que a igual consideração significa não interferir na vida. de ninguém, para que (e exceto quando necessário para que) o destino das pessoas dependa de suas próprias habilidade, iniciativa e sortes. Encontramos igualitários partidários do bem-estar que insistem que o governo só trate as pessoas com igual consideração quando suas políticas têm como objetivo tomar o bem-estar de cada-pessoa o mais próximo possível do bem-estar das outras pessoas. Encontramos defensores da igualdade de recursos que acreditam, pelo contrário, que a igual consideração requer políticas que visem proporcionar a cada cidadão, tanto quanto possível, uma parcela igual dos recursos que a estrutura cconômica lhes distribui, medida pela fixação do valor dos recursos que cada pessoa tem como o custo que representa o fato de elas possuírem aquilo para as outras pessoas. Os igualitários partidários do laissez-Jaire> talvez jamais vejam um conflito entre sua concepção de igualdade e determinados direitos à liberdade que, conforme disse, nenhuma concepção aceitável de liberdade-reconheceria. Na opinião deles, tratar as pessoas com igual consideração significa permitir que produzam e comêrcializem-somente sob as leis que forem necessárias para proteger a segurança da pessoa, da propriedade e a eficácia do contrato, e não acharão, portanto, que se poderia aumentar a igualdade com a regulamentação da liberdade de expressão, com a eliminação da medicina particular ou com leis que determinem o máximo de horas de trabalho ou o salário núnimo. Pelo contrário, tratar as pessoas com igual consideração, na opi, nião deles, requer respeito total a essas liberdades. Mas os · igualitário-utilitaristas precisam itir pelo menos a pos8. Alguns leitores aclwrão que é generosidade çhamar essa teoria da justiça de igualitíilia em qualquer forma; eu o faço para salientar o fato importante de que, aqueles que a adotam, também podem aceitar o princípio lguali.tário abstrato e afinnar que sua teoria é a 1nelhor interpretação de tal principio.

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sibilidade de conflito entre sua concepção de igualdade e esses direitos à liberdade. Devem itir que, em certas circunstâncias, proteger a liberdade de expressão ou a associação política, por exemplo, diminuirá, em vez de aumentar, a utilidade média. Os utilitaristas, de fato, argumentam que garantir as liberdades fundamentais reconhecidas por nossa cultura é, na realidade, a melhor maneira de elevar ao máximo o bem-estar a longo prazo. Não conheço, porém, nenhum bom argumento que afirme isso; parece-me um ato de fé cega com o único intuito de reconciliar a liberdade com o credo utilitarista. Os igualitários partidários do bemestar também podem deixar-se tentar pela mesma estratégia; é, porém, ainda mais duvidoso que proteger as liberdades tradicionais como direitos sempre será o melhor meio de tomar igualitário o bem-estar em qualquer concepção sensata de bem-estar. O igualitário-utilitarista ou o igualitário partidário do bem-estar, portanto, de vez em quarldo talvez sejam obrigados a repudiar a liberdade. A liberdade e a igualdade entram em conflito, com essa conseqüência constrangedora, quando consideramos a igualdade de recursos a melhor concepção de igualdade? Essa será nossa questão principal .nas próximas seções. Ma~ devo antes voltar a uma observação que fiz sobre nossos casos selecionados pouco antes de iniciar esta breve exposição dos conceitos e das concepções de liberdade e igualdade. Assinalei que nesses casos_ muita gente parece classificar a igualdade não só abaixo da liberdade, ·mas abaixo de diver sos outros assuntos sociais, como segurança e saúde. Em meu argumento mais recente, porém, afirmei que a igualdade tem, para a maioria de nós, uma força quase absoluta, e que não pode ser coerentemente qualificada presumindo-se que a liberdade está a seu lado como ideal político independente. Os exemplos contradizem essa afirmação? Poderíamos explicar os exemplos de diversas maneiras. Talvez esteja errado em minha tese sobre as convicções e os princípios que a maioria das pessoas estaria disposta a defender. Talvez muito mais gente do que imagino

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rejeitasse por completo o princípio igualitário abstrato. Mas ofereci o·utra explicação dos exemplos compatível com minha afirmação de que muito pouca gente o rejeitaria, e agora posso expandir essa explicação. As pessoas costumam empregar a "igualdade", conforme disse, no sentido direto, para descrever alguma dimensão de identidade indicada pelo contexto, mesmo quando não acreditam que a inelhor concepção do prinápio igualitário abstrato requeira a identidade nessa dimensão. Esse fato lingüístico ameaça provocar confusão quando as pessoas com concepções distintas de igualdade discutem. Quando alguém propõe a eliminação ·cta medicina particular, por exemplo, para proteger a igualdade, está claramente invocando a igualdade em seu sentido normativo. Essa pessoa acredita que tratar as pessoas corno iguais requer igualar suas circu·nstâncias de modo que abranja oportunidades iguais de tratamento médico. Quem rejeita a proposta acredita que a concepção mais sólida de igualdade não requer isso. Enunciando sua opinião dessa forma, nào s·ugere conflito nenhum entre a liberdade e a igualdade. A discussão trava-se, então, entre o que a igualdade requer, e r1ão se a igualdade deve subordinar-se a outra coisa. :tvfas essa pessoa pode optar por enunciar sua opinião de outra forma, clizendo que a liberdade é mais importante que a igualdade; nesse caso, está dizendo que a liberdade deve prevalecer em detrimento do que seu adversário pensa que o prir1cípio igualitário requer. 'Emprega a igualdade no sentido simples, descritivo, para indicar identidade em u1na dimensão em que seu adversário, mas não ele, considera essencial para a igualdade como ideal político. Portanto, talvez, conforme insinuei, a n1aioria das pessoas que afirmam que a igualdade às vezes precisa ceder à liberdade não acha realmente que exista nenh11m conflito genuíno entre os dois ideais como ideais. Sua intenção é somentt> negar que a concepção de igualdade normativa de outra pessoa seja uma concepção sólida. Mesmo que eu esteja certo nesta leitura da opinião popular, é claro, não se segue que não haja conflito entre os ideais. Em algurnas

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concepções de igualdade, corúorme já djsse, o conflito parece provável. Nossa questão é se o conflito surge quando aceitamos a concepção de igualdade que creio ser a mais atraente. Precisamos enfrentar diretamente esse problema filosófico; ele não está decidido, para um lado ou para o outro, pela opinião popular nem pela retórica política.

F. Uma ressalva Nas próximas-páginas tratarei de um grupo de argumentos a favor das conclusões conhecidas de que a liberdade e a igualdade entram em conflito: as oriundas da idéia de ju~tiça distributiva. Argumentarei que se a igualdade de recursos fornece a melhor concepção de igualdade distributiva, então esses árgumentos fracassam. Segundo a igualdade de recursos, os direitos à liberdade que consideramos fundamentais são uma parte ou um aspecto da igualdade distributiva, e estão, portanto, automaticamente protegidos sempre que se alcança a igualdade. A prioridade da liberdade está assegurada, não à custa da igualdade, mas em seu nome. :Minha defesa dessa conclusão favorável será um tanto complexa, todavia, e amparar-se-á, em parte, em um vocabulário retirado da economia. Talvez alguns leitores me achem, porta11to, demasiadamente clínico. Para eles, a atração da liberdade é imediata e profunda, e estão cansados dos argumentos que parecem tomar seu lugar dependente das complicações de uma dialética der1sa. Nem poderiam itir que a liberdade seja, de alguma forma, um instrumento da ou subordinada à igualdade; a liberdade, segundo t:'les, é a condição da dignidade humana e é, portanto, de importância transcendente por si mesma. Devo dizer, antecipadamente, que meu argumento não afuma oferecer o único ou mais intuitivamente poderoso argumento pelas liberdades que discuto. E algumas liberdades que outros afirmam ser direitos não encontram amparo nenhum em meus argumen·· tos. Só argumento que os direitos adequados a uma concep-

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ção atraente de liberdade recebem lugar tão fundamental na igualdade de recursos, que não podem surgir conflitos entre esses direitos e tal definição de igualdade distributiva. De qualquer forma, meu argumento não pretende subordinar a liberdade à igualdade, mas, pelo contrário, demonstrar que embora seja comum distinguirmos essas duas virtudes nas discussões e nas análises políticas, elas expressam mutuamente aspectos de um único ideal humanista. Voltarei a essa grande e obscura afirmação no final do capítulo, quando espero que seu significado esteja mais claro9 •

II. Duas estratégias

A. Distinção das estratégias Se prezamos a liberdade, devemos tentar reconciliar a liberdade e a igualdade, pois qualquer conflito genuíno entre as duas é uma querela que a liberdade fatalmente perde. Devemos agora distinguir duas estratégias para tentar realizar tal reconciliação: uma estratégia em duas etapas fun9. Não estou tentando descobrir atê que ponto meu argumento qualifica ou expande a discussão da liberdade em meu livro Taking Riglits Seriously (Ca:mbtidge, l\1ass.: Harvard University Press, 1977), pp. 240"258. Seria sensato assinalar, porén1, que minha discussão naquele livro pretendia demonstrar por que un1a moralidade política utilitarista não poderia re~onhecer um direito geral à liberdade corno um trunfo sobre os cálculos utilitaristas da vantagem social geral, e por que, para ser plausível, a moralidade utilitarista precisaria reconhecer, não obstante, certos direitos específicos de determinadas liberdades. Ver Taking Rights Seriausly e Dworkin, A Mattr:raf Principie (Cam' bridge, tvfass .. :Harvard University Press, 1985), pp. 293-303 [trad. bras. Uma questão deprimípio, São Paulo, Martins Fontes, 2000j. Aqui, anali-~o o papel da liberdade em outra moralidade política, que não se baseia na ética utilitarista, mas no que acredito ser a moralidade mais interessante da igualdade de recursos. As diversas estratégias aqui utilizadas, portanto, ilustram a declaração metodológica sobre os direitos feita ern Taking Rights Seriously e A Matter of Principie: que não se podem identificar os direitos independentemente da moralidade política geral à qual se destinam a pertencer.

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igualdade. Também vimos um exemplo dessa estratégia e1n funcionamento. Os igualitários defensores do laissez-faire acreditam que a distribuição igualitária ideal só pode ser definida historicamente. A distribuição ideal, na opinião deles, é qualquer uma que de fato resulte da produção e do intercâmbio realizados à sombra de uma estrutura política que proteja as liberdades que crê fundamentais. Assim, conforme disse, os igualitários defensores do laissez-faire não encontrarão conflito nenhum entre as liberdades que são levados a reconhecer e a distribuição historicamente gerada que consideram ideal. Não encontrarão conflito nenhum porque, hipoteticamente, qualquer decisão política que infringisse as liberdades por eles defendidas destruiria, e não promoveria, o que consideram igualdade. A:3 teorias contratualistas da justiça também costumam recorrer à estratégia dos interesses para levar a hberdade à história que contam. Insistem que os princípios justos de governo são aqueles que as pessoas concordam em escolher, como se fossem seus próprios interesses, sob con

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noria como se fossem interesse da maioria, principalmente quando o preço da proteção dessa liberdade significasse menos bens materiais para eles? A teoria contratualista de Jolm Rawls é muito mais complexa. Em sua mais recente versão, elaboram-se condições para a escolha de modo que expresse, primeiro, uma concepção de pessoas como cidadãs de uma comtmidade livre e igual, cada uma das quaiS tendo o interesse "moral" da mais alta ordem de proteger sua capacidade de justiça e sua capacidade de racionalme11te criar e revisar concepções do bem e, em segundo lugar, princípios de razoabilidade adequados à cultura política das democracias liberais ocidentais. Assim, membros da "posição original", na qual são escolhidos os princípios da justiça, faze.m as vezes de fidu- · ciários de outras pe~soas, cuja posição social e econômica, talentos e habilidades, gostos e concepções do bem ficam ocultos para o fiduciário sob o "véu da ignorância"lO. A estratégia de Rawls para reconciliar a liberdade e a igualdade parece um misto das estratégias constitutiva e dos interes· ses 11. A liberdade entra na definição de igualdade, na estratégia constitutiva, da seguinte maneira. A comunidade política trata as pessoas com igual consideração quando respeita os princípios de justiça que seriam escolhidos por seus representantes na posição original, e as condições da posição original são modeladas de n1odo que itam que as pessoas têm um interesse fundamental na liberdade. Os fiduciários da posição original recebem informações de que

10. Ver John Rawls, "Justice as Fairness: Politkal No! Metaphyskal";

Phi/osophy & Public Affairs 14 (1985): 223-251.

11. Em sua formulação original, a estratégia de Rawls pareda depender muito mais da estratégia do inter<=sse; ver John Rawls, A Theory of Justice (Cainbridge, Mass.: The Belknap Press ofI.Yarvard University Press, 1971), pp. 195-237. Rawls descreve as mudanças enti·e a formulação original e a atu.al como reação às criticas de H. L. A. Hart à fom1ulação original. Ver Rawls, "The Basic Llbertiesº; e Hart, "Rawlo on Liberty and Its Priority", Univmity of Chicago Law Review 40 (1973): 534.

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seus beneficiários têm um interesse extraordinário em desenvolver e explorar sua própria capacidade de autonomia - sua capacidade de formar, criticar e pôr em prática as concepções da vida boa - e esse interesse não pode ser atendido em uma comunidade rujas leis não proporcionem ampla liberdade de escolha pelo menos nas questões importantes12. Mas Rawls parece manter pelo menos um pequeno elemenda estratégia dos interesses: ele afirma que os fiduciários da posição original só confiarão em afirmações instru1nentais empíricas sobre como atender melhor aos supostos interesses de alta ordem na atribuição de determinados direitos à liberdade. Entre elas estão, por exemplo, afinnações sobre as circunstâncias em que as pessoas acharão a confiança em seus próprios poderes necessária ao autorespeito.

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B. A estratégia dos interesses A estratégia dos interesses, se bem-sucedida, é atraente por diversos motivos. Propõe dar firme sustentação à liberdade extraindo os direitos à liberdade de pressupostos mais fundamentais sobre a justiça que não contêm esses direitos de antemão. A estratégia constitutiva, pelo contrário, parece dogmática e improdUtiva. Simplesmente presu me que os direitos estipulados à liberdade são exigidos pela justiça, e a estratégia, portanto, não pode ser convincente para quem já comece discordando de tal pressuposto. A estratégia constitutiva qtte descrevi nas mãos dos igualitárioS favoráveis ao laissez-faire, por exemplo, tenta conquistar : sua posição por decreto. Estipula que tratar as pessoas com 12. Embora não esteja completamente claro, parece que Rawls não se ampara nas declarações empíricas ~obre até que ponto as pessoas reais reconhe<:eriam de fato esse interesse irresistíve~ seja como for, suponho isso ao sugerir que esse aspecto do argumento de Rawls utiliza uma estratégia constitutiva, e não de interesse.

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igual consideração significa respeitar os direitos econômicos que beneficiam quem tem talento e sorte em detrimento de quem não tem ambos. Isso não é evidente. Não obstante a estratégia dos interesses encara uma dificuldade diferente que percebi há pouco, quando descrevi o contratualismo tosco. Nenl1um cidadão que confie em seu próprio discernimento preferiria i1ão ter certa liberdade protegida para si mesmo, todo o resto permanecendo igual: não posso estar em pior situação por ter o direito de falar na política, ou de fazer minha própria escolha de parceiros sexuais voluntários, ou de marchar em manifestações impopulares, mesmo que eu jamais escolha exercer tais liberdades de modo que, porém por tais direitos; minha sociedade proibisse. Como H. L. A. Hart assinalou, porém, posso muito bem achar que estou em pior situação devido a essas liberdades serem geheralizadas em minha sociedade, isto é, porque outras pessoas têm direitos desse tipo13 • Estou especialmente propenso a pensar assim com relação ao que poderíamos chamar de margem desses direitos:Com certeza eu estaria em pior situação se ninguém em minha comunidade tivesse permissão para discutir política, mesmo em particular. Mas não se segue que eu estaria em pior situação se as grandes e impopulares manifestações políticas, que muitos cidadãos achassem muito agressivas, fossem proibidas cm áreas públicas; eu talvez acreditasse estar em situação melhor, em média, se a verba pública necessária para policiar tais manifestações fosse gasta na prevenção do crime, ou na criação de melhores hospitais. lm.aginaremos que as diversas liberdades agora protegidas pela Constituição dos Estados Unidos da América, na interpretação desse documento feita pela Suprema Corte, fossem avaliadas dessa maneira, e então perguntassem às pessoas se achavam que seria de seu interesse individual trocar algumas dessas liberdades por outras vantagens que se pudesse conquistar ao aban13. Ver Hart, "Rawls on Liberty", p. 550.

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cloná-las. É improbabilissimo que a maioria dos americanos abrisse mão de tais trocas; na verdade, receío que a maioria aceitaria muitas delas. Os contratualistas adeptos da estratégia dos interesses poderiam responder de diversas formas a essa dificuldade. Poderiam afirmar que se as pessoas pensassem no assunto com calma, perante bons argumentos, recusar-se-iam, de fato, a trocar uma parte de sua liberdade por qualquer outra coisa. Mas isso parece simplesmente mais um ato de fé cega. Os contratualistas poderiam dizer que, quer as pessoas aceitassem ou não as trocas após reflexão, seria irracional fazê-lo. Todavia essa parece uma declaração muito forte; por que é irracional alguém que sabe serem convencionais as suas convicções políticas trocar a liberdade geral das manifestações políticas por quaisquer vantagens que acredite que essa troca lhe traria? A versão de Rawls do contratualismo não pennite que as pessoas façam escolhas com relação aos princípios fundamentais da justiça com base em sua própria sihtação ou vantagens peculiares. Sua defesa da liberdade emprega, conforme já disse, um método misto que combina características da estratégia constitutiva e da estratégia dos interesses. A estratégia dos interesses parece entrar em ação quando os fiduciários escolhem determinado esquema de liberdades como o esquema calculado, mell1or que os esquemas adversários, para desenvolver os supostos poderes morais de seus beneficiários. Rawls argumenta que os fiduciários q11e seguissem a estratégia estabeleceriam direitos à liberdade de consciência e pensamento, de expressão e associação, e a várias liberdades pessoais correntes em nossa L'"lLl ,tura .Política. Seus argumentos demonstram como a estra'tégia dos interesses inevitavelmente faz com que o lugar da liberdade na justiça dependa de pressupostos discutíveis sobre quais são reabnente os interesses das pessoas. Ele dá ênfase, por exemplo, à importância fundamental do autorespeito, que trata como bem principal que os fiduciários pretenderiain oferecer àqueles a quem representam. O auto-

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respeito, segundo ele, tem dois elementos: "a confiança que temos em nós mesmos como membros totalmente cooperativos da sociedade, fundamentada no desenvolvimento e no exercício dos dois poderes morais" e "a segurança de nosso próprio valor, fundamentada na convicção de que realizamos um plano de vida vantajoso"14. Ele acredita que os fiduciários protegeriam a prioridade da liberdade, entre outros motivos, porque "o auto-respeito é incentivado e sustentado com mais eficiência pelos dois princípios da justiça, mais uma vez precisamente devido à insistência nas liberdades igualitárias fundamentais" 15 . Mas alguns filósofos e sociólogos insistem q11e é bem mais provável as pessoas acharem que sua vida tem valor, e que tiveram êxito em aplicar seus poderes pela justiça e pela convicção, em uma sociedade com uma teoria comum estabelecida e relativamente inquestíonáVeI da vida boa, da qual podem extrair confirmação e incentivo. Esses filósofos argumentam que em uma sociedade mais liberal, cuja filosofia pública é declaradamente neutra entre as co11cepções do ben1, a diversidade de convicções e a evidente falta de argumentos irresistíveis a favor das opiniões de qualqt1er partido solapam essa confiança que a sociedade moralmente homogênea promove16, Os fiduciários atraídos pela teoria das condições da confiança em si próprio rejeitarão o argumento de Rawls a favor da prioridade da liberdade na inedida em que sebaseia em sua perspectiva contraditória dessas condições. Evidentemente quererão proteger aqueles a quem representam, que talvez já tenham formado convicções impopulares, de 14. Rawls, "The Basic Liberties", p. 34, n. 4. 15. Ibid., p. 32. 16. Para Bernard Williams, o que se poderia razoavelmente considerar conhecimentos na área da moralidade pessoal só é pos,;ível em uma sociedade cujas tradições morais sejam acrdtas, ~em crítkas, como definidoras do certo e do errado; Ethics and the Liniils of Philosophy (Londres: Fontana Press/ Collins, 1985).

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formas selvagens de perseguição. Mas não verão necessidade de criar barreiras constitucionais que impeçam a comunidade de alcançar a ortodoxia moral e religiosa em algtnnas gerações de mane.ira inenos impiedosa - talvez restringindo a liberdade das pessoas com credos impopulares ou desafiadores de divulgá-los por meio de proselitismo, por exemplo. Acreditarão que a comunidade apenas pode gerar segurança estável de si se mirar pelo menos na direção do consenso moral e religioso. Rawls talvez consiga provar que sua própria opinião acerca das condições do auto-respeito, que presume que o auto-respeito genufuo é impossível, a menos que as liberdades que considera fundamentais estejam protegidas, é mais precisa do que a_ opinião contrária que acabo de descrever. Mas na medida em que sua disputa com essa opinião é empírica, envolvendo quais princípios estariam real1nente de acordo com os interesses das pessoas com as capacidades morais que ele presume, o lugar da liberdade na justiça permanece refém das controvérsias sobre o que esses interesses realmente requerem. E embora não seja, é claro, um argumento decisivo contra a versão de Rawls da estratégia dos interesses o fato de muitas pessoas rejeitarem a importância das liberdades fundamentais tradicionais para sua própria vida;- mesmo depois de reflexã.o e discussão, esse fato, não obstante, ameaça qualquer pressuposto confiante de q·ue fiduciários sensatos pensariam que essas liberdades defendem os interesses de todos, mesmo por trás do véu da ignorância. Está longe de ser óbvio, pois, que todas as opiniões populares sobre o valor da líberdade expressem somente as considerações de vantagem pessoal , especial que a posição original excluiria. A opinião popular ' também pode expressar convicções difundidas sobre o que seria o interesse geral das pessoas. Se for possível demonstrar que a estratégia constitutiva adversária é menos dogmática do que parece à pririleira. vista, talvez ela afinal proporcione uma defesa melhor da liberdade em um mundo igualitário.

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III. A liberdade pode ser leiloada?

A. Um argumento fundamentado nos interesses

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Finalmente chegamos à nossa pergunta principal: a liberdade e a igualdade entram em conflito na igualdade de recursos? Discorri sobre essa concepção de igualdade no Capítulo 2, e só preciso oferecer um resumo sinótico. Grosso modo, ela estipula que a distribuição igualitária ideal satisfaz a uma versão apropriadamente complexa do teste de "cobiça": ninguém desejará a propriedade atribuída a qualquer outra pessoa, ou por ela controlada. É preciso ar nesse teste e satisfazer a igualdade de recursos ideal, por meio de uma distribuição na qual as pessoas, não obstante, tenham ní·veis diferentes de bem-estar. Em uma sociedade real, cujos cidadãos diferem em capacidades produtivas, não é possível satisfazer completamente ao teste inicial. Podese atribuir mecanismos de redistribuição, porém, para elevar o grau de satisfação. Eles poderiam assumir a forma, por exemplo, de programas de tributação e redistribuição baseados nas decisões com relação a seguros q11e os membros da comunidade tomariam em certas circunstâncias apropriadas. Dessa e de outras maneiras, o teste de cobiça é uma orientação prática e útil. Co1npreendemos melhor o teste de cobiça em ação ao imaginar um mecanismo artificial que pudesse alcançar uma distribuição que asse no teste. Pessoas em uma ilha deserta fariam lances por diversos grupos de recursos físicos lá encontrados, com um estoque inicial de recursos para os lances (conchas, por exemplo), e o leilão se repete diversas vezPs, até que todos concordem com seu término. Se terminar, ou no teste de cobiça, pois ninguém cobiça o quinhão de recursos q11e outro adquiriu, embora cada pessoa esteja satisfeita ou bem-sucedida em graus diferentes. O leilão proporciona apenas uma distribuição inicial, que será alterada pelas decisões postei;iores ao leilão que as pessoas tomarem com relação a comércio, produção e consu-

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mo. Os recursos que cada pessoa detém de uma época para outra, bem como o bem-estar que lhe proporcionam, dependerão, por conseguinte, não só de suas próprias decisões, mas das decisões de outrem. Esse leilão imaginário pode servir de modelo tosco para a criação de instituições políticas e económicas no mundo real na procura do máximo em igualdade de recursos que se possa encontrar. Se aceitarmos a igualdade de recursos como a melhor concepção do princípio igualitário abstrato, queremos, então, que as instituições que tornam disponíveis os recursos para qualquer pessoa sejam dependentes, tanto quanto possível, dos custos de oportunidade desses recursos para ot1trem, à maneira como o leilão imaginário e o pós-leilão o fazem. Essa breve descrição da igualdade de recursos talvez pareça afirmar que somente a estratégia dos interçsses teria êxito na reconciliação de liberdade e igualdade no regime de igualdade de recursos. Eis o argumento que parece nos induzir a essa conclusão: a igualdade de recursos presume uma distinção fundamental entre a pessoa, tendo características de personalidade como convicções, aspirações, gostos e preferências, e as circunstâncias dessa pessoa, contendo os recursos, os talentos e as capacidades de que dispõe1 7 . O bem-estar da pessoa, nas concepções mais conhecidas de bem-estar, é sensível tanto à personalidade quanto às circunstâncias. Mas a igualdade de recursos pretende equiparar as circunstâncias, não o bem-estar total, e nisso difere da igualdade de bem-estar. Threce inegável, porém, que a . 17. Pode parecer lingüisticamente inexato atribuir as capacidades :físicas ie rnentais da pessoa a suas circunstâncias, e não a sua personalidade. Mas distinguir dessa forma é importante por motivos discutidos mais adiante no texto. Tratar as capacidades como parW das circunstâncias, contudo, apresenta complexidades para a igualdade de recursos. Não se podem leiloar as capacidades da maneira que se ldloam os recursos materiais comm1s, nem é possível tnmsferi-las entre pessoas n.i. busca da igualdade de recurs0.'3. Os planos de seguros hipotéticos discutidos no Capítulo 2 são, em grande parte, soluções para es8e problema.

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liberdade.da pessoa- a gama de ações aberta para ela sem restrições legais -pertence a suas circunstâncias, e não a sua pessoa ou a sua personalidadels. A aspiração geral da igualdade de recursos, que é equiparar as circunstâncias com uma versão apropriada do teste de cobiça, pareceria, por conseguinte, aplicar-se tanto à liberdade quanto aos recursos materiais. As restrições legais deveriam, idealmente, ser atribuídas e distribuídas de modo que ninguém cobice as circunstâncias de ningué1n, contemplando-se não só seus recursos materiais, mas também as oportunidades que as restrições legais lhe concedem. Se essa for uma definição sólida de como a igualdade de recursos deve tratar a liberdade - deve-se tratar a liberdade como um recurso igual a qualq11er outro-, então a liberdade que as pessoas terão em uma distribuição igualitária ideal deve depender de quais direitos à liberdade as pessoas valorizam em geral, como de seus próprios interesses, e de quanto valorizam esses direitos. A liberdade e a igualdade só podem reconciliar-se, ei1tão, na igualdade de recursos, se um número suficiente de pessoas pensar que os direitos à liberdade que wna concepção adequada de liberdade identificaria defendem tanto seus interesses que todos optariam por ter tal liberdade, em seu próprio qu.inhão de recursos, em vez de qualquer outra coisa que pudessem adquirir em seu lugar. A igualdade de recursos não pode apelar, como o faz o método de Rawls, para opções contrafactuais que as pessoas fariam, ou que os fiduciários fariam por elas, em circunstâncias de ignorância radical, pois o teste de cobiça é um teste do aqui-agora: exige, em sua definição de distribuição ideal; que as pessoas que têm conhecimentos plenos de seus planos, projetos e apegas 18. As restriçõe~ morais perccbid:,i,s, pelo contrário, pertencern à petso· nalidade. Surge, portanto, uma complicação devido à convicção moral comum a muitas pessoas, de que devem obedecer às restrlções legais. Evito essa co1nplicação ao presumir que as restrições kgais. na medida em que pertencem às circunstâncí.as, devem S<>-l vistas como o "bandido" de Holmes as veria - corno ameaças que sobem o preço dos atos que proíbem.

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não prefiram os recursos atribuídos a outrem. A igualdade de recursos insiste que as pessoas tenham o direito de aplicar todos os aspectos de sua personalidade ao emitir os juízos dos qt1ais o teste de cobiça depende. Se a igualdade de recursos tem de recorrer à estratégia dos interesses para reconciliar a liberdade e a igualdade, portanto, depara-se com uma tarefa dificílima, e a conseqüência mais provável de sua tentativa de reconciliação é a derrota quase total da liberdade. itamos que a liberda. de seja apenas mais um recurso e, assim, wna-parte dela está à venda, juntamente com terras e matérias-primas, no leilão imaginário que descrevi. É preciso um pouco de engenhosidade para imaginar como se poderia leiloar a-liberdade. Eis uma sugestão: imaginemos que o leiloeiro elabore uma lista, antes do início do leilão, dás liberdades qu~ ele acredita serem importantes para os participantep do leilãO e imprima um número limitado de cartas (algo como as cartas de "sair da cadeia" do jogo Banco Imobiliário), cada uma das quais permite ao portador o exercício de uma das liber-· dades que figuram na lista. Uma das cartas, por exen1plo, daria ao portador o direito de freqüentar corrúcios ou manifestações políticas. O leiloeiro, então, dá um preço a cada carta de liberdade, dividindo o custo estimado para a comunidade da proteção de cada liberdade (o preço, por exemplo, do policiamento de manifestações políticas) pelo número de cartas qtte imprimiu com aquela liberdade; e vende as cartas no leilão geral por tal preço. Se restarem cartas de qualquer liberdade que não foram vendidas no fim do leilão, ele põe menos cartas à venda, por um preço que expresse as novas estimativas de custos no leilão seguinte. Se, pelo contrário, todas as cartas de determinada liberdade fo:ren1 vendidas pelo preço determinado para aquele leilão, qualquer pessoa pode pedir a impressão e a venda de mais cartas por um preço que expresse o aumento no leilão seguinte. Se os leilões chegarem ao fim, e esse método tiver sido executado, terá distribuído as liberdades de maneira que produza uma distribuição das liberdades e de outros bens livre de cobiça.

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Nessa configuração, caçia pessoa é obrigada a decidir a importância de cada liberdade para si. Se determinada liberdade, como a de associação política, fosse cara dem?iS, pois o custo de cada carta necessária a sua proteção fosse muito alto, dado o número de pessoàs dispostas a comprála, as pessoas ansiosas por tal liberdade estariam na situação dos que querem bens de consumo caros como champanhe ou ovos de tarambola. Deveriam pagar por uma liberdade tão cara, se pudessem pagar, tendo muito menos dos outros bens ou )iberdades. Algumas pessoas comprariam mais liberdades do que outras. O teste de cobiça, não obstante, teria êxito. A chegaria ao fim do leilão com muito menos liberdades do que B: B teria autorização para falar publicamente de assuntos políticos, por exemplo, ao o que A não teria. Sµas circunstâncias continuariam Sendo as mesmas no geral, julgadas pelo teste de cobiça, porque A teria recursos materiais que B não teria. O destino da liberdade, em qualquer sociedade pós-leilão, dependeria totalmente, portanto, do conjunto de preferências, gostos, convicções, aspirações e outros aspectos da personalidade que se encontrassem na população. Se a suspeita deprimente que expressei anteriormente for correta - de que a maioria das pessoas é indiferente pelo menos a algumas liberdades essenciais que nossas tradições constitucionais exaltam - a liberdade não sobreviveria ao leilão em nenhuma forma robusta. Algumas pessoas pagariam o preço necessário para garantir as liberdades fundamentais para si, mas não muitas, e somente esse fato elevaria o preço da liberdade para os que estivessem ansiosos por garanti-la. Não restam dúvidas de que seria quase impossível istrar uma sociedade pós-leilão na qual as pessoas tivessem liberdades diferentes. Mas não podemos apelar a essa dificuldade istrativa como motivo para resistir à conclusão a que este argumento parece ter chegado: a distribuição ideal, no regime da igualdade de recursos, é aque-la na qual as pessoas têm liberdades diferentes, algumas têm menos liberdades, e aquelas que têm mais possuem, canse-

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qücntemente, menos bens. Se tal argumento for sólido, precisamos decidir quais esquemas práticos de que reconhecem e negam liberdades se aproximariam desse ideal da maneira mais viável possível. Não poderíamos nos persuadir de que nosso atual sistema constihtcional, que &>mante a todos um conjunto importante de liberdades, e no teste. A liberdade teria um lugar muito mais modesto em qualquer esquema que pudéssemos justificar como o que mais -se,aproximasse do ideal. Se a igualdade de recursos precisa tratar a. liberdade apenas como mais um recurso, então, longe de demonstrar que não existe conflito entre liberdade e igualdade, demonstra, de maneira especü.llinente vívida e alannante, que o conflito ·entre essas vlrtudes políticas é inevítável, e também por que é um conflito em que a liberdade deve perder.

B. Utn erro importante Felizmente, esse argumento aparentemente ,devastador é falacioso. Só o descrevi para demonstrar as graves conseqüêndas, para a igualdad~ de recursos, de tentaramparar-se na estratégia dos interesses para decidir o lugar da liberdade em uma distribuição ideal. De fato, a estratégia dos interesses não tem sentido dentro da igualdade de recursos. O argumento que elaborei presume que adquirir um determinado recurso e adquirir direitos ou oportunidades de utilizar tal recurso são duas transações independentes. 1.1as nint,111ém pode, inteligente ou mesmo inteligivelmente, decidir o que comprar em um leilão, ou a que preço, a não ser que presuma corno poderá usar o que adquire. Ao fazer um lance por um quadro em um leilão de arte, presumimos que poderemos pendurar tal quadro onde gostarmos, olhar para ele quando quisermos etc. Qualquer leilão requer um pano de fundo de assunções paralelas que constituem o que chamarei de sistema de liberdade/restrição para tal leilão. O pano de fundo deve estipular o que se adquire quando se

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adquire algo no leilão em questão, isto é, o que se pode ou não se pode fazer com tal item ou com relação a ele. Mesmo que se leiloassem determinadas liberdades à maneira estapafúrdia das cartas de Banco Imobiliário que imaginei, as pessoas não poderiam decidir de maneira inteligente quanto oferecer por determinada liberdade, a não ser que o pano de fundo já estipulasse o que poderiam ou não fazer, sem a liberdade especial oferecida para venda. Assim, um sistema de parâmetros de liberdade/restrição é essencial, e esse sistema especificará se as pessoas ini·· ciarão ou não o leilão com alguma liberdade em especial nas mãos. Parâmetros diferentes produzem resultados diferentes nos leilões, embora os bens leiloados, os gostos e os projetos das pessoas permaneçam os mesmos. Se o parâmetro estipular que embora a pessoa possa usar o barro para qualquer finalidade· que desejar não pode usá-lo para criar uma escultura de sátira política, outra pessoa desejará o barro muito menos do que ela iria sem tal restrição no pano de fundo, e, assim, oferecerá preço muito mais baixo pelo barro. Cada decisão baseada no pano de fundo que o leiloeiro toma reverbera, dessa forma, por todo o leilão. Ele precisa, então, de uma justificativa para escolher u1n parâmetro e não outro. Alguém poderia contestar que o leiloeiro pode criar um parâmetro neutro, para o qual não precise, portanto, de justificativa, estipulando que as pessoas iniciem o leilão sem liberdade para fazer absolutamente nada com os bens que adquirirem. Assim, quem comprasse qualquer coisa deveria comprar também, separadamente, em um momento posterior do leilão, o controle que quisesse ter sobre o bem adquirido. Alguém poderia comprar um mastro, por exemplo, e, mais tarde, se desejasse, o direito de fincá-lo em seu terre110, pendurar nele uma bandeira etc. Essa sugestão é coerente? Os participantes do leilão devem sempre adotar programas de lances nos quais façam lances por um bem na expectativa de poder adquirir outro depois: uma pessoa que goste de cachorro-quente, mas só com mostarda, deve prever o preço da mostarda antes de

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fazer o lance pelo cachorro-quente, e talvez venha a desejar que o leilão volte a se realizar se tal preço fosse significativamente mais alto do que esperava. Contudo há uma diferença fundamental entre possuir cachorros-quentes e possuir mostarda, de um lado, e entre possuir um mastro e ter a liberdade de usá-lo, de outro. Os cachorros-quentes e a mostarda são dois bens distintos e algumas pessoas podem vir a dar-lhes valor em separado. Mas possuir um mastro e ter tllll conjunto de direitos para controlar seu uso são, em essência, apenas descrições diferentes da mesma coisa, como veremos ao tentar imaginar como seria o leilão sugerido, a partir de um parân1etro supostamente neutro de restrição total. O leiloeiro deve realizar o leilão em duas partes. Na primeira, os bens são leiloados intactos, sem nenhum direito de uso ou consideração com relação ao que foi vendido. Quando todos os bens são distribuídos daquela forma, começa a segtmda parte. O leiloeiro especifica um conjunto de liberdades e poderes sobre os bens supostamente leiloados na primeira parte, adequado para tomar esses bens prop:dedades privadas discerrúveis, e as pessoas fazem lances pelos conjuntos de liberdades e poderes que ele especificou. No entanto o leiloeiro precisa especificar, antes do início dessa segunda parte, exatamente quais liberdades e poderes estarão disponíveis na segunda parte e como se distribuem pelos ber1s vendidos na primeira parte. Seja como for que ele o faça, s11a especificação toma-se o parâmetro vigente para todo o leilão; substitui o parâmetro original, supostamente neutro, da restrição total que, na verdade, não tem papel nenhum nos trâmites. AB pessoas to1nam todas as decisões relativas aos lances, em outras palavras, como se ;as especificações de liberdade dadas pelo leiloeiro fossem o 'parâmetro original19. Evidentemente, encerrado o leilão su19. Ajudaria, nesta análise, rever diversas opçôeo qu0 o leiloeiro tem à disposição. Vamos supor que ele defina as liberdades que leiloa na segunda parte do leifüo como liberdades de usar algo que algué111 já comprou na primeira parte, de modo que as liberdades só tenham valor, relativamente a cada

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postamente cm duas partes, o leiloeiro pode alterar o sistema de parâmetros que impôs, especificando as liberdades vendidas na segunda parte de maneira um tanto diferente e voltando a realizar o leilão. Mas a segunda leva torna-se outro leilão, oriundo de outro sistema de liberdade/restrição. O leiloeiro não pode deixar de decidir qual sistema de parâmetros, dentre os que definem um esquema discernível de propriedade privada, escolhe justificadamente.

e. Recarneçar O argumento da estratégia dos interesses que criei, que termina com o fim da liberdade, começa com uma grave confusão. Embora a liberdade faça parte das circunstâncias pessoais, e não da pessoa ou da personahdade, a liberdade

bem, para o comprador anterior de tal bem. Não haverá, então, concorrência por nenhum conjunto de liberdades: o proprietário de qualquer bem adquire as liberdades específicas de usá-lo (quase) de graça. O leilão retoma à primeira parte: a concorrência se trava somente entre quem adquire quais bens em primeiro lugar, e as partes farão seus lances, no primeiro estágio, presumindo que as liberdades a serem especificadas na segunda parte já estão vinculadas aos bens pelos quais fazem lances. As liberdades especificadas na segunda parte, portanto, tornain-se um parâmetro do segundo estágio. Suponhamos, por outro lado, que o leiloeiro defina as liberdades vendidas na segunda parte como poderes de controle do uso dos bens designados, seja quem for que os adquiriu na primeira parte: se o meu lance for maior que o seu pelos direitos sobre o s.;u poste, sou eu, e não você, quem decide o que se poderá afixar nele. O leilão, então, entra. na segunda parte: ninguêm faria lances por um título inútil, cujo benefício esteja totalmente em risco, S<'lll vantagem para o proprietário, em uma concorrência posterior. As liberdades vendidas na segunda parte tomam-se, então, novamente, o parâmetro adotado em todo o leilão. Em cada um desses casos, e em qualquer outro que pudéssemos criar, odesfecho é o mesmo. Não importa como e quando as liberdades são especificadas, as partes tomam as decisões como se estivessem espedficadas como parâmetro original. Já que não podem ser especificadas de maneíra qu.e não gerem conseqüêndas para o leilão, qualquer especificação precisa do tipo de justificativa que exploro nas próximas partes do texto.

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concedida por um Estado igualitário não pode ser totalmente decidida por meio de decisões particulares em fonna de leilão, pois qualquer leilão pressupõe um sistema de liberdades/restrições de algum tipo já em vigor. l:>ortanto, a estrutura geral da igualdade de recursos desconhece a estratégia dos interesses. Essa concepção de igualdade só torna relevantes os interesses das pessoas no nível do leilão que imagina, mas as decisões fundamentais acerca da liberdade figuram em um nível anterior, o rúvel no qual o leilão é criado, e não quando é realizado. Esse requisito técnico do recurso ao leilão indica uma característica fundamental da igualdade de recursos. O teste de cobiça baseia-se, ele mesmo, em interesses. A.E pessoas têm seus próprios interesses em mente quando decidem se preferem os recursos disponíveis para quaisquer outras pessoas àqueles disponíveis para elas. Mas o teste de cobiça pressL1põe um sistema de liberdades/restrições e não pode ser usado para produzir um sistema desses, po.is qualquer conjunto de estipulações de fundo que viermos a pressupor sobre o que as pessoas terão ou não liberdade. de fazer com os recursos que adquirem será atendido por um leilão l1em-sucedido com tal pano de fundo. Se o pano de fundo estipular que ninguém pode usar os recursos adquiridos, a não ser de algumas maneiras enumeradas, o teste de cobiça estará satisfeito: as pessoas farão escolhas tendo errt mente essas graves restrições à liberdade e, hipoteticamente, n.ão preferirão nenhum conjunto de rec11rsos que outra pessoa escolher, dadas as mesmas restrições. Se o pano de fundo estipular uma liberdade de escolha bem mais ampla, o quinhão que cada pessoa escolher ; será diferente, mas novamente o leilão, se bem-sucedido, produzirá uma distribuição isenta de cobiça. Já que o teste de cobiça é, dessa forma, indiscriminado entre os sistemas de liberdade e restrição, a estratégia dos interesses não terá possibilidade de êxito; está totalmente equivocada. A igualdade de recursos, em outras palavras, requer dois estágios de análise, dos quais o teste de cobiça e o lei-

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Ião imaginário, criado para satisfazê-lo, representam apenas o segundo. No primeiro estágio, ou estágio de formação de parâmetros, o leilão é estruturado por meio do sistema de parâmetros, com base no qual o leilão acontece. Assim, a definição que a igualdade de recursos oferece de uma distribuição igualitária ideal deve conter urna especificação das liberdades essenciais à eqüidade. O teste de cobiça, como acabamos de ver, não pode oferecer a definição com.pleta de distribuição ideal. Já que o teste é compatível com um número.in,, definido de distribuições-isto é, já.que é compatfvel com um número indefinido de distribuições que o leilão bem-sucedido dos recursos iniciais produziria - só pode oferecer uma condição necessária para a distribuição ideal. O sistema de liberdades/restrições faz parte do que se necessita para completar um conjunto d.e condições suficientes2°.

20. O parâmetro do leilâo deve, naturalmente, tratar de outras questões além daquelas sobre liberdade e restrições. Salientei outro aspecto do parâmetro no Capítulo 2, quando disse que o parâmetro do leilão ímaginário deve especificar a forma na qual os recursos disponíveis serão lt'iloàdos. itamos que o leiloeiro conseguiu fazer negócios irreversíveis com ilhas vizinhas e, apesar do fato de algumas partes do leilão vindouro não gostarem de ovos de tarambola, trocou todos os bens da ilha, antes do leilão, por um grande número dessas iguarias. O leilão resultaria em uma di8tribuição isenta de cobiça, mas o processo estaria defeituoso. E os resultados nãó constituiriam uma distribuição igualitária ideal, porque teriam sido violados os parâmetros pressupostos sobre a forma dos recursos a serem leiloados. Alguntas questões acerca dos parâmetros relativos aos bens a seren1 leiloados são mais difíceis do que a questão de se o leiloeiro deve trocar um conjunto de recursos mistos por ovos de tarambola. Entre os bens a serem leiloados
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Con·clui-se .de tudo isso que a igualdade de recursos deve recair na estratégia constitutiva se esta espera reconciliar sua versão de igualdade com qualquer concepção adequada de liberdade. Deve demo11strar que o sistema paramétrico de liberdades/restrições para se alcançar a igualdade proporciona os direitos que um conceito adequado de liberdade requer. Nas duas seções seguintes, analisarei um argumento constitutivo com tal aspiração. Se esse argumento tiver êxito, fluirá uma concepção atraente de liberdade da própria definição de distribuição igttalitária, e assim a liberdade e a igualdade não poderão entrar em conflito. Mas, antes, precisamos acertar um pormenor. Tenho argumentado que qualquer leilão precisa de um parâmetro de liberdades/restrições que não pode ser neutro e deve, portanto, ser justificado como apropriado à igualdade de recursos. No entanto, não há dúvida de que é possível descobrir recursos para alterar as liberdades e as restrições que o parâmetro oferece, levando pelo menos algumas delas a leilão. Quando estava elaborando o meu argumento fundan1entado nos interesses, que depois rejeitei, que supunha possível leiloar a liberdade a partir de uma base neutra, imaginei liberdades especiais, como se fossem cartas de Banco Imobiliário, e especulei sobre como seriam definidos os preços e a realização de um leilão para elas. Não há dúvida de que é possível imaginar outros dispositivos para variar o esquema paramétrico. O espírito da igualdade de recursos requer que o leiloeiro realize tais leilões modificadores de parâmetros? Não, ele os proíbe. Trabalhei a questão de que qualquer parâmetro terá conseqüências no leilão, parâmetros diferen' tes geram resultados diferentes, mesmo quando os recursos, ' os gostos e as aspirações permanecem os mesmos. O leiloeiro deve escolher o parâmetro que melhor servir aos objetivos da igualdade de recursos. Suponhamos que ele decida que o sistema paramétrico adequado não contém a liberdacle para a discriminação racial. :tv1ais tarde, ele não poderá leiloar cartas de Banco Imobiliário qi1e permitam a discrimi-

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nação racial, pois isso deixaria em situação injusta os que estariam em desvantagem se outras pessoas tivessem tal liberdade. Precisam decidir se compram tantos cartões de liberdades quantos puderem pagar, apesar do fato de que não os usariam. Se comprarem todos, o restante do leilão prossegue a partir do parâmetro definido pelo leiloeiro, porém não tnais entre pessoas com os mesmos recursos, pois

tiveram de usar algumas conchas simplesmente para preservar tal parâmetro. Se não comprarem, o restante do leilão não se baseia mais nesse parâmetro - não esquecer que a perda de liberdade para alguns afeta os preços e as opor1 tunidades para outros também - e não há mais garantia de um resultado iguahtário.

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o princípio da abstração

A. A versão da ponte A prinápal objeção à estratégia constih1tiva, como salientamos muitas páginas atrás, é sua nítida circularidade: parece com.eçar o argumento muito próximo do fim. Define a distribuição igualitária de modo que a liberdade já esteja presente na própria definição de igualdade, e então declara que, por esse motivo, a igualdade e a liberdade não podem entrar em conflito. Como podemos construir um argumento constitutivo para a igualdade de recursos que não reivindique uma vitória arbitrária com essa maneira inútil? Como elaborar um argumento genuíno a favor da liberdade se partimos de uma definição que já a garante? Não partimos de uma definição porque a igualdade de recursos não é o alicerce de nosso argumento. Começamos bem antes, no mais abstrato princípio igualitário, que exige que a comunidade trate todos os membros com igual consideração. Aceitamos esse princípio e, pelo menos para as finalidades deste capítulo, itimos a igualdade de recursos con10 a melhor interpretação ou concepção dele. As-

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sim, podemos utilizar o que chamarei de versão da ponte da estratégia constitutiva. Temos duas idéias: o princípio igualitário abstrato, que exige consideração igual, e, por outro lado, a igualdade de recursos, que propõe que um leilão sob certas condições produz a igual consideração. Escolhemos 0 sistema paramétrico, dentre os que analisamos, que constrói a melhor ponte entre essas duas idéias. Escolhemos o sistema paramétrico que oferece mais plausibilidade à afirmação de que o leilão realizado a partir desse parâmetro trata as_pessoas com igual consideração. Essa estratégia da ponte, devo argumentar, endossa um princípio geral e poderoso, o princípio da abstração, com:o parte fundamental~<: qualquer parâmetro adequado. Esse princípio de:fiiie um forte pressuposto a favor da liberdade de escolha. Insiste que a distribuição ideal só é possível quando as pessoas estão legalmente livres para agir como desejarem, a não ser quando há necessidade de restrições à líberdade para proteger a segurança e a propriedade das pessoas, ou corrigir certas imperfeições dos mercados (ou outros mecan'ismos distributivos semelhantes ao leilão) que descreverei em momento oportuno. O princípio da abstração não endossa a liberdade como permissividade, mas tem poder suficienté para ser o núcleo de uma concepção adequada de liberdade. Ademais, a estratégia da ponte também dá sustentação, como te11tarei demonstrar, a direitos .mais específicos à. liberdade que protejam as pessoas contra restrições à liberdade, mesmo quando o princípio da abstração produza outras considerações. Esses direitos mais específicos são suficientes para completar uma concepção adeq·uada de liberdade. Se for assim, a estratégia constitutiva de reconciliar a liberdade e a igualdade tem êxito. No entanto esse resultado feliz é o desfecho de um argum.ento, e não a vitória vazia de uma definição conquistada por antecipação. A estratégia da pont<' não produz, porém, uma teotia exaustiva dos direitos à liberdade que a igualdade de recursos exigiria. úma lista exattstiva trataria também de outros

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aspectos da igualdade de recursos, além de sua teoria da igualdade distributiva, incluindo, em especial, sua interpretação da igualdade política ou democracia21. Estou ansioso por não ser mal-entendido neste ponto. Os argumentos que ofereço aqui para o princípio da abstração e certos outros direitos dá ênfase à importância da liberdade para a igualdade distributiva. Não devo ser entendido como quem está afirmando que os argumentos desse tipo sejam os únicos que _temos ou de que precisamos para todos os direitos à liberdade que quiséssemos reconhecer. Não obstante, os argumentos que farei pelo princípio da abstração e certos outros direitos são suficientes, em si mesmos, para dar wn lugar de destaque à liberdade na igualdade de recursos. Nas últimas seções do capítulo, analisaremos como esses argumentos se referem a. decisões sobre a liberdade no mundo real da política prática, inclusive as decisões descritas nos exemplos que enumerei no início. Em me11 argumento, faço uma suposição a favor e com relação ao princípio da abstração que não desenvolverei. Presumo que qualquer sistema paramétrico competente de liberdades/restrições conteria um princípio da segurança: isso exigiria restrições à liberdade necessárias para oferecer segurança física suficiente às pessoas e controle suficiente sobre suas. próprias propriedades para lhes permitir elaborar planos e projetos, e realizá-los. Presumo, enfim, que um sistema paramétrico adequado teria restrições legais que prolbissem agressões físicas, roubo, danos propositais às propriedades e invasão, do tipo comum ao Direito Civil e Penal de todos os sistemas legais descr1volvidos22 • Surgem questões interessantes sobre os pormenores de tais restrições em uma distribuição igualitária ideal, mas desprezarei a maioria delas por estar distante de nossa concentração 21. Ver Capítulo 4. 22. Não pretL>ndo insinuar qu.e iodas as comunidades têm exatamente as mesmas regcas, ou que existe um significado únir.o, "natural", de "propriedade" a partir do qual se poden1 criar tais regras.

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atual no problema da hberdade, e simplesmente supor que as restrições comuns e gerais desse tipo estão previstas no parâmetro.

B. Os verdadeiros custos de opartunidade Descreverei, de maneira preliminar, o argumento prin ~ cipal quê a estratégia da ponte oferece ao princípio da_ abstração. Toda concepção de igualdade proporciona, por 1neio da descrição da distribuição ideal, uma métrica da eqüidade, uma teoria sobre como se deve medir os recursos ao decidir quando as pessoas têm parcelas iguais. A igualdade de recursos utiliza a métrica especial dos custos de oportunidades: determina o valor de qualquer recurso transferível que uma pessoa tem como valor ao qual os outros renunciam porque ele o possui. Julga que tais recursos são simetricamente divididos quando o total de recursos transferíveis de cada pessoa tem o mesmo custo de oportunidade agregado medido dessa forma. O leilão imaginário é elaborado para garantir exatamente esse resultado; se o leilão terminar, então os custos agregados das oportunidades, conforme definidos por tal leilão, são os mesn1os. Mas cada leilão identificará custos de oportunidades de maneiras diferentes. Estou apenas repetindo, em outra linguagem, o que já percebemos diversas vezes: leilões ba~ea dos em parâmetros diferentes produzem resultados diferentes, e todos am no teste de cobiça. Todavia a força dessa observação é especial neste corttexto. Mostra que a estratégia da ponte deve encontrar um meio de identificar o que ' poderíamos chamar de custo verdadeiro de oportunidades de um conjunto de recursos. Se consegWrmos dar sentido à idéia do verdadeiro t"Usto de oportunidade, poderemos, então, selecionar cláusulas paramétricas relativ·as à liberdade, que proporcionem a melhor ponte entre o princípio igualitário abstrato e o teste de cobiça, perguntando quais dessas cláusulas estão mais bem calculadas para identificar e ex-

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pressar o verdadeiro custo de oportunidades. Mas, se não consegWrrnos dar sentido à idéia, então não poderemos dizer que um leilão a partir de um parâmetro, que produz um conjunto de preços e resultados, aproxime-se mais dos ideais da igualdade de recursos do que outro, a partir de um pano de fundo bem diferente, que produza preços e resultados bem diferentes. A igualdade de recursos seria, então, uma concepção de igualdade vazia, porque desesperadamente indeterminada. A".isim, nosso projeto de construir uma ponte entre o princípio igualitário abstrato e o teste de cobiça com seu recurso ao leilão requer uma teoria adequada do verdadeiro custo de oportunidade. IJrecisamos de tal teoria, por exemplo, para atacar a questão do parâmetro que mencionei anteriormente: detenninar a forma na qual os bens são leiloados. itamos que alguns participantes do leilão foram juntos comprar um terreno para construir um estádio de futebol. O preço que devem pagar dependerá, dentre outras coisas, do tamanho dos terrenos leiloados. Se o leiloeiro vender terrenos em lotes de tamanho que não seja inferior ao tamanho exato necessário para o estádio, e o parâmetro proíbe transações que subdividam esses lotes após o leilão, os construtores do estádio quase certamente pagarão meftos do que se o leiloeiro oferecesse lotes de tamanhos tão pequenos que todos os quisessem. O segundo desses leilões, no qual se oferecem terrenos em lotes menores, parece mais justo que o primeiro, parece melhor para concretizar os objetivos da igualdade de recursos. Mas por quê? Na igualdade de rec"'Ursos não é resposta dizer que o bem-estar será maior em média, ou mais próximo do igualitário, no segundo leilão do que no primeiro. (De fato, em algumas circunstâncias, essas afirtnativas seriam falsas.) Talvez estivéssemos tentados a dizer que, já que os construtores do estádio teriam de pagar mais no segundo leilão, o primeiro leilão, que só permite a venda de terrenos em lotes grandes, oculta custos que o segundo leilão revela, e que o

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verdadeiro custo de oportunidade do terreno é, portanto, subestimado no primeiro leilão. Mas o fato de o preço dos terrenos subir não pode, em si, ser o motivo pelo qual o segundo seja mais justo. Fbr que não devemos dizer que no segundo leilão o preço dos terrenos está superestimado? E já que o preço do terreno do estádio seria mais baixo no primeiro leilão, o preço de outros recursos seria mais alto. Por que não devemos, então, dizer que, no tocante a esses outros recursos, o primeiro leilão é mais justo que o segundo? Precisamos de uma explicação mell1or para nossa impressão de que o segundo leilão é mais justo que o primeiro; precisamos procurar algum princípio que tanto justifique essa intuição quanto ofereça uma ponte adequada entre o princípio igualitário abstrato e o teste de cobiça. A igualdade de recursos pretende que cada pessoa tenha uma parcela igual dos recursos avaliados .Pelo custo das opções que faz, expressando seus próprios planos e preferências, em comparação com os planos e projetos das outras pessoas. Esse é seu e11tendimento da distribuição igualitária de recursos, sua interpretação de como o esquema de propriedade privada da comunidade trata todos os membros com igual consideração. Se itirmos esse entendimento, segue-se que o leilão é mais justo -que proporciona uma distribuição igualitária mais genuína - quando oferece opções mais discrimi11adoras e é, assim, mais sensível aos planos e preferências distintas que as p,essoas têm de fato. No primeiro dos dois leilões qi.te imaginam.os, alguém deve pagar o mesmo preço pelo terreno, mesmo que seus gostos e aspirações estejam limitadas a um pequeno chalé ou cheguem a i.tm latifúndio considerável. O que lhe resta para os : outros recursos não sofre influência de suas preferências com relação a moradia, e essa falta de sensibilidade do mercado tem conseqüências não só para sua própria decisão, mas para as dos outros também. Os iradores do futebol pagam um preço diferer1te por seus ingressos, por exemplo, e assim concorrem com os demais pelos outros bens em condições diferentes do que concorreriam se os recursos de

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cada pessoa fossem mais sensíveis às dimensões precisas de suas próprias preferências. A falta de flexibilidade é uma derrota geral para o programa da igualdade de recursos. A igualdade de recursos prefere leilões mais abstratos aos menos abstratos, não porque o preço de determinados recursos será mais alto ou mais baixo nos leilões mais abstratos, nem porque o bem-estar total venha a ser maior ou mais igualitário, mas porque o objetivo geral dessa concepção de igualdade, que é tornar a distribuição o má.is sensível possível às escolhas que as pessoas fazem ao elaborar seus próprios planos e projetos, é mais fácil de se alcançar com a flexibilidade que a abstração proporciona. Assim é o princípio da abstração. O prin.cípio reconhece que o verdadeiro custo de oportunidade de qualquer recurso transferível é o preço que os outros pagariam por ele em um leilão cujos recursos fossem oferecidos da forma mais abstrata possível, isto é, na forma que permita a maior flexibilidade de adaptação a planos e preferências. Insiste, portanto, que o leilão deve oferecer recursos nessa forma abstrata se for para reconhecer o leilão como identificador de uma distribuição igualitária. Surgirão questões difíceis, é claro, na aplicação desse princípio. Em algumas circunstâncias pode ser indeterminado qual de dois conjuntos de bens satisfazem melhor ao princípio da abstração, e nesses casos talvez seja necessário mais um princípio para o desempate. No entanto, em muitos casos, a recomendação do princípio será suficientemente simples. Lembremos o leiloeiro que trocou todos os recursos diversificados da ilha somente por ovos de tarambola. O negócio transgrediu a igualdade, não por alterar o conjunto original de bens, mas porque violava o princípio d.a abstração de maneira fundamental. Tomotl o conjunto muito menos sensível-de fato o mais insensível possível- aos planos e preferências dos participantes. Se o leiloeiro só tivesse achado ovos de tarambola na ilha, e tivesse conseguido trocá-los, sem custos, por t1ma mistura de bens de outras ilhas, o que teria pennitido que os lances do leilão fossem mais

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sensíveis às diversas preferências, planos e ambições dos participantes, o princípio d"a abstração teria exigido, e não proibido, que o fizesse. O pÍ:incípio também requer que os recursos naturais sejam leiloados da forma mais indiferenciada possível- que seja leiloado o minério de ferro, e não o aço, por exemplo, e terrenos virgens, em vez de campos de trigo. Requer, como demonstra nosso exemplo do estádio, a divisibilidade máxima possível dos bens leiloados, para que as pe~soas possam fazer lances em unidades indefinidamente pequenas de cada recurso (embora não, é claro, unidades tão pequenas que uma unidade sozinha não sirva para nada). Também reconhece direitos legais à propriedade que melhoram a divisibil.idade, como direitos ele agem pelo terreno, e interesses vinculados temporários, em vez de somente interesses de domínio absoluto. Assim, o princípio da abstração tem um papel central na_definição do aspecto paramétrico do leilão que não estamos considerando agora: a fonna na qual os bens são apresentados_~ QS lotes diferenciados. Contudo também tem papel importantíssimo na definição do·aspecto paramétrico que estamos estudando: o sistema de liberdades/restrições que define o lugar da liberdade na igualdade de recursos. A abstração requer alguns limites jurídicos à liberdade total porque os recursos não podem ser minuciosamente adaptados a planos e projetos, a menos que as pessoas possam contar com o controle dos recursos que adquirem. O princípio da abstração pode1ia, portanto, ser encarado como algo que adota o que chamei de princípio da segurança; nesse caso, esse princípio seria interpretado e aplicado de maneira especial e interessante. Mas as restrições legais além das :necessárias à segurança obviamente comprometem a abstração: o barro não será leiloado em sua forma mais abstrata se o sistema paramétrico proíbe esculhrras satíricas, pois as pessoas ansiosas por se expressarem dessa forma não podem adaptar seus recursos aos próprios planos de maneira tão eficiente com tal restrição como o fariam sem ela . .Assim, o princípio da abstração insis~e que as pessoas de-

TE URJA

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veriam, em princípio, estar livres, no sistema paramétrico, para utilizar os recursos que adquirem, inclusive o lazer que proporcionam e protegem, por meio do programa de lances, do modo como desejarem, de maneira compatível com o princípio da segurança. O princípio da abstração é essencial, portanto, a nosso projeto principal. Estabelece o pressuposto geral da liberdade de escolha no núcleo da eqüidade, e isso é um grande o rumo à reconciliação da liberdade com a igualdade. O princípio também tem uma importante conseqüência imediata que devemos parar para analisar. Parece endossar a tese liberal de que não se podem justificar proibições legais com base somente em que a conduta proibida é ofensiva a alguma religião predominante ou ortodoxia moral.

C. A vigência da moral -,_;;

Esta conclusão liberal será forte demais para alguns leitores; eles acharão que ela viola, em vez de aproximar-se, do princípio da abstração. Analisemos o seguinte argumento. "A tese liberal não respeita a abstração porque não oferece às pessoas o máximo possível de flexibilidade na escolha da vida a levar. Muita gente acha que só se pode levar uma vida de valor em uma comunidade cuja cultura popular i9.entifique e prescreva uma moralidade pessoal compartilhada, por exemplo, uma ortodoxia de compromisso religioso, comportamento sexual limitado e distinções tradicionais dos papéis dos sexos e das classes23. Na maioria das clrcunstâncias, pode-se apenas sustentar uma cultura pública desse tipo tornando ilícito o comportamento que ela julga imoral. "De certa maneira, é claro, pôr em prática a moral e a religião dessa maneira antiliberal transgrediria o princípio 23. Percebemos, quando analismnos o usO que Rawls faz da estratégia dos interesses, que alguns filósofos e sociólogos afirmam que só se pode levar uma vida verdadeirament~ desejável num ambiente de honlogeneidade-mo-

ral e talvez até religiosa.

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da abstração: proibiria totalmente, ou pelo menos dificulta-

ria muito mais, a vida que os membros das minorias religiosas, culturais ou sociais gostariam de levar. Assim, ocultaria os verdadeiros custos de oportunidades q11e viabiliza para a inaioria. Mas qualquer opção que a comunidade faça com relação a aplicar ou não uma rnoralidade comum transgride o princípio da abstração da mesma maneira. Deixar de pôr em prática a moralidade recusaria à maioria as opor-

tunidades que ela quer, e isso distorceria os verdadeiros custos de oportunidades postos à disposição da minoria. Precisamos itir que, nesse tipo de caso, não se podesatisfazer totalmente, ou de forma não runbígua, o princípio da abstração, porque a escolha de qualquer sistema paramétrico de liberdade/restrições distorcerá os custos de oportunidades em uma direção ou outra. Fazemos, então, o melhor possível pela abstração ao equilibrar entre si os interesses da maioria e da minoria de alguma forma. Se tivermos de equilibrar esses interesses em conflito, os números devem afetar esse equihbrio, e assim é preciso itir pelo menos algumas restrições legais para viabilizar um modo de vi.da que a maioria queira ter." Esse é um desafio importante à minha afi1mação de que a abstração proíbe a ilnplantação de uma religião ortodoxa ou moralidade pessoal. A objeção afirma encontrar um impulso antiliberal na idéia do custo de oportunidade e, por conseguinte, no âmago da igualdade de recursos. É, de certa forma, um desafio bem-vind.o, pois mostra ser possível modelar controvérsias políticas conhecidas e importantes de dentro dessa concepção de igualdade, e pode, portanto, ser estudado a partir dessa perspectiva. O desafio é valioso l também em outro aspecto: chama a atenção para um mal, entendido possível, de fato tentador, do tipo de neutralidade à qual almeja a igualdade de recursos. A objeção presume que o princípio da abstração pretende tomar todos os tipos de vida igualmente fáct>is de se levar. Repara, então, o que é decerto verdadeiro: que essa forma de neutralidade igualme11te fácil é impossível, pelo menos na igualdade de

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recursos, porque qualquer opção de sistema de liberdades/restrições facilitará algumas vidas e dificultará outras. Nessas circunstâncias, declara, é necessário haver um compromisso ou equih'brio entre o sistema liberal que descrevi e um sistema mais repressor que a maioria ache necessário. Mas a forma iguillmente fácil de neutralidade não tem papel nenhum na ígualdade de recursos; pertence a uma versão da concepção diferente de eqüidade que chamei de igualdade de bem-estar. A igualdade de recursos almeja a neutralidade em outro sentido: pretende que os recursos que as pessoas têm à disposição, co1n os quais realizarão planos, projetos ou modos de vida, sejam definidos pelos custos de terem esses e não outros, e não por qualquer juízo coletivo sobre a importância comparativa das pessoas ou o valor comparativo dos projetos ou das moralidades pessoais. A neutralidade nesse sentido não garante nenhum tipo de vida que alguém possa querer que lhe esteja disponível. Alguém que queira uma vida de connoisseur imperial, reunindo enormes coleções de obras-primas em um depósito particular, descobrirá que é impossível na igualdade de recursos: não poderá pagar os custos de oporh.lnidades desse modo de vida, pai~ eles serão Julgados em u1n leilão em que todos tenham os mesmos recursos para os lances, mesmo que ele sacrifique todo o resto. A igualdade de recursos ten1 essa conseqüência, não porque deixa de ser neutra com relação ao connoísseur, mas en1 virtude de ser netttra entre ele e os outros que também querem estudar e desfn1tar das obras de arte. A teoria liberal do custo de oportunidade, que se está desafia11do agora, amplia essa versão de neutralidade às circunstâncias sociais, bem como os recursos distintos que os diversos modos de vida requerem para ter êxito. Permite que os requisitos sociais de cada pessoa - o ambiente social que ela afirma precisar para realizar co1n êxito o modo de vida que escolheu - sejam testados perguntando-se até que ponto é possível satisfazer a esses requisitos dentro de uma estrutura simétrica que compare seu preço a outros. Quem

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quer uma vida ível apenas em um regime de intolerância religiosa descobriria que essa vida não está disponível por um motivo paralelo ao argumento que recusa ao connoísseur tudo o que ele quer. Dado que alguns de seus concidadãos també1n se preocupam com a vida religiosa ou espiritual, mas seguem outra religião, ou nenhuma, ele não pode comprar o ambiente que acredita precisar em um leilão cujo parâmetro não co11cede a ele por nada antecipadamente. Assim, o esquema para1nétrico que propus, no qual os custos de oportunidades são identificados por meio de leilão cujo parâmetro não permite restrições fundamentadas em religião ou moralidade pessoal, atinge o equilíbrio entre os interesses dos ortodoxos e os dos excêntricos, que são aproPriados à igualdade de recursos. Os interesses que grupos diversos têm no projeto do ambiente social e cultural são conciliados por uma estrutu.ra de preços proveniente de pressupostos neutros entre seus projetos no sentido que descrevi. Os números serão importantes no leilão realizado a partir desse parâmetro neutro. Quem anseia por proteção e reforço da homogeneidade religiosa poderá assegurar, caso seus números o garantam, algi.una parte do que acham precisar, bem como os connoísseurs, se forem suficientemente numerosos, poderão arranjar museus maravilhosos para visitar. Os devotos de detenninada fé, que precisam de uma ·comunidade de crentes na qual prosperai~ podem achar que há um número suficiente de pessoas com as 1nesmas convicções para que se reúnam a fim de criar uma comunidade religiosa especial sem recurso ao Direito Penal. Nem nenhuma minoria, seja religiosa, sexual ou cultural, tem a garantia dos requisitos sociais ideais para si. Os números trunbém , têm importância para elas: estariam em melhor situação, ' de diversas maneiras, se mais pessoas tivessem as mesmas opiniões ou preferências-que tornassem suas próprias atividades menos dispendiosas. Sttas expectativas, também, e pelo mesmo motivo, dependerão dos custos de oportunidades para outros, julgados com neutralidade, do que querem. A estratégia da ponte, portanto, recomen.da a tese li-

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beral de que o sistema paramétrico de liberdades/restrições seja absolvido de quaisquer restrições justificadas com base em verdade religiosa ou virtude moral. Nenhum outro conceito de custo verdadeiro de oportunidades ou de neutralidade moral se encaixa na estrutura fundamental da igualdade de recursos.

D. Correção Agora preciso mencionar outro princípio que o sistema de liberdades/restrições com um parâmetro adequado reconheceria, pois deixarei uma impressão equivocada sobre as abrangências do princípio da abstração se ignorar totalmente esse outro princípio. O princípio da correção, como o chamarei, é de grande.importância prática. Mas só discorrerei sobre ele de maneira vaga, desprezando muitos problemas que apresenta, pois quaisquer discussões mais longas nos desviariam de nosso projeto principal. O leiloeiro do leilão imaginário que descrevi enfrenta um problema sério. Ele sabe o suficiente acerca dos projetos, aspirações e planos dos participantes do leilão proposto para saber que o leilão não atingirá nem manterá uma distribuição equânime de recursos em t.ustos de oportunidades. Esse objetivo será derrotado pelo que os economistas chamam de extemalidades. Suponhamos que um participante A do leilão pretenda montar uma cabine de vidro em um terreno de uma área que estaria destinada, devido aos gostos e aos objetivos cooperativos de outras pessoas que compram lotes no mesmo local, a uma praça georgiana. Se suas intenções fossem conhecidas, e essas outras pessoas fossem numerosas o bastante e bem-organizadas, elas poderiam decidir coletivamente fazer lances mais altos pelo terreno que A deseja comprar. É claro que o leiloeiro não pode ter certeza de que o fariam - A poderia resolver comprar o terreno, mesmo que sacrificasse seus outros interesses-, mas o leiloeiro pode saber que isso é improvável. O leiloeiro também

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sabe que, mesmo qtte esse fosse o resultado de um leilão que atendesse a essas condições fictícias sobre informação e organização, bem poderia ser que esse não fosse o resultado do leilão verdadeiro que está prestes a iniciar, pois as intenções de A podem não estar evidentes. Ou A pode não ter o desejo de montar a cabine de vidro quando adquirir 0 terreno, porém ar a desejá-lo depois. Ou A pode vender o lote mais tarde a alguém que o compre para tal finalidade. O resultado que se obteria com perfeitos conhecimentos antecipados talvez não acontecesse por outro motivo: os custos de formar grupos para fazer lances coletivos contra A. Ignorei, ern geral, os custos de transação na história do leilão, mas eles seriam especialmente altos em casos desse tipo. Nessas circunstâncias, o leiloeiro poderia decidir limitar a liberdade de escolha, no sistema paramétrico de liberdades e restrições, apenas para corrigir o leilão antecipadamente na direção de um resultado que expresse melhor os custos de oportunidades como seriam revelados em um leilão de conheci.mentas perfeitos e transações organizacionais sem custos. Sua intervenção poderia assumir uma série de formas, algumas das quais seriam mais adequadas que outras a tal finalidade. Ele poderia adotar ordenações gerais de zoneamento, por exemplo, na tentativa de prever o uso das terras, pois isso seria definido por um leilão perfeito. Ele poderia reagir a outras formas de imperfeição do leilão dtõfinindo novos tipos de restrições nos parâmetros. Poderia prever, por exemplo, que alguns participantes usariam materiais adquiridos no leilão de maneira que poluiriam o ar em prejuízo dos vizinhos que, se pudessem prever esses atos , e organizar-se de maneira eficiente, fariam lances mais al; tos para resgatar tais materiais. O leiloeiro poderia tttill.zar as normas para delitos do sistema de liberdades/restrições para ton1ar essa poluição ível de processo; tal recurso corrigiria as extemalidades de maneira mais sutil, pois deixaria aberta a ·possibilidade de um poluidor negociar com os atingidos o direito de poluir. O terreno sobre o qual estou

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agora correndo ao acaso é, evidentemente, conhecido na literatura do Direito e da Economia. Pretendo apenas insinuar a ligação entre essa literatura e o princípio da correção. As restrições à liberdade de escolha são necessárias e justificadas, segundo esse princípio, se aumentarem o grau no qual a igualdade de recursos atinge sua meta, que é alcançar a distribuição genuinamente igualitária, avaliada pelo verdadeiro custo de oportunidades24. Aumentar a exatidão do leilão dessa forma não acairetaria, obviamente, alcançar os resultados exatos que ~e alcançaria se as condições de conhecimentos ideais e organização sem custos se realizassem. Os que ganham com as restrições - os que não querem cabines de vidro em praças georgianas - não teriam pagado nada por seu estoque inicial de reéursos para ter êxito. Assim, uma restrição reguladora ou um artigo das normas para delitos só é justificado, sob o princípio da correção, se houver bons fundamentos para supor que a corrupção do teste de custo de oportunidade seria menor com a restrição em vigor do que sem ela. Isto é, só é justificado se houver bons fundamentos para supor que os recursos das pessoas, no fim do leilão e doravante, estariam mais próximos dos resultados do Superin1aginário leilão pré-leilão que agora contemplamos, no qual todos os motivos são claros, todas as transações são previsíveis, e os Cltstos organizacionais estão ausentes. O leiloeiro tipicamente tem um motivo para supor que a distar., ção seria menos grave se adotar restrições qtte corrijam as extemalidades. Na maioria dos casos de externalidades, o ganho inesperado que uma restrição produziria se espalharia entre mais pessoas do que o ganho inesperado que resultaria sem restrições. Parece provável, portanto, que a prática 24. A análise esboçada nesse parágrafu pareceria mais adequada para justificar, dentro da estrutura geral da igualdade de recursos, as restrições que servissem a fina!Jdades um tanto diferentes desses GXemplos: para resolver diversas fom1a.~ do dilema dos prisioneiros, por exemplo, e para justificar regulamentos de trânbito, como os si~tetn<\s de mão únici3,. que visam proteger a converúência e a eficiência, e não apenas a segurança.

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geral de corrigir extemalidades por meio de restrições igualaria esses ganhos inesperados melhor do que a prática geral de ignorar as extemalidades. Na primeira prática, A teria a vantagem de outras restrições antidehtos, por exemplo, mas, na segunda, os vizinhos de A ficariam sem ganhos inesperados com externalidades para compensá-los por sua perda imediata com estas. Três precauções parecem sensatas. Em primeiro lugar, embora o princípio da correção afete o impacto do princípio da abstração, aquela não -se qualifica nem se deprecia com a segunda. Pelo contrário, a correção é um aspecto da abstração, porque visa a uma melhora da descoberta dos custos de oporhmidades que a abstração reconhece como genuína. Em segundo lugar, nada nesta breve discussão da correção refuta minha afirmação anterior de que as liberdades e as restrições paramétricas não devam ser m.odificadas pelas transações do leilão. O princípio da correção não tenta justificar as restrições argumentando que elas de algum modo seriam adquiridas em qualquer leilão. Ele imagina um leilão pré-leilão mais puro no qual os participantes tenham conhecimentos perfeitos e poder de preVisão, e no qual não haja custos organizacionais. As restrições recomendadas pela correção não fazem parte dos parâmetros desse leilão mais puro, com certeza. Mas também não são adquiridas nele. São justificadas como parte dos parâmetros do leilão, no qual os conhecimentos não podem ser perfeitos, comparando-se os resultados especulativos do leilão mais puro com_ os resultados prováveis do menos puro. Por fim, o princípio da correção também não destrói o resultado importante que alcançamos quando analisamos o princípio da abstração: um parâmetro adequado de liberdades/restrições não pode transformar nenhum comportamento em crime alegando que ofende a moralidade compartilhada ou convencional. Pois o leilão hipotético mais puro, cujos resultados justificam as restrições da correção no verdadeiro leilão, deve itir um parâmetro no qual não sejam permitidas restrições desse tipo, e esse leilão mais puro não poderia produzir resultados que justificassem quais-

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quer dessas restrições no leilão verdadeiro. Embora estejamos imaginando que um grupo de vizinhos afetados pudesse comprar, em grupo, terrenos no leilão mais puro para impedir a construção de casas inadequadas nesses terrenos, é inacreditável que possam comprar recursos de tal amplitude e escopo que um homossexual não tivesse a liberdade de assegurar uma vida sexual de sua escolha com parceiros que taipbém o quisessem, por exemplo, ou um membro de uma religião minoritária não tivesse liberdade para praticar sua religião. E·mesmo que pudéssemos imaginar essas transações devastadoras, elas não seriam casos nos quais a distorção fosse menor com restrições justificadas pela correção do que sem tais restrições. V. Outros princípios

A. Autenticidade Embora o princípio da abstração promova uma presunção de liberdade, entendida do modo como acabo de descrever, não discrimina entre liberdades classificando algumas como mais básicas ou fundamentais do que outras, exceto na medida em que se possa demonstrar que algumas restrições particulares são especialmente destruidoras da flexibilidade que a abstração pretende garantir 25 • O princípio da abstração é qualificado, ademais, por uma exceção geral; ele reconhece que as restrições talvez sejam necessárias para proteger a segurança. Uma concepção adequada de liberdade elege algumas liberdades mais fortes que outras na contenda prevista entre a liberdade e a proteção da 25. É questão inleressante até que ponto as liberdades que çonsideramos intuitivamente fundamentais poderiam ser identificadas e protegidas por um princípio da abstração dessa maneira. Não vejo motivo, a pricrri, para que haja grande confiança de que pudessem ser; o projeto estaria ameaçado pela contingência das preferências que descrevi anteriormente como um problema da estratégia dos interesses.

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pessoa ou da propriedade, e as promove como direitos especialmente poderosos. Insiste que é preciso um caso mais forte para justificar a proibição da expressão do que a proibição da agressão, por exemplo: os advogados sempre empregam o conhecido refrão "perigo claro e presente" para insinuar que é preciso um motivo mais forte. Devemos, portanto, avaliar se a estratégia da ponte produz outros princípios, além do princípio da abstração, que estabeleçam direitos mais 11ítidos à liberdade de escolha. Só estamos estudando os direitos à liberdade que fluem do modo como a igualdade de recursos encara a igualdade na propriedade privada e, como adverti anteriormente, não devemos supor que isso esgote os direitos que uma teoria mais geral da igualdade de recursos, que contenha sua teoria da democracia, aceitaria. Mas o grupo de direitos que fluem da igualdade na propriedade priv.ada contém princípios mais fortes, embora de rr~enor escopo, do q·ue o princípio geral da abstração. Qualquer esquema de leilão aprovado pela igualdade de recursos requer, por exemplo, algum princípio paramétrico que proteja especialmente a liberdade dos participantes de realizar atividades essenciais para a formação e a revisão de convicções, compromissos, associações, projetos e gostos que levam ao leilão e, após o leilão, às diversas decisões relativas à produção e ao comércio que reformarão e redistribuirão seus bens iniciais26. 26. Novamente, está disponível um exemplo impressionante. Suponhamos que o leilof'iro, ao perceber que a maioria dos participantes do leilão preferiria a distribulção que então resultaria, realiza un1a lavagem cerebral em ,uina ininoría para que mude suas prcferêndas, que, caso não as mudasse, tor1naria certos recursos caríssimos par.a a maioria. A distribuição resultante, naturalmente, a no teste de cobiça, mas não pode ser defendida como uma distribuição que demonstre igual consideraçâo pelas partes por quem o leiloeíro é inicialmente responsável. É daro que a maioria das restrições à liberdade de religião ou de expr<:>ssão ou, ainda, de associação que deploramos não é de casos de lavagem cerebral; só indico esse exemplo intpressionante para deixar claro por que a igualdade d;: recursos precisa de uma teoria da autenticidade que respeite o imperativo abstrato da igual consideração.

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A personalidade não é fixa: as convicções e as preferências mudam e podem ser influenciadas ou manipuladas. Uma teoria completa da igualdade de recursos deve incluir, portanto, como parâmetro, alguma descrição das circunstâncias nas quais se interpretará que a personalidade está devidamente desenvolvida para que se possa efetuar os cálculos do leilão. Isto é, o parâmetro precisa de um princípio que defina a autenticidade 27 • Não pode silenciar nessa questão nem, é claro, transferi-la, de alguma forma, para o próprio leilão. Devemos escolher -entre diversos princípios disponíveis, novamente, por intermédio da estratégia da ponte. Surgem. questões difíceis sobre a formulação adequada de um princípio da autenticidade e sobre os limites exatos das atividades que um princípio adequadamente formulado possa vir a proteger. Mas qualquer princípio aceitável deve ter certo alcance. A autenticidade tem voz ativa e iva: os participantes do leilão gostariam de uma oportunidade de formar e ponderar suas próprias convicções, apegas e projetos, e uma oportunidade de exercer influência sobre as opiniões correspondentes de outrem, das quais depende muito seu próprio êxito no leilão. Esperaríamos encontrar, portanto, dentro das amplas dimensões de qualquer princípio da autenticidade que a estratégia da ponte recomende, uma justificativa para permitir uma proteção especial à liberdade de culto religioso, à liberdade de expressão, ao mais amplo o à literatura e a outras forn1as de arte, à liberdade de associação pessoal, social e íntima, e -:;

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27. Emprego "autenticidade" com sentido especial: as personalidades são autênticas, para no&:os fins, quando se formaram e1n circunstâncias adequadas de utiliza\:â.O de um leilão entre personalidades assim formadas como teste da igualdade distributiva. Evidentemente, essa é uma idéia bem diferente da idéia da autentiddade metafísica ou mesmo da psicológica. Concentra-se, para começar, na ausência de restrições legais, e muitas restrições formadoras da personalidade e outras influêndas, pdo Jnenos para nós, são culturais, e não legais. No entanto, para nossa finalidade especial, que é explorar como o governo trata as pessoas com igualdade, o interesse especial nas restriçóes lega~~ é legítimo.

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também à liberdade da não expressão, na forma da liberdade contra a vigilância. Na história do leilão abrangente artificial, que dessa e de outras formas presume uma situação ideal de mundo e tempo suficientes, o leilão não começaria até que todos os participantes decidissem não continuar explorando essas oportunidades. A autenticidade ideal requer as oportunidades mais completas possíveis, não porque as pessoas estejam sempre mais propensas a fazer escolhas sensatas com mais tempo, mas porque-suas escolhas não devem depender de sua personalidade, e da personalidade alheia, com cuja formação permaneçam insatisfeitas. Assim, o parâmetro de uma distribuição ideal seria, inicialmente, não permitir restrições, tanto antes do leilão inicial quanto depois dele, às oportunidades de formar, ponderar ou advogar convicções, apegos ou preferências. A autenticidade· deveria ceder à segurança, não resta dúvida, em ocasiões de extrema emergência i10 mundo pré ou pós-leilão, mas o perigo teria de ser especial, pois qualquer comprometimento grave da autenticidade impediria o leilão, ou o poder de preservação da igualdade das transações posteriores ao leilão, de maneira especialmente fundamental e peivasiva. As transgressões ao princípio mais geral da abstração distorcem e afastam os preços dos verdadeiros custos de oportunidades. 11as é provável que as transgressões ao princípio da autenticidade distorça1n os preços de maneira mais fundamental, pois afetam o que as pessoas querem e, por conseguinte, alteram todo o programa de lances que resolvem fazer. Tetnos aquele motivo especial, dentro da estrutura da igualdade de recursos, para insistir que se avalie a autenticidade com , mais inte11sidade do que a abstração em qualquer conten, da entre esses princípios e os requisitos cte segurança - por insistir, por exemplo, que a liberdade de expressão seja protegida, a não ser em casos de perigo inegável e iminer1te. A autenticidade não oferece o único argumento de princípio que precisamos ou temos para a hberdade de expressão. Também temos argumentos mais práticos, que sahen-

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tam o papel dé uma imprensa livre na proteção contra a corrupção oficial, por exemplo. Contudo a igualdade de recursos exigiria um clireito à liberdade·de expressão apenas pela autenticidade, mesmo que não tivéssemos nenhum outro argumento a favor dela.

B. Independência O princípio da abstração protege contra processos criminais as pessoas que tenham convicções morais ou religiosas impopulares, e o principio da correção não destrói tal proteção. Mas as pessoas impopulares podem sofrer outras desvantagens no leilão tal como até agora definimos seus parâmetros. itamos que os racistas sejam tão numerosos que possam combinar de comprar terrenos para construir casas com a intenção de, posteriormente, excluir os negros. Nada no princípio da abstração os proíbe de fazê-lo. De fato, esse princípio poderia, em algumas circunstâncias, até argumentar a favor de uma segregação legalmente imposta. O leiloeiro poderia estar convencido de que os racistas se reuniriam para esse fim, em vasta parcela dos terrenos residenciais da comunidade, se os custos organizacionais não os impedissem, e o princípio da correção poderia, então, exigir que ele se antecie a esse resultado, com um zoneamento racial, nos parâmetros do leilão. No entanto um sistema económico e político sólido que permite aos preconceitos destntir a vida de algumas pessoas não trata todos os membros da comunidade com igual consideração. Precisamos, então, de outro princípio paramétrico para garantir que os resultados do leilão não transgridam dessa maneira o princípio igualitário abstrato. O princípio da independência diz respeito à liberdade e à restrição. Em primeiro lugar, controla o princípio da correção ao insistir que não se pode justificar como necessário nenhum parâmetro limitador para chegar a um resultado ao qual se chegaria em um leilão com perfeitos conhecimentos e nenhum

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custo organizacional, se só se alcançasse tal resultado porque os lances refletiriam um desprezo ou antipatia por quem estivesse sujeito a desvantagens ou sofresse devido à restrição. Depois, controla o princípio da abstração ao endossar parâ-

metros limitadores necessários para proteger as pessoas sujeitas a precor1ceitos sistemáticos por sofrerem qualquer desvantagem grave ou abrangente oriunda desses preconceitos. (Com efeito, o princípio da independência redefine os custos de oportunidades dessa maneira.) Esse argumento poderia sugerir que se trata apenas de uma situação ad hoc para o princípio da independência, que designamos uma ponte especial entre o princípio igualitário abstrato e o teste de cobiça apenas para descartar a segregação em uma distribuição igualitária. Caso fosse verdade, isso seria decepcionante, pois seria melhor se não fossem necessários acréscünos especiais à estrutura básica da igu.aldade de recursos para descartar arranjos, como a segregação de jure ou socialmente coordenada, que expressem uma desigualdade profunda. Isto é, gostaríamos de extrair o princípio da independência das raízes de nosso conceito de igualdade. De fato, podemos fazê-lo, porqt1e o problema do preconceito é, na verdade, aspecto de um problema mais geral que a igualdade de recursos precisa enfrentar em ttma série de contextos: o problema das deficiências. A igualda·de de recursos é desafiada por diferenças significativas em talento, compreendido como a capacidade de produzir bens ou serviços pelos quais outros paguem, por exemplo. No Capítulo 2, sugeri, como recurso parcial, esquemas de cornpensação com base em mercados hipotéticos de seguros. O preconceito, e1nbora obviamente be1n diferente das deficiências físicas ou da falta de tale11tos, é exemplo de um problema estruturalmente semelhante. Assim como algumas pessoas estão em desvantagem porque as preferências de outras não permitem que seus serviços tenham preços altos no mercado, outras pessoas também sofrem por pertencerem a determinada raça, ou ter certas qualidades físicas ou outros, de que seus concidadãos não gostem ou, por

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algum outro motivo, desejem evitar. Embora seja verdade qu'e a igualdade de recursos é neutra com relação às preferências que impõem a desvantagem no primeiro caso, ela condena as atitudes que geram desvantagens no segundo. Não obstante essa diferença significa apenas que não temos mais motivos para tentar reduzir a desigualdade que brota do preconceito do que para tentar reduzir a desigualdade proveniente de outras fontes. Os esquemas de compensação fundamentados em mercados hipotéticos de seguros, por mais úteis que sejam na atenuação de outras formas de deficiências, são sin1plesmente inadequados no combate às conseqüências dos preconceitos. Precisamos descobrir outra maneira, compatível com as outras metas e restrições da igualdade de recmsos, de colocar as vítimas em uma posição o mais próxima possível da que ocupariam se o preconceito não existisse. O princípio da independência, com seu impacto negativo e positivo sobre o sistema de liberdade/restrições dos parâmetros igualitários, parece um meio apropriado para se escolher. Portanto, esse princípio não é, afinal, somente um paliativo ad hoc para uma falha isolada da igualdade de recursos, mas, pelo contrário, uma conséqüência, no contexto dos preconceitos, de uma característica muito mais geral dessa concepção de igualdade. VI. De volta ao mundo real

A. Uma teoria do aprimoramento Recorremos a fantasias, na filosofia política, para aguçar ideais, e utilizamos nossos ideais para escolher dentre fracassos, para identificar as possibilidades práticas menos injustificávei<>. Como utilizar as fantasias da igualdade de recursos, imaginadas em um mundo onde tudo possa ser leiloado e os leilões possam ter duração eterna, para escolher entre possibilidades práticas de nosso próprio mundo, no qual a maioria das coisas já tem dono, quase não há recursos materiais em forma ao me11os semelhante a sua forma abs-

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trata, e é quase impossível pelo menos descrever um leilão abrangente?2S Precisamos de especulações contrafactuais, e o argumento até este ponto deve ajudar. Precisamos, primeiro, imaginar uma distribuição ideal entre nós; itamos que pessoas com os mesmos gostos e aspirações que nós fossem capazes de organizar e realizar um leilão igualitário de·todos os recursos que estivessem coletivamente ao seu dispor a partir de um parâmetro que' respeitasse o princípío da abstração e os outros princípios que identificamos. Que distnbuição geral resultaria? Evidentemente, seria absurdo pensar que poderíamos descrever com precisão o resultado desse leilão. Seria impossível dizer o que _cada um de nós aria a ter, pessoa por pessoa, se tal leilão tivesse acontecido em nossa juventude e, desde então, tivéssemos produzido, negociado e consmnido a par28. Nenhuma comunidade reaL pelo menos nenhuma comunidade complexa na qual aconteçan1 produção e comércio, pode, tecnicamente, alcançar ou manter uma distribuição igualitária ide>al com base no modelo do leilão imaginário. É inevitável que haja certas falhas por dois tipos de motivos bem diferentes. Em primeiro lugar, a distribuição é inevitavehnente incompleta da seguinte maneira: o sistema de liberdade/restrição, explicitamente defirúdo nas normas jurídicas e nas decisões judiciais anteriores, não decide todas as questões surgidas com relação aos direitos de as pessoas usarem= propriedades de maneira que entrem em conflito com o uso que os outros fazem das suas. Em Law's Empire, tentei demoru;trar como o direito civil da negligência e de estorvo pode ser entendido, de maneira útil, como reação a esse problema, exigindo que as pessoas físicas façam ajustes ao sistema vigente de liberdades/r~s· trições para progredir, embora de maneira inevi.tavelm.onte imperfeita, no piaria gerai da igi.ialdade de Iffl.IISOs. Ver Law's Empire (Cambridge, Mass.: Harvard University P:ress, 1986), pp. 276-312 [trad. bras. O império do direito, São Paulo, Martins Fontes, 1999]. Não discutirei esse problema aqlli. Em segundo h.isar, a dbiribuição, mesmo sendo completa, não pode ser totalmente aprovada no teste Je coNça quando as pessoas não diferem somente em personalidade, mas também em capacidade produtiva, como sempre aconkce, ou quando as pessoas têm sortes diferentes, como é inevitável. Podemos - e a igualdade, portanto, exige - compensar tais diferenças de capacidade e sorte de diversas maneiras. Tentei sugerir, criando um mercado hipotético de seguros para tal finalidade, que podeúamos esperar fazê-lo. Mas essa compensação não consegue ~-urar total· mente a de,-van tagen1, e assim o teste de cobÇa continuará a fracassar. Também não discutirei. esse probl.-ma mafo profundamente aqui.

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tir de nossa posição imediatamente após o leilão. Mas podemos, não obstante, emitir juízos úteis sobre como seria nossa estrutura jurídica e económica, e sobre quais padrões de distribuição da propriedadi;:' privada teríamos desenvolvido. Nosso direito penal protegeria e respeitaria a liberdade na forma do princípio da abstração e dos outros princípips sobre os quais discutimos. Os esquemas de seguro compensatório estariam em vigor para que o desempregado e o subempregado, o deente e o deficiente, tivessem reCl\fSOs especiais que se aproximassem aos das pessoas que se sust~ntam em um mercado igualitário de seguros. As pessoas teriam recursos, ocupações e poupanças diferentes, porém os grandes extremos de riqueza e pobreza conhecidos na maioria das sociedades modernas não existiriam. Podemos imaginar as conseqüências que o leilão teria gerado entre nós, em outras palavras, as quais, embora vagas, sejam suficientemente pormenorizadas para nos transmitir a confiança de que nosso sistema jurídico atual e nossa distribuição atual da propriedade privada não estariam inseridos no conjunto de arranjos que tal leilão poderia ter -ptüduzidq. TainQém podemos atribuir muitos membros da comunidade a uma de duas classes: aqueles cujas circunstâncias são claramente melhores, conforme eles mesmos julgariam, do que seriam em qttaisquer dos arranjos qtte um leilão igualitário poderia-ter produzido, e aqueles cujas circunstâncias são claramente piores. (É claro que um número substancial de pessoas pode não pertencer a nenhuma dessas categorias.) Uma concepção de igualdade é inútil, a não ser que descreva não só uma distribuição igualitária ideal, mas o que conta como aprimoramento cquânime em uma distdbuição claramente desigual. Assim, nossa próxima missão é compor uma teoria do aprimoramento adequada à igualdade de recursos que possa servir de guia para tomar nossa própria sociedade mais ib'l.talitária do que é. Precisamos dos termos da contabilidade, embora eles possam parecer estranhos no contexto da filosofia política. Podemos definir o defidt de eqüidade da pessoa como a quantidade ou o grau

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pelo qual tem menos do que teria, ou está em circunstâncias piores do que estaria, em um sistema ideal de distribuição igualitária em sua comunidade. Já que não podemos descobrir com exatidão o que qualquer pessoa em especial teria em tal sistema de distribuição, os juízos acerca do deficit de eqi.Hdade devem ser toscos, e principalmente comparativos. Normalmente nos sentiríamos justificados, por exemplo, ao dizer que uma pessoa paupérrima, cujas decisões anteriores não tenham relação com nenhuma parte substancial de sua pobreza, e tenha u1n deficit de eqüidade maior do que uma pessoa moderadan1ente pobre, e que as pessoas de nossa classe média alta não tenham deficit de eqüidade nenhum. A meta de uma teoria do aprimoramento deve ser reduzir o deficit de eqilidade. Surgem algumas qt1estões. Como avaliar esse deficit? Eu disse q·ue nossos juízos devem ser toscos, pessoa por pessoa. Mas de quais juízos melhores esses juízos toscos tentam aproximar-se? Imaginemos que soubéssemos exatamente quais recursos deternl.inada pessoa teria adquirido e mantido em uma clistribllção ideal. Que teste aplicariamos,-então, para decidir agora seu deficit de eqüidade com exatidão? Esse teste nos per.mitiria dizer sempre, com relação a d-uas pessoas, que o deficit de eqüidade de uma é maior, menor ou exatamente a mesma da outra? Estipularernos que o programa eleve apenas o nível de eqilidade quando reduz o deficit de eqüidade geral da comunidade. É provável que isso seja função dos deficits de cada um de seus membros. Mas qual função? Isto é, como decidir se um programa político aumentou a igualdade de recursos, se reduziu o deficit de eqlüdade de algumas pessoas, mas aumentou o de outras?

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B. Graus de desigualdade Cada concepção de igt.l:ildade precisa ter sua própria teoria do aprimoramento, que deve ser compatível com sua teoria geral da igualdade ideal; se o teste do aprimoram(•nto deve

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ser reduzir o deficit de eqüidade, então esse deficit precisa ser avaliado sob as mesmas condições que o ideal A igualdade de bem-estar deve definir o deficit como perda de bem-estar: o deficit de eqilidade de alguém é avaliado, para tais fins, subtraindo-se seu nível de bem-estar do nível de quedesfrutaria se houvesse igualdade de bem-estar. Não obstante a igualdade de recursos não pode empregar uma avaliação do deficit de eqilidade fu11damentada no bem-estar; isso acrescentaria, como avaliação correta do aprimoramento da igualdade, um modelo que a igualdade de recursos rejeita. A igualdade de recursos precisa, em outras palavras, calcular o deficit de eqüidade no espaço dos recursos, e não no espaço do bem-estar. Mas descobrimos que as circunstâncias de uma pessoa podem ser piores do que deveriam em dois aspectos ou dimensões. Essa pessoa pode não ter os recursos que teria adquirido em um leilão equânime que partisse do parâmetro do sistema de liberdades/restrições de fato vigente na comunidade. Ou o próprio sistema paramétrico atualmente em vigor pode ser inadequado à igualdade de recursos; pode violar o princípio da abstração, por exemplo, ou um ou outro dos princípios mais específicos com os quais nos deparamos. É claro que as circunstâncias de uma pessoa podem ser piores do que deveriam ser pelos seguintes motivos: o sistema de liberdade pode ser injusto, e a pessoa pode ter menos recursos do qu·e teria em um leilão equânime, mesmo nesse sistem.a injusto. A maioria dos pobres do mundo real sofre com essa dupla injustiça. Precisamos, então, de mais algumas distinções. O deficit de recursos da pessoa é a diferença entre os recursos que ela tem e os que teria adquirido em um leilão equànime originário de um parâmetro justo. O deficit de recursos pode ser, em geral, monetarizado com precisão suficiente para uma teoria prática do aprimoramento. O deficit de recursos de alguém é a quantia de que essa pessoa precisaria para transformar seus recursos no que teria obtido em tal leilão. O deficit de liberdade da pessoa, por outro lado, con siste nos aspectos em que ela está em situação pior, além dos aspectos captados em seu deficit de recursos, porque o sis-

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tema de liberdades/restrições de sua comunidade não é 0 que a igualdade de recursos requer. Algumas das conseqüências de um parâmetro injusto, como afirma a definição, figuram no defidt de recursos. Imaginei, anteriormente, um parâmetro que proibisse a divisão da terra em lotes menores que o tamanho necessário para um estádio de futebol. Algumas pessoas, conforme disse, teriam menos recursos com essa restrição paramétrica do que sem ela, e seu deficit de recursos expressa essa diferença. Mas vamos · analisar outra restrição que imaginei: ningué1n tem permissão para fazer esculturas satíricas. Não podemos avaliar até que ponto essa restrição piora a situação financeira de qualquer pessoa: se deixarmos de lado a possibilidade de suborno político, não existe quantia suficiente para comprar, no mercado, a permissão de fazer o que a lei proíbe. Não obstante, quem quiser fazer esculturas satfricas tein recursos de menos valor para si do que a igualdade de recursos pro1neteu, e é preciso expressar esse fato, de algum modo, em qualquer teoria adequada de seu deficit geral de eqüidade. Precisa1nos, portanto, de outra explicação para o deficit de liberdade. Poderíamos dizer que o deficit de liberdade de alguém é o grau_ em que está limitado no que é capaz de fazer ou adquirir, devido a alguma restrição, comparado ao que poderia fazer ou adquir.ir na posição definida para tal pessoa por uma distribuição simétrica ideal. O deficit de liberdade é, assim, se11sível a outras características das circunstâncias. Suponhamos que um sistema jurídico estipule, por exemplo, que ninguém pode adquirir mais do que metade do estoque total de mármore d.a comunidade. Não existiria tal proibição nos parâmetros de uma distribuição simétrica ideal: isso seria proibido pelo princípio da abstração. Contudo, a proibição não produz nenhuma restrição à liberdade no mundo reaL porque na distribuição ideal ninguém seria suficientemente rico para comprar mais do q11e metade do estoque de mi'.irmore. Uma lei que proibisse totalmente a aquisição ou o uso do mármore, por outro lado, i1nporia clara1nente uma restrição à liberdade sobre quem

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quisesse esculpir. Essas pessoas não poderiam levar a vida que levariam após uma distribuição ideal. Não podemos, como já disse, calcular um valor monetário para tal deficit. Podemos, porém, comparar os deficits de liberdade de várias maneiras, contanto que sejam provenientes de outras restrições. Imagine um mundo de fantasia no qual uma pessoa é proibida, por lei, de comer brócolis e outra é proibida de ler livros. Embora não tenhamos um sistema de avaliação para comparar as conseqüências dessas proibições, a segunda é nitidamente muito mais grave e importante do que a primeira: limita as atividades e as realizações dos que a ela estão sujeitos em grau bem mais elevado. Quando duas pessoas estão sujeitas à mesma restrição ilegítima, porém, a igualdade de recursos não pode oferecer nenhum parâmetro, ~té onde consigo perceber, para a quantificação, mesmo gue seja informal, da diferença em deficit de eqüidade entre ambas. É claro que cada pessoa sofrerá de maneira diferente com cada proibição; a restrição ao uso do mármore teria sido muito mais grave para Bemini do que para mim. Mas essas são diferenças no âmbito do bem-estar, e não poderiamas implantá-las em nossa teoria do deficit de eqüidade sem permitir que as diferenças de gosto, projeto e aspiração afetassem a distribuição da maneira que a igualdade de recursos nega. Queremos uma interpretação da restrição à liberdade que possa conduzir a uma teoria do aprimoramento, e não podemos aceitar, dentro da igualdade de recursos, que a igualdade aumentasse atribuindo-se mais recursos a Bernini do que a mim, só porque ele sofre mais por não ter liberdade para esculpir. A igualdade de recursos não deixa base para a comparação interpessoal dos deficits de liberdade decorrentes da mesma restrição. Não se segue que tais restrições à liberdade sejam, de alguma forma, idênticas para todos. Imaginemos que duas pessoas sofram de restrições à liberdade devido à mesma proibição legal ilegítima, mas uma tem mais e a outra menos recursos normais, em termos monetários, do que teriam em uma distribuição simétrica ideal. É tentador

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dizer que o deficit de eqüidade geral do mais pobre precisa ser maior do que o do rico, pois seu deficit de liberdade é idêntico, e só o mais pobre tem deficit de recursos. Mas não estamos mais certos ao dizer que as restrições à liberdade sejam idênticas do que ao dizer que o de um é maior do que o do outro: ambos os juízos só fazem sentido como juízos deslocados sobre o bem-estar. Duas reshições à liberdade são incomensuráveis, e não idênticas, e essa incomensurabilidade, como neste exemplo, às vezes tomar~ tambén1 incon1ensuráveis os defidts de eqüidade.

C. Ganhos gerais em igualdade Obviamente, a igualdade aumentaria de maneira geral se uma comunidade igualitária alcançasse uma distribuição simétctca ideal, se a comunidade realizasse, de fato, um leilão abrangente e bem-sucedido, por exemplo. Por conseguinte já que isso nunca será possível, devemos pensar no que considerar um aprimoramento limitado ou parcial da igualdade como um o na direção certa. Precisamos de uma solução compatível com o projeto geral da igualdade de recursos, com a noção que esse conceito tem de como as pessoas são tratadas com igual consideração. Vejamos esta sugestão, o programa aumenta a "igualdade se não aumentar a restrição à liberdade de ninguém e reduzír o deficit total de recursos da comunidade, isto é, o total que seria necessário para eliminar o deficit de recursos de todos. A igualdade de recursos não pcxie aceitar esse teste como aprimoramento, pois ele presume que as pessoas são tratadas com igual : consideração qttando os recursos que cada pessoa possui são contemplados, da mesma maneira, em programas criados para elevar tais recursos ao máximo. O teste seria satisfeito, por exemplo, por u.m programa que prejudicasse substancialmente umas poucas pessoas, que já estivessem entre os mais pobres, para que muitas pessoas menos pobres, porém ainda carentes, assem a viver em situação :melhor.

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Isso é o igualitarismo utilitarista quanto ao recurso, em vez de sê-lo quanto ao bem~estar. Define uma distribuição simétrica ideal como qualquer distribuição que eleve ao máximo o valor financeiro geral dos recursos. Já que aigualdad.e de recursos rejeita essa tese como uma teoria geral da igualdade, não pode aceitá-la como uma definição de aprimoramentos na eqüidade. Mas quando rejeitamos esse teste do deficit de recursos agregados para a definição de aprimoramento da igualdade, e insistimos que qualquer teste de aprimoramento deve ser sensível à liberdade e também ao deficit de recursos, reduzimos muito nosso número de opções. Podemos, certamente, aceitar programas que produzam aprimoramentos predominantes na igualdade. Falo de programas que reduzem o defidt de eqilidade de algumas pessoas sem alunentar a restrição à eqilidade - seja de recursos ou de hberdade, ou ambos-de qualquer outra pessoa. Não se trata. de um aprimoramento paretiano. Aumentar um imposto de renda progressivo, para financiar um abrangente programa de bemestar que ofereça uma diminuição adequada do nível de desemprego, não produziria um aprimoramento paretiano, pois deixaria os ricos em pior situação. No entanto poderia produzir um aprimoramento predominante na igualdade, pois não impõe novas restrições à liberdade e só deixaria em pior situação aqueles que não teriam deficit de recursos, mesmo após a implantação dos novos impostos. Até os programas que restringem a liberdade, de um modo que não seriarestrita segundo uma distribuição ideal, podem produzir aprimoramentos predominantes, como vimos no caso da lei llnaginária contra o monopólio do mármore. Embora limitem a liberdade, não deixam ninguém em pior situação, com relação ao valor dessa liberdade, do q·ue em uma. situação ideal. Assim, os aprimoramentos predominantes em igualdade são muito mais fáceis de alcançar e, portanto, de importância prática muito maior do que os aprimoramentos paretianos. Seria equivocado concluir do argu1nento até este ponto, porén1, que só os aprimoramentos predominantes contam

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como aprimoramentos genuínos da igualdade. Por conseguinte é preciso certa cautela na descrição dos aprin1oramentos genuÍ'nos que não sejam predominantes, e qualquer lista estará incompleta, pois os aprimoramentos não predominantes precisam ser gerados por um processo de proposta e inspeção, e não por qualquer fórmula abrangente e exaustiva. Por exemplo: se um programa não impõe novas restri-' ções à liberdade, e aprimora a sihtação dos recursos do grupo com o maior deficit de recursos, Claramente aumenta a igualdade, mesmo que outros deficits de recursos menos substanciais aurrientem, mas talvez só se a perda em deficit for maior do que o maior ganho de algum membro da classe em pior situação29 . Ibdemos, sem dúvida nenhuma, elaborar descrições de programas semelhantes, n1ais ou menos desordenadas, que nos satisfizessem por tomar menos assimétrica uma sociedade desigual. Mas existe um.limite geral e grave ao que se pode considerar um aprimoramento geral na igualdade de recursos. Não se pode considerar qtte programa nenhunt produza um aprimoramento geral se acrescentar novas e significativas restrições à liberdade que imponham restrições substanciais à liberdade. Já que os deficits de recursos e de liberdade são incomensuráveis, não há como justificar a afirmação de que um. programa que forneça mais proteínas aos pobres, à custa de sua liberdade de expressão, é um ganho geral no grau de tratamento igualitário oferecido" peia comunidade a seus membros_

D. Distribuições ígualitárias defensáveis Nossa teolla do aprimoramento permite-nos imaginar programas de redistribuição, inclusive seguros compensatórios contra desemprego, salários baixos e má sorte, que 29. Se aceitarmos essa qualificação, essa versão do ntaxi1nin fica mais preservad
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sejam técnica, e não politicamente, possíveis para nós, e que aproximem mais nossa comunidade da dislTibuição ideal. Podemos imaginar atingir uma situação, por meio de tais esquemas, em que nenhuma mudança adiciona\ tecnicamente possível pudesse nos aproximar ainda mais desse ideal? Chamaremos as situações desse tipo de distribuições igualitárias defensáveis, para marcar o fato de que, embora não concretizem a perfeita igualdade de recursos, são exemplos do melhor que podemos conseguir, mes·mo com a maior vontade política. Podemos identificar de imedíato as distribuições que não sejam defensáveis porque ainda podem ser nitidamente aprimoradas, segundo nossa teoria do aprimorarnen.to, na direção da igualdade julgada pelos custos de oportunidades. Os esquemas distributivos atualmente em vigor nos Estados Unidos e na Inglaterra, embora fortuitos e incongtuentes, poderiam muito bem ser aprimorados por um sistema de impostos mais justo, por exemplo, e pela redistribuição para os que estão n.a base, que não impusessem novas restrições à liberdade. Nem a Inglaterra nem os Estados Unidos (nem, acredito, nenhum outro país) alcançou um esquema defensável de distribuição. Assumo que também podemos identificar as principais características, pelo menos, de uma situação que constituísse uma dishibuição igualitária defensável para nós. Isto é, presumo que podemos descrever um sistema econôrnico que seja tecnicamente viável em nossa situação atual, e ao mesmo tempo defensável por não estar aberto a.futuros aprimora1nentos simples. Mas, se identificarmos qualquer distribuição defensável para nós, podemos indubitavelmente identificar várias, cada uma bem diferente das outras, porque podemos imaginar nossa comunidade implantando programas bem diferentes de reforma, cada um dos quais consistindo em medidas que aun1entem a igualdade até qu.e não haja mais dessas medidas disponíveis. Faz perfeito sentido supor que alguns desses programas seriam, em conjun-· to, melhores do que outros, pois a distribuição defensável que produziriam de fato se aproximaria mais da distribuição

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ideal Talvez fosse possível decidir antecipadamente qual serj.a o mellior de todos, se tivésse1nos um poder analítico perfeito e informações preditivas perfeitas sobre a personalidade de cada membro da comunidade. Contudo, evidentem_ente, não temos esse poder e essas informações, principalme11te porque, como a própria história do leilão salienta, a personalidade e as aspirações das pessoas mudariam quahdo se revelasse qualquer programa com tendências à igualdade. Portanto, mesmo se soubéssemos, por exemplo, que nossa comunidade aphcaria mecanismos de seguros compensatórios em qualquer programa de reforma que realizasse, também sabemos que esses mecanismos poderiam assumir diversas formas, desde um prograrrta de assistência médica nacional istrado pelo Estado a programas mais convencion.ais de seguro social financiados pelo imposto de renda, e não podemos prever com grande confiança quais desses dispositivos teria mais valor, dadas as opiniões acerca dos riscos e de outros problemas que as pessoas acabariam tendo. Nem poderíamos prever quais formas de organizações ou transações comerciais nossa comunidade criaria em sua procura da igualdade, a não ser por meio de hipóteses duvidosas sobre poupanças, investimentos, emprego, colaboração e decisões de consumo que as pessoas provavelmente tomariam com os recursos a elas atribuídos .no desenvolvimento da reforma. Mesmo uma comunidade totalmente dedicada à igualdade de recursos teria de prosseguir de maneira gradual rumo a esse ideal, mediante uma série de decisões políticas, cada uma das quais considerada n1ais razoável no momento. Essas decisões limitariam o que fosse tecnicame11te viável doravante, e assim as contingências históricas, inclusive os aciden,tes relativos à ordem em que se tomasse111 as decisões, restringiriam de maneira cumulativa o conjunto de distribuições defensáveis inicialmente disponíveis na direção do qual qualquer comunidade convergisse. ()processo de procurar a igualdade, em outras palavras, não seria independente do caminho,éscolhido.

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Assim, o melhor que podemos fazer agora para identificar distribuições defensáveis para nossa comunidade é imaginar um conjunto desses esquemas, cada um dos quais tecnicame11te viável por meio de uma série de etapas, que começaríamos a executar de imediato. Portanto, doravante falarei de uma distribuição defensável, significando um elemento desse conjunto, e não da distribuição defensável. l)oderíamos, porém, classificar as distribuições defensáveis de diversas maneiras. Interessar-me-ei em especial por·uma classificação: pode-se classificá-las por ordem de plausibilidade, pela ordem de probabilidade em que nossa comunidade, caso se convertesse à igualdade de recursos, alcançaria tal distribuição. Se tentássemos classificar as distribuições dessa forma, teríamos de especular sobre a probabilidade de acabarmos tendo e retendo as convicções, os projetos, os gostos e os apegos que determinada distribuição presume, de julgarmos coletivamente as políticas e os dispositivos necessários para alcançar tal distribuição de maneira razoável em tal circunstância, e de cumpd·rmos tais políticas e dispositivos na ordem necessária para alcançá-la. Não poderíamos esperar, é claro, alcançar uma classificação completa da plausibilidade das distribuições defensáveis que reconhecemos; não poderíamos pretender ser capazes de decidir, para cada par de distribuições, que uma fosse mais plausível que a outra, ou que fossem igualmente plausíveis. Não obstante, poderían1os ter uma esperança razoável de alcançar uma classificação incompleta da plausibilidade: deveríamos ser capazes de decidir se algumas distribuições defensáveis seriam ainda mais plausíveis do que outras. Agora defenderei uma afirmação acerca de quase todas as mais implausíveis distribuições defensáveis para nós. Ninguém seria proibido por lei, em uma distribuição defensável, de empregar os próprios recursos da 1naneira que lhe aprouvesse, a não ser na medida em que fosse necessário proteger a segurança ou corrigir diversos tipos de imperfeições de leilões ou de mercado. A igualdade de recursos, ao definir sua distribuição ideal, insiste-que o principio da abstração

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seja estritamente observado nos parâmetros de qualquer leilão, nas transações e nos eventos da vida pós-leilão. Se alguma distribuição real, no mundo real, não expressasse o

princípio da abstração, como não expressaria se seu direito penal proibisse que as pessoas usassem os próprios recursos como desejassem, a não ser por motivo de segurança ou

correção, então essa dist1ibuição poderia talvez ser aprimorada na direção do ideal, por meio de etapas que contassem

com a eliminação de tais restrições. Não seria considerada distribuição defensável, portanto, enquanto mantivesse alguma restrição proibida no ideal. A afirmação provavelmente parecerá equivocada a alguns leitores. Em muitos países, uma distribuição injusta das riquezas permite que os ricos comprem uma melhor assistência médica do que os pobres. Imaginemos qtte um país remedie es.'3a injustiça por meio da proibição total do exercício particular da medicina. Isso é um aprimoramento da eqiliJade, embora tenha apresentado uma restrição que não seria permitida em uma distribuição igualitária ideal, contanto que a restrição não imponha nova restrição à liberdade, como não o faria se ninguém estivesse impedido de obter a assistência médica que obteria com os recursos de que dispusesse em uma distribttição ideal. Mas apenas eliminar tal restrição não seria mais um o rumo à igualdade, porém ttm o para trás, de volta ao status quo 1nenos igualitário anterior. Esse fato, porém, não contradiz minha hipótese de que a comunidade sempre poderia progredir rumo à igualdade mediante uma série de os que incluem a eliminação de quaisquer restrições que o princípio da abstração condene. A comunidade acima descrita poderia redistribuir as riquezas de maneira geral e adotar, como parte do projeto, um gerteroso programa de assistência médica financiado pelos impostos. Depois, na mesma estratégia geral, poderia eliminar as restrições à medicina particular. Essa mudança abrangente seria um nítido aprimoramer1to, do ponto de vista da igualdade, com relação à situação que alcançara em minha história, que deixara grande desigualdade de rique-

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zas e tinha apenas aliviado o impacto dessa desigualdade na assistência médica. Dessa perspectiva, também seria um aprimoramento cont relação a uma mudança menos abrangente que redistribuísse as riquezas e oferecesse generosa assistência médica, mas deixasse em vigor a restrição que proíbe a medicina particular. Permitir transações na medicina deixa que as pessoas façam suas próprias opções de valor relativo da assistência médica imediata e, portanto, dispendiosa em comparação com uma assistência menos imediata e outros bens. Permitir o exercício particular da medicina, por consegui'nte, toma a distribuição mais sensível aos custos de oportunidades da maneira como a igualdade de recursos aprova. A.:;sim, minha hipótese se mantém, a não ser quando a comunidade é tecnicamente (o que não significa politicamente) incapaz de aumentar a igualdade por meio de programas ·gerais que contem com a eliminação de restrições censuráveis para o princípio da abstração, e que não imponham novas restrições desse tipo. Não há dúvida de que, com engenhosidade suficiente, poderíamos imaginar comunidades nessa situação técnica Mas acredito ser muito pouco provável que nossas próprias comunidades tai.s como as conhecemos se encontrassem nessa situação, e também presumirei que em quase todas as mais implausíveis distribuições defensáveis as liberdades que o princípio da abstração requer estariam totalmente protegidas.

VII. Liberdade e injustiça

A O real mundo real Começamos nosso estudo da igualdade de recursos no ideal mundo ideal da fantasia, dos leilões abrangentes e quase eternos. Depois acompanhamos esse estudo até o mundo real ideal, apenas um pouco menos fantástico, no qual a desigualdade sobrevive e os problemas técnicos são monumentais, mas em que as pessoas estão, não obt:.iante, em-

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penhadas em tomar mais igualitária a distribuição. amos tempo suficiente nesse mundo para definir aprimoramentos na igualdade e nos esquemas igualitários defensáveis, e para compor tima classificação incompleta destes se-

gundo sua plausibilidade. Agora voltamos à realidade, ao real mundo real, em que as dificuldades políticas são, talvez,

mais ameaçadoras que as técnicas. Este é o nosso mundo, o mundo no qual devemos exercitar a teoria e a convicção na prática política. Podemos utilizar a idéia que formamos no mundo real

ideal, de uma distribuição defensável, para julgar nosso de·· sempenho até o momento no real mundo real. Nós nos cri-

ticamos, não porque não tenhamos atingido uma distribuição simétrica ideal, como teríru.nos feito em um leilão fantástico e abrangente, mas porque não alcançamos, nem mesmo nos aproximamos, de uma distribuição defensável para nós. Não fizemos nem o qu.e nos é tecnicamente viável para atenuar a desigualdade distributiva; nossos fracassos foram fracassos da vontade, da imaginação e, principalmente, da justiça. Os cidadãos e as autoridades que querem fazer mais pela igualdade enfrentam uma série de questões e problemas. Agora precisamos estudar um deles. Os ricos dos Estados Unidos e da Inglaterra estão em situação muito melhor e a maioria dos pobres em situação muito pior do que a igualdade de rect1rsos pennitiria. A riqueza pode e deve ser redistribuída por um programa geral de reforma, talvez por meio de tributação mais alta e ·programas sociais aperfeiçoados, talvez de maneiras mais radicais ou originais e eficazes. Porém existem graves limites políticos a quaisqt1er desses problemas; de fato, t1ma reforma eficiente parece mais distante agora, pelo menos nesses países, do que há algum tempo. AB vantagens injustas da riqueza injusta podem ser limitadas, porém, por outros meios, mais viáveis: proibindo-se os ricos de explorar a riqueza em certas direções, por exemplo. Isso exighia reshições legais, tais como as restrições à liberdade de atividade.política, de exercício particular da medicina e de contratos de emprego que neguem à.s

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pessoas a liberdade de escolha que o princípio da abstração requer. Nenhuma distribuição defensável plausível, como acabo de dizer, poderia conter tais restrições. Nenhum desses esquemas teria leis que proibissem as pessoas de gastar tanto quanto lhes aprouvesse em canipanhas políticas, em vez, por exemplo, de gastar com aparelhos eletrônicos de luxo. Nenhum próibiria as pessoas de comprar remédios caros, em vez de férias caras. Nenhum impossibilitaria aos padeiros concordar com muitas horas de trabalho, em vez de assistir ao futebol na televisão. Ou melhor, nenhum proibiria essas decisões, a menos que fossem necessárias, no interesse da segurança ou da saúde, ou, o que é improvável, com a finalidade de corrigir o mercado. Seriam as restrições à liberdade, não obstante, justificadas em uma sociedade de igualdade muito imperfeita? Será que a igualdade de recursos insiste, mestho aí, que não se deve comprometer a abstração? Ou será que limitar a liberdade de escolha é um meio legítimo de aumentar a eqüidade em uma sociedade muito desigual? llinalmente voltamos aos exemplos de controvérsia política que expus no início. Agora estamos aptos a estudar esses exemplos da maneira certa, como casos que não testam a liberdade em uma situação de igualdade ideal, mas a liberdade em uma teoria realista do aprimoramento adequado para nosso próprio mundo mesquinho. Algumas páginas atrás, disse que se poderia aumentar a igualdade com programas que violam o princípio da abstração. Alguns leitores persuadidos por meus argumentos anteriores poderiam sentir-se incomodados com tal observação. Anteriormente argumentei, exaustivamente, que o princípio da abstração está no núcleo da igualdade de recursos, parte essencial do parâmetro a partir do qual se deve aplicar qualquer versão do teste de cobiça. Porém, uma vez que distinguamos as camadas de nosso argumento, desaparece qualquer sensação de contradição. Argumentei, na primeira etapa da análise, que não poden1os identificar uma distribuição simétrica ideal, nem em tese, a não ser presumindo que já

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exista a liberdade de escolha. Não podemos aperfeiçoar a igualdade sem a liberdade que a versão da ponte na estratégia constitutiva endossa como hberdades paramétricas. Na etapa seguinte de nosso argumento, a etapa real ideal, utilizamos a idéia da igualdade perfeita inatingível para imaginar distribuições igualitárias defensáveis para nossa própria comunidade. Argumentei, naquela etapa, que nenhuma distribuição defensável plausível permitiria restrições desaprovadas pelo princípio da abstração. Agora estamos no

real mundo real, porém, e nossa questão é outra. Não estamos mais analisando se a igualdade perfeita requer restrições à liberdade, nem se a igualdade as requer como ideal tecnicamente concebido por nós. Presumimos que já sabe1nos o que seria a distrib"Ltição defensável, e que não a temos. Agora perguntamos se as restrições à liberda,de são um meio permissível de nos aproximar de uma distribuição defensável, embora nenhuma di~tribuição desse tipo viesse a permitir tais restrições. Não obstante, a sugestão que agora invoco - de que as restrições à liberdade poderiam serjustificadas como pro\·edoras da igualdade no real mttndo real-parece derrapar em outra direção. Será um triste con.solo para quem ama a liberdade lhe dizerem qtte a igualdade exige a liberdade em algum mttndo ideal, se também lhe dizem que ela pode ser imediata1nente sacrificada à igu.aldade aqui e agora, pois subitamente perceberão um lado novo e sombrio da estratégia constitutiva que promovi em detrimento da estratégia dos interesses, que é mais conhecida na filosofia política. A estratégia dos interesses, se tiver algum êxito, permite que , as liberdades sejam classificadas por importância. Permite. nos dizer que as pessoas se importam (ou se importariam ou deveriam importar-se) inais com a liberdade de consciência ou de expressão ou de opção em orientação sexttal do que co1n outras liberd8.des, de modo que essas liberdades mais fundamentais, pelo 1nenos, devem ser protegidas, mesmo no imperfeito real mundo real.

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A estratégia constitutiva, pelo contrário, parece ser mais um caso de tudo-ou-nada. A versão da ponte que empreguei recomenda que se dê a algumas liberdades um lugar especial de direito no parâmetro da igualdade ideal. Rascunhei um argumento constitutivo para o que chamei de princípio da autenticidade, que dá à liberdade de expressão esse lugar especial, por exemplo. Mas esse lugar especial é intrínseco aos cálculos da igualdade id~al: apenas justifica a afirmação de que na igualdade ideal é necessário que haja um argumento mais forte a favor da segurança para limitar a liberdade de expressão do que para limitar outras liberdades. Parece não oferecer motivo por que qualquer liberdade deva ser imune de concessões quando nosso objetivo é a meta bem mais modesta de nos aproximarmos de uma distribuição defensável que não podemos, por motivos políticos, alcançar realmente. A estratégia constitutiva, portanto, parece deixar todas as liberdades igualmente vulneráveis em nossa própria situação política, na qual o escudo dos direitos, rígido no mundo da fantasia, toma-se maleável. Essa conclusão talvez leve alguns leitores de volta à estratégia dos interesses. Imaginemos porém que a estratégia dos interesses não possa, afinal, ter êxito na proteção de nossas liberdades fundamentais no real mu.ndo real, como afirmei que não poderia. Então, quem se sente atraído pela liberdade será tentado a uma opção ainda mais radical. Podem encarar de maneira nova, e mais aguda, o ideal humanista que aceita o princípio igualitário abstrato como requisito absoluto do governo justo ou como qualificado apenas nos modos não relevantes para a liberdade. Talvez devêssemos, afinal, tentar descobrir algum ·valor na liberdade que a deixe imediatamente independente da igualdade e também das vantagens que traz à vida de cada pessoa. Portanto, muito gira em tomo de como a igualdade de recursos responde a nossa nova pergunta. A liberdade pode encontrar um compromisso adequado, no real mundo real, para reduzir a desigualdade nele encontrada?

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A VIRTUDE SOBERA1'lA

B. O principio do sacrifícío Poderíamos reformular nosso conceito de restrição à Hberdade da seguinte maneira: a restrição à liberdade é uma perda de poder, devido a restrições juridicas, de fazer ou ter

o a algo que se teria o poder de fazer ou ter o após uma distribuição defensável. A comunidade sacrifica um de seus membros, digamos, quando lhe impõe uma restrição à liberdade. Podemos .agora. identificar um princípio que qualquer teoria aceitável do aprimoramento deve conter, que chamarei de princípio do sacrifício. O princípio atin-

ge ambos os lados da equação liberdade-igualdade. Nega que haja violação da liberdade quando não se sacrifica nin-

guém, isto é, quando o valor da liberdade que os cidadãos retêm é pelo menos igual ao valor da liberdade irre:;;trita que teriam em uma distribuição defensável. Como pode uma co.ncepção plausível de liberdade exigir que qualquer um tenha mais poder do que teria se a liberdade de escolha fosse ilimitada e os recursos distribuídos com justiça? Mas também nega que se possa melhorar a igualdade quando se sacrifica alguém. Como melhorar a igualdade quando o deficit de eqüidade imposto a alguns é incomensurável com a redução do deficit de eqüidade de outros? Assim, o princípio reconcilia a liberdade e a igualdade no n1undo real da política prática e imperfeita. A liberdade, insiste ele, não exige nada alé111 da liberdade da igualdade genuína, e não se pode conceder igualdade por meio de nerthum insulto à liberdade. O princípio do sacrifício está incompleto como o apresentei, porém, porque não identifica a faixa de distribuições ~efensáveis que é preciso consultar ao aplicá-lo. Existem, Portanto, diversas versões do princípio. A mais forte requer que não se deteriore a situação de ninguém, com relação ao valor de qualquer aspecto da liberdade, do que ocorreria em qt1alquer distribuição defensável, por mais implausível, que lhe forneceria o mais alto valor por tal liberdade. Testarei o princípio em wna forma mais fraca e mais sensata: supo-

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nhamos que ele requeira que não se deteriore mais a sihtação de ninguém, com relação à liberdade em questão, do que provavelmente se deterioraria em uma distribuição defensável. Suponho, conforme já disse, que possamos classificar as distribuições defensáveis por ordem de plausibilidade, e assim identificar algum conjunto de tais distribuições como o mais plausível. Se a situação de alguém piorar, devido a uma restrição legal, mais do que na maioria dos elementos do conjunto das distribuições defensáveis mais plausíveis, então está pior do que bem provavelmente estaria em tal distnbuição 30 . Pode1nos testar essa versão do princípio do sacrifício aplicando-lhe nossos exemplos iniciais. Sacrifica-se alguém, primeiro, por limites nas qttantias que cada pessoa pode gastar na promoção.de um candidato político? Nenhu1na distribuição defensável plausível imporia tais limites. As pessoas teriam algo próximo à simetria de recursos julgados pelo teste do custo de oportunidade, quando fosse tecnicamente possível, e cada uma teria a liberdade de decidir quanto dos próprios recursos gastar para se comunicar com o.s concidadãos, e não em outros bens que talvez também desejasse. Não obstante, os limites sobre as despesas em eleições que a Suprema Corte derrubou no caso Buckley versus Valeo 31, caso entrassem em vigor, não teriam reduzido para ninguém o valor da liberdade remanescente mais do que o valor da liberdade irrestrita que se teria pelo menos na maioria das distribuições defensáveis plausíveis. Ninguém

30. Essa formulação do prinópio do sacrifício é suficiente para meu argurnento, embora pudesse ser fadlrnentf" melhorado. Ignoro problemas sobre a individualidade das distribuições, por exemplo, embora eu tenha a impre~são de que sâo istráveis. Também se podcriatn investigar formulações bem diferentes. Há muito a dizer, por exemplo, a favor de se adotar como ponto de referência a distriliuição de(ensável menos favorável coroo valor da liberdade em questão. Duvido que a discussão a seguir no texto fosse diferente, porém, se C>U tivesse escolhidn tal forrnulaçiio para examinar. 31. 424 u.s. 1 (1976).

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em uma comunidade que alcançou uma distribuição defensável exerceria a influência sobre as decisões políticas, somente devido ao dinheiro gasto com a política, que os ricos têm hoje nos Estados Unidos, ou mesmo a influência que teriam tido se a Suprema Corte tivesse deixado a legislação intacta. AE riquezas descartáveis seriam distribuídas de forma muito mais equânime, e embora algumas pessoas talvez optassem por gastar grande parte da própria riqueza com a polfrica, muitas outras, algumas de opiniões políticas divergentes, estariam dispostas e seriam capazes de gastar quantia semelhante da mes1na forma. Por conseguinte, a lei que a Suprema Corte aboliu não sacrificava ninguém. Esse é o mais fácil dos exemplos que enumerei, pois a restrição em questão é direta e exclusivamente financeira. A proposta de tornar ilícita a medicina particular l~ta questões mais co·mplexas. Presumo, novamente, que não se imporia nenhuma dessas restrições cm qualquer distribuição defensável plausível, embora se impusessem, obviamente, as restrições criadas para assegurar competência e segurança. Na Inglaterra, somente dois grupos podem atualmente custear serviços médicos particulares: os que são, com relação aos outros, muito ricos, e os que têm emprego em empresas cujos sindicatos fornecem seguro de vida particular, financiado em grande parte pelo en1pregador, em negociações coletivas. A proibição proposta da medicina particular reduziria, é claro, a liberdade desses grupos. Isso tornaria o valor da liberdade dessas pessoas, com relação à escolha de assistência médica, inferior ao que teria em um sistema de dLstribuições defensáveis mais plausíveis? Analisemos dois programas que uma distribuição defensável poderia aplicar para o fornecimento de assistência médica. No primeiro a medicina é totalmente privada, mas u1n plano de saúde adequado, financiado pelos impostos e disponível a todos, oferece recursos suficientes para pagar a assistência médica que qualquer pessoa comum compraria para sí mesma em um mercado de seguro::; priva.dos. No segundo, a assistência médica é fornecida por algo semelhan-

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te ao serviço de saúde nacional da Inglaterra, que é financiado, também por meio de impostos, em um nível suficiente para fornecer a todos que utilizam o serviço o mesmo grau de assistência, embora as pessoas tenham a liberdade de escolher médicos particulares disponíveis e competentes, e hospitais particulares se preferirem. Duvido que seja possível provar que qualquer uma dessas possibilidades é maís plausível que a outra, embora nada aqui suscite essa hipótese. Talvez outras possibilidades fosse1n igualmente prováveis, mas seriam semelhantes demais a essas duas para levantar questões independentes. Então, itirei que essas duas descrições constituem o conjunto de distribuições defensáveis mais plausíveis. Imaginemos também que o serviço nacional de saúde, da maneira como funciona atualmente na Inglaterra, não fosse aprimorado em conseqüência da extinção da medicina privada. Nessa hipótese, a liberdade das pessoas teria menos valor se a medicina privativa fosse proibida por lei do qite teria em ambas as distribuições defensáveis que acabo de descrever? Devemos comparar a assistência médjca hoje disponível, por intermédio do serviço nacional de saúde, com a assistência que seria fornecida no sistema dessas clli,iribuições defensáveis, e precL<;amos distinguir três pontos de comparação. Alguém receberia melhor assistê.ncia médica em alguma das distribuições defensáveis? Receberia um serviço mais rápido, evitando as longas filas para tratamento de doenças sem risco de vida no atual sistema de assistência médica? ºferia mais opções entre médicos e especialistas particulares, opções às quais poderia muito bem dar valor por si mesmas? A resposta a uma ou outra dessas perguntas, e talvez às três, bem que poderia ser positiva. Talvez, se as pessoas tivessem os n1esmos recursos, todas teriam o a uma assistência melhor ou mais veloz, apreços que pudessem pagar, do que atualmente oferece o serviço de saúde. Talvez tivessem mais opções de médicos e especialistas cujos serviços pudessem custear. Se assim fosse - se uma dessas hipóteses for persuasiva-, então o governo

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sacrificaria as pessoas ao tomar ilícita a medicina particular e deixar em funcionamento so1nente o serviço nacional de saúde, como é agora. Contudo, o governo pode abolir a medicina privada como parte de um programa que procure a igualdade se estiver disposta e for capaz, simultaneamente, de melhorar o serviço nacional de saúde em qualquer dimensão em que atualmente não e no teste que acabamos de elaborar. Deveria, afinal, ser possível fornecer tal serviço com o nível de recursos que um serviço nacional de saúde, ou um esquema de seguro de serviços médicos particulares financiados por impostos, teria à disposição em um sistema defensável de distribuição de riquezas, embora para fazer isso talvez fosse necessário cobrar im.postos mais altos a muitos dos que atualme11te desfrutam das vantagens da medicina particular. Nem se conclui que o governo não posSa restringir, mesn10 sem melhorar substancialmente o serviço nacional de saúde, a liberdade de escolha na prestação de serviços médicos de modo que quase 0liminasse totalmente a medicina particular. Parece muito provável que, por exemplo, nas distríbuições defensáveis mais plausíveis, ninguém de fato poderia ft.irar a fila para o tratamento de doenças que provoquem a invalidez, mas não representem risco de vida. Portanto, o governo não sacrifica ningt1ém con1 restrições limitadas, criadas somente para proibir que se fure a fila por meio da medicina particular. (Só estamos ctiscutindo, é claro, se as diversas restrições à liberdade sacrifica·· riam alguém, e não se qualquer uma delas é, em geral, uma boa idéia.) Assim, o princípio do sacrifício é valoroso para além de seu papel de proibir certas restrições à liberdade no ):eal mundo real: ajuàa a indicar um programa mais abrangente de reformas ao identificar um pacote de medidas, no qual pode haver restrições, que o governo poderia adotar legitimamente na direção de uma distribuiçào defensável dos recursos da comunidade. O exemplo que dei do infame veredicto da Suprema Corte no câso Lochner, no qual derrubou um estatuto de

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Nova York que limitava o número de horas semanais de trabalho dos padeiros, é complexo, porém de outra maneira. (Se eu estiver certo, é um belo paradoxo que o veredicto do caso Buckle:y, que muita gente acl1a certo, pareça um erro muito mais claro do que o veredicto do caso Lochner, o qual todos concordam em atribuir erro.) É claro que as padarias empregadoras não foram sacrificadas: é difícil imaginar distribuições defensáveis plausíveis nas quais elas encontrassem pessoas dispostas a trabalhar o número de horas que quisessem, pelos salários que tornariam tal número de horas lucrativo para elas. Mas talvez o estatuto de Nova York provocasse uma desvantagem para os imigrantes, que estavam suficienten1ente desesperados por empregos para aceitar as condições que as panificadoras ofereciam. Poderia terlhes custado o emprego e os deixado em situação pior com relação ao valor da liberdade de contrato do que estariam em uma distribuição defensável que os considerasse participantes. Nesse caso, e se Nova York não fizesse, ou não pretendesse fazer, um acordo compensatório para aliviar o desemprego, o estatuto os sacrificaria, e sugiro que aceitemos a conclusão a q·ue se chega no esquema que estamos explorando. É equivocado, em princípio, o Estado negar às pessoas o direito de trabalhar nas condições que estiverem dispostas a aceitar, para me1horar a situação econômica geral dos trabalhadores, a não ser que ofereça compensação para o desemprego ou outra compensação para quem não consegue emprego nas condições estipuladas, compensação suficiente para tornar suas circunstâncias plausivelmente tão boas quanto estariam ::ie tivessem emprego nas condições que se tornaram ilícitas. Portanto, o veredicto de Lochner foi correto, afinal? A Suprema Corte deu pouquíssima atenção aos argumentos sobre saúde e segurança dos quais prescind.o, e também parece não se ter deixado comover con1 as ponderações igualitárias que estamos examinando. Mas suponhamos que os argu1nentos por saúde e segurança fossem realmente especulativos demais para justificar uma restrição à liberdade

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que fosse desvantajosa para os que já sofressem graves desvantagens. Eu ainda acharia que o veredicto Lochner estava errado como uma interpretação constitucional, por motivos que explico noutra parte e não repetirei aqui, a não serresumidamente32. O processo de Nova York não estava errado

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se fizesse parte de um programa mais geral que apresentasse sua concepção de igualdade sem sacrificar nenhuma

pessoa ou parte da comunidade. Não se pode entender a Constituição como algo que exige a adoção imediata de to-

das as partes de um programa social que interprete uma concepção estadual de igualdade, nem que permita à Suprema Corte impor uma concepção de igualdade distributiva a. outros departamentos do governo. A Constituição, em outras palavras, trata a legislação social, tal como aquela desautorizada em Lochner, como uma questão de política, e não de princípio. Na ausência de qualquer pr6va de que Nova York abandonara a consideração igual pelos que perderiam o emprego em uma etapa de seu programa, o veredicto da Corte toma-se injustificável.

C. Liberdades fundamentais

Já discutimos mna série de restrições à liberdade de escolha, nenhuma das quais se encontraria em uma distribuição defensável de recursos, porém cada uma delas, não obstante, poderia ser imposta, pelo menos em ttm programa maior, para melhorar mna distribuição de recursos que estivesse longe de ser defensável. Comecei esta parte com a descrição de um grande e compreensível temor: que embora a igualdade de recursos proteja a liberdade em algum mundo ideal, ela a destrói totalmente no mundo real de nossa política, pois, naquela forma, põe em risco todas as liber-

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32. Minha tese sobre a interpretação constitucional está em Dworkln,

Law's E1npire, pp. 355-99.

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dades, até as que julgamos fundamentais. Devemos, portanto, analisar se o princípio do sacrifício protege suficientemente o que acreditamos serem as nossas liberdades mais fundamentais. Em todos os exemplos que acabamos de analisar, a conseqüência mais direta de algumas restrições sugeridas é eliminar parte da vantagem, embora não toda, que se tem sobre os outros, oriunda somente do poder económico que não se teria em qualquer distribuição defensável. Em alguns dos exemplos, a restrição também tem outras conseqüênclas mais difusas, e foi por isso que nos preocupamos com esses exemplos. O caso é bem diferente quando a restrição elimina totalmente uma liberdade geral de considerável importância para a vida de algumas pessoas, pois o valOr de sua liberdade fica, então, muito reduzido com relação ao que teria em qualquer distribuição defensável plausível. Se as pessoas para quem a política é importante estiverem proibidas de falar, com a justíficativa genuína ou {mais provavelmente) construída de que isso_ reduzirá o deficit de recursos materiais dos que estão em pior situação, elas serão sacrificadas, tenham ou não mais ou menos recursos materiais do que qualquer distribuição defensável lhes oferecesse. Assim, a igualdade de recursos não pode ser aprimorada por essa etapa. Caso se proíba totalmente a intimidade entre homossexuais, eles também serão sacrificados, novamente quer sejam agora ricos ou pobres. Portanto, meu argumento não põe em risco essas liberdades fundamentais, mesmo em uma sociedade profundamente desigual. Pelo contrário, o argumento ajuda a provar por que elas são fundamentais. VIII. Retrospectiva Qual é o lugar da liberdade na igualdade de recursos? Se meu argumento for sólido, tal lugar é fundamental e seguro. Rejeitei a estratégia dos interesses, que torna contingente o papel da liberdade em um esquema geral de justiça,

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de uma forma ou de outra com base nas convicções ou preferências que as pessoas tenham, teriam ou deveriam ter em condições específicas. O argumento constitutivo que descrevi não torna a liberdade contingente de nenhuma dessas maneiras. Embora o resultado dos procedimentos semelhantes a leilões que a igualdade de recursos imagina sejam, evidentemente, sensíveis aos projetos e às convicções que as pessoas levam ao leilão, a liberdade não faz parte desse resultado; pelo contrário, está determinada nos parâmetros de qualquer leilão aceito pela igualdade de recursos. Meu argumento, portanto, não se baseou em nenhuma afirmação de que a maioria das pessoas pense que a liberdade é mais importante do que outros aspectos de suas circunstâncias. (É claro que muita gente acha a liberdade essencialmente importante para sua própria vida, como acredito que todos devem achar.) Nem me base·ei em nenhuma afirmação instrumental sobre as conseqüências de longo prazo da proteção de qualquer liberdade em especial. A prioridade da liberdade, na igualdade de recursos, está definida em um nível que a toma independente de tais ponderações. A liberdade é essencial para a justiça política porque a comunidade que não protege a liberdade de seus membros não os trata- não pode tratá-los- com igual consideração da melhor forma que se possa entender o que significa. Pertence a nossa cultura política não apenas a importância da liberdade, mas o fato de algumas liberdades sererri_ mais importantes que outras; acreditamos que essas liberdades mais importantes mereçam proteção especial na Constituição. Meu argumento rejeita a técnica do interesse para : identificar essas liberdades mais importantes, e isso requer que se prove que são liberdades às quais todas as pessoas, dão ou dariam valor especial se refletissem sobre elas. Não obstante, o argu1r1ento constih1tivo captura a intuição de que algumas liberdades sejam mais importantes que outras. O princípio de autenticidade, por exemplo, argumenta que as liberdades por ele defendidas, como a liberdade de expres-

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são e de consciência, são fundamentais, pois qualquer transigência desses princípios tem conseqüências especialmente destruidoras para a igualdade de recursos. Na seção anterior, quando elaboramos e aplicamos o princípio do sacrifício, descobrimos fundamentações adicionais para classificar algumas liberdades como fundamentais. Percebemos que a pessoa a quem se negue totahnente essas liberdades tem grande probabilidade de ser sacrificada, no mundo real de nossa própria política, sejam quais forem suas circunstâncias sociais QU económicas. Evidentemente, é mais trma questão difícil que ·ultraa nosso projeto, o modo como esses importantes direitos devam ser protegidos em uma estrutura constitucional. Mas a igualdade de recursos argumenta com veemência ql1e devem ser protegidas de alguma forma. Encerro voltando a uma questão importante que mencionei quase no início. Mii1ha preocupação era que alguns leitores achassem meu argumento pela liberdade degradante para tal virtude, pois esse argumento pareceria tornar a liberdade somente h1strun1ental ou subordinada à igualdade, como se apenas nos importássemos com a liberdade como circunstância útil para alcançar uma distribuição de recursos justa. lJi"eparei a seguinte resposta a tal objeção. Meu argumento aqui não abrange mais do ql1e uma reivindicação de compatibilidade: a liberdade e a igualdade não podem entrar cm conflito como duas virtudes políticas fundamentais, pois a igualdade só pode ser definida quando se presume a liberdade em vigor, e não pode ser aprimorada, nem no mundo real, por políticas que comprometam o valor da liberdade. Esse argumento, em si, não declara nada sobre o fundamento da liberdade. É totalmente compatível com a afirmação de que a hberdade é essencial por outros motivos bem indepe11dentes da igualdade; só insiste que, mesmo que não tivéssemos nenhum outro motivo para proteger a liberdade, pelo menos teríamos esse motivo igualitário. Agora posso, porém, expandir outra resposta que também elaborei. A estratégia dos interesses presume que a 11-

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berdade e a igualdade são duas virtudes políticas conceitualmente distintas. Se o são, então certamente surgem questões

sobre o vínculo entre as duas virtudes, e sobre a prioridade de uma sobre a outra em qualquer caso de conflito. Presumi

esta parte do fundamento da estratégia dos interesses - a independência conceitual da liberdade e da igualdade - quan-

do argumentei que se as duas virtudes entram em conflito, a igualdade deve ter prioridade. Mas o argumento constitutivo insiste, pelo contrário, que a liberdade e a igualdade não

são virtudes independente~, porém aspectos do mesmo ideal de associação política. IJcrtanto, quando declaramos nossa fé

na liberdade, estamos apenas afirmando a forma na qual abraçamos a igualdade, isto é, somente declarando.o que qt1eremos dizer quando falamos em liberdade. A estratégia da ponte presume qu~ a liberdade e a igualdade são aspectos de un1a só virtude política, pois a estratégia emprega a liberdade para ajudar a definir a igualdade e, cm um nível mais abstrato, utiliza a igualdade para ajudar a definir a liberdade. Não argumentei com a afirmação instrumental simples de que o pressttposto geral da liberdade seja requisito formal de qualquer leilão que e no teste de cobiça. De fato, conforme enfatizei, un1 esquema paramétrico geral do não-liberalismo, no qual não se permita que as pessoas façam quase nada com o que adquirem no leilão, também atenderiam do mesmo modo aos requisitos formais de tal leilão. O liberalismo é adequado à igualdade de recursos, argumentei,- não porque seja formalmente necessário pârd. um leilão bem-sucedido, mas porque o parâmetro liberal expressa melhor a interpretação feita pela igualdade de recursos do princípio igualitário abstrato :do que qualquer parâmetro alternativo. A idéia fundamental do verdadeiro custo de oportunidades está na interseção do que tradicionalmente se consideram assuntos igualitários e liberais. Ela une as duas porque presume ao mesmo tempo que o _sistema da propriedade privada trata as pessoas como iguais quando lhes assegura os n1esmos recursos, julgados pelo verdadeiro custo desses

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recursos para outras pessoas, e também que o verdadeiro custo para outros precisa ser avaliado, o mais amplamente possível, presumindo-se uma política de liberdade, isto é, presumindo que os outros teriam liberdade de empregar os recursos em questão como quisessem se lhes pertences·· sem. O custo de oportunidades é uma idéia parecida com Janus: olha para a igualdade com uma cara, para a liberdade com a outra, e funde as duas virtudes. É claro que a integridade da liberdade e da igualdade se mantém, pelo menos dessa maneira, só para a igualdade concebida como igualdade de recursos. Foi isso que quis dizer quando afirmei que, ao nos declarannos a favor da liberdade, identificamos em que sentido o;omos igualitários. A igualdade de recursos é, poderíamos dizer, uma concepção de igualdade inerentemente liberal. As outras concepções de que falei, que itão utilizam o custo de oportunidades como avaliador da igualdade, devem recair na estratégia dos interesses, que é mais arriscada, para encontrar o lugar da liberdade. Assim, nosso argumento descobriu mais um contraste curioso entre a igualdade de recursos e es..'las outras interpretações da igualdade. A estratégia dos interesses, que as outras concepções adotam, colocam o valor da liberdade totalmente dentro da vida de cada indivíduo, um por um. A estratégia constitutiva, característica da igualdade de recursos, não nega a importância da liberdade dentro da vida das pessoas. Mas não arrisca nada por ela. Pelo contrário, apela ao papel da liberdade ao determinar o caráter geral da sociedade, resgatando seu compromisso com a consideração igual para todos. Assim, talvez a estratégia constihttiva, tão longe de fazer com que a liberdade pareça mesquirlha e instrumental, finalmente ofereça uma teoria dessa virtude cotnpatível com nosso entusiasmo por ela.

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Capítulo 4

A igualdade política

1. Duas estratégias para a democracia

A. Democracía e igualdade

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Nos Capítulos 1-3, estudei a idéia de igualdade partindo de u1n princípio - o princípio igualitário abstrato - que e11uncia a idéia em sua forma mais abstrata. Esse princípio estipula que o governo deve agir para melhorar a vida dos cidadãos, com igual consideração pela vida de cada um deles. Chegamos a uma teoria útil e prática sobre o que a igualdade requer, construindo e testando interpretações concretas - concepções - de tal princípio, para decidir qual concepção é, afinal, a melhor. Certamente, o princípio igualitário abstrato não pode decidir tudo: o governo e a política enfrentam uma série de problemas, em todos os níveis de abstração e concretude, que não é possível resolver com uma simples escolha entre diversas interpretações ou concepções de igualdade abstrata. Não obstante, a influência do princípio igualitário será profunda em qualquer sociedade que o aceite. A interpretação preferida da consideração igualitária influirá não só no projeto de todas as instituições fundamentais do governo, mas também nas decisões específicas tomadas por essas instituições. Aqui, a11aliso como o princípio abstrato se aplica à ques~ tão fu11dacional da distribuição do poder político dentro de

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tal comunidade. Que instituições e processos políticos de~ vem ter uma comunidade igualitária? Presumo que a comunidade é grande e complexa, devendo, portanto, ser governada pelas decisões de autoridades representativas, e não por decisões independentes, caso por caso, de toda a comunidade. Como uma comunidade amparada pela igual consideração escolheria seus representantes? Que poderes deveriam ter essas autoridades, e que poderes a comunidade, em seu todo, consetvaria? Pode parecer óbvio que uma sociedade dedicada à igual consideração deva ser uma democracia, e não, por exemplo, uma monarquia, ditadura ou.oligarquia. Porém, embora esteja bem clara a diferença entre a democracia e essas outras estruturas de governo em geral, a democracia propriamente dita é uma idéia de grande abstração, se não de ambigüidade. A democracia requer que as autoridades sejam eleitas pelo povo, e não escoll1idas por meio de herança ou por um pequeno grupo de famílias ou eleitores proeminentes. Mas esse enunciado abstrato não decide quais autoridades deven1 ser escolhidas, não pela totalidade da comunidade, mas por setores ou grupos dentro dela, como se devem distribuir os poderes entre as autoridades escolhidas dessas diversas maneiras, até que ponto se deve permitir ou exigir que as atttoridades eleitas indiquem outras autoridades para exercer alguns de seus poderes, quais responsabilidades dc>vem estar nas mãos dos eleitos e quais devem estar nas mãos das autoridades nomeadas, quanto tempo devem permanecer no cargo ambos os tipos de autoridades, se a duração de setts mandatos deve ser fixa ou sujeita a decisão prévia de quem os elege, até que ponto as !,autoridades eleitas ou as outras autoridades devem ter liberdade para alterar os arranjos constitutionais por meio dos quais são eleitas as autoridades, se a Constituição deve impor limites aos poderes das autoridades para que elas mesmas não possam alterar esses limites etc. Embora sejamos todos democratas, essas são intensas qt1estões políticas entre nós, e algumas são assunto para controvérsias aca-

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loradas. Tanto a Inglaterra quanto os Estados Unidos são de-·

mocracias, mas oferecem soluções bem diversas para muitas dessas questões, assim Como, para algumas delas, os diversos estados dos Estados Unidos. Portanto, a simples ob-

servação de que uma sociedade comprometida com a igual consideração deve ser uma democracia não tem muita uti·Jictade. Essa observação é mais bem entendida como uma '.·.···\i .

reformulação da nossa pergunta original: qual forma de democracia é mais adequada a uma sociedade igualitária?

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-"'t;, B. Concepções dependente e separada Devemos começar registrando uma diferença fundamental entre dois en.foques bem diferentes dessa questão. Cada um deles pretei1de interpretar nossas principais suposições sobre a democracia - que ela atribui poder político à totalidade do povo, e não a um indivíduo ou a um grupo, que na democracia a liberdade de expressão está protegida e assim por diante - oferecendo à política uma estratégia ott meta geral que explique e justifique essas suposições fL1ndame11tais e também sirva de padrão para decidir ques · tões mais controversas e miJ.1uciosas, como as que descrevi, sobre a melhor forma de democracia. O primeiro enfoque oferece o que chamarei de interpretação ou concepção dependente de de1nocracia, pois presume que a melhor forma de democracia é a que tiver mais probabilidade de produzir as decisões substantivas que tratem todos os membros da comunidade com igual consideração. Nessa perspectiva, as principais características da democracia- sufrágio quase universéil, liberdade de expressão e tudo o mais -justificam-se porque a comunidade na qual o voto é generalizado e a expressão é livre terá mais probabilidade de distribuir recursos materiais e ot1tras oportunidades e valores de maneira equânime. Portanto ela recomenda, qt1ando surgem casos controversos relativos à melhor forma de democracia, que se recorra ao teste conseqüencialista: qual decisão dessas

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questões controversas parece mais conducente para promover ou proteger essas metas igualitárias substantivas? O segundo enfoque produz o que chamarei, pelo contrário, interpretação ou concepção separada de democracia. Ele faz questão de que julguemos a eqüidade ou caráter dem9crático de determinado processo político por meio do exame de características desse processo apenas, só perguntando se ele distribui poder pohtico de maneira igualitária, e não quais resultados ele promete produzir. Uma concepção separada ·pretende explicar e justificar nossos ptincipais pressupostos acerca da democracia dessa maneira austera. Assim, ela argumenta que a liberdade de expressão, bem como o sufrágio amplo e ir, ajuda a tornar mais ib:rualitário o poder político. E argumenta, quando surgem questões controversas acerca de detalhes do nosso processo político, que devemos resolvê-los perguntando qual decísãb é a mais bem calculada para au.mentar ainda mais a igualdade do poder político. Uma concepção separada de democracia, em outras palavras, oferece um teste inicial: a democracia é, em essência, uma questão de distribuição igualitária do poder sobre as decisões políticas. Uma concepção dependente oferece um teste de saída: a democracia é, em essência, um conjunto de dispositivos para a produção de restdtados do tipo certo. Precisamos tomar o cuidado de não confundir essa diferença com outra, entre dois tipos de resultados ou conseqüências do processo político. Qualquer processo político democrático terá conseqüências tanto distributivas quanto participativas. Suas conseqüências distributivas serão estipuladas pelas decisões que toma na divisão de recursos entre propriedade pública e privada, regulamentação das aquisições, transferências, e tributação da riqueza e de outras formas de propriedade, e na decisão de qltando e até que ponto as pessoas devem ser indenizadas por danos a diversas formas de propriedade, e até que ponto se deve restringir as pessoas, por intermédio do Direito PcnaL no uso de suas propriedades, ou, caso contrário, deixá-"las agir

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como quiserem. A comunidade que aceita o princípio igualitário abstrato terá como finalidade as decisões distributivas que tratem as pessoas como iguais, segundo a melhor interpretação dessa idéia. As conseqüências participativas do processo político são as decorrentes do caráter e da distribttição da própria atividade política. A con1unidade igualitária terá interesse em pelo menos três tipos de cünseqüência participativa: simbólica, agencial e comunitária. As conseqüências simbólicas são declarativas. A comunidade confirma a afiliação de cada indivíduo, como um cidadão livre e iguaL atribuindo-lhe um papel na decisão coletiva. Identifica, pelo contrário, o indivíduo excluído do processo político como alguém que não merece completo respeito ou que não é um membro completo. (Os sistemas penais criaram e exploraram essa conseqüência simbólica durante muitos séculos, vinculando a perda do voto à condenação criminal.} AB conseqüências agenciais vinculam a política, para cada indivíduo, à sua própria experiência moral; uma estruhrra política decente permite que as pessoas participem não como meros eleitores, mas como agentes morais que trazem razão, paixão e convicção a esse papel. A comunidade igualitária reconhece que, para mLtitos de nós, a política apresenta questões morais de maior complexidade e i1nportância do que qualquer 01.1tro aspecto da nossa vida e terá, portanto, interesse considerável nas conseqüências agenciais. As conseqüências comunitárias são mais difíceis de descrever. Da perspectiva individual, são as diversas conseqüências pessoais da participação em um processo cujos êxito e valor são comunitários no sentido estrito de que o indivídtto participa totalmente do orgulho ou da vergonha da decisão coletiva. Da perspectiva coletiva, consistem no impacto que o processo político produz para incentivar u_ma comunidade política coesa e fraterna. Uma concepção dependente pura seria, obviamente, uma interpretação fraca das nossas principais suposições comuns acerca da democracia se ignorasse as conseqüên··

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cias participativas e considerasse apenas as conseqüências distributivas entre as metas substantivas de um Estado igualitário. Pois uma tirania benevolente, na qual nenhuma das nossas suposições acerca da democracia se conserva, pode produzir um esquema justo de propriedades e respeitar as metaq distributivas da concepção correta de igualdade; de fato, pode produzir uma disb.ibuição mais igualitária do que a democracia poderia. Mas nenhuma tirania ofereceria as metas participativas às quais qualquer comunidade igualitária aspiraria. Assim, qualquer concepção dependente plausível de den1ocracia reconh.ecerá a im.portância das conseqüências participativas e explicará as características fundamentais da democracia nessa base, pelo menos em parte. Ela oferecerá uma interpretação do sufrágio universal, da liberdade de expressão e de 011tros aspectos da democracia, tentando mostrar que podem ser entendidos como instrun1entos que alavancam todos os objetivos da igualdade, quando tomados em conjunto, e proporá mudanças ou aprimoramentos ao nosso processo político nesse espúito. A diferença entre as duas concepções de democracia não é, então, que uma saliente as conseqüências participativas e a outra as conseqüências distributivas, mas, pelo contrá.rio, qlle uma ignora, ao o que a outra toma cn1cial todas as conseqüências. A concepção dependente obscurece a diferença entre entrada e saída, entre a igualdade política e os outros aspectos da teoria igualitária, inclusive Sltas finalidades participativas. Presume que essas devem ser elaboradas e inspecionadas juntas, como pa1ies interligadas de u1na concepção geral em que nenhuma parte se sustenta totalmente sozinha. A concepção separada, por outro lado, faz questão de uma divisão nítida entre a igualdade política e todas as outras formas de igualdade substantiva. Trata a igualdade política como uma dimensão distinta da igualdade, com sua própria medida, que é o poder político. Suponhamos que seja possível dividir os distritos eleitorais de maneira que os habitantes de distritos urbanos mllito pobres pudessem eleger n1ais representantes para a '

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legislatura do que poderiam se todos os distritos contivessem o mesmo número de habitantes. Imaginemos que essa organização de distritos produza, de fato, decisões políticas mais justas (por serem mais genuinamente igualitárias), e também que não prive os habitantes mais prósperos da agência moral, do reconl1ccimento simbólico ou do senso de comunidade. A concepção dependente poderia, então, endossar o sistema, ao promover sua visão acerca da democracia, considerados todos os fatos. Não obstante a con cepção separada precisa rejeitar o sistema por ser antidemocrático, pois este pretende, reconhecidamente, dar mais poder político a algumas pessoas que a outras. Cada uma das duas concepções já teve uso polêmico, embora em circunstâncias diferentes. Quem não gosta das políticas de um governo atribui força à critica quando pode, plausiveln1ente, chamá-lo de antidemocrático. Essa acusação parece essencial, ou pelo menos especialmente útil, para justificar a desobediência civil, por exemp}ot. A concepção dependente será útil no apoio à acusação, quando as políticas atacadas parecem claramente injustas, pois nessa concepção as críticas podem apelar à injustiça como prova de que o processo político é falho. A concepção separada será útil, por outro lado, quando a decisão, justa ou injusta, não parecer expressar a vontade da maioria, como, por exemplo, a decisão de extinguir a pena capital. Pois nessa concepção, os criticas podem opor-se ao processo, embora professem neutralidade com relação ao resultado. Da mes1na forma, em alguni.as circunstâncias a concepção dependente será mais útil a pessoas ansiosas por defender a legislação como democrática e, em outras circunstâncias, a concepção separada lhes será mais útil. Não me preocupo, todavia, com as conseqüências práticas ou polêmicas da escolha entre as duas concepções, mas com a escolha em si. Qual é a melhor interpretação da 1. Ver Rona\d üworkin, A Mattcr of Principie (Cambridge, Mass .. I-Iar·· var
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igualdade política uu da democracia? A concepção separada, em uma for1na pura, é a mais popular. Quase todos presumem que democracia significa poder eleitoral simétrico entre adl.1ltos competentes, que o governo da maioria é, portanto, o sistema nervoso da democracia e que qualquer falha na regra majoritária é antidemocrática, quer possa ser j-ustificada ou não, recorrendo-se a algum princípio que anule a democracia em algumas circunstâncias. As suposições não expressas dominam o debate contemporân.eo entre os advogados co11stitucionais americanos acerca da legitimidade do poder da Suprema Corte dos Estados Unidos para anular as decisões dos legisladores eleitos, por exemplo. Até os mais ardentes partidários desse poder judiciário item que se trata de uma característica antidemocrática da política americana, a qual precisa ser defendida co1no valorosa, apesar de tal vício. Isto é, rresumem que a concepção separada oferece a definição correta do que é a de1nocracia realmente. Parte da atração da concepção separada situa-se, sem dúvida nen.huma, em st1a óbvia net1tralidade. Em nossa sociedade, as pessoas discordam radicalmente acerca de qttestões de justiça substa11tiva; discordam, por exemplo, se o imposto de renda progressivo é um rot1bo oficial, se são injustas as leis contra a pornografia e são imorais as vantagens especiais para grupos outrora relegados. Questões divergentes como essas precisam ser resolvidas por processo político, e já que se espera qtte os perdedores do processo aceitem a decisão tomada, mesmo que a achem injusta, parece correto qt1e cada cidadão tenha controle igual sobre qual seja a decisão. l)elo contrário, a concepção dependente muli tiplica as divergências. Já que as pessoas têm idéias diver. gentes sobre quais decisões substantivas são igualitárias no sentido abstrato - sobre quais decisões trata1n o povo com igual consideração -, é provável que, por esse motivo, tenham idéias bem divergentes sobre quais procedimentos e instituições políticas são gern_rirtamente democráticos na concepção dependente.

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Não devemos exagerar essa objeção no que tange à concepção dependente. Em ambas as concepções o caráter da democracia é controverso, porque, corrio veremos, a questão de corno se deve avaliar o poder político, decidir se é igualitário! já é controversa em si. A difere:iça é esta: na concepção dependente, as questões controversas substantivas podem 1nuito bem reaparecer, praticamente da mesma forma, como questões controversas acerca do processo. Os teóricos e os filósofos políticos devem elaborar e defender teorias abrangentes que perem a substância e o método ao 1nesmo tempo. Mas, na concepção separada, as controvérsias acerca do processo, se surgirem, terão mais probabilidade de ser controvérsias diferentes. Assim, os teóricos que aceitam essa concepção podem elaborar e defender teorias distintas da democracia sem tocar em questões substantivas, e depois propor que estas sejam resolvidas por intermédio dos métodos democráticos que recomendam. Argumentarei que, apesar de sua popularidade e vantagens evidentes, a concepção separada de de1nocracia não pode ter êxito em forma pura. Devemos rejeitá-la em favor de uma concepção mista de democracia, que extrai características tanto da estratégia dependente quanto da separada, ou de uma concepção dependente pura. Descreverei as principais características de uma concepção depe11dente pura, que acredito ser a opção mais interessante, e depois analisarei a importante controvérsia política que mencionei - a revisão judicial é antidemocrática? - como ilustração, e testarei a concepção.

II. O que é igualdade de poderes?

A. Dilnensões vertical e horizontal O poder igualitário de voto não é u1na característica inevitável, ou _mesmo provável, da concepção dependente de democracia. Como o nosso exemplo distrital demonstrou,

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o esquema que não tem como objetivo a igualdade de poder político pode oferecer uma melhor perspectiva de alcançar as metas distributivas da igualdade do que um esqttema que o tenha, e pode até, co1no veremos adiante, oferecer uma melhor perspectiv~ de também realizar essa meta participativa. Mas a concepção separada de democracia de ve considerar fundamental a igualdade de poder. Se a igualdade política é uma dimensão distinta, independente, da igualdade, então o poder é a única maneira inteligível de avaliar' essa dimensão. O processo político equânime deve ser um processo que distribua o poder político com igualdade. O argumento atraente pela concepção separada que descrevi-de que, se há litígios substantivos acerca da justiça em uma sociedade, cada cidadão deve ter o mesmo papel na resolução desses litígios -presume que qualquer concepção separada terá exatamente essa característica. Mas o que é a igualdade de poder político? Como avaliar o poder político? Em quais circunstâncias é equânime? Essas perguntas ocuparão algumas páginas. No entanto devemos perceber, em primeiro lt1gar, que qualquer teoria adequada de igualdade política precisa comparar o poder político em duas dimensões: não só horizontalm.ente, co.mparando o poder dos diversos cidadãos ou grupos decidadãos, mas também verticalmente, comparando o poder individ11al dos cidadãos com o de cada autoridade. Se a democracia é uma questão de igualdade de poder político, é preciso que ambas as dimensões sejam contempladas. A igualdade horizontal do poder não é suficiente para proporcionar algo que reconheçamos como uma democracia genuína. Nas ditaduras totalitárias, todos os cidadãos têm o lnesmo poder político: nenhun1. Cínicas e fingi.das democracias, com apenas um partido político, geralmente são meticulosas ao oferecer a cada cidadão um, e somente um, voto para tal pE!rtído. Assim, é preciso que entre em cena a dimensão vertical. Não obstante, parece inacreditável que possa existir alguma igualdade genuína de poderes mesmo etn democracias

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aparentemente genuínas como a Inglaterra e os Estados Unidos. Como rever nossas estruturas e práticas políticas sem destruir totalmente o governo representativo, para atribuir a cada cidadão em idade eleitoral o mesmo poder sobre os assuntos nacionais que tem um deputado recémeleito, ou mesmo o presidente? Assim, talvez pareça que a concepção separada de democracia, fundamentada 11a igualdade de poder, cai em um dilema desde o início. Se in-sistir apenas na igualdade horizo11tal, na igualdade entre os governados, suas exigências mais rígidas podem ser atendidas por tiranias claramente antidemocráticas. Se também exigir igualdade vertical, então é completamente irreal

B. bnpado e influêncía

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Não devemos esquecer essa ameaça do dilema ao analisar o que pode significar a igualdade de poder. Devemos distinguir duas interpretações: a igualdade de impacto e a igualdade de influência. A diferença intuitiva é esta: o impacto de alguém na política é o que pode fazer, sozinho, ao votar ou escolher uma decisão e não o·utra. A inflttência, por outro lado, é o que pode fazer não apenas sozinho, mas também ao comandar ou induzir outras pessoas a acreditar, votar ou escolher o inesmo que ele. Precisamos de uma teoria um tanto maís técnica do impacto e da lnfluência, pois convém comparar o impacto ou a influência política de diversas pessoas. Portanto, definamos o grau de impacto e influência da seguinte maneira, que emprega a idéia de probabilidades subjetivas. Suponhamos que você saiba tudo o que há para se saber sobre a estrutura política de determinada comunidade, inclusive os direitos eleitorais de todos os cidadãos, as estruturas jurisdicionais da representação e o poder constitucional de cada autoridade. Mas não saiba nada sobre os poderes não-constitucionais do carisma, do renome, da associação, da habilidade, da ameaça, do suborno ou de outras vantagens que proporcionam a uma pessoa

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influência soQre os atos políticos de qualquer outra. Você nada sabe, no início, acerca das opiniões, das intenções de voto ou escolha das pessoas com relação a algum assunto que o processo político precise decidir em breve, co1no, por exemplo, reduzir ou não os impostos. Nessas circunstâncias, você não pode atribuir mais do que as mesmas probabilidades à totalidade da comunidade de se chegar a qualquer decisão. No entanto você descobre, agora, as intenções de voto ou de escolha da minha empresa; descobre que todos os votos de que disponho serão contra a redução dos impostos, por exemplo. Em quanto você deverá aumentar sua estimativa da probabilidade desse resultado? A resposta é o meu impacto político no tocante a essa decisão. Podemos definir a influência política de 1naneira semelhante. Imaginen1os que você saiba tudo o que há para se saber não só acerca da estrutura constitucional dos poderes e dos direitos, mas também sobre os poderes não-constitucionais de influência que excluí dos seus conhecimentos no parágrafo anterior. Novamente, a princípio você nada sabe sobre a opinião ou as intenções de voto de ninguém com relação à redução dos impostos e, assim,. não pode atribuir a nenhuma das possíveis decisões da comunidade uma probabilidade maior que outra. Agora, porém, ao descobrir que sou contra a redução dos impostos e farei o possível para derrotá-la, até que ponto você deve aumentar a probabilidade dessa decisão, devido a essa informação, define a minha influência política sobre o assunto2. A diferença entre impacto político e influência política insinua u111a fuga do dilema que mencionei. Obviamente, a igualdade veitical de poderes é impossível se significar igualdade de impacto político. Você teria diminuído incomparavelmente a probabilidade subjetiva de redução dos im2 Evidentemente, não poderíamos esperar formular quaisquer juíz0s acercn da igualdade de p0derco ~um a predsão que essas definições pareCeln indicar. Só as ofereço pru:a praporcionar algum sentido para as comparações que, na prática, precis
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postos ao saber da minha intenção de usar todos os meus votos contra ela, caso achasse que sou um senador, e não um advogado académico. De fato, não faz sentido, mesmo como ideal inatingível, invocar a igualdade vertical de impacto em uma estrutura de goven10 representativo, pois o impacto da estrutura representativa é, obrigatoriamente, bem diferente se visto da perspectiva vertical. Porém faz sentido invocar a igualdade vertical, como ideal, se a igualdade em questão for a igualdade de influência. Podemos até definir um sistema totalmente ·representativo, no qual a igualdade de influência se sustente, pelo menos até o grau de precisão em que possa ser avaliada. Suponhamos que as autoridades itissem que têm obrigação de votar de acordo com o desejo da maioria que representam. itamos também que há eleições frequentes, a comunicação entre as autoridades e os eleitores é boa, e os mecanismos de revogação de mandato tenham eficiência suficiente e não sejam onerosos, de modo que as autoridades de fato cumprem seu dever. Nessas circunstâncias é possível, grosso modo, realizar uma igualdade vertical de influência. Já que o senador X votará pela redução de impostos se, e somente se, achar que a maioria dos eleitores é favorável a ela, a informação de que preferiria a redução não aumenta ainda mais a probabilidade de ele votar a favor dela do que a informação de que qualquer outro de seus eleitores a prefere. Parece, portanto, que a concepção separada, que considera a igualdade de poder o único índice da democracia, só pode ter êxito como interpretação plausível das nossas principais suposições se interpretar a igualdade de poder como igualdade de influência, pois apenas essa interpretação seria uma teoria plausível da dimensão vertical da igualdade. Agora examinemos a questão da perspectiva horizontal. Também aqui seria itnplausível interpretar a igualdade de poder como igualdade de impacto, porém agora pelo motivo oposto. A Ígualdade de impacto não é uma meta exigente demais, 11a verdade não é exigente o bastante. O impacto igualitário requer que cada cidadão competente te-

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nha direitos simétricos ao voto, e também requer a divisão distrital com um voto u·nipessoal. O impacto igualitário condenaria a estrutura distrital que ofereci como exemplo anteriorme11te, que proporciona mais impacto político, por pessoa, aos habitantes pobres dos centros urbanos. (Tan1bém condena o esquema eleitoral americano para a eleição de senadores, que proporciona a cada habitante do Wyomin.g muito mais impacto sobre as decisões do Senado do que a cada habitante da Califón1ia.) No entanto a igualdade de impacto nada faz para justificar a nossa suposição fundamental acerca da democracia, segu11do a qual a democracia não exige apenas o sufrágio universal, mas a liberdade de expressão e de associação e também outros direitos e liberdades políticas. O meu impacto sobre a política não é menor que o seu quando uma censura especial me priva do direito de apresentar minhas opiniões ao público, contudo permite que você o faça. Precisamos ir além da idéia do impacto igualitário e chegar à de influêr1cia igualitária, ao menos para começar a explicar por que a censura das opiniões de alguns nega a igualdade de poder político. Precisan1os ir além do impacto igualitário, sobretudo, para explicar uma queixa grave contra a democracia americana que a n1aioria das pessoas ite até certo ponto: que alguns cidadãos tenham poder político excessivo em relação a outros, por serem mais ricos ou controlar a in1prensa, ou por algum moth..-o semelhante. Não é uma restrição contra o irnpacto injust'o, porém contra a inflL1ência injusta. Nenhun1 Rockefeller que vote na sua jurisdição exerce impacto maior que você nas decisões políticas; o voto dele vale tanto quanto o seu. Tudo isso confirma o que entendemos na análise da igualdade de poder na dimensão vertical. Também na dimensão horizontal, o poder igualitário que a concepção separada exige não pode ser a igualdade de impacto. Se a idéia de poder político igualitário é oferecer uma concepção de democracia com abrangência suficiente para separar tal concepção das metas substantivas, então deve-se interpretar poder sin1étrico como igual influência.

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C. A influência deve ser igualitária?

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Mas a igualdade de influência é realmente un:i ideal desejável? Não hesitaríamos em aumentar a igualdade vertical de influência da maneira em que acabamos de ver que é possível: insistindo para que as autoridades sempre agissem como a maioria do eleitorado desejasse, e adotando dispositivos eleitorais que punissem os que não o fizessem? É claro que, mesmo que marcássen1os eleições com periodicidade suficiente e oferecêssemos mecanismos de revogação de mandato bem aterrorizantes para tomar as autoridades obedientes em geral, não poderíamos fazê-lo sempre, pelo menos porque às vezes se enganariam com relação ao que a maioria dos eleitores quer, ou porque nos últimos mandatos que planejarn para suas carreiras, eles podem ar a agir segundo a própria vontade. Mas queremos ainda chegar o mais perto possível de garantir a obediência deles? Essa pergunta lembrará a famosa carta de Burke aos xerifes de Bristol, na qual ele se eximia de qualquer responsabilidade, mesmo em princípio, de votar naquilo que os que o elegeram queriam3. A história costuma dar crédito a sua opinião, mesmo que um nú.mero irrisório de autoridades realmente concorde com ela. Parece que também não nos opomos às partes da nossa estrutura constihtcional que agora são obstáculos à igualdade vertical de influência. Os senadores são eleitos para mandatos de seis anos. Os presidentes e todas as outras autoridades oficiais têm duração de mandato garantida, por mais impopulares que se tomem. (Na Inglaterra, pelo contrário, um governo por demais impopular cai e é preciso realizar novas eleições.) Os juízes têm muito poder; muitos são indicados, em vez de eleitos, e, depois de nomeados, têm 3. Ver Edmllnd Burke, "A Letter to John Farr and John Harris, Esqrs., Sheriffs of the City of Bristol, on the Affairs of /-unerica", in The Writings and Speeches of the Right Ho11omb/e Edmund /Jurke, ed. J. F. Taylor (Nova York: Beaconsfie!d, 1901). Originalm~nte publicado cm 1777.

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mandato vitalício. E assim por diante. Quem defende a igi..1aldade vertical de influência política co1no ideal deve reagir a esses fatos de diversas maneiras. Talvez condene as características da política americana que prejudicam a igualdade

vertical por ser escandalosamente antidemocrática e re·queira uma reforma radical. Ou talvez insista que, embora essas características sejam realmente antidemocráticas e injustas, estão totalmente justificadas por serem transigências necessárias para atingir outras finalidades políticas, como a eficiência e a estabilidade. (Esta resposta, obviamente, marcaria um afastamento da concepção separada pura de democracia, porque ite que as instituições políticas devem ter outras metas além da igualdade de podei:; e que tais finalidades às vezes são suficientemente importantes para justificar os danos à igualdade política.) As dúvidas que mais quero salientar aqui, porém, são acerca da igualdade de influência na dimensào horizontal, a qual acredito que parecerá para a maioria dos leitores um ideal bem mais interessante do que na dimensão vertical. A principal atra<,.'âo da igualdade de influência horizontal consiste na convicção de que é injusto que alguns cidadãos tenham milito mais influência política do que outros, só por serem muito mais ricos. Mas podemos explicar essa intuição de duas maneiras. Podemos, de fato, explicá-la como uma intuição fundamentada na hipótese de que qualquer grande lapso da igualdade de influência entre cidadãos é um grave equívoco na de1nocracia. Ou podemos explicá-la de uma maneira que não apele à igualdade de influência, como ideal geral, em 11enhuma hipótese. Podemos dizer, por exemplo, que é injusto que algumas pessoas tenham tanto dinheiro quanto um Rockefeller porque isso infringe os princípios distributivos da igualdade, e acrescentar que a influência política desmesurada que a riqueza lhes proporciona é uma conseqüência especialmente deplorável da injustiça, porqt1e lhes permite, entre outras coisas, perpetuar e multiplicar suas vantagens injustas. Essas dt1as maneiras de se opor à influência política dos l~ockefellers são, é claro, bem diferentes. A primeira é in-

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sensível à fonte da influênCia desproporcional; presume que o agregado de influências, de todas as fontes, deve ser o mesmo. A segunda não tem suposições relativas ao agregado de influências; só condena a influência do Rockefeller devido à fonte específica de tal influência. Podemos comparar as duas objeções ao imaginar um mundo no q.ual a primeira se manteria, mas não a segunda. Imaginemos que se alcançassem. as metas distributivas da igualdade, inas algumas pessoas ainda exercessem maLs int1uência sobre a política do que outras. Elas poderiam ter.mais influência por 'inúmeros motivos, conh1do itirei motivos inquestionáveis em si, pois estamos analisando se deveríamos nos opor às influências desiguais como tais. Poderiam ter decidido gastar mais de sua riqueza inicialmente simétrica em campanhas políticas, por exemplo, do que as outras. Ou poderiam ter investido inais em estudos, o que aumentou a probabilidade de que as outras pessoas os consultassem ou ouvissem seus conselhos. Ou poderiam ter tido uma vida de realizações ou virtudes tão notáveis, que os outros confiassem mais nelas ou estivessem mais dispostas a segui-las. A primeira forma de objeção à ínfluência de um Rockefeller, não obstante, aplicar-se-ia a tais pessoas. Consideraríamos a maior influência de pessoas politicamente motivadas, ou experientes, ou carismáticas, como falha d.a organização política, e tomaríamos todas as providências possíveis para eliminar ou reduzir essa influência. Todavia a segunda forma de objeção cairia, a não ser que tivéssemos outro motivo, independentemente de qualquer suposição de que a influência política deveria ser simétrica, para nos opor a uma situação na qual algumas pessoas estivessem politicamente motivadas, tivessem formação política, ou fossem mais carismáticas que ot1tr'as. Qual forma de objeção é mais precisa? Quando nos opomos à distribuição de poder na sociedade, o poder é realmente o motivo da restrição? Ou nos oporemos com veemência a outras características independentes, mas injustas da nossa organização econômica, política ou social, chamando a atenção para u1na conseqüência bem infeliz

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dessas características? Vejamos a queixa comum, e totalmente justificada, de que as n1ulheres têm pouquíssimo poder de quaisquer tipos na maioria das sociedades. Alguém que pense assün poderia achar que a organização social é falha, a menos que as mulheres em geral tenham a mesma influência sobre os acontecimentos (avaliados de maneira específica) quanto os homens. Todavia outra pessoa com o mesmo descontentamento poderia ter outra coisa em mente: não que os homens e as mulheres devam, por direito, ter em média a inesma influência, mas que a menor influência que as mulheres têm hoje é o resultado da combinação de injustiça económica, estereótipos e outras formas de opressão e preconceito, algumas das quais, talvez, sejam tão fundamentais que estão entranhadas na cultura da comunidade. A diferença entre essas duas atitudes revela-se mais clara, novamente, se tentarmos imaginar uma sociedade na qual a discriminação econômica, soci.al e cultural contra a·s mulheres tenha sido eliminada. Se o poder de homens e mulheres, em média, for assimétrico em tal sociedade - como talvez seja, em qualquer direção-, esse fato, por si só, contaria como falha na orgarúzação social? Essas questões retóricas pretendem seduzi-los a fim de provocar u1n afastamento do ideal de simetria de poder. Mas espero que muitos de vocês continuem atraídos por esse ideal, se i1ão em todas as esferas da vida, pelo n1enos na política. "fentarei, portanto, demonstrar como a aceitação da igualdade de influência como ideal entraria en1 conflito com outras metas igualitárias, pedindo-lhes que pensem nas etapas que seriarn necessárias para nos aproximarmos mais desse ideal, urna vez corrigidas as injttstiças independentes que condenamos de qualquer forma. Imaginei que mesmo en1 uma sociedade igualitária as diferenças de interesses, compromissos, formação e reno111e poderiam ser fontes de diferenças em influência política. Certamente, muita gente teria melhor formação em tal sociedade do que tem hoje. E as pessoas que atualmer,te não se interessam pela política, porque se sentem ignoradas e1n seus processos e excluúlas de seus ganhos, teriam mais chances de buscar uma vida po-

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lítica. Contudo presumo que essas conseqüências clarame11te desejáveis de uma distribuição mais símétrica não elim:i11ariam totalmente as diferenças das fontes que citei. Algumas pessoas continuariam muito mais interessadas e informadas politican1ente, e muito mais eficazes para convencer e liderar as outras. O que poderíamos fazer para eliminar essas diferenças restantes, que poderian1 ser bem substanciais? () meio mais eficaz, caso fosse essa nossa única meta, seria reduzir o papel da influência na política em geral, isto é, reduzir as oportunidades que os cidadãos têm de pensar juntos no que exigir ou fazer. Contanto que a política seja coletivamente reflexiva, de maneiras que agora achamos iráveis, é inevitável que alguns cidadãos tenham mais influência que outrqs. Todavia só _podemos tomar a política menos reflexiva proibindo discursos e associações políticas à maneira dos regi:tnes totalitários mais selvagens, e suporei que uma proibição dessas seria inaceitável. Uma segunda estratégia seria muito menos eficaz. flodemos tentar tornar as pessoas menos desiguais em influência política estabelecendo um limite máximo para os fundos qt1e qualquer pessoa possa investir ou gastar em edt1cação para a política ou em ca1npanhas políticas. Obviamente, os limites em gastos de campanha são atraentes quando compensam diferenças injustas em riqueza; assim como ambas as argumentações que indiquei acima se opõem à influência política desproporcional dos Rockefellers, a1nbas também recomendam limites nos gastos políticos nas atuais circunstâncias. F'orém, se os recursos fossem simetricamente distribuídos, os limites em gastos de campa11ha não seria1n os mesmos, pois impediriam algumas pessoas de adaptar os próprios recursos à vida que gostariam de ter, embora dei-xando outras pessoas, com menos interesses políticos, livres para fazê-lo4. Tais limites também seriam cruéis, pois prote4. Presumo, nesta declaração, que a riqueza permanece igual para que nenhum gn1po pequeno de pessoas muito ricas pudesse dominar a política por interm~dio de co11tribuições ou despesas políticas. Ver Capítulo 10.

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geriam a igualdade de influência em nome dos que dí'.o pouco valor à própria influência, mas que poderiam ter exercido maior influência se lhe tivessem dado mais valor. Uma terceira estratégia seria tão ineficaz que só vale a pena mencioná-la porque as objeções a ela são instrutivas. Poderíamos tentar educar as pessoas, não para tentar exercer influência sobre outras, com relação a decisões políticas,

mas de modo que não dependam de vantagens especiais que vlessem a ter em experiência, con1promisso ou renome, e também para tentar resistir à influência de outras pessoas cujos argumentos possam ter força especial oriunda dessas vantagens. Aq pessoas não teriam êxito ao seguir tal conselho, porq·ue na argumentação política é impossível separar o dançarino da dança. Todavia a sugestão é, de qualquer forma, questionável, pois incentiva as pessoas a ignorarem deliberadamente o que, por hipótese, parece-lhes· ser os melhores n.rgumentos, as razões mais convincentes para abraçar uma causa política, ott trabalhar por ela, e não por outrã. De fato, incentiva-.as, às vezes deliberadamente, a acatar b que creiam que seria a pior decisão em termos substantivos. 1\ridentemente, não im.agino que alguém recomendaria realmente quaisqt1er dessas três estratégias; todas são ab-surdas. Mas são absurdas por insinuarem que a igualdade de influência é incompatível, mesmo em princípio, com outros aspectos interessantes de uma sociedade igualitária. Todos item, é claro, que podem surgir cor1flitos entre a igualdade de influência e a igualdade dístribt1tiva. Previmos essa possibilidade no início deste capítulo, ao analisar o esquema distrital que proporcionava maior impacto político aos pobres dos centros urba11os, pelo 1nenos e1n certos asst1ntos, para alcançar uma distribttição de recursos mais simétrica. Não obstante, esse tipo de conflito é apenas contingente: não há nada no caráter da igualdade de influência, como ideal, que pareça em conflito com a igualdade distributiva. Entre esse ideal e as finalidades participativas porém, há outro cortflito fundamental e profundo que pareceria evidente a obtenção de endosso de uma sociedade igualitária.

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A sociedade igualitária deseja que seus cidadãos it1gressem 11a política devido a um interesse compartilhado e intenso pela justiça dos resultados, devido a uma preocupação co1npartilhada e inle11sa para que as decisões distributivas tratem a todos com igual consideração. Incentiva os cidadãos a se orgulharem ou se envergonharem do êxito ou do fracasso da comunidade, como se ela lhes pertencesse; seu alvo é aquela meta comunitária da atividade política. Mas o ideal da influência igualitária desafia essa aspiração. Quando as pessoas fazem qttestão de não exercer influência demais, ou ficam enciumadas por não exercerem influência suficiente, sua preocupação coletiva é apenas u1na questão de espetáculo; continuam a encarar o poder político como um recurso separado, e não como uma responsabilidade coletiva. A sociedade igualitária também aprecia a finalidade agencial para a ativídade política: que os cidadãos devem ter o maior espaço possível para estender à política sua experiência moral e de vida. Contudo as pessoas que aceitam a igualdade de influê11cia como uma restrição política não podem tratar sua própria vida política como agência moral, pois essa restrição corrompe a premissa suprema da convicção moral: que só a verdade itnporta. As campanhas políticas sob limites de influência auto-impostos não seriam u1na agên~ eia moral, mas apenas um inútil minueto de deferências.

D. Refletindo A igualdade de impacto não consegue fornecer uma concepção separada pura de democracia. Ela pede demais na dimensão vertical da política, e demasiadamente pouco na horizontal. A igualdade de impacto pode muito bem ter papel importante em uma concepção mista, separada e dependente, como uma meta a ser buscada quando e enquanto as outras considerações permitam. E, como veremos, ten1 um papel em qualquer concepção dependente pura que seja plausível. No entanto, para que a concepçâo separada pura

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A VlRTIJDE SOBERAi\rA

tenha êxito, precisa ter a influência, e não o .impacto, como meio de avaliação do poder político. A igualdade de influência, contudo, não parece desejável, como padrão exclusivo, na dimensão vertical. Exigiria sacrifícios demais à independência e outros valores das autoridades. Nem parece desejável como padrão exclusivo na dimensão horizontal Devemos, evidentemente, remediar as injustiças distributivas responsáveis por grande parte das desigualdades de influência política-da nossa própria época. Mas não podemos almejar a it,rualdade de influência além da retificação dessas injustiças nítidas, pois os meios que teríamos à disposição violariam outras características desejáveis da sociedade igualitária que parecem mais importantes. Segue-se que não podemos manter uma concepção separada pura de democracia. Devemos, portanto, elaborar uma concepção mista, na qt1al a igualdade de iitfluê.ncia figure como ideal atraente, embora inatingível, comprometida pelas reflexões conseqüencialistas oriundas de uma estratégia dependente? Teríamos, então, um grande dilema a deplorar no princípio de igualdade abstrato. Teríamos decidido que não podemoR tratar as pessoas como iguais, a não Rer que tornemos iguais suas influências políticas, e que não podemos tratá ..Jas como iguais se o fizermos. Mas por que deve1n.os aceitar a igualdade de influê11cia como ideal independente? O que dizer em s11a defesa? Ofereci um arS,>Umento neste capíh11o, e agora deve1nos voltar a ele. Parece injusto pedir às pessoas que aceitem resultados substantivos que jl.llguem errados, a não ser que tenham tido um papel tão importante 11a decisão quanto qualquer outro. Quando apresentei esse argumento, para explicar a ah·ação intuitiva da concepção separada de democracia, ainda não tínhan1os diferenciado as duas modalidades de poder: impacto e iI1fluê11cia. O argumento te1n alguma força na medida em. que é a favor da igualdade de impacto, e essa força é preservada no argt.une11to limitado em prol da fauna de igualdade que descobriremos mais adiante, em uma concepção depende11te de democracia. Mas o argutnento fracassa to-

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talmente como um argumento pela igualdade de influência. I-'arece irrelevante, quando me pedem que aceite a decisão da maioria à qual me opus, se meus adversários foram mais habilidosos do que eu na discussão; não posso alegar minha falta de influência como prova da ilegitimidade do voto contra mim, a não ser que possa atribuir minha falta de influência a uma fonte que seja ilegítima em si. Resta-nos, acredito, somente um argumento pela igualdade de influência: que devemos aceitá-la como ideal e devemos, por conseguinte, contentar-nos com uma concção mista de democracia, pois não podemos elaborar uma concepção adequada que a ignore. No restante deste capítulo, aceitarei o desafio, elaborando o esboço de uma concepção dependente de democracia que ofereça um lugar importante, embora limitado, à igualdade de impacto, mas nenhmn para a igualdade de influência. Espero demonstrar que a concepção dependente responde, de maneira natural e espontânea, pelo q·ue consideramos características fu1ldamentais d.a democracia, e justifica essas caracteristicas por intermédio de princípios que podemos e devemos usar ern debates sobre o que na verdade significa, em detalhe, a democracia.

III. Valores participativos

A. Metas sí1nbólicas

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Precisamos reconstruir e expandir a lista de metas políticas substantivas que a concepção depender1te de democracia, bem-sucedida, expressaria. Não podemos desconsiderar, antecipadamente, que algumas das finalidades enumeradas estarão em conflito com outras e, nesse caso, a concepção dependente precisa ser, de certa fonna, um co1npromisso entre essas metas. Não obstante, analisarei separadamente as exigências· das diversas metas até que surjam os conflitos, se surgirem.

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A VIRTUDE SOBERANA

Começarei com as metas participativas. As consegüências simbólicas da estrutura política são definidas, em geral, pelo voto, que é uma questão de impacto político. Nas grandes comunidades políticas, as eleições são normalmente es-

truturadas por meio da divisão da comunidade geral em distritos eleitorais de diversos tamanhos e características. Não existem eleições nacionais não-distritais nos Estados Unidos, e tais eleições são raríssimas na Inglaterra. Elege-

mos autoridades e resolvemos os assuntos por estado ou distrito parlamentar, e também por cidade, setor ou distrito

escolar. A igualdade requer que as eleições contenham a declaração simbólica de valor idêntico para todos. As decisões políticas que dividem a comunidade política em distritos, e que atribuem votos dentro de cada distrito assim criado, não podem ser modificadas ou interpretadas como expressão_de nenhmna atitude de interiorização ou de menos consideração por um cidadão em comparação com os outros. 'femos, então, nessa meta simbólica, um forte motivo para transmitir a igualdade de impacto horizontal a toda comunidade política, pelo rrie~os como padrão prelintlnar da:o estruturas políticas democráticas. Mas só preliminar, porque a meta shnbólica permite desvios do padrão quando tais desvios não podem ser plausivelmente entendidos co1no expressão adversa da atitude ou da importância daqueles cujo impacto diminui. A história e a convenção tê1n um papel llnportante na aplicação prática.dessas reflexões. Nossa própria história é tal que ncnl1um desvio do impacto simétrico de11tro do distrito -isto é nenhum desvio do voto igualitário-é tolerável para nós. Essa exigência rigida não se firmaria em uma coinurlidade cuja história demo11strasse que os votos desiguais não exibem, em si, desprezo ou desconsideração. l)odemos in1aginar, por exemplo, uma sociedade na qual as pessoas ganhassem votos co.m a idade, cru em que as pessoas adquirissem votos ao fazer um curso genuinamente aberto a todos, ou algo semelhante. No entanto, em uma sociedade como a i1ossa, na qual o voto tem sido tradicional1

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mente um símbolo de responsabilidade, peso e interesse, qualquer violação do voto igualitário expressaria a negação do apego simbólico que o voto igualitário confirma. Epor isso que a perda do voto tem sido freqüentemente empregada como uma das consegüências da condenação penal. A nossa história não atribui à igualdade de impacto o mesmo papel simbólico ao avaliar como dividir uma grande comunidade em jurisdições eleitorais. O motivo é, em parte, óbvio. Por motivos práticos, só é possível aplicar uma igualdade de impacto tosca nessas decisões de criação de distritos, pois elas não podem ser 1natematicamente perfeitas e ficariam, de qualquer modo, desatualizadas eq.tre uma e outra redivisão. A história dos Estados Unidos, em especial, oferece exemplos impressionantes de decisões de divisão em distritos, ·nas quais se desdenhou da igualdade de impacto por motivos que certamente não expressavam menos preocupação por aqueles cujo impacto político tal ato reduzia. O esquema de divisão em distritos, que propicia mais impacto aos cidadãos do VVyoming do que aos da Califórnia no Senado, não teve originalmente a motivação, nem poderia ser plausivelmente interpretado assim, de manifestar um desprezo pelos cidadãos atingidos nem uma falta de respeito por suas opiniões. Assiln, nossa história não condena, por incompatibilidade com as metas simbólicas da i6rualdade, as decisões de divisões em distritos que negam o impacto igualitário, quando é óbvio que elas são igualmente inocentes dessa forma. O esquema de divisão em distritos que imaginei antes, que almeja proporcionar aos pobres dos centros urbanos um impacto ligeiramente maior do que teriam de outra forma, não é incompatível com essas metas sünbólicas, por exemplo, embora tal esquema possa ofender outras partes de uma boa concepção dependente de dcmocracia 5 .

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B. Valores agenciais Os valores agenciais da política são mais difusos e enganosos. Mas não há ligação óbvia entre esses valores, a liberdade de expressão e outras liberdades políticas. Não podemos fazer de nossa vida política uma extensão satisfatória de nossa vida moral, a menos que nos seja garantida a liberdade de expressar nossas opiniões de uma forma que, para nós, satisfaça a integridade moral. A oportunidade de expressar um compromisso com i1ossas convicções é tão importante, com esse fim, quanto a oportunidade de com11nicar tais convicções a outrem; de fato, as duas freqüentemente se confudem. Assim como a pessoa a quem se nega a oportunidade de culto segundo suas próprias idéias também se nega un1a parte fundamental da vida religiosa, a quem se nega a oportunidade de prestar testemunho de seu interesse pela justiça, da forma como essa pessoa entende as exigências desse interesse, també1n se anula, e não apenas se limita, sua agência política. Mas as exigências da agência ultraam a expressão e a dedicação. Não ingressamos na política como agentes morais, a não ser quando percebemos que o que fazemos possa assumir importância, e o processo político adequado deve lutar contra obstáculos gigantescos para preservar esse poder ein potencial para todos. Isto é, deve garantir um grau de incentivo político para cada cidadão. A divisão em distritos tem um papel nessa aspiração, e é importante per-

te atraent!C' ínsistiria que se elevasse a exigência pertinente a qualquer isenção do requisito de itnpacto igual. Talvez esta seja a melhor justificativ~ para as decisões do tipo ''cada pessoa um voto" da Suprema Corte; poderiamas entcnderque a Suprema Corte decidiu, como medida profilática, que nenhuma exceção requerida constitucionalmente fosse permitida. Ver, p. ex., Gaffney versus. Cu1n1ni11gs, 412 l.1.S. 735 (1973) (plano de redistribuição da As5embléia G('ral de Connecticut refutado coro base na cláusula da igual proteçâo após o recenserunento de 1980); Rei;nolds vers1~<; Sirr1s, 377 U.S. 533 (1964) (refutação com base na cláusula da igual proteção ao plano de redistribuição dos distritos eleitorais proposto para as duas câmaras da legislatura do Alabama).

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ceber a diferença entre a divisão mediada e a definitiva. A divisão em distritos é mediada quai1do as eleições escolhem representantes que, juntos, cheguem a uma só decisão para toda a comunidade política, como no caso das eleições estaduais para o Senado. A divisão em distritos é definitiva quando as eleições finalmente decidem algo para a jurisdição eleitoral, como no caso de plebiscitos para decidir a respeito da emissão de títulos públicos. Ambas conferem mais poder aos cidadãos individuais de b:rra11des distritos, embora de maneiras diversas. Os distritos mediados proporcionam incentivo um pouco maior em questões importa11tes de caráter nacional e, assim, aumentam a agência moral de toda a comunidade. Os distritos definitivos i11centivam mais as questões de conseqiiências mais leves. Evidentemente, a divisão cm distritos não é o único recurso que o proCesso político igualitário pode e deve empregar para oferecer incentivo. Nos grandes distritos, ou em distritos mediados de nações grandes, o incentivo do voto é desprezível. Assim, a meta da agência política só se realiza quando se oferece a todos o o suficiente aos meios de comunicação influentes, caso desejem, para qt1e cada pessoa tenha uma oportunidade justa de exercer influência sobre as outras, se puder fazê-lo. Poderíamos dizer que isso é o outro lado das liberdades que são a liberdade de expressão e de audiência, julgadas do ponto de vista da agência. Em nossa sociedade desigual, a fonte mais notória de desigualdade de o é a desigualdade de riquezas. Se os recursos fossem distribuídos com mais igualdade, haveria incentivo automático para grandes números de cidadãos. Não obstante, se a economia dos meios de comunicação só desse o à audiência política àqueles que optam por investir ou trabalhar no ramo, as metas agenciais da democracia exib>iriam que o o fosse garantido ou concedido de 011tras maneiras aos cidadãos em geral. Os leitores se perguntarão se estou agora apresentando, por intermédio da idéia do incentivo e do o, a mesma igualdade de influência que rejeitei anteriormente.

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A agência moral só é possível para todos os cidadãos na política se cada um tiver a oporh1nidade de exprimir as próprias opiniões para fazer alguma diferença. Em um distrito grande, a oportunidade de votar, sem nenhuma outra oportunidade, pode não atender a esse requisito. Assim, a oportunidade de exercer influência, e não o mero impacto, é necessária à agência. Mas isso não diz nada acerca da igualdade de influência. Encontramos essa idéia no decorrer de tun argumento bem diferente, que começava presumindo que a democracia requer a igualdade de poder e se perguntava o que ela significa. Descobrimos que deve significar a igualdade de influência, e duvidamos da igualdade de poder principalmente por esse motivo. Na atual discussão, encontramos a idéia de influência em um contexto bem distinto, dttrante a elaboração de uma concepção dependente de democracia. A ênfase agora situa-se na opdrtunldade de exercer alguma influência - o suficiente para que o empenho político não seja inútil ~, e não na oportunidade de exercer a mesma influência que todas as outras pessoas. Elaborarnos uma concepção dependente de democracia de modo que ela pertnita a qualquer pessoa que deseje suficiente incentivo ou engajamento a fim de viabilizar para si que a política seja uma extensão de sua própria vida tnoral. Essa é t1ma noção limiar, e nada nela considera a igualdade de influência um ideal pelo qual devamos lutar. Assim, os valores simbólicos da participação requerem a igualdade de voto dentro dos distritos, pelo menos pm:a nós, e prest1mem a igualdade de impacto entre os distritos. Os valores da agência exigem liberdade e incentivo. Os valores participativos comurútários nos conduzem a uma direção wn tanto distinta que não explorarei aqu~ a não ser insinuando, de maneira obscura, que a sociedade política aperfefçoa a percepção de seus n1embros de que a política é uma aventura comum ao adotar a concepção correta de · igualdade distributiva-· a igualdade de recursos- e ao insistir, em suas decisões políticas e legais substantivas, na virtude política de segunda ordem da integridade.

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IV. Valores distributivos ~-

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Dois tipos de questões

Agora temos noção de uma concepção depende11te adequada de democracia. Ela reguer a simetria nos votos dentro dos distritos e presume a igualdade de impacto entre eles. Requer liberdade e incentivo. Esses requisitos deixam muita coisa em aberto. Pratican1ente não falam das questões da igualdade vertical, não estipulam o tamanho dos distritos, a forma de representação, nem quais decisões devem ar às 1nãos de que tipo de autoridades, por exemplo. Agora vamos nos voltar para as metas nitidamente sitbstantivas do processo político ·igualitário: as decisões que achamos que q processo deve tomar acerca da distribuição de recursos e oportunidades dentro da propriedade privada, sobre o uso do poder e dos recursos coletivos em programas públicos e na política externa, acerca da poupança e da conservação, e sobre outros assuntos de princípios e normas públicas com os quais se depara o governo moderno. Como elaboraríamos uma concepção depende11te de den1ocracia se qitiséssemos aumentar a precisão dessas decisões? Emprego essa palavra provocadora deliberadamente. Embora possa parecer estranl10 falar d.e decisões precisas ou imprecisas acerca do aumento de impostos, ou da implantação da pena capital, ou de oferecer auxílio aos Contras, suponho que é sensato fazê-lo. Ou, pelo menos, falar (como preferem fazer os céticos acerca das "respostas certas" às perguntas morais) de uma classe de melhores e uma classe de piores decisões. Queremos qi1e nosso processo político, entre outras coisas, seja bem-elaborado para emitir juízos precisos sobre a melhor decisão, ou pelo menos no grupo das melhores decisões. No entanto é essencial notar uma distinção importante entre dois tipos ou classes de decisões políticas: as que ei1volve111 principalmente o que chamarei de questões sensíveis à escolha e as que env_olvem principalmente as questões

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insensíveis à escolha. As questões sensíveis à escolha são aquelas cuja solução correta, por questão de justiça, depende esf:!encialmente do caráter e da distribuição de preferências dentro da comunidade política. A decisão de usar fundos disponíveis para construir um novo centro esportivo ou um sistema rodoviário é, tipicamente, sensível à escolha. Embora possam surgir diversas questões nessa decisão, das questões de justiça distributiva às de políticas adequadas para o meio ambiente, as informações sobre quantos cidadãos querem ou estão dispostos a usar, ou serão direta ou indiretamente beneficiados com cada uma dessas obras rivais, são nitidamente relevantes, e podem muito bem ser decisivas. A decisão de matar assassinos condenados ou proibir a discriminação racial no trabalho, por ot1tro lado, parece insensível à escolha. Creio que a decisão correta nessas questões não depende, de maneira substancial, de qi..tantas pessoas querem ou aprovam a pena capital ou acham injusta a discriminação racial. Acredito que o argumento contra a pen.a capital é tão forte na comunidade em que a maioria dos membros é a favor dela quanto na comunidade em q-ue o povo se revolte contra a idéia. Obviamente, as pessoas vão discordar com relação a quais assuntos são sensíveis à escolha e quais são insensíveis a ela. Mas a questão de segunda ordem de se qualquer questão de primeira ordem é sensível. ou insensível à escolha é, em si, insensível a esta. Não tem sentido dizer que determinada questão é sensível à escolha se, e somente se, a maioria acha que é ou quer que seja. -Alguns leitores reconhecerão, na distinção entre questões sen.síveis e inse11síveis à escoll1a, uma diferença que descrevi de outra forma anteriormente como a diferença entre quefltões de política e questões de princípio. Acredito que o que chamo questões de política são sensíveis à escolha; já as questões de princípio não o são. Conhtdo não presumo isso na atual discussão; apenas que os leitores concordarão que algttmas matérias políticas são insensíveis à escoTha, mesmo que discordem sobre quais são elas.

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B. Precisão, impacto e influência

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Um processo político que distribui o impacto político com igualdade aproximada geralmente é mais adequado à decisão precisa de questões sensíveis à escolha do que um processo que o distribui com muita desigualdade. Se surgir a questão quanto a um novo estádio ou uma nova estrada atender melhor às necessidades e aos anseios da totalidade da população, então o processo em que os anseios da maioria são registrados de maneira direta, como no caso do plebiscito, ou indireta, por meio das decisões dos representantes eleitos pelas maiorias populares, é obviamente melhor, pelo menos em circunstâncias normais, do que um processo em que somente uma parte pequena e talvez nâo-represe:ntativa da comt]:nidade participe. Isso é um argumento na direção da igualdade horizontal de impacto com relação às decisões dentro da comunidade afetada. Não defende a completa igualdade de impacto, nem mesmo como um ideal, pois é fácil imaginar variações no impacto que pareceria melhorar a precisão ex ante na decisão de assuntos sensíveis à escolha. Os habitantes de áreas de baixa densidade demográfica de um país ou estado, por exemplo, talvez tivessem interesses específicos que seriam desprezados ou anulados em uma eleição em que a igualdade de impacto vigorasse no grau mais alto que fosse tecnicamente possível. No decorrer de muitas eleições ou decisões políticas como essa, seus interesses seriam cada vez-menos satisfeitos do que qualquer teoria plausível de precisão na decisão de questões sensíveis à escolha. Seria melhor, na decisão de tais questões, o emprego judicioso da modificação do distrito, no qual o impacto de cada cidadão da área de baixa densidade demográfica fosse maior, individualmente, do que o impacto de cada cidadão das áreas mais populosas. Seria melhor para a precisão ex ante das decisões sensíveis à escolha, em 011tras palavras, adotar decisões distritais que preservassem a igualdade dos votos dentro dos distritos, de que precisamos por razões simbólicas, mas que reduzisse a

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igualdade de impacto, das maneiras acima descritas, por uma escolha deliberada de desigualdades especiais e limitadas. Meu exemplo anterior, sobre a divisão de distritos favorável aos pobres dos centros urbanos, é apenas mais um caso da mesma estratégia. E a igualdade, não de jmpacto, mas de influência? Até que ponto almejaríamos a igualdade de influê11cia como recurso para melhorar a precisão ex ante na decisão de questões sensíveis à escolha? É claro que seria conveniente evitar a publicidade falsa e outras formas de logro, cujo efeito provável seria ocultar fatos de que as pessoas precisam para poder julgar se determinado programa defenderia seus interesses. Também seria conveniente evitar a manipulação com a intenção de criar gostos que se chocan1 com as aspirações ou valores mais fundamentais das pessoas. Todavia podemos justificar as restrições necessárias para esses fins sem apelar para a igualdade de influência como ideal, e as outras características da decisão sensível à escolha não aconselham tal ideal como um recurso par"'._ a precisão. Assim como algumas pessoas ou grupos utilizam sua influência política para ludibriar ou manipular, outros empregam a influência para ensinar, reformar e enobrecer, para sugerir escalas de valor e aspiração que possam, por exemplo, levar outras pessoas a escolher um teatro, e não um estádio ou uma estrada que, de outra forma, não teriam nem considerado. Não temos razões, em geral, para livrar o .fóru1n político dessas formas de influência, e nós, porta11to, não te1nos razões para tentar alcançar o máximo possível em igualdade de influência. Precisamos mapear as restrições voltadas para as influências ruins ou inadequadas, reduzindo a ilnportância da riqueza na política e incentivando as formas de debate político nas quais seja be1n provável a revelação do logro, em vez de dar mesn10 os os mínimos para garantir qi..le as opiniões de ninguém sejam mais instigantes que as das outras pessoas. Há muito mais a dizer sobre a precisão ex ante nas decisões sensíveis à escolha. Mas rtossa preocupação aqui é es-

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quemática, e devemos, portanto, nos voltar para a segu11da parte do nosso estudo da precisão: a precisão ex ante na decisão das questões insensíveis à escolha. Não temos, é claro, o argumento pela disseminação generalizada do impacto político que tínhamos no caso das questões sensíveis à escolha. l)or definição, a decisão precisa de questões insensíveis à escolha não depende das informações gue uma consulta pública generalizada possa oferecer. Se tivéssemos de aceitar certos pressupostos, fundamental entre os quais é o pressuposto de que é mais provável que as pessoas, em média, decidam questões insensíveis à escolha corretamente, então concluiríamos qu.e quanto mais eleitores votassem em determinada questão, presumindo o impacto igualitário, mais provável seria que a maioria votasse corretamente6 • Mas não existe fundamento a priori para aceitar essas hipóteses; se acho ou não que é mais provável que qualquer pessoa chegue à decisão correta com relação à pena capital, isso depende do que penso ser a resposta.certa, e não de nenhuma observação geral sobre os conhecimentos de filosofia moral da n1aioria das pessoas 7 . Concluo que não tenho motivo para pensar, antecipadamente, gue nada q·ue se aproxime da igualdade de impacto ou de influência, tanto na dimensão vertical quanto na horizontal da política, esteja mais bem-equipado para produzir uma maioria de respostas certas a questões insen6. Ver Lewis Kornha e Lawrence Sager, "Unpacking the Court", Yale Law fournal 46 (1986): 82.

7. Alguns filósofos políticos fomosos achavru.n que a solução certa para todas as questões insensíveis à escolha er'1. produzida por urna "vontade geral" que emerge de todo o povo ent circunstâncias favoráveis. Contudo ess4 idéia, seía o que for que se pense de sua base metafísica, niío é um argumento a fa\'ur de nada que se aproxime da igualdacie em poder político. De fato, a idéia de uma vontade geral é antagõnica com qualquer interesse tanto no in1pacto quanto na influência de cada cidadão, ''.lffi por um. Essas formas de igu..'lldade só são importantes, caso o sejam, quando é preciso resolver discordâncias, mas a vontade geral presume o ~urgi1nento, por n1eio de debates, e não de troca de favores, da unanimidade; ou, pelo menos, de uma decisão que vença por nocaute, e não por pontos.

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síveis à escolha. Mas, como percebemos, a meta participativa e outras metas substantivas da política igualitária não são tão indiscriminadas. Elas defende1n determinadas estruturas. As metas simbólicas defendem o voto simétrico dentro dos distritos, as metas agenciais, a liberdade e o incentivo, e a meta da exatidão sensível à escolha, uma ampla igualdade de impacto. Assim, a concepção geral dependente correta de democracia já assumiu uma forma bem co11creta, e devemos, portanto, utilizar a mesina_estrutura também para decidir questões insensíveis à escolha, contanto que satisfaçam duas condições. Devemos ter uma razão positiva para pensar que ttm procedin1ento diferente melhoraria consideravelmente a precisão ex ante na decisão de questões insensíveis à escolha, e esses procedimentos diferentes não devem prejudicar nenhuma das outras metas da política igualitária que delineamos. Seria ultrajante, por exemplo, insinuar que somente advogados e filósofos morais devem ter permissão para votar em questões insensíveis à escolha, pois tal insinuação, além de suas outras falhas manifestas, ignora totalmente as metas simbólicas ql1e requeren1 a simetria no voto. 'Discorrerei resumidamertte, na última seção, sobre um arranjo especial para a decisão de certas questões insensíveis à escolha que acredito satisfazer as duas condições descritas, e qtte deve, por conseguinte, fazer parte da con·cepção dependente de democracia que elaboramos. Antes, porém, tratarei da questão que adiei anteriormente, pois o parágrafo precedente nos convida a tratar dela. Entram em conflito as diversas metas que a concepção dependente deve reconhecer, de modo que devarnos comprometer e subordinar algumas delas a outras? Faz diferença ter em mente conflitos ex post ott ex ante. fJode muito bem acontecer q11e implantar a igt1aldade de voto em certa ocasião para· delerminado assunto - a construção de um estádio esportivo, por exen1plo-leve à decisão equivocada, embora um eleitorado mais possa ter, de fato, produzido a correta. A possibilidade de tal conflito ex post não requer

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transigência nem subordinação de valores na criação de instituições políticas, porém, a menos que o conflito também seja ex ante, isto é, a não ser que não pudéssemos ter criado outro conjunto de instituições que tomasse menos provável a decisão equivocada de tais questões, ainda que ao custo de prejudicar valores simbólicos ou outros valores em conflito. A questão sobre se a concepção dependente deve reconhecer a forma mais séria, ex ante, de conflito é complexa e quase impossível de se decidir antes de u1n exame do projeto institucional mais pormenorizado do q·ue estamos fazendo agora. Não surgiu nada ainda, porém, em nosso estudo limitado, para mostrar que o conflito ex ante, entre as diversas metas que a concepção dependente deve reconhecer, seja inevitável. Nesse aspecto, 'il concepção dependente de democracia parece mais firm.e do que a concepção separada mais popular que estudamos primeiro. Pois, como observamos'.. o _conflito ex ante que tal concepção adotou, entre a igualdade de influência e as metas participativa:;; da política igualitária, é evidente, profundo e inevitável.

V. Constitucionalismo e princípio Encerrarei, à guisa de recapitulação, tratando de um exemplo importante de co1no se poderia aumentar a precisão na decisão de questões insensíveis à escolha por meio de providências especiais, à custa da igualdade tanto de impacto quanto de influência, mas sem apresentar um conflito ex ante com quaisquer outras metas que estudamos. Nos F.stados Unidos (e cada vez mais em outros países também), os tribunais examinam as leis comparando-as com o que entendem ser a exigência da Constituição do país, e anulam a lei se ferir tal ei1tendimento. Esse método compromete nitidamente a igualdade vertical tanto do impacto quanto da influência. Uns poucos juízes têm poder imensamente maior do que qualquer outra pessoa sobre a decisão acerca de, por exemplo, a pena capital, a ação afirmativa,

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ou se as leis que restringem o aborto devem ser itidas. É por isso que a revisão judicial costuma ser vista como antidemocrática, mesmo por alguns de seus partidários ocasionais e também por seus iradores radicais. Se adotarmos uma concepção dependente de democracia, porém, e não uma concepção separada que faça da democracia uma questão de igualdade de impacto ou influência vertical e horizontal, não fica nada evidente que a revisão judicial seja uma instituição antidemocráticas. Precisamos testar o caráter democrático da revisão judicial, perguntando se ela comete alguma violência contra os ideais de uma concepção dependente que estejamos elaborando. Ainda não mencionei o que poderíamos chamar de metas executivas do processo político - eficiência do governo e estabilidade política, por exemplo - e, portanto, não posso considerar o argumento, apresentado e1n algu.n.s setores, de que a revisão judicial ameaça essas metas, a não ser para observar que a história oferece po11co e a esm apinião. Mas parece claro que, na forma em que existe nos Estados Unidos, a revisão judicial não transgride nenhuma meta simbólica ou de agência. Não obstrui a simetria no voto, porque é uma forma de negação do distrito, e não expressa, em si, qualq11er desprezo ou desconsideração por nenhum grupo da comunidade. Ne1n prejudica as metas agenciais da democracia. Pelo contrário, protege essas metas, oferecendo uma proteção especial à liberdade de expressão e a outras liberdades que incentivam a ação moral na política. E faz mais: proporciona um fórum político no qual os cidadãos possam discutir, se desejarem, e, por conseguinte, o faz de maneira mais diretame11te ligada a sua vida inoral do que o voto. Além disso, 11esse fórum aumen ta muito o incentivo das minorias, que praticamente n.ão têm nenhum incentivo na política comum. 8. Para consultar uma análise e uma avaliação maís profundas deste argllITICnto, ver Dworkin, Freedoni's Law (Cambridge, Mass.: 1-Iarvard University Pre~s, 1996).

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Assim, o constitucionalismo parece sair-se bem quando comparado co1n as metas participativas da política igualitária. É uma questão fundamental, portanto, se o constitucionalismo aumenta a precisão das decisões políticas. Se aumenta, então parece, nesse caso, merecer um lugar na concepção dependente de democracia. Aqui, porém, a distinção entre questões sensíveis e insensíveis à escolha é especialmente importante. Argumentei alhures que corromperia a precisão, em vez de promovê-la, se um tribunal que pratica a revisão judicial rejeitasse as decisões sensíveis à escolha feitas pelos legislativos. "fambém argumentei q11e aumenta a precisão quando o tribunal controla certas decisões insensíveis à escolha de 1.1m legislativo, especificamente as que rejeitam direitos putativos contra a decisão da maioria9. São essas questões insensíveis à escolha, é claro, que os tribunais federais reivindicam jurisdição para decidir, inclusive a questão, insensível à escolha, de quais questões são insensíveis à escolha. Não repetirei aqui o meu argumento. Se eu puder sustentar minha opinião, porém, o constitucionalismo é um aperfeiçoamento da democracia, contanto que, mas apenas contanto que, sua jurisdição esteja limitada a questões de princípici insensíveis à escolha. VI. Coda Há muito mais a dizer sobre este assunto, inclusive qualificações do que eu já disse aqui, algmnas das quais se encontram em Freedom's Law e mais adiante neste livro. Mas quero, ao encerrar, salientar um tema central deste capítulo. Se a comunidade for genuiname11te igualitária no sentido abstrato- se aceitar o imperativo de que toda a comunidade deve tratar seus membros individualmente com igual consideração -, não pode tratar o impacto ou a influê11cia

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9. Ver, p. ex., Dworkin, A Matter of Principie, pp. 33-71; Law's ]:mpire (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1986), pp. 87-113.

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política como se fossem recursos a serem divididos segundo alguma medida de igualdade, da mesma forma que se poderia dividir terras, matérias-primas ou investimentos. A política, em tal comunidade, é uma questão de responsabilidade, e não uma dimensão a mais da riqueza.

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A comunidade liberal

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amos os dois últimos capítulos analisru:i.do o lugar de dois ideais políticos fundamentais- a liberdade e a democracia - em uma sociedade dedicada à igualdade, quando esta é compreendida como algo que requer a igualdade de recursos, em vez de igualdade de bem-estar durante toda a vida. Neste capíhtlo, vamos analisar o lugar, em tal sociedade, de outro ideal político da comunidade. Vamos nos concentrar num problema antigo: a ética convencional deve ser imposta por intermédio do direito penal?1 A Suprema Corte estava certa em Bowers versus Hardwick, sustentando, contra o desafio constitucional, a lei da Geórgia que considera crime a sodomia?2 Acredita-se que a tolerância liberal, que afirma com insistência que é errado o governo recorrer a seu poder coercitivo para impor a homogeneidade ética, destrói a comunidade, porque o âmago da co1nunidade é um código de ética comum. Argumentarei que, se a tolerância li-

1. Neste livro distingo a ética da tu oralidade. A ética, conforme emprego o termo, contém convicções sobre quais tipos de vida são boas ou ruins para a pessoa levar, e a moralidade contém princípios Sl!bre como a pessoa deve tratar as outras pessoas. Assim, a questão de que trato é se a comunidade polítiça deve recorrer ao direito p!.'nal para obrigar seus membros a levar o que a Jnaioria julga ser a vida boa, e não se deve recorrer à lei para obrigá-los a se comportar de maneira justa para com os outros. 2. 478 U.S. 186 (1986).

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beral for entendida contra o pano de fundo da concepção de igualdade que tenho defendido, tal tolerância não só é compatível com a mais atraente concepção de com·unidade, mas indispensável a ela. Tem-se reconido a muitos argumentos distintos, que empregam conceitos bem diversos de comunidade, para atacar a tolerância liberal de várias maneiras. Destaco quatro desses argumentos. O primeiro provém da teoria democrática e relaciona a comunidade com a maioria. Em Bo.wers, o juiz Byron VVhite afirmou que a comunidade tem o direito de apelar à lei em apoio a sua visão de decência ética3: tem o direito de impor suas idéias relativas à ética só porque é a maioria. O segundo é um argumt;pto çom base no paternalismo. Afirma que na genuína comúni~ade,poh tica cada cidadão tem responsabilidad~ pelo bem'- estar dos outros membros e deve, portanto, emprêgar o ro::J-er político para corrigir aqueles c11jas práticas desviantes arruinarão suas vidas. O terceiro é o argumento do interesse próprio, amplamente entendido. Ele condena o atomismo, a idéia de que os indivíduos são auto-suficientes, e salienta a grande diversidade de maneiras - materiais, intelectuais e éticas -pelas qttais as pessoas precisam da comunidade. Faz questão de afirmar que a tolerância liberal solapa a capacidade da comunidade de atender a essas necessidades. O gt1arto, que chamarei de argumento de integração, afinna q11e a tolerância liberal depende de uma distinção ilegítima entre a vida do h1divíduo dentro da comunidade e a vida da comunidade em sua totalidade. Segundo esse argumento, ovalor ou a bondade da vida de qualquer cidadão é apenas reflexo e função do valor da vida da comunidade na qual ele vivl". Assim, para ter uma vida bem-sucedida, os cidadãos devem votar e trabalhar a fim de garantir que seus concidadãos levem uma vida decente. Cada um desses argumentos apela para o conceito de comunidade de maneira gradativamentc m8js substancial e 3. Id. 192-6.

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menos redutora. O primeiro argumento, de que a maioria democrática tem o direito de definir padrões éticos para todos, utiliza a comunidade apenas como um símbolo de determi· nado grupo político numericamente definido. O segundo ar·· gumento, que incentiva o paternalismo, dá mais substância ao conceito: define comunidade, não como 1nero grupo político, mas como as dimensões de uma responsabilidade compartilhada e distinta. O terceiro argumento, de que as pessoas precisam da comunidade, reconhece a comunidade como uma entidade autôno:ma, como fonte de uma vasta série de influências e vantagens não redutíveis às contribuições de determinadas pessoas, un1a por uma. O quarto argumento, sobre a identificação, personifica ainda inais a comunidade e define uma noção na qttal a comunidade política não é só indepen dente dos cidadãos individuais, mas os precede. Neste capíhtlo, concentro-me nesse quarto argumento, em parte porque não o discuti antes, todavia também porque acho verdadeira e valiosa sua idéia fundamental, de que as pessoas devem iden tificar seus próprios interesses com os da comunidade política.Bem-entendida, a idéia não oferece um argu.mento contra a tolerância liberal e nenhum apoio ao caso Bowers. Pelo contrário, o liberalismo oferece a melhor interpretação desse conceito de comunidade e a teoria;liberal a melhor explicação de sua hnportância.

1. Comunidade e democracia Alguns liberais acham que a tolerância liberal pode ser totalmente justificada pelo princípio do dano de John Stuart Mlll, segundo o qual o Estado só tem direito de restringir a liberdade de alguém para evitar que .faça mal a outros, e não a si mesmo4 . Em Law, Liberty, and Morality, f-1. L. A. Hart argumentava que esse princípio exclui leis que criminalizem 4. J, S. Jvlill, 011 L.iberty (Harmondsworth: Penguin, 1982), pp. 68-9. [Trad. bras. A liberdade/Ut11itarismo, São Paulo, MiJ.rtins Fontes, 2000.]

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A VIRTUDE SOBERANA

atos homossexuais5 • No entanto o argumento de Hart só tem solidez se limitarmos os danos à lesão física a pessoas ou propriedades. Toda comunidade tem um ambiente ético, e esse ambiente influi t1a vida que seus membros podem levar. A comunidade qt1e tolera o homossexualismo e na qual o homossexualismo tem presença forte oferece um ambiente ético diferente daquela em que o ho·mossexualismo é proibido, e algumas pessoas se consideram prejudica·· das pela diferença. Acham muito mais difícil, por exemplo,

educar os {ilhas de modo que absorvam os instintos e os valores que aprovam. O ptimeiro argumento contra a tolerância liberal declara que se deve decidir as questões acerca do formato do ambiente ético da comunidade democrática de acorqo com a vontade da maioria. Não argumenta simplesmente que quaisquer decisões que os políticos eleitos pela·maioria tomem devem ser aceitas como leis, mas que essas autoridades políticas devem tomar decisões que expressem as preferências de 11ma maioria, e não de qualquer minoria6. Isso é o majoritarismo substantivo, em vez do meramente procedimental. O argumento não presume que as visões morais de qualquer minoria seja degradante ou perversa, mas apenas que, quando há divergências com relação ao ambiente ético adequado para a comunidade, é injusto permitir que a minoria dite a vontade da maioria. O argumento presume, no entanto, que o perfil do ambiente ético da comunidade deve ser decidido coletivamente, na base do "tudo ou nada", para que ou a maioria 5. H. L. A Hart, Law, Liberty, and Morality (Stanford. Stan[ord Universí.. ty Press, 1963). 6. Poderíamos nos opor av ntajoritarismo processual, bem corno ao substantivo, no caso da imposição da morali poderíarnos dizer que essas qucsti3es devem ser decididas, não pelas autoridades eleitas, mas por um tribur,al constit:ucional como a Si.:.píerna Corte. :Mas não tratarei dessa questão processual aqui Ver Capítulo 4 e Ronald Dworkin, "Equality, D~roocracy, and Constitution: We the People in Courtp, Alberta Law Revieu1 28 (1990): 324.

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TEORIA.

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ou alguma minoria decida seu formato. Se tal suposiçã.o fosse verdadeira, o argumento seria nitidamente poderoso. É preciso, de fato, decidir algumas questões de maneira próxima à do "tudo ou nada" e, nessas situações, a visão de um grupo deve prevalecer, excluindo totalmente qualquer outra. fiá agora um debate acalorado sobre uma questão: a nação deveria adotar uma versão específica de Strategi.c Defense Initiative (IDE-Iniciativa de Defesa Estratégica)? Não obstante, a democracia não exige que todas as decisões políticas sejam "tudo ou nadan. Pelo co11trário, em uma esfera fundamental da vida - o ambiente econômico -, a justiça requer exatamente o oposto. O arnbienle econômico no qual vivemos - a distribuição de propriedade e preferências que gera oferta, pro~ura e preços - afeta-nos de inaneira ainda mais óbvia do que o nosso ambiente ético. Sou prejudicado pelo fato de possuir menos propriedade do que poderia, e de outros terem preferências diferentes daquelas que eu poderia querer que tivessem. O ambiente econômico pode frustrar meus esforços de criar meus filhos com os valores que posso querer que tenham; não posso, por exemplo, educá-los para que tenham os conhecimentos e a experiência de colecionar obras-primas do Renascimento. Porém, mesmo que a maioria dos cidadãos quisesse atribuir todos os recursos econômicos asi mesma, fazê-lo não seria justo para ela. A justiça exige que a propriedade seja distribuída em parcelas justas, permitindo a cada individuo sua fatia de influência.sobre o ambiente. económico. As pessoas discordam, evidentemente, sobre o que co11stitui uma parcela justa, e boa parte das discussões políticas moden1as expressa essa discordância 7 • Mas o meu presente argumento não depende de i1enhuma 7. Em minha opinião, as parcelas justas são as que igualam, o quanto for poss1vel, os custos de oportunidades pata os outros dos recursos materiais que cada pessoa tem. Ver Capítulo 2. Restrinjo o teste de custo - oporturúdade aos recursos materiais (ou, como digo às vezes, irnpessoals) -, pois tal teste não é apropriado para recursos pessoais con10 talentos e saúde.

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concepção específica de justiça distributiva, pois qualquer teoria remotamente plausível rejeitará o princípio do controle majoritário exclusivo. Se aceitarmos uma noção paralela de a1nbiente ético, devemos rejeitar a afirmação de que a teoria democrática atribui à maioria o controle completo desse ambieftte. Devemos fazer questão de que o ambiente ético, bem como 0 econômico, seja produto das escqlhas de cada pesso~i.. Ê claro que ne11hum desses ambientes deve ser totalmente entregue a escolhas individuais não regulamentadas. Precisamos de leis que protejam o ambiente econômico contra 0 roubo e a monopolização, por exemplo, e de leis de zoneamento que respondam às externalidadcs do mercado. Essas leis ajudam a garantir, até o ponto em que for possível, que o ambiente económico tenha a forma que teria se os recursos fossem distribuídos com justiça e os mercados fossem perfeitos. O ambiente ético requer uma legislação com o mesmo espírito, para'. limitar o impacto de uma minoria no ambiente ético ao impacto que seu número e suas preferências justifiquem. As leis de zoneamento que restringem. a prática de atos criminosos em potencial contra locais espe'ciais ou privadosaten.dem a esse fim, por exemplo. Contudo restringir o impacto de uma minoria no ambiente ético por meio de zoneamento é muito diferente de roubar à minoria qualquer tipo de imracto, que é a proposta do argumento majoritarista. Se tratarmos o ambiente ético da mesma forma que tratamos o ambiente econômico - permitindo-lhe que seja constituído por decisões individuais fundame11tadas em uma distribuição justa de recursos-, então rejeitaremos a afirmação majoritarista de que a maioria tem o direito de eliminar tudo o que achar prejudicial no ambiente ético. Cada mernbro da maioria só faz jus a um impacto razoável sobre seu próprio ambiente- o mesmo impacto de qualquer outro indivíduo. Não faz jus ao ambiente que lhe facilitaria a cri.açfi:o dos filhos com as opiniões que defende. Precisa

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tentar fazer o possível, para esse fim, no ambiente que a justiça lhe proporciona. Existe algum motivo para tratar o ambiente ético de maneira diferente do ambiente econômico? Algumas q11estões económicas, como a IDE, devem ser decididas coletivamente, de uma forma ou de outra, e não como tlma resultante de forças individuais. E o nosso senso de integridade e justiça requer que decidamos algumas questões de princípio da mesma maneira para todos 8 • Por exemplo, as autoridades não deveriam ter como objetivo executar determinado percentual de assassinos condenados, de acordo com o percentual de cidadãos que defendem a pena de morte. Mas nenhum.a dessas razões para tomar algumas decisões políticas coletivamente é argumento para determinar o ambiente ético da comunidade dessa forma. Não há motivo prático para qu€' esse ambiente seja exatamente o que algum grupo acha que deve ser. E já que os diversos atos e decisões que contribuem para a fom1ação do ambiente ético não são mais atos de governo do que as diversas decisões econômicas que determinam o ambiente econô1nico, não há possibilidade de o governo violar a integridade ao permitir que os indivíduos tomem essas decisões de diversas mane'tras. Não devemos sujeitar os ambientes ético e econômico a regimes diferentes de justiça, pois não são dois ambientes distintos, mas aspectos h1terdependentes do mesmo ambiente. O valor dos recursos que alguém controla não é decidido somente pelas leis da propriedade, mas também por outros setores do direito, que estipulam como essa pessoa 8. Há uma expfo.nação do requisito da integridade e das questões de principio que exigem que sejam decididas de maneira ignal para todos em Ronald Dworkin, l..aw's Etnpire (Cambridge, Mass.: I-Iatvard University Press, 1986), esp. cap. 6. Para consultar uma dis~ussão mais ampla sobre a diferenr,;a entre questões de princípio como as que citei no texto, e questões de política como a IDE (Strategic Defense lnítiative - Iniciativa de Defesa Estratégica), ver Dworkin, A Matter of Principie (CE1mbridge, l\.1ass .. IIarvard University Press, 1985), esp. cap. 3.

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pode utilizar tal propried.ade. Assiln, a legislação moralista, que discrimina entre alguns usos da propriedade ou do lazer, sempre afeta preços e valores até certo ponto. Em algumas circunstâncias esse efeito é significativo: proibições moralmente inspiradas são um exemplo. Quando se julga se é justa determinada distribttição dos recursos de uma comunidade, deve-se contemplar o grau de liberdade dos cidadãos9. Se fizermos questão de que o valor dos recursos que as pessoas têm seja detenninado pela interação de escolhas individuais, e não por decisões coletivas da maioria, então já decidimos que a maioria não tem o direito de de(idir que tipo de vida todos devem levar. Uma vez que itamos que os ambientes económico e ético são unificados, devemos, em outras palavras, itir a tolerância liberal em questões de ética, porque qualquer visão contrárta nega a unidade. O argumento majoritarista que estamos analisando é, politicamente, o argumento mais poderoso contra a tolerância hberal. Teve lugar evidente na opinião da maioria no caso Bowers. Esta parte da nossa discussão geral é, portanto, de considerável importância prática. Mas não se devem esquecer seus limites. Destina-se somente a.o argumento majoritarista; não deve ser interpretada como un1a declaração sobre o fundamento exclusivo da tolerância liberal, ou que deposita todo o valor da liberdade em uma analogia econômica. Nem pretende definir nenhum direito especial a liberdades especificamente importantes, como a líberdade de expressão 011 de associação. Ela nega apenas a premissa essencial do argumento majoritarista, de que o formato do ambiente ético deve ser deter1ninado na base do "tudo ou nada" pelos desejos da maioria. Se o conceito de corr.unidade tem um papel importante na crítica da tolerância liberal, deve ser em um sentido mais robusto do que simplesmente ser um nome para uma unidade política sobre a qual vagueia a regra majoritária. 9. Esse argumento é amplamente desenvolvído, e suas conseqüências para o liberalismo descrito, no Capítulo 3.

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II. Comunidade e consideração

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O segundo argumento comunitário, o do paternalismo, apela à idéia de maneira mais robusta. Começa com a idéia atraente de que a verdadeira comunidade política deve ser .mais do que uma associação hobbesiana de vantagens mútuas, na qual cada cidadão considera todos os outros como meios úteis para seus próprios fins; deve ser mna associação em que cada pessoa tenha um interesse especial e desinteressado no bem-estar das outras. O argumento acrescenta que as pessoas genuinamente interessadas pelas outras se interessam tanto pelo bem-estar crítico quan-to pelo be1n-estar volitivo. Preciso explicar essa diferença, pois é fundamental para o argumento do paternalismo10 . As pessoas têm interesses em dois sentidos, duas maneiras pelas quais suas vidas podem melhorar ou piorar. O bem-estar volitivo melliora quando o indivíduo tem ou alcança o que quer11 . O bem-estar crítico, porém, só melhora quando a pessoa tem ou alcança o que deve querer, isto é, as realizações ou vivências que tomariam sua vida pior se a pessoa não as qttisesse. Podemos fazer essa distinção subjetivamente, como a diferença entre duas maneiras de entender 011 considerar os próprios interesses. Eu mesmo, por exemplo, acho que algumas das coisas que quero são interesses volitivos. Quero boa comida, ir menos ao dentista e velejar bem, e minha vida melhora quando consigo isso. Contudo, acho que não tenho obrigação de querer essas coisas, ou que minha vida seria pior se, por algum motivo, 10. A discussão desta seção baseia-se em material contido em aulas que ministrei na Urúversidade de Stanford sob os auspícios da Tanner Foundation. Serão publicadas na coleção de aulas da Tanner Foundation a ser lançada pela Fundação. Ver Capítulo 6. 11. Essa caracterização dos interesses volitivos ignora o fato de que algumas das coisas qtt(' a pessoa deseja podem entrar em conflito com outras coisas que também queira. Mas as pormenorizações necessárias para se considerar tal fato não são necessárias para a distinção geral entre interesses volitivos e críticos que faço no texto.

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eu não as tivesse. Todavia tenho uma opinião diferente com relação a outras coisas que quero, tais cotno ter uma relação próxima con1 meus filhos e alcançar algum êxito no trabalho. Acho que ter um relacionamento próximo com ineus filhos não é importante só porque quero; pelo contrário, quero porque acredito que a vida sem tais relacionamentos empobrece. Fazemos a nLesma distinção de maneira objetiva, isto é, não entre duas maneiras de interpretar esses interesses, mas entre duas classes de interesses que as pessoas realmente têm. A5 pessoas podem não reconhecer seus interesses críticos. 1'em sentido dizer que quem não tem consideração pela amizade, pela religião ou por trabalhos difíceis, por exemplo, leva uma vida mais pobre por esse motivo, co11corde ou não. "fambém emitimos juízos críticos sobre nós mesmos; é comum que apenas no fim da vida as pessoas percebam que ignoraram o que só entãQ descobrem ser realmente importante na vida12. A diferença é complexa e pode ser explorada e criticad,a de diversas maneiras. Alguns, por exe1nplo, serão céticos com relação à idéia dos interesses ou bem-estar críticos. Talvez essas pessoas pensem que, já que ninguém pode provar que é de interesse crítico querer algo que elas não querem, a idéia do bem-estar crítico está equivocada. Não tentarei responder a essa objeção cética. Vou supor, como a maioria de nós faze1nos em nossa vida normal, que todos temos arnbos os tipos de interesses. Podemos recorrer à difere.nça entre interesses volitivos e críticos para diferenciar duas formas de paternalismo. O paternalismo volitivo presume que a coação pode, às vezes, ajudar as pessoas a al12. A distinção entre bem-estar crítico e volitivo não está entre o que realmente t de meu interesse e o que só acho que ê. Meus interesses volilivos são genuínos, reais, e não meros reflexos dos 1neus juízos atuais, que posso mais tarde decidir que são erros, sobre onde estão meus interesses críticos. Os dois tipos de interesses, as duas modalidades de bem-estc;r, 8ãO dilerentcs. Posso querer alguma coisa i11teligi\,elmt>nte sem achar qlle vai melhorar minha vida; de fato, urna vida na qual alguém só desejasse o que achas~;c ser de seu inlere8se crítico sei ia lnna vida triste e ridícula.

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cançar o que querem, e está, por isso, em seus interesses volitivos. O paternalismo crítico presume que a coação pode, às vezes, oferecer às pessoas uma vida melhor do que a que pensam ser boa e, por conseguinte, em certas ocasiões está entre seus interesses críticos. Esse segundo argu1nento comunitário apela ao paternalismo crítico, e não ao volitivo. Obriga-nos a enfrentar uma questão filosófica acerca do bem-estar crítico. Podemos avaliar a vida de alguém de duas formas. Olhar, primeiro, os componentes de tal vida: os acontecimentos, as exper.iências, as associações e as realizações que a com-· põem, e perguntar se em nossa opinião esses componentes, na combinação que os encontramos, perfazem uma vida boa. Em segundo lugar, examinar as atitudes da pessoa. Podemos perguntar como ela julga esses componentes; perguntar se essa pessóa os procurou ou se os considera valiosos; em resumo, se confirma que atendam a seus interesses críticos. Que opinião deven1os ter acerca do relacionamento entre essas duas maneiras de encarar o valor crítico de uma vida? Devemos distinguir duas respostas. A tese cumulativa afirma que os componentes e os endossas são elementos separados do valor. Se a vida de alguém tem os componentes da boa vida, então tem valor crítico. Se essa pessoa endossa esses· componentes, seu valor aumenta. O endosso é o glacê do bolo. Porém, caso não endosse, o valor dos co1nponentes pem1a11ece. A tese constitutiva, por outro lado, afirma que nenhum componente contribui para ovalor da vida sem endosso: se un1 misantropo é muito amado, mas despreza o amor por julgá-lo inútil, sua vida não é 1nuito mais valiosa para o afeto de outre1n. A tese constitutiva é preferível por vários motivos. A tese cumulativa não consegue <-.'X.plicar por que a boa vida tem valor nítido para a pessoa que a vive. E é implausível pensar que algué1n possa levar uma vida melhor se ela for avessa a suas convicções éticas mais profundas. Se aceitarmos a tese constitutiva, podemos responder ao argumento

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da pcrspectiva do paternalismo crítico, e podemos cl1amá·· la de sua fonµa crua ou direta. Imaginemos que alguém não leve uma vida homossexual por medo de punição. Se essa pessoa jamais endossar a vida que leva como superior à que levaria de outra forma, então sua vida não melhoro11, nem no sentido crítico, com as restrições paternalistas que detesta. Devemos reconhecer um objetivo mais sutil no paternalismo crítico, porém. Suponhamos que o Estado implante uma combinação de restrições e incentivos, de modo que o homossexual se converta e acabe endossando e irando a conversão. A vida dele melhorou? A resposta Jevanta uma questão que desprezei até aqui: as condições e as circunstâncias do endosso genuíno. Deve haver algumas restrições ao endosso; caso contrário, o patemali$mo crítico sempre se Justificaria acrescentando lavagem cerebral química ou elétrica ao seu regime. Devemos distinguir as circunstâncias aceitáveis das inaceitáveis do endos·so. A diferença, como aprendemos na história das teorias liberais da educação, é difícil delinear, rnas qu":l_quer relato ~dequado de circltnstâncias aceitáveis, creio, conteria a seguinte proposição. Não tnelhorariamos a· vida de ninguém, mesmo que a pessoa endossasse a mudança que realizamos, se os mecan.ismos elt!pregados para a realização da mudança diminuíssem s-i.1a'capacidade de analisar os méritos críticos da 1nudança de modo reílexivo. As ameaças de punição penal corrompe1n em vez. de.aprimorar o juízo crítico, e mesmo que a conversão a que essas ameaças induzem seja sincera, ela não pode ser considerada genuína ao decidir se as ameaças melhoraram a vida de alguém13. O segundo argumento comunitário é, portanto, autodestrutivo. 13. Não tratarei de uma forma de paternalismo crítico mais sutil e acadêmica, embora ela levante questões difíceis e importanres sobre 0 çonceito do bem-estar çr(tico. Suponhamos que o paternalismo crítico não se de.~tine à geração atual de homossexuais, mas ao futuro remoto. Imagine1nos també~

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III. Interesse próprio e comunidade

A. Necessidades rnateríais t-

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Atualmente é uma idéia familiar na teoria política, betn como na teoria social, que as pessoas precisam de comunidades, e que a vida social é natural e essencial para os seres 11umanos. O terceiro argumento comunitário declara que a tolerância torna as comunidades menos capazes de servir às diversas necessidades sociais de seus mem-· bros. Na década de 1950, Lord Devlin ofereceu uma versão bem sin1ples desse argumento, embora também implausível, na crítica ao Relatório Wolfenden, que recomendava a liberalização das leis contra o homossexualismo na Inglaterra14. Devlin disse qtte a comunidade só consegue sobreviver se alcanÇa.r a homogeneidade moral, amparada por um senso de ofensa intuitiva, e que a tolerância é, portanto, uma espécie de traiçãols. Sua pretensão foi muito atacada e parece que foi refutada pela teimosa sobrevivência das famosas comunidades políticas tolerantes como a da Escandinávialó.

que pretende eliminar o homossexualismo, como estilo de vida, do menu conceitua!, para que as gerações futuras não consigam nem imaginar tal vida. É de duvidar muito que tal projeto tenha êxito. Mas ad1nitamos que tivesse êxito e também (o que n'uitos de nós não accitaria1n) que a vida homossexual é inerente-mente umn >ida rulrn. Esse tipo de paternalis1no conceitua! seria, então, do interesse das pessoas que teriam levado uma vida homossexual se esse tipo de vida estiwsse entre os conceitos íveis? Algum paternalismo conceih1al cer·trunente seria do interesse da justiça; o mundo seria melhor ~e ninguém pudesse nen1 imaginar uma vida de genocidio ou racls1no, por exemplo. Mesmo assim, parece-me estranho pensar que a vida de un'a pessoa poderia tornar-se mrdhor no sentido crítico, com a repressão de sua imaginação. 14. Patri~k Devlin, The EnforcementofMorais (London: Oxford University Press, 1<J65). Ver Com1nil:tee mi fiomossexual Offrnses and Prostitution: The Wolfenden Report (1957; An1er. ed. 1963). 15. Devlin, 11ie Enforcement of Morais, pp. 9-15. 16. O próprio Devlin disse mais tarde que não pretendia afirmar que tolerar o homossexLtalismo subvel'lería a cornunidade, rrws so1nente que a

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Existem, porém, versões mais elaboradas do terceiro argumento. Elas não afumam que a tolerância destrói a comunidade, das raízes às rainificações, contudo que destruirá a capacidade da co1nunidade de realizar qualquer função social essencial. Outras versões do argumer1to citam funções diversas como essenciais, mas um co11junto de necessidades sociais é óbvio: o povo precisa da segurança e das vantagens econômicas da divisão do trabalho. Ninguém poderia levar uma vida humana adeq11ada sem os mecanismos da comunidade que racionalizam a produção e o consumo, fornecem bens públicos como a polícia e as forças armadas, e aliviam os dilemas dos prisioneiros. Todavia não há razão para pensar que esses benefícios instrumentais da comunidade requeiram a homogeneidade moral. Não há prova de que uma sociedade não liberal realiza suas promessas de maneira mais eficiente do que a liberil.

B. Necessídades intelectuais Não obstante, as pessoas dependem da comunidade de modos que vão além desses evidentes benefícios econôn1icos e de segurança. Precisam de uma culhtra em comun1 e, em especial, de uma língua comum para terem personalidade; e cultura e língua são fe11ômenos sociais. Só podemos ter as idéias, as aspirações e a::; convicções que forem possíveis dentro do vocabl.Üário que a língua e a cultura oferece111. Portanto, son1os todos, evidente e profundamente, criações da comunidade. Essa dependência evidente 11ão insinua, porérn, qt1e a comwlidade deva ser moralmente ou de qualquer outra forma homogénea para beneficiar seus mem-

sociedade poderia ser ameaçada pela tolerância e deve, portanto, rejeitar qualquer princípio que exclua to<.almentc a intolerância. Ver Patrick Devlin, "Law, DemoLTacy, and l"1orality", L1niversity of P~~1nsyloania Law R.ei.>iew 110 (1962): 635-641en'14.

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bros da maneira certa. Pelo contrário, o abastecimento cultural e lingüístico é n1ais rico e, por conseguinte, obviamen te mais vantajoso nas comunidades pluralistas e tolerantes. Evidentemente, algumas pessoas (talvez muitas) querem pertencer a uma sociedade n1oralmente homogênea e têm uma sensação profunda de perda, com a qual devemos nos solidarizar, quando há alguma perturbação aos padrões éticos tradicionais. Mas essa questão, embora importante, não se refere ao êxito da comunidade no fornecimento das necessidades intelectuais de cultura e língua. Toca à justiça distributiva a questão levantada pelo primeiro argumento comunitário sobre os modelos certos a adotar na distribuição de influência sobre o ambiente ético. Michael Sandel e outros propam uma forma particularmente forte da afirmação de que as pessoas precisam da comunidade poi motivos tanto intelectuais qttanto materiais. Isso afirma (no meu entendimento) que as pessoas precisam da comunidade não só pela cultura e pela língua, mas também pela identidade e auto-referência, pois elas só poden1 se identificar, a si mesmas, como membros de alguma comunidade à qual pertençam17• Só posso, portanto, pensar de mim mesmo como um americano, ou um professor de Oxford, ou um fã do Red Sox. Há. duas manei.ras de interpretar essa afir1nação estrita. Há quem faça disso uma questão da lógica filosófica: sou necessariamente americano porque, se i1ão fosse, não seria a pessoa que sou18• Mas isso não diz absolutamente nada acerca do tipo de relações que preciso ou devo ter com outros americanos, ou sobre o teor ou o caráter de nossa comunidade política. Com certeza não se segue, nem parece plausível, que qualqu.er comunidade da qual eu seja necessariamente membro deva 17. Michael J. Sande], Liberalism and the Liniits of Justice, 2° ed. (Cambridge: Cambridge University Press, 1998), pp. 62-5, 179-83. 18. Os leitores interessados n
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ser moralmente homogênea, ou que deva rejeitar o plura·lismo moral em favor da intolerância para proteger essa ligação íntima. A set.runda interpretação da auto-referência parece mais pertinente. É uma pretensão sobre a possibilidade fenome-nológica: as pessoas não podem distan1..iar-se, quando pensam no próprio bem-estar, de certos tipos de associação ou ligação com a comunidade. Um católico profundamente crente, por exemplo, não poderia nem começar a refletir sobre considerar ou não seu catolicismo importante, pois o catolicismo seria essencial demais em sua personalidade para que perguntas desse caráter fossem sensatas para ele. Essa interpretação do terceiro argumento comunitário é a seguinte: em wna comunidade moralmente homogênea, as pessoas se identificam com a moralidade coipum da mesma forma que o católico se identifica com o catolicismo. A con1unidade, para elas, é uma comunidade de convicções em comum que ajuda a formar sua própria identidade. Se a comunidade tolera desvios, tais cidadãos sofrerão o choque de perder suas raízes. Thmbém perderão a co·nexão com uma fé moral que é essencial à auto-identificação adequada. A fenomenologia em que se fundamenta esse argumento parece equivocada, ou pelo menos exagerada. Não há dúvida de que é irnpossível destacar-se de todas as associações e ligações ao pensar em que tipo de vida levar. Ninguém consegue pensar de maneira inteligível sobre tal questão enquanto prescinde de todos os aspectos do contexto em que vive. Assim, ninguém pode se qt1estionar integralmente de u1na vez só. Mas não se conclui que para cada pessoa exista alguma conexão ou associação tão fundamerttal que não possa ser destacada para inspeção, enquanto as outras permanecem e111 seus lugares. É eq11ívoco ainda mais grave pensar que isso é verdadeiro para a mesma associação ou conexão e para todos os membros, ou que essa conexão 11niversalmente não destacável se dá com uma ética sexual em comum, que deve ser partilhada dentro da comu-

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nidade política, e não dentro de alguma comunidade menor ou diferente de, digamos, amigos ou fiéis. Mesmo que aceitássemos totalmente essa estranha coleção de suposições, o argumento ainda seria vulnerável, pois depende de outro conjunto de suposições sobre as conseqüências da tolerância. Presume, em primeiro lugar, que quando a comunidade política tolera brechas em algum princípio da ética ou da moralidade convencional, essa to-· lerância deve, inevitavelmente, abalar o próprio apego do cidadão a esse pri11cípio, já que sua autopercepção se defi ne, em parte, pela adesão a ele. No entanto a força das con vieções das pessoas não depende da implantação ou mes'" mo da popularidade dessas convicções na comunidade política. Muitos católicos americanos estão tão profundamente comprometidos com seu catolicismo quanto a maioria dos católicos espanhóis. Em segundo lugar, o argumento presume que se as pessoas se desapegarem de suas convicções anteriormente não questionadas, sua personalidade se desintegra. Mas por que as pessoas não seriam capazes de reconstituir sua noção de identidade, construída ao redor de um conjunto um pouco diferente e mais tolerante de condições, quando sua fé na moralidade, que associam à farru1ia ou à comunidade, é, por algum motivo, abalada?

C. A necessidade de objetividade Até aqui analisamos argumentos con1unitários elaborados com base nas afirmações de que as pessoas precisam dos recursos materiais e intelectuais fornecidos pela comunidade, e que precisam de certo apego à comunidade para construir a própria identidade. Precisamos agora to1nar conhecimento de um argumento mais sutil: as pessoas precisam de uma comunidade moralmente homogénea como func1a1nento conceitual necessário à vida moral e ética. Precisam dessa fundamentação porque, na frase esclarecedora de Philip Selznick, a ética precisa de uma âncora -- alguma

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posição objetiva, externa às convicções do agente- e a única âncora possível são as convicções co1nuns e não questionadas da comunidade política do agente19. O primeiro desses dois enunciados, que a ética e a moralidade precisam de uma âncora, parece certo. Nossa experiência ética trata a questão de como viver bem como uma questão que req·uer reflexão e juízo, e não apenas escolha. Achan1os possível nos equivocar sobre que tipo de vida é boa, e que t1m erro grave é uma tragédia. Contudo o qtte significa o segundo enunciado, de que a comunidade moraln1ente homogénea é a úntca âncora possível? Talvez signifique que as pessoas acharão que seus juízos éticos e morais só têm fundamento - são verdadeiros independerttemente de acharem qtte sejam verdadeiros quando seus juízos são confirmados por uma moralidade convencional não questionada. Mas as pessoas.que defendem opiniões anticonvencionais, ou n1esmo excênhicas, estão caracteristicamente con"'l.':ictas de que essas opiniões são objetivamente firmes. (De fato, quanto mais anticonvencional a opinião, mais provável será que seu defensor reivindicará para ela uma autoridade transcendente.) Assim, precisamos entender de outra maneira o segundo enunciado: devemos entender que qualquer pessoa que afirme a objetividade fora da convenção está cometendo tun erro filosófico. Assim entendido, pode-se achar que o segundo enttnciado defende o argumento co1nunitá1io. Se a única forma disponível de objetividade na ética e na ino.ral for a objetividade da prática convencional, a comunidade tolerante e pluralista confisca de seus membros a única fonte possível de âncora ética e moral que precisam. f1á, porém, u1na dificuldade evidente nesse argumento. A objetivridade que as pessoas querem (e presu1nem que têm) para suas co.nvicções morais e éticas não é a versão diluída <.1ue este argumento oferece: a maioria das pessoas re19. Ver Philip Selznick, "The Jdea of a Cornmunitarian Morality", Calí-

Joniia L11w Review 75 {1987): 445.

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jeita implícita ou explicitamente a âncora oferecida. Para. doxalmente, no presente argumento, a única parte firmíssima da nossa moralidade convenciona\, compartilhada em todas as outras ilivisões, é a convicção de segunda ordem de que os juízos morais e éticos não podem ser transformados em falsos ou verdadeiros por consenso, que têm força intercultural, que não são, em resumo, criações da cultura ou da comunidade, mas juízes delas. A grande popularidade desse objetivismo vigoroso não defende, é claro, sua verdade, ou mesmo sua coerência filosófica, e aqui nenhum dos dois é considerado. Afirmo somente que, quando a sociedade gera essa atitude crítica, a qual insiste que seus próprios costumes e convenções sejam sempre vulneráveis a testes e revisões em comparação com algum padrão mais alto e mais independente, sacrifica irrevogavelmente o tipo de objetividade enraizada em convenções, disponível dentro de uma comunidade menos crítica e mais singela.

IV. Integração com a comunidade

A. Integração Chego, finalmente, ao quarto argumento comunitário (e, na minl1a opinião, o mais importante e interessante) contra a tolerância liberal. O liberalismo, segundo muitos de seus críticos, pressupõe uma nítida diferença entre o bemestar das pessoas e o bem-estar da comunidade política à qual pertence1n. O quarto argwi1ento contra a tolerância rejeita essa diferença. Afirma que a vida de cada pessoa e a de sua comunidade estão integradas, e que o êxito essencial de qualquer uma dessas vidas é um aspecto da bondade de toda a comunidade e, portanto, dela dependente. Chamarei as pessoas qt1e aceitam essa tese (aclotando o jargão da moda) de republicanos cívicos. Eles adotam, com relação à saúde moral e ética das comunidades, a mesma

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atitude que adotam com relação a si mesmos. Os liberais entendem a questão de se a lei deve tolerar ou não o homossexualismo como uma pergunta sobre se as pessoas têm o direíto de impor às outras suas próprias convicções éticas. Os republicanos cívicos compreendem-na como uma pergunta sobre se a vida normal da comunidade, da qual depende o valor essencial da vida de seus próprios membros, deve ser sa11dável ou degenerada. Segundo o argumento da integração, quando se reconhecer como equivocada a diferença entre o bem-estar pessoal e o comunitário, e então o republicanismo cívico flórescer, os cidadãos ficarão tão preocupados com a solidez da saúde ética da comunidade, inclusive co1n as visões de moralidade sexual que patrocina ou desestimula, quanto Cóm a justiça ou generosidade de seu sistema de tributação ou de ajuda a países estrangeiros. Ambos s~o aspectos da saúde geral da comunidade, e o cidadão integrado, que reconhece que seu próprio bem-estar provém do bem-estar da comunidade, deve preocupar-se com a saúde geral da comunidade, não com um determinado aspecto dela. Esse é um argumento importante, embora conduza a um grave equívoco. Devo dizer logo o que considero bom no argtunento e em que, na minha opinião, ele se equivoca. Sua premissa mais fundamental está certa e é in1portante: as comunidades políticas têm uma vida comunitária, e o êxito ou fracasso da vida comunitária faz parte do que determina se a vida de seus membros é boa otl ruim. O erro mais fundamental do argumento está em entender n1al o ca1áter da vida comt1nitária que a comunidade política pode ter. O argumento sucumbe ao antropomorfismo; presume que a vida comunitária é a vida de uma pessoa de tamanho descomunal, que tem a mesma forma, que enfrenta os mesmos momentos críticos e dilemas morais e éticos, e está sujeita aos mesmos modelos de êxito e fracasso que a vida de cada ttm dos cidadãos que a compõem. A força antiliberal do argumento, em seu todo, ampara-se nessa falácia, que confisca grande parte da vantagem conquistada por sua premissa sólida e atraente.

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B. A vida comunitária da comunídade In.icialmente, precisamos de uma definição mais pormen6rizada do que se presume ser o fenômeno da integração. O republicano cívico, que reconhece sua integração com a comunidade, não é igual ao cidadão altruísta para quem os interesses do próximo são de importância fundamental. Essa é uma diferença essencial, pois o argumento da integração, que·agora analisamos, é diferente do argumento do paternalismo e de outros argumentos que começam com a idéia de que o cidadão virtuoso se preocupa com o bem-estar do próximo. O argumento da integração não presume que o bom cidadão se interesse pelo bem-estar dos concidadãos; afirma que ele deve interessar-se pelo próprio bem-estar e que, só devido a esse interesse, deve voltar-Se para a vida moral da comunidade da qual é membro. Assim, o cidadão integrado difere do cidadão altruísta, e precisamos de mais algumas distinções para saber como e por quê. Associamos ações com o que chan1arei de unidade da agência: a pessoa, o grupo ou a entidade tratada como autor da ação e responsável por ela. N'ormalmente nos consideramos, como indivíduos, a unidade da agência das - e somente das~ ações ou decisões que iniciamos ou realizamos sozinhos. Considero-me responsável somente pelo que faço. Não tenho orgulho, satisfação, remorso nem vergonha do que você faz, seja qual for meu interesse na sua vida ou em· suas conseqüências. Com freqüência a pessoa dirige seu atos ao próprio bem-estar, tanto no sentido volitivo quanto no crítico. A unidade da agência e o que poderíamos chamar de unidade de preocupação do agente são, então, idênticas. Quando alguém age com altruísmo, seja por caridade ou senso de justiça, continua a considerar-se unidade da agência, mas a unidade de sua preocupação rni.gra ou se expande. O paternalismo, inclusive o paternalismo moral, é um Sttbcaso do altruísmo. Se acredito guc os homossexuais vivem un1a vida degradada, posso pensar gue

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ajo pelo bem deles quando faço campanha por leis qtte criminalizem sua conduta. A integração é um fenômeno diferente, segundo o argumento que estou analisando, pois presume que a unidade apropriada da agência, para algumas ações que afetem o bem-estar do indivíduo, não é o indivíduo, mas a comunidade à qual pertence. Ele pertence eticamente a essa unidade da agência: participa do êxito ou do fracasso de atos, realizações ou práticas qt1e podem ser completamente independentes de qualquer coisa que ele mesmo, considerado como indivíduo, tenl1a feito. Há alguns exemplos conhecidos: muitos alemães nascidos be1n depois da Segunda Guerra M11ndial sentem vergonha, e lima responsabilidade pela compensação, das atrocidades nazistas, por exemplo. John Rawls oferece, em contexto um pouco diferente, um exemplo muito mais esclarecedor para nós 20 • Uma orquestra saudável é uma tmidade da agência. Os diversos músicos que a compõe1n entusiasmam-se, da maneira como o triunfo individual entusiasn1a, não com a qualidade ou o brilho de suas contribuições individuais, mas com o desempenho de toda a orquestra. É a orquestra que tem êxito ou fracassa, e o êxito ou fracasso dessa comunidade é o êxito ou fracasso de cada um de seus membros. Portanto, a integração é completamente diferente do altruísmo e do paternalismo. Também difere do orgulho ou arrepe11di1nento vicário ou indireto. (~uando os pais se orgulham das reali?..ações dos filhos, ou amigos alegram-se com os êxitos um do outro, ou irmãos (em algumas culturas) pcrden1 a honra devido à deso.nra da irmã, a unidade <.ta agência - o agente, cujas ações trouxeram orgulho, alegria ou desonra-permanece individual. A ernoção vicária é de segunda ordem e parasitária; o êxito ou o fracasso, a realização ou a desgraça, continuam principal e distintame11te pertencendo a otttra pessoa, e a preocupação vicária expres20. John Rawls,A Theory o/Justice (Cambridge, Mas~.: TI1e Belknap Press of Ilarvar
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sa, não a participação em qualquer ato, mas um vínculo específico com o ator. O argumento da integração escapa à minha objeção ao segundo argumento, o paternalista, porque rejeita toda a estnitura de agência e interesse na qual se fundamenta o argumento paternalista. O argumento da integração proíbe-nos de pensar co1no Mill acerca de intervir a fim de proteger outras pessoas, ou somente o próprio agente, contra algum dano que a conduta'do agente inflija. Rejeita totalmente esse modo individual de pensar. Sua unidade da agência é a própria comunidade, e só pergunta como as decisões da comunidade acerca da liberdade e das leis afetarão a vida e o caráter da comunidade. Afirma com ênfase que a vida dos cidadãos está envolvida pela vida comunitária, e que não pode haver explicação privada do êxito ou fracasso da vida dé cada um de seus indivíduos. Assim, a personificação latente na idéia de integração é genuína e profun.da. As idéias mais conhecidas tle altruísmo, paternalismo e emoção vicária são criadas ao redor de unidades individuais da agência e preocupação. A integração presume u1na estrutura de conceitos bem diferente, na qual a comunidade, e não o indivíduo, é fundamental. Tudo isso pode sugerir que a integração depende de uma metafísica barroca, que afirma serem as comunidades entidades fundamentais no ttniverso, e que os seres humanos são apenas abstrações ou miragens. Todavia também se pode entender a integração de outra forma, não dependente da primazia ontológica da comunidade, contudo de fatos comuns e conhecidos relativos às práticas sociais que os seres humanos adquirem. A orquestra tem vida coletiva, não por ser ontologicamente mais fundamental que seus membros, mas em virtude de suas práticas e atitudes. Os músicos reconh.ecem u1na unidade personificada da agência, na qual não mais figuram como indivíduos, mas como componentes; a vida coletiva da comunidade co11siste nas atividades que ela trata como constituintes de sua vida coletiva. Chamarei essa ii1terpretação da integração, que presume de-

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pender a integração de práticas e atitudes sociais, de perspectiva prática, para difere11ciá ·la da perspectiva metafísica, que presume depender a integração da primazia ontológica da comunidade. Não estou insinuando que a perspectiva prática seja reductonista. Quando existe uma comunidade integrada, as afirmações dos cidadãos dentro dela acerca de seu êxito ou fracasso não são simples resumos estatísticos de seus próprios êxitos e fracassos individuais. A comunídade integrada tem interesses e preocupações próprias ~sua própria vida a levar. A integração e a comunidade são fenômenos genuínos, mesmo na perspectiva prática. Mas, nessa perspectiva, são criadas por atitudes e práticas, nelas estão ingeridas, e não as precedem. Sobre a perspectiva prática, portanto, deve haver uma disc"Ussão especial, antes de se afirmar a integração. É preciso demonstrar que a prática social criou, de fato, uma unidade co·mposta da agência. Não teria sentido alguém declarar a integração com algtLma comunidade ou instituição por decreto, isto é, simplesmente declarando e acreditando fazer parte dela, Não posso me declarar integrado com a Orquestra Sinfónica de Berlim e, doravante, participar dos triunfos e dos lapsos ocasionaís de tal instituição. Nem posso criar por decreto uma unidade comum da agência. Posso declarar e acreditar, por exemplo, que os filósofos cujo sobrenome comece com "D" são uma t1nidade comum da agência na obra filosófica, e que posso orgulhar-me e receber os créditos pela obra de Donald Davidson e Michael Dummett da mesma forma que um percussionista pode orgulhar-se e receber os créditos pelo desempenho da orquestra. Contudo eu estaria equivocado. É preciso que já exista u1na unidade comum da agência, à qual eu esteja vinculado, para que seja apropriado me considerar eticamente integrado a suas ações. Assim, o argumento da integração precisa amparar-se em algtrma teoria sobre como se formam as unidades coletivas da agê11cia, e como se define a participação nelas. Na perspectiva metafísica da integração, as unidades coletivas

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da agência simplesmente existem: são n1ais reais do que seus membros. Na perspectiva prática, porém, as unidades coletivas da agência não são primitivas; constituem-se de práticas e atitudes sociais, e qualquer pessoa que defenda essa perspectiva de integração precisa identificar e descrever essas práticas. Nosso exemplo da orquestra é instrutivo, pois indica as características que proporciona1n uma unidade comum da agência em casos fundamentais ou paradigmáticos. Em primeiro lugar, a agência coletiva pressupõe atos socialmente denominados coletivos, isto é, atos identificados e especificados como de toda a comunidade, e não de membros da comunidade individualmente. A apresentação da orquestra é tratada como um ato coletivo, nesse sentido, tanto por seus membros quanto por toda a comunidade. Em segm:tdo lugar, os atos individuais que constih1em os atos coletivos são combinados. São realizados de maneira autocrítica, contribuindo para o ato coletivo, e não como atos isolados que coincidem por acaso. A orq·uestra só executa detenninado concerto quando seus n1embros tocam com uma intenção cooperativa; não se apresentaria se os músicos tocassem exatamente as notas a eles atribufdas na partitura, exatamente nos momentos designados e no mesmo recinto, mas sem a intenção de tocar juntos, como uma orquestra. Em terceiro lugar, a composição da comunidade - quem é tratado como me1nbro dela- adapta-se a seus atos coletivos, de modo que os atos coletivos da comtmidade explique1n sua composição e vice-versa. Já que a orq·uestra é uma unidade comum da agência para a produção de música, seus membros são músicos. Os atos coletivos da comunidade constituem sua vida comunitária. Na perspectiva metafísica da integração, a comunidade é uma superpessoa, e sua vida coletiva contém todas as características e dimensões de uma vida humana. Todavia a perspectiva prática define a vida comunitária de maneira mais estrita: ela só contén1 os atos tratados como coletivos pelas práticas e atitudes que criam a comunídade como agente coletivo. A vida comun.itária da orquestra limi-

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ta-se à produção de música orquestral: é apenas uma vida musical. Esse fato determina o caráter e os limites da integração ética da ·vida dos músicos à vida comunitária. Os músicos tratam suas apresentações como a apresentação de sua orquestra personificada, e compartilham seus triunfos e fracassos como se fossem deles mesmos. Mas não presumem que a orq·uestra també1n tenha vida sexual, de certa forma composta pelas atividades sexuais dos membros, ou que te11ha dores de cabeça, ou pressão alta, ou responsabilidades de amizade, ou crises para decidir se devem se preocupar menos com a música e trocá-la pela fotografia. Embora o primeiro violinista possa preocupar-se com os hábitos ou desvios sexuais de um colet,1'1, isso é t1m interesse de amigo que exprime o altruísmo, e não um interesse próprio em qualquer unidade composta da agência que o inclua. Sua integridade moral não é prejudicada pelo ad'ultério do percussionista.

C. A vida comunitária da comunidade. polítíca Até que ponto podemos considerar a comunidade política - uma nação ou um Estado - algo que tem vida com11rlitária na perspectiva prática? Os atos políticos formais da comunidade política - os atos de seu governo por intermédio das instituições legislativa, executiva e judiciária satisfazem a todas as condições da agêrtcia coletiva que identificamos ao analisar por que a orqttestra tem vida comunitária. Nossos métodos identificam esses atos políticos _ formais como atos de uma pessoa jt1rídica distinta, e não de : um conjunto de indivíduos. Os Estados Unidos, e não determinados funcionários públicos ou soldados, lutaram na guerra do Vietnã. Os Estados Unidos, e não determinados funcionários públicos ou cidadãos, impõem determinados níveis de impostos, distribut!m parte dos fundos que recolhem em programaB de bem-estar social e recusam-se a dístribuir verbas para outros programas. Os atos de determina-

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das pessoas -votos de membros do Congresso, por exen1plo, e ordens de generais - só constihlem esses atos coletivos porque essas autoridades agem conscientemente em uma estrutura constitucional que transforma seu comportamento índividual em decisões nacionais. Existe pelo menos um enquadramento aproximado, ademais, entre os membros de uma comunidade democrática decente e esses atos coletivos formais. Em uma democracia digna de crédito, todo cidadão que chega a determinada idade e atende outras condições pode participar indiretamente das decisões políticas fom1ais por meio de voto, discurso, lobby,.manifestações públicas etc. 21 . E os cidadãos da comunidade política são os especialmente atingidos por seus atos políticos formais. As·· shn, tratar as decisões do legislativo, executivo e judiciário como atos comunitários da comunidade política ajuda a explicar a composição da comunidade; ela é composta por aqueles que têm algum papel nessas decisões e são os mais diretamente atingidos por elas. Até aqui tudo parece relativamente incontroverso. Se a comunidade tiver alguma vida comunitária, suas decisões políticas formais devem fazer parte dessa vida. Todavia devemos perguntar o que mais, além desses atos políticos formais, faz parte de sua vida comunitária. O argu1nento comunitário da integração, que estamos explorando, afirma que os atos políticos formais não esgotam a vida comunitária da nação. O argumento presume que a comunidade política também tem uma vida sexual comunitária. Presume que as atividades sexuais de cada cidadão se combinam de alguma forma em uma vida sexual nacional, da maneira como o 21. Não quero dizer que esses atos participativos sejam, en1 si, atos Cúletivos de toda a comurúdade política: não são. Mas podem ser atos coletivos de alguma comunidade menor d~ntro dela; um comício, por exemplo, pode fazer parte da vida comunitária de um grupo de atividades políticas que, embora tenha finalidades políticas, não é cm si uma cqmunidade política, pois 11~0 adrninistra seus assuntos por intermédio de um monopólio de poder coerd~ livo sobre seus n1e1nbros.

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desempenho de cada músico se combina na apresentação orquestral, ou os diversos atos dos cidadãos e das autoridades de uma con1unidade política se combinam na legislação. Somente se isso fos.<>e verdade, portanto, pode1ia a vida de um cidadão ser maculada pelos hábitos sexua~s de outrem. Se aceitarmos a perspectiva metafísica antropomórfica da comunidade política, então poden1os começar, finalmente, a conve11cer-nos de que o Estado ou a nação tem uma vida sexual para a qual a atividade sexual de cada cidadão contribui de maneira misteriosa. Porém, se insistinnos, pelo contrário, na perspectiva prática, então o argumep.to da integração deve defender a tese de que a comunidcide tem uma vida sexual de maneira bem diferente. Deve de-· monstrar que nossas práticas, atitudes e convenções sociais de fato criam e reconhecem um ato sexual naciohal. O leitor já deve ter previsto minha opinião sobre tal projeto. Va1nos analisar as três características que identifican1os em apoio à afirmação de u1na vida musical comunitária no caso da orquestra. Nenhuma delas é satisfeita na pretensão de u1na vida sexual nacional. Nossas convenções não reconhecem nenhuma atividade coletiva sexual nacional. Quando falamos das preferências e dos hábitos sexuais de uma nação, {alamos estatisticamente, e rtão, como no ca~o da apresentação da orq11estra, de alguma realização ou desgraça coletiva22. Nem temos convenções ou práticas que proporcionem estruturas de atividade sexual cooperativa em escala nacional, à maneira como a nossa Constituição provê um mecanismo para a eleição de presidentes. Nem está a composição da comunidade política de maneira alguma vinculada à idéia de que sua vida comunitária tenha um aspecto sexual. Os critérios de cidadania não explicam nem são explicados pela suposição de qualquer em22. Obviamente, confonne saliento adiante, isso não quer dizer que nenhwna comunidade reconheça ou possa <e conhecer um. ato sexual coletivo.

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preendimento sexual coletivo. Os cidadãos nascem, em geral, dentro de suas comunidades políticas, e a maioria não tem perspectivas reais de sair da comunidade na qual nasceu23. Podem nascer pessoas de todas as raças, credos e aspirações dentro da mesma comunidade política, e é bem implausível que a caracterização de vida comunitária que melhor se encaixe em tal comunidade seja a que presume que se deve escolher um çredo, um conjunto de aspirações pessoais ou afiliação étnica, ou um conjunto de padrões de responsabilidade sexual, como deve uma pessoa individual sadia. Essa caracterixação, além de não se encaixar nos critérios de cidadanía;-toma-os quase sem sentido. Talvez não possamos excluir a priori a possibilidade de se encontrar algum outro fundamento social que dê apoio à afirmação de que a nação tem uma vida sexual coletiva -· fundamentos bem.diferentes daqueles aos quais apelamos naturalmente para explicar por que uma sinfonia, ou uma lei, é um ato coletivo, comunitário. Mas não vejo quais seriam esses fw1damentos. $e não. for possível sugerir nenhum, entã.o o argumento comunitário da integração só terá êxito, se tiver, recaindo na perspectiva antropomórfica de uma comttnidade política que a maioria dos leitores estaria ansiosa por rejeitar. Devo acrescentar dois esclarecimentos. Pri1neiro, não afirmei que não existem comunidades.cuja vida coletiva tenha um aspecto sexual. Existem todos os tipos de comunidades - existem associações de fanáticos por selos que realizam projetos coletivos de coleções, por exemplo- e algumas podem ter natureza sexual, em vez·de serem orquestras. Já se afirmou, por exemJ:lo, que algumas famílias se consideran1 23. Os cidadãos não são mutuamente auto-seledonados, como os membros dt" uma fraternidade, nem são esço!hidos por algum talento ou aspiração em especial, con10 os músicos de uma orquestra, nem são idenlificados por alguma fé religiosa independente ou convicção sexual, ou mesmo, no mlmdo •moJ.!emo da imigração e das fronteira~ móveis, por tipo racial, étnico, lingüístico ou cultural.

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comunidades propagadoras; nesse caso, os atos sexuais dos membros da família podem muito bem ser interpretados como coletivos no sentido que o argumento da integração presume. O que pretendo afirmar é apenas que nem os Estados lJnidos nen1 seus diversos estados são comunidades com vida sexual comttnitária, e que o argumer1to da integração, empregado para justificar decisões políticas antiliberais nessas comunidades políticas, conseqüentemente fracassa. Em segundo lugar, não considerei o argumento de que

os membros de uma comunidade política devam criar as práticas necessárias para que, então, seja verdade que a comunidade tem vida sexual coletiva. ·Não faço idéia de como tal argumento seria defendi.do ou se tomaria semelhante a algo plausível. Pode-se dizer, por exemplo, que as pessoas devem tentar expandir a vida comunitária de Sl\.a comunidade política porque a sensação fenomenológica da integração é, em si, desejáveL no modo como as pessoas pensam que o prazer sensual ou a empolgação do perigo é desejável. Porém, se o valor da integração está em determinada sensação, pratican1ente não seria necessário procurar a integração com uma comunidade política para alcançá-la. As pessoas pertencem a uma série de comunidades, e a maioria pode pertencer a muitas outras se quiser. Pertencem- ou podem pertencer - a famílias, bairros, associações de ex-alunos, fraternidades, fábricas, faculdades, tiines, orquestras, grupos étnicos, comunidades de exilados etc. Assim, essas comunidades ofereceriam amplas oportunidades para as pessoas terem qualquer grau de experiência em integração que achassem valiosas, sem precisar procurar tal experiência na comttnidade política, na qual é inevitavelmente mais difícil de encontrar. Enfim, o argumento de que devemos tentar criar uma comunidade com uma vida sexual coletiva é bem diferente do argumento da integração que estamos analisa11do. O último argumento começa, tira sua força da afirmação de que já vivemos em tal comunidade - que não ternos escolha além de cuidar da vida sexual

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dos outros porque, se a vida deles se degradar, a nossa se degradará também24.

V. A comunidade liberal

A. Republicanos cívicos liberais O argumento antiliberal da integração presume .que a comunidade política tem uma vida qu.e contém a vida sexual. Esse pressttposto é parcialmente correto. A comunidade política tem vida mas não essa vida. Sendo assim, o argumento da integração se desmorona como uma crítica da tolerância liberal em assuntos sexuais. Agora vou explorar a parte do argumento que está certa: sua importante premissa subjacente de que a integração política é de grande importância ética. Tentarei provar qtte, embora os liberais não tenham salientado a importância ética da integração, reconhecer sua importância não ameaça, mas, pelo contrário, alimenta os princípios liberais. Em primeiro lugar, preciso advertir contra a má interpretação do meu argumento até aqt1i. Não disse que as pessoas devem identificar-se totalmente com sua própria comunidade política, nem que essa identificação total seja impossível porque não se podem satisfazer suas condições. Pelo contrário, defendi a tese no que diz respeito ao significado de identificar-se co1n a comunidade. Os cidadãos se identifica1n com sua comunidade política quando reconhe24. Naturalmente, quando digo que a integração ética só é pos.sível quan· do fil, prátkas sociais geram o çenário conceituai necessáiio, não se infere qi.1e a intl'gtação ética seja obrigatória ou mesmo defensável em t<xlas as ocasiões que a geram. Ninguém deve achar que seus próprios \nleresses cr[tjcos estão vinculados ao êxito ou ao fracasso de uma comunidade que não o reconheça como 1nembro igual, ou que lhe negue os direitos humanos n1ais ftmdainentafo, por l'xemplo. Compare, neste caso, as condições par:ilelas das obrigações políticas discutidas e111 Dworkin, Law's Einpire.

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cem que a comunidade tem uma vida comunitária, e que o êxito ou fracasso de stta própria vida depende eticamente do êxito ou fracasso dessa vida. Assim, o que se considera identificação total depende do que se compreende por vida comunitária. A tese liberal da integração, sobre a qual discorrerei, recorre a uma perspectiva limitada das dimensões da vida comunitária da co1nunidade política. Mas não é, por causa disso, um conceito diluído de identificação com a comunidade. É um conceito completo, genuíno, intenso, exatamente porque é discriminador. Os que argumentam que a identificação com a comunidade requer leis iliberais não defendem um nível mais profundo de identificação do que o permitido pelo liberalismo. Defendem apenas uma visão diferente do que a vida coletiva da comunidade realmente é. Se a tese liberal estiver correta, e a deles equivocada, o liberalismo proporciona uma forma mais genuína de identificação do que seus críticos con.seguem oferecer. O que é, então, a vida comunitária de uma comunidade política? Disse que a vida coletiva da comunidade política contém seus atos políticos oficiais: legislar, adjudicar, impor a lei e outras funções executivas do governo. O cidadão integrado considera que o êxito ou o fracasso de sua comunidade t1esses atos poüticos formais tem ressonância em sua própria vida, inelhorando-a ou piorando-a. Na tese liberal, não se deve acrescentar mais nada. Deve-se considerar que esses atos políticos formais da comunidade toda esgotam a vida comunitária do corpo político, para que se entenda que os cidadãos agem juntos, coletivamente, ape.nas dessa forma estruturada. Essa visão da vida comunitária da comunidade política parecerá deficiente demais para muitos, e não é necessária para o argumento de defesa da tolerância liberal que estou desenvolvendo. Todavia vale a pena explorar por que a visão deficiente talvez seja suficiente. A idéia de que a vida coletiva da comunidade é apenas sua vida política formal parece decepcionante porque dá a impressão de enfraquecer a idéia da integração, por deixá-

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la sem nada para fazer. A idéia .de que a vida das pessoas deve ser vista como integrada à vida da co1nunidade insinua, à primeira. vista, uma empolgante ampliação da teoria política. Parece prometer uma política dedicada à promoção do bem coletivo e também, ou talvez em vez de, proteger os direitos individuais. O conceito antropomórfico de vida comunitária - de que a vida da comunidade expressa todos os aspectos da vida dos indivíduos, inclusive suas opções e preferências sexuais - parece realizar tal promessa. Afirma que o cidadão integrado rejeitará a tolerância liberal em favor de um compromisso com padrões sexuais sadios impostos a todos, pois cuidar da comunidade significa cuidar para que sua vida seja tão boa quanto justa. Porém a minha tese -de que a vida comunitária limita-se às atividades políticas - não expande a justiiicativa política para além do que os liberais já aceitam. Se a vida da comunidade circunscreve-se a decisões políticas formais, se o êxito crítico da comunidade, por conseguinte, só depende do êxito ou do fracasso de suas decisões legislativas, executivas e adjudicativas, então podemos aceitar a primazia ética da v:i.da da comunidade sem abandonar ou comprometer a tolerância liberal e a neutralidade acerca da vida boa. Simplesmente repetimos que o êxito nas decisões políticas requer atole·· râr1cia. Obviamente, essa afirmação pode ser, e tem sido, refutada. O argumento pela integração só apresenta um novo desafio a quem defende a tolerância liberal, porém, se presumir um quadro antropomórfico da comunidade, ou pelo menos um quadro que contenha mais do que apenas as atividades políticas formais da comunidade. Se liinitarmos a vida comttnitária da co1nunidade política. a suas decisões políticas formais, a integração não representa uma ameaça aos princípios liberais, e ela parece decepcionante exatamente por esse motivo. Seria um equívoco, porém, concluir que a integração é uma idéia sem conseqüências, que não acrescenta nada à moralidade política. O cidadão que se identifica com a comunidade política, pois aceita a prioridade ética da comu-

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nidade, não oferecerá novas argt1mentações acerca da justiça ou do equilíbrio de qualquer decisão política. Ele adotará, porém, t1ma atitude bem diferente com relação à política. Vemos a diferença ao comparar sua atitude, não com o indivíduo egoísta das fantasias da mão invisível mas com a pessoa que os críticos supõem ser o paradigma do liberalismo, a pessoa que rejeita a integração, mas é movida por um senso de justiça. Essa pessoa só vota, trabalha e faz campanha pelas decisões políticas que acredita serem exigidas pela justiça. Não obstante, ela traçará uma linha nítida entre o que a justiça exige dela e o êxito crítico de sua própria vida. Ela não vai considerar a própria vida men.os bem-sucedida se, apesar de todos os esforços, sua comunidade aceitar ·uma grande desigualdade econômica, ou racial, ou outras formas de discriminação injusta, ou restrições injustas à liberdade individual, a não l:ier que, evidentemente, ela mesma seja ·vítima dessas formas de discriminação. O liberal integrado não separa sua vida privada da pÚ·· blica dessa fom1a. Ele considera a própria vida desvalorizada - uma vida menos virtuosa do que poderia ter - se vive em uma comunidade injttsta, por mais que tente fazê-la justa. Essa fusão de moralidade política e interesse próprio crítico me parece ser o verdadeiro ponto nevrálgico do republicanismo cívico, a maneira importante como os indivíduos deve1n fundir seus interesses e sua personalidade à comunidade política. Ela afirma tlm ideal nitida1nente liberal, que só pode florescer dentro de uma sociedade liberal. Nào posso garantir, obviarnente, que uma sociedade de cidadãos integrados gere inevitavelmente uma sociedade mais justa do que uma comunidade não integrada. A injustiça é conseqüência de muitos outros fatores - de falta de energia ou esforço, fraqueza de vontade, erro filosófico. A comunidade de pessoas que aceitam a integração nesse sentido sempre terá uma vantagem importante sobre as co1nunidades cujos cidndãos rejeitam a integração. O cidadão integrado que d.:-1 valor à própria vida confia no êxito da comunidade ao tratar a todos com igual consideração.

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Imaginemos que essa impressão seja pública e óbvia: todos entendem apoiar tal atitude. Por conseguinte, a comunidade terá uma fonte importante de estabilidade e legitimidade, mesmo que seus membros discordem muito sobre o que é a justiça. Co1npartilharão o entendimento de que a política é um consórcio em sentido especialmente estrito: que todos, de quaisquer credos e r1íveis econômicos, têm um interesse pessoal na justiça - um forte interesse pessoal, para alguém com uma noção vívida de seus interesses críticos -, não só para si co1no também para todos. Essa compreensão é um elo poderoso que está na raiz até da discussão mais acalorada acerca de determinadas políticas e princípios. Quem encara a justiça à maneira não integrada, necessariamente como alio que lhe exige ceder seus próprios interesses pelo bem do próximo, inclina-se a desconfiar que aqueles que resistem aos progra·mas que lhes exigem sacrifícios evidentes, porque rejeitam a concepção de justiça que fundamenta esses programas, agem com um viés de interesse próprio, seja deliberado ou subconsciente. O argumento político se degenera, então, em um comércio sombrio que destrói o republicanismo cívico. Esse tipo de suspeita não tem chance de se enraizar e11tre pessoas que tomam a discordância política como discordância, não uma disputa sobre quais sacrifícios se exigem de cada pessoa, mas como servir aos interesses comuns de todos para garantir uma solu.ção genuinamente justa. Adiscordância persiste contra esse pano de fundo, como é desejável. N'o entanto, é uma discordância sadia entre parceiros cujos interesses se aglutinam, que sabem que não são antagonistas em interesses, que perdem ou ganham juntos. A integração, assiln ente11dida, proporciona significado novo à velha idéia do bem comum, um intC>resse genuíno pela política compartilhada pelas pessoas, mesmo quando as discordâ11cias políticas são profundas. É óbvio que tudo isso é utopia. Há pouquíssin1a esperança de que ve11ha a existir urna sociedade política totalmente integrada. Não existirá nas décadas vindouras. Todavia estamos agora ex-

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plorando uma utopia, um ideal de comunidade que podemos definir, defen.der e talvez até tatear no escuro rumo a ela, em boa consciência moral e metafísica.

B. Prioridade ética .A5 conseqüências do republicanismo cívico no modo de ser liberal são, portanto, interessantes. Mas há uma lacu11a considerável no argumento que ofereci, pois não dei motivo, até _o momento, para que as pessoas aceitem a integração no sentido liberai, para que encarem o êxito na própria ·vida como dependente, da maneira que acabo de descrever, da justiça das decisões políticas da com11nidade. Contudo, não esperamos oferecer uma demonstração avassaladora à guisa de resposta a essa pergunta. No entanto, podemos tomar mais atraente a idéia da comunidade liberal, identificando aspectos da vida boa que seriam possíveis ou incentivados em um Estado justo25 . Descreverei somente uma ramificação desse projeto- e em forma sinóptica. Parte da forma branda do argurnen to platónico, expresso na J{epública, de que a moralidade e o bern-estar são interdependentes em uma ética adequada, que aquele que se comporta de maneira injt1sta leva uma vida pior em conseqüência disso. É t1ma tese praticamente implausível se tivermos em mente o que chamo de bem-estar-volitivo. Parece não haver conexão inerente entre ser justo e ter o que quero. :Mas a tese de Platão parece mais plausível quando temos em mente o bem-estar crítico. Os critérios da vida boa no sentido crítico não podem ser definidos for'i:t de contexto, como se os mesmos padrões se aplicassem a todos em todos os períodos da histó1ia. Uma pessoa vive bem qt1ando reage de maneira apropriada às órcunstânctas. A questão ética não é como os seres humanos devem viver, 25. A discussão esque1nática (e, receio, um tanto enigmática) desta seção é u1n empréstimo do Capítulo 6, no qual e~tá bem expandida.

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mas como alguém na minha situação deve viver. Porta11to, muito gira em torno de como definir a minha situação, e parece determinante a presença da justiça na descrição. A questão ética a a ser: o que é uma vida boa para alguém que faz jus ao quinhão de recursos ao qual tenho direito? TI, nessa situação, a tese de Platão do êxito crítico é atraente. A pessoa vive mal pro tanto - reage pro tanto de maneira pior às próprias circunstâncias - se agir com injustiça. Não precisamos aceitar a tese estr.ita que Platão defendeu de fato, de que ninguém lucra com a injttstiça. Talvez a grande vida de algu11s artistas não tivesse sido possível em uma sociedade plenamente justa, e isso não significa que tenham tido uma vida ntim. Todavia significa que isso é relevante contra a bondade de uma vida ter sido baseada na injustiça, ainda que a deles tenha sido sustentada pela injustiça. Agora vamos reparar no que pode parecer uma contradição entre dois ideais éticos que a maioria de nós adotamos. O primeiro domina nossa vida privada. Acreditamos que temos responsabilidades especiais com as pessoas com quem temos relacionamentos especiais: nós mesmos, nossa fanúlia, amigos e colegas. Investimos mais o nosso tempo e outros recursos neles do que em estranhos, e achamos que está certo. Acreditamos que quem demonstra igual consideração por todos os membros da comunidade política, na vida privada, deve estar equivocado. O segundo ideal domiI1a nossa vida política. O cidadão justo, em sua vida política, faz questão de igual· consideração para todos. Vota e trabalha pelas políticas que acredita tratarem todos os cidadãos como iguais. Não demonstra mais preocupação por si mesmo nem pela família, na escolha de candidatos e programas, do que por pessoas que são apenas uma estatística para ele. Uma ética geral competente precisa reconciliar esses dois ideais. Eles só podem ser adequadamente reconciliados, porém, quando a política tiver êxito na distribuição dos recursos da maneira que a justiça exige. Realizada a distribuição justa, então os recursos controlados pelas pessoas são

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moral e também legalmente seus; usá-los como desejam, e como os apegos e os projetos especiais requerem, não de-

precia seu reconhecimento de que todos os cidadãos têm direito a um quinhão justo. Porém, quando a injustiça é substancial, as pessoas que se sentem atraídas por ambos os ideais - dos projetos e apegas pessoais de um lado, e a igualdade de consideração política do outro- são colocadas em uma espécie de dilema ético. Precisam comprometer um dos ideais, e cada direção dessa transigência o bstrui o êxito crítico de sua vida. Agir com justiça não é questão totalmente iva; além de não trapacear, também significa fazer o possível para reduzir a injustiça. Assim, uma pessoa age com injustiça quando deixa de dedicar os recursos aos quais sabe não ter direito às necessidades dos que têm menos. Essa falha não se compensa com uma caridade ocasional, limitada e arbitrária, co1no é inevitável à caridade. Assim, o valor crítico da vida é reduzido quando se deixa de agir como a justiça requer e, depois, reduzido por se ignorar a injustiça na própria comunidade política. Uma vida inteiramente dedicada a diminuir a injustiça ao máximo possível, por outro lado, seria pelo menos igualmente desvalorizada. Quando a injustiça é substancial e generalizada em tuna co1nurtidade política, qualquer cidadão que assume a respo11sabilidade pessoal de fazer o possível para repará-la tern1inará negando a si mesmo os projetos e apegas pessoais, bem como os prazeres e as frivolidades, que são essenciais para uma vida descente e gratificante. Quem tem forte noção de seus próprios interesses críticos se sente inevitavelmente frustrado quando a comunidade falha em suas responsabilidades de justiça, e isso acontece mes1no quando essa pessoa fez, de sua parte, tudo o que pode1ia fazer para encorajá-la. Todos te1nos aquele motivo poderoso de querer que a nossa comunidade seja justa. A sociedade justa é um pré-requisito da vida que respeita an1bos os ideais, pois nenhum dos dois deve ser abandona-

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do. A.;;sim, nossas vidas privadas, nossos êxitos ou fracassos ao levar a vida que pessoas como nós devem ter são, dessa maneira limitada, mas poderosa, parasitárias de nosso êxito coletivo na política. A comunidade política tem essa primazia ética sobre nossas vidas individuais. ,;,·

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Capítulo 6

A igualdade e a vida boa

I. Os liberais podem viver bem? Nos capítulos anteriores, defendi uma concepção específica de liberalismo. Essa concepção - a igualdade liberal - salienta que liberdade, igualdade e comunidade não são três virtudes políticas distintas e quase sempre em conflito, como as outras teorias políticas tanto à direita quanto à esquerda do liberalismo declararn, mas aspectos complemen tares de um só ideal político, tanto que não podemos garantir ou mesmo entender nenhum desses três ideais políticos independentemente dos Olltros. Esse é o tecido emocional do liberalismo, a idéia que parece tão fascinante no leste europeu e agora em partes da Ásia, e parecia tão evidente para os revolucionários da Europa e da América há dois séculos. Ela só se realiza, porém, quando compreendemos a liberdade, a igualdade e a comunidade da maneira que argumentei. É preciso avaliar a igualdade em termos de recursos e oportunidades, e não em tem1os de bem-estar ou bem-suceder. A liberdade não é a liberdade de fazer o que se quer a qualquer preço, mas de fazer o que se quer respeitando os verdadeiros direitos do próximo. É preciso fundamentar a comunidade, não no obscurecimento ou na diluição da liberdade e da responsabilidade individuais, contudo no respeito compartilhado e concreto por tal liberdade e responsabilidade. Isso é o liberalismo concebido como igualdade liberal.

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Neste capítulo tentarei responder a uma objeção especial e historicamente poderosa à it,rualdade liberal. Desde o Iluminismo, quando se formaram muitos dos ideais políticos do liberalismo, seus criticas têm afinnado que esses ideais só servem para quem não sabe viver. Nietzsche e os icono-

clastas românticos disseram que a moralidade liberal era uma prisão construída pelos invejosos para tranca.fiar os grandiosos. Só "o vulgo", pensavam eles, perderia tempo co1n a igualdade liberal; poetas e heróis com vidas novas a inventar e novos inundas a governar a tratariam com desprezo. Todavia essa queixa se invertett. Os marxistas acusavam os liberais de se preocupar demais, e não pouco, com os triunfos individuais, e os conservadores diziam que o liberalismo ignorava a importância da estabilidade social e da firmeza proporcionadas pela moralidade co11vencionaL Esses três vetores da crítica compartilham uma objeção geral, porém, que é quase sempre declarada como fosse um lema: o liberalismo confere demasiada. atenção ao direlto, isto é, aos princípios da justiça, e pouca atenção ao bem, isto é, à qualidade e ao valor da vida que as pessoas levam. Os românticos acham que o liberalismo é insensí\ el à in1portância da libertação do indivíduo da moralidade mesquinha. Os marxistas acham que menospreza o caráter alienado e empobrecido da vida nas democracias capitalistas liberais. Os cor1servadores afirmam que deixa de entender que a vida só pode ser satisfatória quando está arraigada nas norn1as e nas tradições que defir,em a cornurtidade. A justiça liberal, concordam todos, suga a poesia da vida. Devemos identificar três acusações latentes nessa retórica. A primeira delas declara que a vida genuinamente boa seria impossível em uma sociedade liberal. Essa objeção, caso mantida, seria obviame11te letal. Se a vida em uma sociedade liberal está fadada a ser ruim - fadada a produzir mna vida raquítica, decepclonante e fracassada para todos -, então o liberalismo é um ideal político perverso, adequado somente para os masoquistas e os eticamente cegos. A segunda objeção acusa o liberalismo, não de descartar totalmente a possibilidade de vidas boas, mas de subordinar

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essa meta particular à justiça social, insistindo que a justiça está sempre em primeiro lugar, mesmo quando algumas pessoas tenham de sacrificar a qualidade e o êxito geral de sua própria vida. Essa é uma objeção menos ameaçadora, mas ainda importante, porque, se os liberais a aceitarem, devem procurar urna justificativa para seu ideal político que seja suficiente para explicar por que as pessoas às vezes ou talvez com freqüência - precisam sacrificar o que para muitas delas é a responsabilidade mais preponderante, ou seja, que é proporcionar a melhor vida possível a si mesmas e à família. A terceira objeção só acusa os liberais de neutralidade ética em massa - de supor que se pode elaborar uma teoria da. justiça política independentemente de qualquer tese de apoio sobre o que é viver bem. Essa terce.ira objeção parece ainda mais fraca: de fato, os liberais quase sempre declaram que o liberalismo é eticamente neutro, e que isso é uma virtude, e não um defeito1 • Mas essa suposta virtude tem um custo prático. Se quase todas as teorias da vida boa forem compatíveis com o liberalismo, então o liberalismo não pode recorrer a nenhun1a dessas teorias para se defender - não pode fazer campanha por um estado liberal argumentando que só em tal estado as pessoas podem viver uma vida justa e boa. O liberalismo é realmente culpado de alguma dessas acusações? Descarta o viver bem, ou subordina essa meta, ou a ignora? Não. No entanto, não conseguimos ente11der por que até nós reconhecemos que uma teoria da vida boa, como qualquer outro setor importante do pensamento, é co1nplexa e por demais estruturada. O liberalismo pode e deve ser neutro em alguns níveis relativamente concretos da ética. Mas não pode e não deve ser neutro nos níveis mais abstratos que nos deixam intrigados, não com relação a como viver pormenorizadamente, todavia com relação ao caráter, à força e à postura da própria questão de como viver. 1.. Eu, inclusive. Ver Ronald Dworkin, A lviatter of Prl11ciple (Cambridge, Mass.: f-Iarvard University Press, 1985), cap. 8 etc.

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Podemos distinguir pelo menos três dessas questões abstratas. 1~m primeiro lugar, qual é a fonte dessa questão ética? Por que devemos nos preocupar com o co1no viver? Existe uma diferença e11tre viver bem e simplesmente desfrutar a vida? Se existe, será importante viver bem, em vez de apenas desfrutar a vida? Isso é importante somente para a pessoa? Ou será importante de rna11eira mais ampla, mais objetiva, para que permaneça importante mesmo que, por algt.1m motivo, não seja importante para ela? Será mals importante que algumas pessoas vivam melhor que outras? Ou será igualmente importante que todas vivam bem? Em segi.1ndo lugar, de quem é a responsabilidade de fazer com que as vidas sejam boas? Quem está encarregado, se é que há alguém encarregado~ de providenciar para que as pessoas vivam bem? Será uma responsabilidade social, coletiva? Fará parte das responsabilidades de um Estado bom e justo ide11tificar vidas boas e tentar induzir ou até obrigar os membros a viver uma vida assim identificada? Ou será uma responsabilidade individual? Em terceiro lugar, qual é a métrica da vida boa? Qual seria o padrão de teste do êxito ou do fracasso da vida? Até que ponto é uma questão do prazer ou da felicidade que a vida proporcionou à pessoa cuja vida se avalia? Até que ponto é uma questão da diferença que a vida dessa pessoa fez para a vida de outras pessoas ou para o cabedal de conhecimentos ou da arte no mundo? Em que outro modo ou dimensão se deve julgar o \ralor ou o êxito geral da vida de alguém? Essas três questões - de fonte, responsabilidade e mé·· trica - têm gerado muitas controvérsias, não especialmente entre filósofos, mas entre culturas e sociedades. Não obs: tante, são mais abstratas do que as perguntas pormenorizadas que temos em mente quando dize1nos que associedades modernas são profundamente pluralistas com relação a assuntos éticos e morais. Qualquer conjunto plausível de respostas a essas questões abstratas, portanto, deixaria em aberto quase todas as controvérsias mais concretas qtte dividen1 as pessoas sobre como viver, por exemplo, nos Es-

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tados Unidos atualmente. Talvez todos concordemos, por exemplo, que é objetivamente importante que as pessoas vivam bem, que tenham a principal responsabilidade individual pelo êxito da própria vida, e que viver bem signifique transformar o mundo em um lugar melhor, com mais valor, sem tomar partido entre quem insiste que a vida boa é areligiosa e os outros, que acreditam ser a religião a única superstição perigosa; ou entre quem insiste que a vida de valor é a que tem raízes na tradição e quem pensa que a única vida razoável é a da rebelião contra a tradição. Não quero dizer que as respostas às questões mais abstratas não tenham repercussão sobre as mais concretas. I'elo contrário, as teorias éticas abstratas requerem que as pessoas vejam e testem suas opiniões concretas sob certa luz. Quem ite que se·u modo de vida é objetivamente importante, e que viver bem significa melhorar o mundo, não pode acreditar também que a melhor vida é a mais agradável, a menos que também ache que esse prazer tenha valor intrínseco e objetivo, o que pode não achar plausível. Nem quero dizer que as pessoas, mesmo em uma sociedade única, concordem com as respostas às questões abstratas. As pessoas discordam acerca da ética abstrata - especialmente, como veremos, com relação à métrica - mesmo nas democracias ocidentais. Contudo essas discordâncias não são marcantes ou acaloradas como muitas das discordâncias mais concretas, e poderíamos esperar de rrianeira mais realista fazer convergir as opiniões sobre essas questões abstratas, por meio de argumentação, do que poderíamos esperar em assuntos concretos mais ionalmente controversos. Identificar respostas nitidamente liberais às questões éticas abstratas ajudaria o liberalismo a responder às três objeções complicadas que mencionei? Isso depende da atra ·· tividade que essas respostas liberais teriam após a reflexão. Na Introdução, afirmei qtte a igLtaldade liberal expressa e implanta dois princípios amplamente aceitas nas democracias ocidentais, e que oferecem soluções atraentes para as questões da fonte e da responsabilidade. O primeiro desses

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princípios afirma que, quando começa a vida humana, é de

grande importância objetiva que ela seja bem-st1cedida, e não desperdiçada, e que isso é de igual importância no caso de todas as vidas humanas. O segundo afirma que a pessoa

tem a responsabilidade principal e intransferível por esse êxito. Neste capítulo, exploro a terceira questão abstrata que

identifiquei: a questão da métrica. Identifico vários modelos de valor ético e defendo um deles - o modelo do "de-

safio", que presume ser a vida bem-sucedida na medida em que é uma reação apropriada às diversas circtmstâncias em que é vivida. Esse modelo, afirmo, tem mais apelo inhritivo do ql1e seu principal adversário e ajuda a expor qual é a verdade contida na idéia platônica de que a justiça não é um sacrifício que destrói a_ capacidade de viver uma vida bem-sucedida, mas é, pelo contrário, pré-requisíto da vida bem-sucedida. Devo itir agora, porém, que acredito ter menos probabilidades de convencer os leitores de que já aceitam esse modelo desafiador de ética do que de convencê-los de que já aceitam os princípios da igual importâi1cia objetiva e da responsabilidade individual de que acabo de falar. Devo, portanto, salientar que, embora ache atraente o modelo do desafio, e também creia que se ide.ntifica com minhas próprias intuições éticas, e as explíca, 11ão pretendo, com esse modelo, esgotar todos os argumentos pela igualdade liberal. Acredito que o argumento do próxin10 livro tnencionado na Introdução, que não depende de resposta nenhuma à questão da métrica, mas, pelo contrário, de princípios muito menos controversos entre nós, é atraente por si só. Defendo com ênfase a solução do desafio para a questão da n1étrica, porém, por dois motivos. Primeiro, a questão da métrica é importante por si. Nossas intuições n.ormais sobre con10 viver são, como tentarei demo11strar, confusas, e acredito que a confusão expressa urna ambigüidade com relação à resposta certa para tal q1.1estão. 'Em segu11do lugar, quero demonstrar o apelo ético da tese platônica c.l12 que a jusliça e a bondade não poden1 entrar em conflito, e como

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essa tese proporciona uma defesa especialmente forte, não só do liberalismo em geral, mas da igualdade liberal como a melhor concepção do liberalismo. Em todo este capítulo presumo uma solução positiva para um aspecto da questão da fonte descrita. Presumo que a questão ética - que tipo de vida seria bem-sucedido para mim? - é uma questão genuína e importante, e que é diferente, em teor, embora talvez não na resposta que incita, tanto da pergunta psicológica - que vida desfrutarei ou acharei satisfatória? - e da pergunta moral-quais obrigações ou responsabiüdades tenho com as outras pessoas? Rejeito sem comentários o que em outro lugar descrevi co1no tese "externamente" cética de que a questão não faz sentido. Mas levo a sério a afirmação dos céticos "internos" sobre a ética, que afirmam com veemência que nenhuma vida, de fato, é realmente boa ou bem-sucedida2• Não trato separadamente da questão relativa a se e quando a vida humana tem significado ou é significativa. Não posso entender essa questão de maneira alguma que não leve essencialmente à mesma questão que discuto, que é quando e por que determinada vida é boa ou bem-sucedida. Encerrarei esta introdução con1 um desafio de outro tipo. Como já dísse, os diversos adversários da igualdade liberal atualmente em voga - romantismo pós-moderno, conservadorismo econômico, comunitarismo, perfeccionismo e todo o resto - apregoam uma postura moralista. Denigrem.o liberalismo por sua falta de autoridade ética. Mas a literatura dessas escolas é surpreendentemente deficiente em qualquer atenção séria às questões de ética filosófica que descrevi e que tentarei abordar adiante. Argumentarei que a ética filosófica mais plausível fundamenta uma fé liberal, que a igt1aldade liberal não descarta, não ameaça nem ignora a bondade das vidas que as pessoas vivem, 1nas, pelo contrário, flui de e para uma concepção atraente 2. Ver Ronald Dworkin, "Objectivity and Truth; You'd Better HeHeve Jt".

P/1i/osaphy {1 PublicAf!airs 25 {1996).

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relativa ao que é uma vida boa. Os adversários do liberalis-

mo devem enfrentar o desafio e tentar e.laborar respostas para as questões profundas da ética que se afastam do liberalismo e se aproximam deles. Enquanto não o fizerem, sua

acusação de que os liberais não dão atenção adequada à !:

vida boa continuará sendo bazófia.

II. Ética filosófica

A. Interesses volitivos e críticos O que torna a vida boa ou bem-sucedida? Os filósofos

da tradição utilitarista presume1n que é possível medir e

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comparar o êxito de diversas vidas com relação a um único portador elementar de valor ético. Debatem. os méritos de duas afirmações adversárias: a prin1eira é de que o valor ético consiste em uma experiência sentida e i
3. Uma exposição mais completa distinguiria tuna terceira categoria d\; bem-estar que é mais elementar ou biológica. como saúde, liberdade da dor e

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fazem parte de meu próprio bem-estar volitivo: quero as duas coisas e a minha vida melhora, portanto, no sentido volitivo, quando as tenl10. Encaro de outra maneira as outras coisas que quero: ter um relacionamento íntimo com meus filhos, por exemplo, alcançar certo êxito no trabalho e - o que já perdi a esperança de alcançar- uma compreensão rrúnima da situação das ciências avançadas de minha era. Esses considero interesses críticos porque acredito que minha vida teria menos êxito se eu deixasse de ter, ou __deixasse totalmente de alcançar, essas metas. 11inha vida não é pior de viver - não tenho nada de que me arrepender, menos ainda de que me envergonharporque sofri na cadeira do dentista. E embora eu queira velejar_ bem, e esteja decepcionado porque não velejo, não consigo imaginar minha vida sendo pior se eu não tivesse tido esse desejo. Velejar é importante para mim porque quero velejar bem, e não vice-versa. Contudo, tudo isso se inverte quando penso na importância de estar próximo aos meus filhos. Acho que minha vida teria sido pior se eu nunca tivesse entendido a in1portância disso, se não tivesse sofrido com o distanciamento. Não acho que ter um relacionamento íntimo com meus fill1os seja importante só porque eu quero ter. Acho que é realmente importante, e seria mesmo que eu não quisesse. A diferença entre o bem-estar volitivo e o crítico, porém, não é a diferença e11tre o que às vezes se chama bemestar subjetivo e objetivo. É verdade que o interesse_ crítico tem uma dimensão objetiva que o interesse volitivo não tem: faz perfeito sentido supor que errei em relação a me·u interesse crítico, mas não, pelo menos no mesmo sentido direto, que eu possa estar errado em meus interesses volitivos.

de frustrações sexl.illis ou de outra nah1reza. Mas será suficiente para meus argumentos descobrir como esses interesses biológico8 podem figurar dentro das duas categorias que cito. Evitar a dor é algo que quero, portanto isso conta, para mim, çomo parte de meus interesses volitivos. Evitar a dor também é um interesse crítico, embora de n1ancira distinta e gerahnente menor.

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Mas isso não é o mesmo que dizer que meus interesses volitivos sejam apenas meus juízos atuais, que mais tarde posso de.cidir que são erros, com relação ao lugar de meus interesses críticos. Os dois tipos de interesses, as duas modalidades de bem-estar, são distintos. Inteligivelmente, posso apenas querer algun1a coisa sem pensar que tê-la fará com que minha vida seja melhor; de fato, uma vida na qual a pessoa só quisesse o que achasse ser de interesse crítico seria uma triste bagunça, O interesse crítico também não é o mesmo que o motivo. Muita gente concorda com minha opinião de que é importante viver a vida de modo que tenha um relacionamento íntimo com os filhos. Porém, a maioria não quer esse relacionamento, ou esforça-se por tê-lo quando necessário, inesmo por interesse próprio esclarecido. Querem ter um bom relacionamento com os filhos pelo próprio ·relacionamento e pelos filhos, não por eles mesmos. Isso é verdadeiro com relação a todos os seus outros interesses - quando trabalham pela justiça na política e na própria vida, por exemplo, é com a justiça e seus beneficiários que se preocupam, e não consigo mesmos. De fato, é inerente ao que toma cóticos tais interesses o fato de não serem desejados em interesse próprio. Mas esses fatos motivadores não diminuem em nada a função élica de tais interesses - isto é, sua função de tomar n1elhor a vida da pessoa que tem tais interesses, e procurar realizá-los por si mesmos e por outras pessoas. Nem descarta sua compreensão disso, e satisfo.zer-se com isso, nem impede que ela se pergunte por que e se é assim. A pergunta - qual é seu motivo real para dedicar a vida à ajuda aos pobres? - é, como a maioria das perguntas , que dependem da palavra "real", indigesta. AB pessoas têm todos os tipos de motivos, e estes funcionam em camadas diversas de sua imagi.nação moral e ética. Os interesses críticos evolitivos se interconectam de diversas formas. Os interesses críticos sempre seguem de perto os interesses volitivos. Se investi em algu1n desejo de grande importância - velejar bem, por exemplo - normal.mente

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é de interesse crítico ter êxito, não porque velejar seja essencialmente importante, mas porque uma boa dose de êxito no que qltero muito é de importância crítica. E o interesse volitivo normalmente gera uma opinião sobre o interesse crítico: em geral, as pessoas querem. ter o que acreditam ser seus interesses críticos. Se acham que é de seu interesse crítico ter um relacionamento íntimo com os filhos, vão que·· rer fazê-lo, embora (como acabo de salientar) não o queiram por esse motivo. Isso, porém, não é inevitável. O pressltposto comum entre os filósofos, de que as pessoas não conseguem achar que algo é bom, considerando-se todos os fatos, sem o desejar, parece ignorar a diferença entre os dois tipos de bem-estar. Pelo menos uma parte do problema complexo que os fi1ósofos chamam de akrasia surge porque as pessoas não querem reahnente o que acreditam ser seus interesses críticos. "Assim, posso ter certeza de qt1e minha vida seria melhor, no sentido crítico, se eu trabalhasse menos e dedicasse mais tempo à família, contudo percebo que, na verdade, não quero isso, ou não quero com intensidade suficiente. AB categorias do bem-estar volitivo e crítico são os únicos componentes de uma categoria maior e mais abrangente que poderíamos chamar de bem-estar depois de analisar todos os fatos? Podemos pensar qt1e o bem-estar, depois de analisar todos os fatos, consiste na mistura certa 011 na transigência entre o êxito nos interesses críticos e nos volitivos. É uma idéia tentadora, pois presume um modelo para a resolução.de possíveis conflitos entre as duas modalidades de bem-estar. Mas é uma idéia sem sentido, por mais tentadora qt1e seja. Não pode haver padrões para julgar se foi alcançada a mistura certa ot1 a transigência entre o bem-estar volitivo e o crítico, a não ser os padrões de uma das duas modaJjdades propriamente ditas. Podemos perguntar o que devemos fazer para ter o tipo certo de vida. A resposta é dada, então, pela ponderação somente sobre nossos próprios interesses críticos. Ou perguntar o que mais queremos fazer, e a resposta resultará da consul-

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ta (se for essa a palavra certa) a nossos interesses volitivos. Mas se os dois entrarem em conflito, como quando quero fazer algo que sei ir de encontro a meus interesses críticos, não existe conceito de terceira ordem, ou mais elevado, de meu interesse ao qual ett possa recorrer. O que devo fazer nessas circunstâncias, para levar uma vida boa, é obedecer a meus interesses críticos, e não existe o·utro sentido, de ordem mais elevada, de meus melhores interesses que possam requerer 011 permitir que eu deixe de lado meus interesses críticos. Devemos, portanto, itir esse dualismo de perspectivas, reconhece11do que os conflitos práticos entre as duas perspectivas podem ser freqüentes e claros. Contanto que a moralídade ofereça padrões de conduta diferentes dos padrões do bem-estar crítico, então a moralidade oferece outra perspectiva. Mas, evidentemente, a moralidade não é uma categoria mais abrangente de bem-estar na qual figurem os interesses críti.cos e volitivos também. Assiln, temos interesses críticos e volitivos, e nenhuma outra categoria abrangente de bem-estar que possa arbitrar entre eles. Doravante, presumirei que qualquer tentativa de descobrir alicerces éticos para o liberalismo devem concentrar-se no bem-estar critico, distinguindo-o do bem-estar volitivo. Precisamos de uma explanação de quais são os interesses críticos que mostrarão por que as pessoas que aceitam tal explanação, e se preocupam com o próprio bem-estar e o de outrem, serão induzidas naturalmente para alguma forma de política e prática liberais. Não quero dizer, é claro, que os liberais devem preocupar-se com a melhoria da vida das pessoas somente no sentido crítico diferente do 1sentido ·voliti'vo (ou biológico). Lutar contra a dor e a doença é importante, seja qual for a categoria a que isso pertença. Nem estou comete11do o erro sobre o qual já adverti duas vezes, de pres11mir que as pessoas só se preocupam com seus interesses críticos; nem_ o outro erro de presumir que a maioria das pessoas quase sempre pondera conscientemen~ te sobre seus interesses críticos.

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Está claro que é uma questão delicada - e politicamente fundamental - indagar se os princípios políticos liberais serviriam aos interesses volitivos da maioria em uma democracia e, em caso afirmativo, como os políticos liberais poderiam convencer a maioria de que é esse o caso. Nossa questão não é tão imediatamente política, embora talvez tenha maior importância política. Os princípios políticos são normativos da mesma forma que os interesses críticos: aqueles definem a comunidade política que devemos ter, estes definem como devemos nela viver. Nossa procura de alicerces éticos é, por conseguinte, a procura da integridade normativa. Perguntamos se as pessoas que levam a sério esses interesses críticos teriam motivo para adotar a perspectiva política liberal. A longo prazo, essa questão é prática, co11fonne acabo de afirmar, porque os programas políticos de longo prazo só têm êxito se encontrarem espaço na auto-imagem das pessoas, e não só no que as pessoas querem.

B. Preocupações e enigmas sobre os interesses críticos

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A maioria das pessoas acredita ter interesses críticos. Acha importante fazer algo na vida, mesmo que essa convicção não afete muito o modo como realmente vive. Quase todos nós, porém, tarrtbém temos consciência de que a idéia dos interesses críticos é bem problemática e obscura, e muitos temem que seja uma ilusão cósmica. Quem acredita na vida eterna não se perturba com essa preocupação, naturahnente, porque o céu e o inferno convertem a ética em prudência. Mas falta esse consolo à maioria de nós e, embora consigamos nos libertar de nossos momentos céticos e recuperar qualquer convicção ética que tínhamos antes, não resolvemos nossas ansiedades, só as adiamos. Nas próximas páginas, ofereço t1ma espécie de catáJogo dessas ansiedades. Não enumero, entre elas, o ceticismo externo acerca do sentido ou da coerência da idéia de que um modo

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de vida possa produzir uma vida melhor, mais bem-sucedida, do que outro4. Presumo q11e a idéia tem $entido, e só pondero sobre os enigmas substantivos com relação a sua aplicação. Parto da conhecida preocupação do ceticismo interno que surge na calada da noite - de que a vida não tem sentido, que não existe vida de fato boa ou melhor do que qualquer outra. Acrescento, então, 1.tma série de outros problemas ou enigmas da ética que, embora não seja tão assustadora nem conhecida, tem dimensão filosófica e importância pessoal.

Significado. As pessoa<> autoconscientes acerca do viver bem tratam essa questão como assunto da máxima importância; acham importantíssimo que sua vida seja não só (ou até) agradáveL mas também uma vida boa ou ruim. Em que sentido ou de que perspectiva, porém, seria isso importante? Qu.e importância pode ter o que acontece no absurdamente minúsculo espaço e tempo de uma única vida humana? Ou até no episódio qt1ase tão minúsculo de todas as vidas sencientes juntas? O universo é tão vasto e tão duradouro que nossos melhores cientistas se esforçam até para dar sentido à questão de seu tamanho ou de sua idade. Um dia~ a qualquer segundo na história do tempo - o sol explodirá, e talvez não sobre nada que possa ao menos se perguntar como vivíamos. Corno reconciliar essas duas idéias: de que a ·vida não é nada e de que o modo como vivemos é tudo? T'ranscendente ou indexada? Os interesses críticos não são apenas uma questão de o que alguém quer, n1as o que deve querer, e pode haver grande engano com relação a quais são realmente os interesses críticos. Talvez esse fato pareça insinuar que os valores éticos são transcendentes, isto é, que os componentes da vida boa são se1npre os mesmos por toda parte. Conh1do essa idéia entra e1n conflito con1 outro pres4. Ver Dworkin, "Objectivity and Truth''.

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suposto que muitos de nós achamos irresistivelmente razoável: que não existe uma só vida boa para todos, que os padrões éticos estão, de algun1a forma, indexados à cultura, capacidade, recursos e outros aspectos da circunstância da pessoa; portanto, a melhor vida para uma pessoa em uma situação pode ser bem diferente da melhor vida para outrem em outra situação. Qual dessas duas teses, cada uma amparada por intuições e convicções fortes, está correta? E qual deve ser abandonada? Podemos rejeitar a tese transcendente do valor ético e ainda manter nossa convicção de que a ética não é meramente subjetiva, que não é simples questão de descobrir o que realmente queremos?

Ética e moralidade. Vejamos agora a perb'1111ta de Platão. Que 1igaçã.o há entre interesse próprio e moralidade? Está claro que a moralidade e. os interesses volitivos estão sempre em conflito: sempre posso ter mais daquilo qt1e quero por meio de trapaça, roubo ou mentira. Mas a questão é mais complexa quando interpretamos o interesse próprio no sentido crítico, e não no volitivo. Três teses parecem possíveis, então. Em primeiro lugar, podemos achar que viver bem, mesmo no sentido crítico, é totalmente independente de viver com justiça. Quem acredita que a vida verdadeiramente boa é a vida de grande poder sobre outras, por exemplo, pode muito bem pensar que seus interesses críticos estão em constante conflito com a justiça, porque poderia sempre aumentar o próprio poder fazendo o que a justiça proíbe. Em segundo lugar, podemos pensar que a justiça é um componente do bem-estar crítico, mas não a totalidade do bem-estar. A injustiça (poderíamos dizer) configura-se contra a vida bem-sucedida no balanço geral, de modo que a pessoa obrigada a escolher entre ampliar o próprio poder e agir com justiça deve fazer uma escolha dentro da ética, e não apenas entre a ética e a moralidade. Precisa decidir se, no fim das contas, sua vida é inelhor com mais poder à custa de alguma injustiça, ou vice-versa. Em terceiro lugar, poden1os adotar a perspectiva de Platão: que nunca existe con,_

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flito entre justiça e interesse próprio porque é impossível levar uma vida essencialmente melhor por meio de atos injustos. Se for necessário agir com injustiça para conquLo;tar mais poder, então não se pode considerar qtle conquistar mais pode~ mesmo pro tanto, seja um aprimoramento no êxito da vida da pessoa. Essa terceira tese tem duas versões. A primeira afirma que a justiça é apenas um componente da vida boa, como a segunda tese, mas também declara que é predominantemente mais importante do que qualquer outro componente, de modo que ganho nenb.um em qualquer outro componente possa sobrepujar até mesmo a menor transigência da justiça. A segunda afirma que a ligação entre a justiça e a vida boa é ainda mais íntima. No entanto só poderei explicar de que modo a segunda tese declara maior intimidade depois de explicar (como farei mais adiante, neste capítulo) o que chamei de modt'!lo do desafio. /..,_intuição da maioria das pessoas parece. favorável a uma das duas primeiras teses em detrimento da terceira. Paul Cézanne fugiu do serviço militar, não por objeção de consciência, mas por desejo de pintar, e muita gente acha que, mesmo que tenha agido mal, teve wna vida melhor em conseqüênda disso 5 • Mas como podemos explicar isso? Imagi·" nemos que alguém acumula uma fortuna en1 uma carreira empresarial cruel e in1ora1, e depois emprega a fortuna para financiar uma vida deslmnbrante de criações artísticas refinadas e exóticas, patrocínios, explorações e descobertas. É difícil resistir à opinião de que essa pessoa ganhou com suas injustiças, mesmo na análise final - que levou uma vida bem-sucedida e também :iJ.noral. Mas também é difícil resistir a um argumento contrário nitidamente decisivo. Com certeza ele gozou a vida e obteve muita satisfação com ela. No entanto, como podemos dizer que ele viveu bem - que fez algo de bom na vida - se toda a sua riqueza e realizações provinham de algo que ele não deveria ter feito, que o conde5. Devo este <.:'xemplo a A

J. Ayer, que rejeitava com veemência a tercei"

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namos por ter feito? Nossa inhrição voltou a se desorientar.

Cumulativo ou constitutivo? Podemos pensar na vida de outra pessoa com duas perguntas em mente. Podemos perguntar, em pri1neiro lugar, até que ponto a vida dele contém vivências, relacionamentos, fatos ou realizações que podemos considerar componentes de uma vida boa ou decente. Podemos perguntar, em segundo lugar, até que ponto ele reconhece componentes da vida boa na vida dele, seja porque os procurou, porque os considerava valiosos, em resumo, os endossou porque serviam aos interesses críticos, e não apenas aos volitivos. Todavia como combinar esses dois tipos de pergunta? Há duas perspectivas. Acumulativa afirma que podemos julgar a vida dele boa ou ruim sem consultar as opiniões dele a respeito do valor de sua vida. Se a vida dele tem os componentes da vida boa, então é boa por esse motivo. Se ele endossa esses componentes, então isso aumenta a bondade de sua vida; é o glacê do bolo. Mas, se ele não endossa, os compone11tes não perdem seu valor ético. Ele pode ter uma vida boníssima devido a conhecimentos e realizações que não endosse, embora uma vida não tão boa, talvez, quanto se os tivesse endossado. A perspectiva constitutiva, por outro lado, argumenta que nenhum componente contribuirá para o valor da vida da pessoa sem o endosso dela. Assim, se o misantropo é amado, mas despreza o amor dos outros e o considera inútil, a vida dele não é mais valiosa devido ao afeto que ele recebe. A perspectiva constitutiva não é a cética, de que a vida de alguém só é boa ou ruim no sentido crítico quando e porque essa pessoa acha que é boa ou ruiln. O indivíduo pode estar equivocado ao pensar que tem uma vida boa, e errado porque pensa que algo é componente da boa vida, quando, de fato, não é. E pode estar equivocado por n5.o reconhecer e endossar alguma característica da vida dele que, se tivesse reconhecido, teria tornado sua vida n1elhor. A perspectiva constitutiva nega apenas que algum evento possa tomar melhor a vida de uma pessoa contra sua própria opinião co11trária.

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Qual dessas perspectivas devemos adotar? Novamente, ambas parecem amparadas e presumidas por inhlições e convicções conhecidas por nós. O valor ético é objetivo, e não subjetivo: esse fato, que parece dar apoio à perspectiva transcendente dos padrões éticos, também parece apoiar a pcrspectiva cumulativa. Se não depende só de mim decidir que tipo de vida é boa, então por que importaria, para ovalor de minha vida, o que penso a respeito dela? Em alguns casos extremos o bom senso confirma esse argumento. Hitler não teria tido uma vida melhor se tivesse sido internado ainda na adolescência, mesmo que asse o resto da vida sonhando co1n o horror que provocou? Mas outros exemplos, menos impressionantes, provocam intuições opostas. Mesmo que, em nossa op.lnião, a religião deva fazer parte da vida boa, será que melliora a vida de alguém obrigá-lo a ter uma religião que ele considere inútil? Faz serltido dizer que a vida do misantropo melhorou ao receber o amor que ele não queria? Nesses casos, não achamos simplesmente que o valor de algo bom - a religião ou o amor dos amigosdiminua quando não é irado. Achamos que seu valor é enfraquecido, que não há valor nenhum, a não ser que esse valor seja, de alguma forma, patrocinado pelo reconhecim.ento. Novamente, algumas de nossas intuições parecem entrar em conflito com outras, e a ética parece mais misteriosa em conseqüência disso.

Ética e comunidade. Nosso último conjunto de enigrnas diz respeito à unidade de valor ético, isto é, à entidade cuja vida a ética pretende tomar boa. De um lado, achamos que a ética é totalmente pessoal. Cada um de nós tem responsabilidade suprema pela decisão de que tipo de vida é o certo para si; até a pessoa que adere irrefletidamente a modas sociais é responsável por tais escolhas (ou. omissões) se vidas me11os conformistas estivessem disponíveis. E todos temos interesse pessoal na vida que essa pessoa vive, seja ou não escolha dela. É a minha vida que estc'l em jogo quando resolvo onde viver, ou qt1e carreira seguir, ou se devo

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mentir para obter alguma vantagem. Em algumas ocasiões e em algumas circunstâncias, contudo, essa divisão confiante do mundo ético em nossa própria vida e a vida dos outros fracassa. Intuímos que a unidade ética mais funda-· mental é coletiva, e não individual, que a questão de se a minha vida segue bem está subordinada à. questão de se, para qualquer grupo de que eu seja membro, a nossa vida segue bem. Devemos cuidar para não dissipar esse conflito óbvio ao confundi-lo com outras ligações entre preocupações pessoais e sociais que, por mais importantes que sejam, não refutam o caráter nitidamente individual da ética. É claro que a vida das outras pessoas é importante para rrtim; sei q11e a vida boa não pode ser egoísta nem egocêntrica. E, obviamente, sei que minhas convicções éticas são socialmente condicionadas e res'tritas, que não posso nem contemplar vidas que pareçam naturais em outras culturas. Se acredito que a ética é indexada, em vez de transcendente, ademais, vou pensar que a ligação entre convicção e cultura não é merainer1te psicológica, mas ética também, pois a vida certa para mim depe11dc, em parte, da época, da nação e da cultura em que vivo. Não há conflito entre acreditar que o êxito de minha vida é de responsabilidade total e exclusivamente minha e que está ligado à comunidade dessas diversas mari eiras. Tenho em mente, criando um enigma para a éti.ca, um modo diferente e mais radical de ligar minha vida ética à minha comunidade. Isso presume que a comunidade tenha uma vida ética própria e que o êxito crítico da vida de qualquer indivíduo depende, até certo ponto, do êxito crítico da vida de sua con1unidade. Esse pressuposto é, para muita gente, parte comum de sua sensibilidade política. Essas pessoas sentem como fracasso pessoal quando sua própria nação age de maneira injusta ou má, mesmo quando não par ticiparam da injustiça e até tentaram evitá-la-fracasso que não sentem quando alguma outra nação age da mesma forma. O exemplo mais conhecido e potente de nossos tem-

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pos é a responsabilidade que os alemães que alnda não tinham nascido na época do 1-Iolocausto, ou que não participaram dele, sentem, não obstante, pelos desvios de sua comunidade política. A maioria das pessoas funde suas vidas de modo paralelo a comunidades apolíticas. Parceiros em projetos conjuntos - pessoas que são escaladas para fazer operações de resgate juntas, por exemplo - não distinguem o êxito pessoal do êxito da missão. Se a missão fracassar, elas fracassaram, mesmo que tenham CLtmprido seu dever muito bem. Os mistérios abundam. Será que esse tipo de integração ética, no qual os interesses críticos do indivídl.10 dependem dos interesses críticos de algum grupo, e com eles se fundem, pressupõe prioridade ontológica também? IJresume que as unidades humanas fundamentais do universo são grupos, e não os indivíduos que os compõem, como alguns filósofos pensam? Caso contrário, como explicar a integração ética? Tem cabimento acreditar, como parece que muitos de nós acreditamos, que a ética é tanto h1dividua1 quanto comunitária? Se tiver cabimento, então qual perspectiva - pessoal ot1 comunitária - é a apropriada e quando adotá-la?

C. Modelos de valor crítíco Esses diversos enigmas e preocupações surgem, creio, porque nossos instintos e impulsos éticos expressam-se de inaneiras diferentes e, em alguns aspectos, antagónicas de conceber a métrica do valor ético. Descreverei dois mo
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ma q·ue o valor da vida -boa consiste em seu produto, isto é, em suas conseqüências para o resto do mundo. O segundo - o modelo do desafio - afirma que o bem da vida boa está em seu valor inerente con10 realização. Tentarei mostrar como essas duas idéias abstratas sobre o caráter fundamental da ética orientam nossas reações às preocupações e aos enigmas que enumerei, e até que ponto o caráter perturbador da ética surge dos conflitos despercebidos entre as duas, e de nosso fracasso, ou talvez ill:capacidade, de resolvê-los. Nenhum desses dois modelos filosóficos do valor ético pretende oferecer qualquer argumento geral e completo pelo valor ético, isto é, contra alguém que tenha uma convicção firme e irrefutável de que não é importante o que fizer com a própria vida, contanto que lhe agrade. Os dois modelos são, pelo contrário, interpretações da experiência ética daqueles déntre nós - a grande maioria - cujas convicções ou intimações éticas pressupõem que é importante. Os modelos tentam organizar nossas convicções, o máximo possível, em uma visão coerente. Os enigmas quedescrevi surgem porque temos muitas, e não poucas, convicções éticas; algumas delas parecem entrar em conflito com outras. De um lado, acreditamos que a importância de algo depende da proporção, pois nada de tamanho infinitesimal com relação ao universo pode ser realmente importante, por exemplo. Por outro lado, acredita.mos- a maioria de nós não pode deixar de acreditar - que o modo como vivemos é importantíssimo, apesar de nossa insignificância. Qualquer força cética que esse e outros enigmas que descrevi possam ter é interna, e não externa, à ética - emprega um conjunto de convicções para atacar outro, em vez de atacar a totalidade da ética externamente6. Os modelos filosóficos tentam defender a ética contra esse perigoso ataque interno, provando como a maioria de nossas convicções, pelo menos, pode salvar-se se as examinarmos sob certa luz. 6. Ver Dworkin, "Objectivity and Truth".

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O modelo do impacto. O impacto da vida da pessoa é a conseqüência que sua vida exerce sobre o valor objetivo do mundo. O impacto aparece claramente em nossos juízos sobre qual vida foi boa. iramos a vida de Alexander F1eming, Mozart e Martin T~uther King Jr., e explica1nos por

que ao indicar a penicilina, As bodas de Fígaro e o que King fez pela raça e pelo país. O modelo do impacto generaliza a

partir desses exemplos; afirma que o valor ético da vida seu êxito no sentido crítico - é parasitário e medido pelo valor de suas conseqüências para o resto do mundo. O modelo espera dissipar os mistérios do valor ético vinculandoa outro tipo de valor, obviamente n1enos misterioso: ovalor que as situações objetivas do mundo podem ter. A vida pode ter mais ou meri.os valor, segundo o modelo, não porque é intrinsecamente mais valioso vive..-r a vida de uma maneira e não de outra, masporqueviver de urha maneira pode ler melhores conseqüências. Todos temos opiniões sobre quando o mundo vai melhorar ou piorar, embora é claro que haja divergências de opiniões. A maioria de nós pensa que tudo melhora quando se cura uma doença, ou se criam grandes obras de arte ou aun1enta a justiça social. Algumas pessoas- quase todas filósofas - acham que o mundo melhora quar1do eleva-se a soma de felicidade ou prazer humano. O modelo do impacto não se declara a favor ou contra essas diversas opiniões sobre quais situações são objetivamente valiosas. Simplesmente funde quaisquer opiniões sobre o valor crítico de sua vida ou da vida de outras pessoas a quaisquer opiniões que tenha sobre o valor objetivo nos estados do mundo. Se creio que determinado quadro acrescentou valor ao mundo, então, segundo o modelo do impacto, devo pensar qtte a vida de seu autor é melhor por tê-lo pintado. Se, de 1naneira mais controversa, acho que o mundo é melhor qt1ando o comércio prospera, também pensarei que os empreendedores bem··SUcedidos vivem uma vida notável por esse motivo. Além do tipo, o modelo vincula a quantidade de valor ético ao valor da conseqüência

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da vida. Se eu achar que a obra de um artista, no todo, é muito mais grandiosa que a arte de outro, então devo crer que a vida daquele é mais grandiosa, pelo menos quando se atribui valor à vida de cada um por intermédio da arte. O modelo do impacto encontra apoio, como já disse, em grande parte das opiniões e da retórica da ética. Tem muita dificuldade, porém, de adaptar e explicar outras perspectivas e práticas éticas comuns. Muitas das metas que as pessoas consideram importantíssimas não são questões de conseqüência. Disse anteriormente que acredito que entre meus próprios interesses críticos estão as relações íntimas con1 meus fil11os e apreender pelo menos um mínimo das ciências contemporâneas. Outras pessoas têm convicções paralelas: acham importante fazer bem ao menos alguma coisa - dominar algum campo do aprendizado, ou algum ofício, ou aprender a tocar um instrumento musical, por exemplo - não porque o mundo será melhor se o fizerem - que importância pode ter mais uma pessoa saber fazer algo com habilidade mediana se outras pessoas sabem fazer muito melhor? -, mas simplesmente para que elas o tenham feito. Muita gente define metas totalmente adverbiais para si: querem viver, segundo dizem, com integridade, fazendo tudo à sua maneira, com a coragem de suas convicções. Essas diversas aspirações não têm sentido no vocab·ulário do impacto. Não fará nenhuma diferença positiva para ninguém o multo ou pouco que eu entenda de cosmologi..i, por exemplo: não contribuirei em nada para o conhecimento do universo de qualquer maneira. O modelo do impacto faz com que muitas teses populares acerca dos interesses críticos pareçam tolas e auto-indulgentes. O modelo do desafio. O modelo do impacto não nega o fenômeno do valor ético: não nega que as pessoas tenham interesses críticos e que suas vidas sejam melhores ou piores, dependendo de até que ponto esses interesses sejam atendidos. Mas define esses interesses críticos de modo que, como já vimos, restringe o valor ético. Afirma que as vidas

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só melhoram devido a seu impacto sobre o valor objetivo das situações. O modelo alternativo que vou agora elaborar - o modelo do desafio - rejeita essa limitação. Adota a tese aristotélica de que a vida boa tem o valor inerente de uma ação habilidosa. Assin1, afuma que os fatos, as realizações e as experiências podem ter valor ético, mesmo quando não têm impacto além da vida em que ocorrem. A idéia de que uma ação habilidosa tem valor inerente é perfeitamente conhecida como uma espécie de valor interno das vidas. iramos um mergulho complexo e elegante, por exemplo, cujo valor persiste depois que fenece a última onda, e iramos as pessoas que escalaram o monte Everest porq·ue, como elas disseram, ele existe. O modelo do desafio afirma que viver uma vida é, em si, uma ação que requer habilidade, que é o desafio mais abrangente e importantt> que enfrentamos, e que os nossos interesses cr.íticos co11sistem nas realizações, nos eventos e nas experiências que significam que enfrentamos bem o desafio. O modelo do desafio, portanto, oferece espaço às convicções acerca do interesse crítico que o modelo do impacto rejeita por serem auto-indulgentes. É sensato supor, embora não seja óbvio nem incontestável, que faça parte do viver bem adquirir um pouco dos conhecimentos científicos da própria época. O modelo do desafio também não rejeita as intuições que o modelo do impacto acata Também é sensato pensar - na verdade, parece óbvio - que um modo bn1hante de enfrentar o desafio de viver bem é reduzir o sofrimento do mundo curando doenças. O caráter ecumênico do modelo do desafio pode parecer fraqueza, pode parecer demonstrar que o modelo é vazio ou, pelo menos, pouco informativo. O modelo do impacto ·vincula o valor ético ao valor do mundo objetivo e, assim, parece pelo menos oferecer alguma orientação relativa à substância real da vida virtuosa. O modelo do desafio, por comparação, permite que a idéia de valor ético flutue livre de qualquer outro tipo de valor. Se estivermos livres para considerar que fazer ou ter qualquer coisa resolve o desafio de viver bem, então

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o modelo (pode parecer) não é tanto um modelo quanto um tnúsmo: viver bem é fazer tudo o que leve a viver bem. Essa queixa está equivocada. Ambos os modelos dependem de convicções que supõem já termos. O modelo do impacto presume que temos convicções sobre quais estados do mundo têm valor independente; não se oferece para julgá-los, mas simplesmente para explicar nossos valores éticos mostrando a ligação entre nossas opiniões sobre os dois tipos de valor. O modelo do desa.fio também presume quetemos convicções sobre como viver; não as julga, mas nos diz que entenderemos melhor nossa vida ética se as interpretarmos do modo que ele recomenda, como opiniões sobre a ação habilidosa de uma importante missão auto-atribuída, e não como simples opiniões sobre como podemos mudar o mundo para melhor. É verdade, como vimos, que o modelo do impacto faz com que pareçam tolas certas convicções éticas que algumas pessoas têm: essas convicções provavehnentc não sobreviveriam se o modelo fosse considerado exclusivo. Todavia o modelo do desafio também faz com que certas convicções pareçam estranhas, como veremos. A diferença entre os dois modelos, nesse aspecto, é que as convicções que o modelo do desafio torna estranhas são, afinal, convicções que pouca gente teria de fato, se é que alguém as teria. D. Ética e importância

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Precisamos agora analisar as diversas reações que os dois modelos suscitam aos diversos enigmas da ética, e começarei com o primeiro enigma que enumerei: o problema da importância. Já que o modelo do impacto coloca o valor de viver de determinada maneira no valor independente de suas conseqüências, é especialmente vulnerável à acusação de que a diferença que até o ser humano mais poderoso pode fazer no estado de valor do universo é indescritivelmente insignificante. O impacto só resgata a ética dessa re-

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futação se implantar alguma teoria sobre o valor objetivo que resista ao infinito - isto é, alguma teoria que faça com que a influência que as pessoas exercem sobre o universo pareça muito maior do que a objeção afirma. Talvez esse fato explique a atratividade, para algumas pessoas, da afirn1ação romântica de que o maior valor do universo é o estético, já qt1e o valor transcendente de uma obra de arte grandiosa não é, em hipótese nenhuma, desmerecido pelo fato de qtte e.<;tá cercado por bilhões de anos-luz de nulidade estética. Essa teoria do valor, vinculada ao modelo do impacto, poderia explicar por que os gênios artísticos têm vidas grandiosas. Mas se a arte fosse o único valor significativo do universo, não importaria o modo como a maioria vive. A ética só serviria para os grandes espíritos. Existem outras teorias do valor, com menor teor estético, porém, que talvez também resistam ao universo. Urna delas é o antropocentrismo teológico. itamos que exista um Deus que, apesar da magnitude de sua criação, te1n interesse especial pelos seres humanos, feitos à sua imagem, cuja vida pode agradar ou desagradar muito a ele. Se isso fosse verdade, então a vida das pessoas poderia ter impacto importante no universo, se julgadas de maneira objetiva. Ou pensemos em uma tese atualmente muito mais aceita: o antropomorfismo 11edonista. Nessa tese, o prazer ou a felicidade hi1mana é o único valor objetivo, mesmo que os seres hi1manos só existam em uma centelha minúscula e somente por um momento brevíssimo. Essa tese do valor conseqüente, vinculada ao modelo do impacto, produz um.a ética utilitarista reconhecível: nossa vida é boa, no sentido crítico, até o ponto em que criemos prazer ou felicidade para nós inesmos e para os outros. As éticas teológica e utilitarista são, na maioria das versões, elitistas até certo ponto, mas não à maneira óbvia e inaceitável da teoria estética. Algumas pessoas, por serem escolhidas, abençoadas, bemdotadas 011 afortunadas, podem levar uma vida essencialmente melhor, avaliadas à maneira teológica ou utilitarista, do que 011tras_ Mas ninguém está congelado fora da ética,

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já que todos pode1nos influir 11a satisfação de Deus, ou no nível geral de felicidade do mundo. É possível levar uma vida perfeitamente boa, na versão utilitarista, apenas vivendo de n1aneira que produza maior prazer para si mesmo. Assim, o modelo do impacto oferece uma solução para o primeiro enigma da ética, se aceitarmos uma teoria do valor objetivo qt1e torne genuinamente importante para o universo o que as pessoas são capazes de fazer, como o esteticismo ou o antropomorfismo teológico ou o utilitarismo humano. O modelo do desafio resolve o problema da importância de maneira bem diferente, pois o valor do desempenho, como exercício da habilidade diante de um desafio, é completo em si e não depende de nenhum valor distinto e independente. Não precisamos pensar que o estoque devalores duradouros do IDW1do aumenta quando acontece um mergulho impressionante ou quando se escala o monte Everest para entender o motivo do mergulho ou da escalada. Essa resposta não reconhece nem tenta atender à objeção de qtte nada que os seres humanos façam é importante perante o infinito, como o faz o modelo do impacto. O modelo do desafio descarta a objeção por afirmar que ela se baseia na concepção equivocada do tipo de valor que é o valor ético. Esse modelo também não se baseia na importância independente de algum acontecimento, mesmo quando reconhece a importância de fazer diferença no mundo. É obviamente indiscutível que compor músicas excelentes, curar a pneumonia e diminuir a injustiça racial estão entre as boas mane.lras de viver, e não poderíamos aceitar o 1nodelo do desafio se ele não encontrasse um lugar tão confortável para esses juízos quanto o modelo do impacto encontra. Ele não distorce a idéia de ação ou desafio para dizer que alguém que eliminou grande parte da iniséria do mundo viveu sua vida com muito talento. Esse não é, porém, apc11as um modo de inserir o modelo do impacto no inodelo do desafio, como segmento dele, pois o prin1eiro não fará do va-

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lor ln.dependente da ação, como o segundo precisa fazer, a medida de seu valor ético, já que a contribuição para a bondade da vida feita pela invenção, descoberta ou criação de alguém, no modelo do desafio, é sensível a muitas coisas além do valor independente do que foi criado. Pode-se pensar que o valor ético das invenções depende, por exemplo, do grau de dificuldade contido em sua criação, ou na originalidade, ou no ponto até onde o autor fez uso total de suas habilidades, ou as expandiu, ou da intensidade de sua dedicação, ou do modo como seu trabalho fluiu da noção que ele tinha ou de sua dedicação a determinada comunidade ou da tradição. O modelo do desafio, em si, não estipula, evidentemente, qL1ais dessas ou de centenas de out•as ponderações devem entrar 11a decisão acerca da grandiosidade da contrib1.lição de determinada realização à habilidade total com a qual alguém viveu a vida. Volto ao mesmo ponto: tratar as realizações como algo que tem valor ético dessa forma, e não somente devido a seu impacto, permite maior sutileza em nossos juízos acerca do êxito de nossa própria vida e da vida das outras pessoas. O n1odelo do desafio também nos pennite celebrar alguns tipos de ações - criação de obras artísticas grandiosas, por exemplo - se1n a conseqüência elitista de que só vale realmente a pena viver as vidas capazes desse tipo de êxito. ()u que, se a vida de dois artistas é boa devido à arte que criaram, aquele que criou a rr.elhor arte tem, por esse motivo, uma vida mais grandiosa. Reconheço, nesse aspecto, que o nome "modelo do desafio" pode ser enganoso. Não digo que somente as vidas repletas de desafios interiores, decorrentes de atos heróicos como escalar montanhas impossíveis, pop.em ser úteis neste modelo. Pelo contrário, digo que a própria vi.da deve ser encarada como desafio; talvez se acredite que ter habilidade para tal desafio exija evitar; em vez de ado-. tar, as proezas árduas para favorecer uma vida mais adequada aos talentos, à situação, às satisfações ou às expectativas culturais. Não obstante, a questão é novamente formal. Considerar o valor ético como valor de uma ação, e não como vin-

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culado ao valor independente de um produto, permite que mais uma série de ponderações e convicções entre en1 juízo ético, embora não selecione enh·e qualquer conjunto dessas como mais apropriadas que outras.

E. Transcendente ou indexado?

Já que o-modelo do impacto vincula o valor ético ao valor independente das situações, o valor ético precisa ser transcendente nesse modelo, pois é bem implausível que o valor independente dos tipos de impacto que tornam boas as vidas dependa da hora e do local do impacto. Poderíamos, talvez, imaginar teorias estranhas do valor, que indexariam o valor das situações te111poral ou geograficamente. Mas qualquer teoria :Plausível ou familiar seria imune à indexação. Se pensarmos que o único bem objetivo é o prazer de Deus ou a felicidade dos seres humanos, não nos é lícito concluir que a mesma quantidade de prazer divino ou de felicidade humana total teria menos valor em wn momento da história do mundo do que noutro. Isso também deve aplicar-se a teorias mais complexas sobre o valor objetivo que atribuem, por exemplo, valor diferente a cada componente de uma situação geral. Qualquer estrutura complexa de valor independente deve ter o mesmo valor total quan·· do e onde ocorra. Assim, o modelo do impacto, em qualquer interpretação plausível do valor ou dos valores que presume, implica que o valor ético é transcendente. Evidentemente, o que gera valor ético, segundo qualquer interpretação, depende das circunstâncias. O que faz as pessoas felizes em economias desenvolvidas pode diferir do que as fazem felizes em sociedades economicamente mais simples. Mas a medida do valor, de até que ponto a vida de alguém con~eguiu ser boa, deve continuar igual em qualquer lugar. Quanto valor objetivo e eterno, na teoria correta do valor independente, essa pessoa acrescentou ao estoque mundial?

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O modelo do desafio, por outro lado, é tentador para quem o aceita para defender a tese de que o valor ético é indexado, e- não transcendente. lJma pessoa que ac"eitou o modelo poderia, possivehnente, é verdade, adotar uma perspectiva transcendente acerca do que é um bom empreendimento na vida. Poderia achar, por exemplo, que viver bem significa apenas viver com estilo, e poderia ter algum.a opinião a respeito de em que consiste o estilo. Todavia qualquer uma dessas teses eternas seria fatabnente superficial Parece-irresistível que viver bem, julgado como ação, signifique, entre outras coisas, viver de maneira receptiva e apropriada à cultura e às outras circunstâncias da pessoa. Uma vida de virtude cortês e galante poderia ser muito boa na Boêmia do século XII, mas não no Brooklyn de hoje. Uma analogia com a arte seria útil, embora perigosa. Anteriormente mencionei a opinião de algumas pessoas de que a arte tem valor autônomo e eterno, de modo que o mundo é objetivamente melhor por ter um quadro gen lal, seja qual for o modo como esse quadro foi criado. Mas essa opinião, devemos agora reparar, menospreza uma característica importa11te da arte. O quadro não tem um valor independente que possamos chamar de valor do prodt1to: esse é o poder que ele tem de despertar a sensação estética e outras formas de sensações valiosas. No entanto, o valor do produto de um quadro é diferente de seu valor artístico, que é um valor que ele possui, não indeper1de11te1nente, mas devido a como foi produzido. Precisamos da distinção entre valor artístico e de produto para explicar os cüversos valores do original e da cópia perfeita e não detectada. Ovalor que atribuímos à arte grandiosa não expressa apenas seu valor como produto, mas o nosso respeito pelo empreendimento que o produziu, considerado como resposta habilidosa a um desafio artístico bem avaliado. A arte oferece uma analogia melhor da vida, segi,mdo o modelo do desafio, do que as analogias que empreguei anteriormente, pois o desafio da arte, ao contrário do desafio de mergi1lhar bem ou escalar u1na montanha difícil, contém

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o desafio de definir e também de ter êxito; e, se viver bem for considerado um desafio, definir o que é viver berrt deve fazer parte desse desafio também. Ninguém oferece plantas arquitetônicas aos artistas, nem nos momentos mais acadêmicos ou convencionais. Quando Duccio criou a tradição de Siena inspirado na bizantina, ou Duchamp pendurou um urinol na parede de un1a galeria, ou Pollock salpicou tinta sobre uma tela no chão, cada um fez uma afirmação a respeito do caráter da realização artística. Não há tese consolidada sobre o qt1e é a realização artística, como há (imagino) sobrl" realizações em mergulho. E8peramos que os artistas façam afirmações que, se tiverem êxito, expandam, ou pelo menos alterem, o que a tradição considera bom. Amais ousada dessas afirmações (pode-se dizer) pretende fazer algo do nada, criar valor artístico de uma espécie de ação na qual ninguén1 foi reconhecido antes. Se tratarmos o valor ético como o valor da ação, e não como o valor independente do prodt.1to, adotaremos a mesma opinião de uma ação habilidosa de mergulho. Não há dogma estabelecido de habilidade da vida, e a vida de algumas pessoas, pelo menos, faz declarações sobre a habilidade ética que, se amplamente aceitas, alterariam as teses predominantes sobre o assunto, e talvez até lançassem o que pareceria um novo modo de viver bem, voltando a criar valor ético do nada. Não estou dizendo que viver bem a vida requeira ron1per com um costume ot1 uma tradição ética, nem mes1no desenvolvê-la de maneíra ôspecialmente original. O inodelo do desafio cria espaço para tal sugestão: cria espaço para a ordem romântica de qt1e se deve fazer da própria vida uma obra de arte orig:h1al. Todavia não faz questão cerrada desse ideal romântico nem pressupõe que as vidas menos originais devam ser menos bem-sucedidas. Não ofereço a analogia entre a ética e a arte para endossar o ideal rom.ântico, mas para dizer outra coisa. É bem i:mplausível, e estranho ao impulso estético de quase todos nós, supor que o valor artístico seja transcendente, que pintar da mesma maneira sempre tem o mesmo valor artístico,

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que não existe, em princípio, uma maneira absolutamente mais grandiosa de criar arte, em comparação com a qual se deve julgar todas as outras. Os artistas entram na história da arte em detenninada época, e o valor artístico de sua obra deve ser julgado àquela luz, e não porque suas circunstâncias limitem o quanto podem aproximar-se do perfeito ideal artístico, mas pelo motivo contrário que suas circunstâncias ajudam a decidir, para eles, o ideal nuno ao qual devem se esforçar. A situação do artista na história da arte, e as condições políticas, tecnológicas e sociais de sua era, entram nos parâmetros, pode ~se dizer, do desafio que ele enfrente. O desafio de Duccio foi bem diferente do desafio de Duchamp ou Pollock. Mesmo que acreditemos que a arte contemporânea deva explorar e comentar materiais da tecnologia moderna, não devemos considerar uma limitação para o artista do século XIV o fato de não ter tido resina ou epóxi à disposição. Mesmo que achemos qt1e a mitologia cristã seria hoje um tema religioso empobrecido, não consideran1os banal a obra de Duccio. Assim, a analogia artí.stica nos lembra que o valor da ação pode ser indexado sem ser subjetivo, pois a indexação pode ser fornecida pelos parâmetros do desafio que mudam com o tempo e a situação, mas que, não obstante, apresentam exigências categóricas. Viver bem, assim como pintar bem, significa reagir de maneira apropriada à situação, embora, é claro, o desafio ético de determinada época e lugar seja bem diferente de seu desafio artístico. A arte e a ética, nessa perspectiva, estão vinculadas da n1esma maneira. Ambas requerem decisão, fazendo parte do desafio que apresentam acerca da reação certa às circur1stâncias com: plexas nas quais é preciso to1nar tal decisão. Em ambos os casos, é uma questão adicional qual é realmente a reação ética certa para qualquer pessoa em quaisquer circunstâncias em especial, ou se existe uma única reação correta, mesmo que seja somente para uma pessoa ou circunstância, ou apenas um conjunto delas. O modelo do desafio, no nível da abstração que estamos explorando, não tenta responder

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a essas perguntas. Salienta apenas que tipo de perguntas são - que elas requerem uma resposta pessoal à particularidade da situação, e não da aplicação, a tal situação, de um ideal eterno de vida.

F. Limitações e parâmetros

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Devemos agora explorar a distinção na qual acabamos de reparar. Em qualquer versão plausível do motlelo do impacto, todas as circunstâncias da vida real de qualquer pessoa funcionam como limitações à qualidade de vida que ela pode ter. A vida ideal é sempre igual: é uma vida que gera tanto valor independente - tão potente quanto agradar a Deus ou tão humano quanto a felicidade humana- quanto for concebível para-o ser humano gerar. As circunstâncias funcionam como limites sobre até que ponto se pode alcançar o ideaL A mortalidade, por exemplo, é um limite importantíssimo: a maioria das pessoas poderia ter mais prazer se vivesse mais tempo. Talento, riqueza, personalidade, língua, tecnologia e cultura são mais limites, e sua força como limites será muito maior para alguni_as pessoas, e em algumas épocas e alguns lugares, do que para ot1tras. Se adotarmos a tese do desafio da ética, porém, e tratarmos o bem viver como uma reação da maneira certa à sítuação, devemos, então, tratar de outra maneira algumas das circunstâncias nas quais determinada pessoa vive - como parâmetros que ajudam a definir o que seria -para ele o bom desempenho na vida. Alguém que vive bem, segundo o modelo do desafio, inclui sua sensação do que realmente é o desafio que enfrenta ao levar a vida, assim como a pintura de um artista inclui sua sensação de guais aspectos de suas circunstâncias gerais definem a tradição certa para ele seguir ou refutar. Não temos gabarito pronto para tal decisão, na arte ou na ética, e nenhum modelo filosófico oferece um gabarito, pois as circunstâncias em que cada artista vive são imensa-

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mt.'fl.te complexas. Entre essas circunstâncias figuram nossa saúde, nossa força física, a duração de nossa vida, nossos recursos materiais, nossas amizades e associações, nossos compromissos e tradições de família, raça e nação, o sistema constitucional e jurídico no qual vivemos, as oportunidades e os padrões intelectuais, literários e filosóficos oferecidos por nossa língua e por nossa cultura, e milhares de outros aspectos de nosso mundo também. Qualquer pessoa que reflita com seriedade sobre a questão de qual dentre as diversas vidas que poderia levar é a certa para ela, consciente ou inconscientemente, discriminará entre elas, tratando algumas como limites e outras como parâmetros. Posso tratar o fato de ser americano, por exemplo, como um simples fato que, em alguns casos, pode ajudar e, em ou~ tros, impedir qtte eu leve a vida que acho melhor. Ou poderia tratar minha nacionalidade como parâmetro e St1por, com ou sem autocrítica, que ser americano faz parte do que delermina a vida certa para mim. Nenht1m modelo filosófico pode adjudicar essa distinção, certamente não de maneira pormenorizada. A maioria das pessoas divide suas circunstâncias em dois campos quase automaticamente, e as que ponderam sobre a distinção provavelmente não retirarão de nenht1ma teoria geral as conclusões a que chegam. Mas se não acho que a ética é transcendente- se não creio que uma vida seria a inais grandiosa para todos os seres humanos que já viveram - er1tão devo tratar alguns dos fatos que distingue1n a minha situação da sihlação de outras pessoas como parâmetros, e não como limitações.1vlinhas associações biológica, social e nacional- aquelas com as qi..1ais nasci e nas quais caí, e não as que escolhi - parecem-me ótimas candidatas, embora possam não ser para outras pessoas. O fato de ser membro da comunidade política americana não limita a minha capacidade de levar uma vida boa que eu possa descrever isolando-a de tal ligação. Pelo contrário, afirma t1ma condição da vida boa para mim: é uma vida apropriada a alguént cuja situação co1ttém. essa conexão.

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No entanto, é claro que não posso tratar tudo de minha siLuação como parâmetro sem destruir completamcrtte minha ética. Imaginemos que eu usasse ineu próprio caráter, meus desejos, recursos, oportunidades e predilcções a fim de marcar parâmetros para mim; digo que a vida boa para mim é a vida boa para alguém com exatamente minha atual riqueza material, nível cultural, preferências e aspirações. Teria vinculado minha tese da vida boa tão completamente à minha própria situação imediata que ela não mais representaria desafio. Assim, viver bem requer mais discriminação acerca de limites e parâmetros do que ambas as perspeclivas extremas para as quais tudo é limitação ou tudo é parâmetro. É afortunado o fato de que a maioria das discriminações de que precisamos seja, como eu já disse, mais ou menos automática, trafegando pela nossa cultura como tantas outras coisas acerca da ética. Não obstante, podemos identificar algumas das decisões que tomamos secretamente e .nos obrigar a analisar se foram to1nadas da maneira correta. Alguém pode vir a pensar, por exemplo, que suas ligações profissionais, religiosas ou algumas outras são ainda mais fundamentais na definição do desafio q·ue enfrenta na vida do que as políticas, e pode, portanto, procurar cidadania em outra nação. Quando refletimos dessa maneira sobre a estruh1ra de nossas convicções éticas, percebemos complexidades importantes. Reparamos que muitos de nossos parâmetros são normativos: não definem nossa ética segundo nossa situação real, mas segundo nossa situação como presumimos que deveria ser. Em outras palavras, nossa vida pode ir mal, não só porque não estamos dispostos ouso111os incapazes de reagir às nossas circunstâncias, mas porque temos as circunstâncias equivocadas. Nem ao menos encaramos o desafio que identificamos como o correto. Mesmo que façamos o melhor possível nas circunstâncias que enfrenta:mos, erramos ao medir nosso êxito em comparação com a oportu.nidade que acreditamos ser merecedores, e é esta última que define a vida boa para nós.

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Analisemos, por exemplo, o modo como a maioria de nós trata nossa mortalidade. Não consideramos o fato de que vamos morrer um dia, por mais que possamos temê-lo ou nos ressentir dele, como limitação do valor da vida que podemos ter. Não pensamos que nossa vida pode ser, na 1nelhor das hipóteses, apenas em minúscula fração tão boa quanto a vida que as pessoas poderiam levar se vivessem até idades bíblicas ou eternamente. Consideramos a vida' boa nesse sentido se durar bastante pelos padrões humanos, de modo que possa ter os tipos de inter-relacionamentos de idade e geração, e os outros tipos de complexidade interna que nossos padrões culturais de vida boa presumem '7. :Nlas não julgamos a bondade da vida de alguém apenas perguntando se ocupou bem a faixa de anos que de fato teve. Fazemos conjecturas sobre quanto tetnpçi se pode esperar que a vida humana dure razoavehnente, dados os recursos apropriados em nutrição e medicina, e, se alguém morrer bem cedo segundo esse padrão, considera1nos q11e é uma tragédia. A vida dessa pessoa, sendo todo o resto o mesmo, foi apenas parcialmente tão boa quanto poderia ter sido. Muitos de nossos parílmetros éticos são normativos dessa maneira: ajudam a definir o desafio que as pessoas devem enfrentar. Uma vida à qual não se pennite esse desafio é, por isso mesmo, pior. Esse fato aponta para mais uma complexidade. Precisamos distinguir entre o que chamarei de parâmetros rígidos e suaves. Os parâmetros entram na descrição de qualquer desafio ou missão: definem as condições da ação bem-sucedida. Os parâmetros rígidos declaram condições :especiais de determil1ada ação: se essas condições forem ;violadas, a ação é um fracasso total, seja qual for seu êxito em outros aspectos. A estrutura formal do soneto impõe parâmetros rígidos: corrompe o soneto acrescentar maLc; -7. Ver "Age", 1111 Encyclopedia of lhe ItalianRenaissance (Nova York: Oxford University Press, 1981), p. 17.

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um verso, por mais bonito que seja. Os parâmetros suaves também definem uma missão, mas, embora qualquer violação a parâmetros suaves seja uma falha grave, comprometedora- uma fissura na ânfora de ouro-, esse comprometimento não é fatal e pode ser superado. A.5 figuras obrigatórias na patinação artística são, acredito, parâmetros suaves. Faz parte da missão que o patinador execute determinada figura, e quaisquer desvios, por mais bela que seja sua execução, são faltas que lhe custam pontos. Mas os desvios não significam que o patinador não ganl1e ponto nenhum, e a apresentação que contiver um desvio especialmente brilhante pode ganhar mais pontos no cômputo total do que uma apresentação medíocre, porém perfeitamente fiel. A maioria de nós, pelo menos, acredita que os parâmetros que definem o êxito no viver a vida sâb todos suaves. Conta contra a bondade da vida que tenha sido interrompida por ·uma morte prematura porque a vida boa do ser humano ocupa e faz bom uso de pelo menos uma vida de duração normal. A vida curta, porém, pode ter um sucesso brilhante, como a de Mozart. Alguns parâmetros suaves exigem escoll1as, e estas podc1n apresentar conflitos ou dilemas. Suponhamos q·ue minha vida deva ser apropriada aos americanos e também aos sionistas, e depois eu venha a pensar - correta ou equivocadamente ~ que aceitar totalmente essas duas associações arruinaria minha vida. Posso pensar q·ue a melhor vida para mim exigiria mais transigências, ou aceitar um parâmetro e rejeitar o outro. Ou posso pensar que nenhuma escolha, nessas circunstâncias, poderia ser considerada melhor que a outra, que preciso apenas escolher sabendo que minha vida sofrerá danos de qualquer maneira. O modelo do desafio confere mais sentido a todas essas circunstâncias e dile1nas do que o modelo do impacto.

G. A justiça como parâmetro O quarto conjunto de enigmas que descrevi é gerado pela interação e11tre ética e m1)raüdade. É possível levar urna

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vida melhor devido à injustiça? Agora quero distinguir duas versões dessa questão. Em primeiro lugar, que efeito sofre o valor crítico da vida de alguém em conseqüência de seus próprios atos iníustos? Em segundo lugar, como essa vida é afetada pelo fato de sua sociedade ser injusta, embora não o seja devido a seus próprios atos? O modelo do impacto, em sua forma abstrata, não assume posição na primeira dessas qtlestões sobre as conseqüências éticas dos atos injt1stos da própria pessoa, porqt1e podemos encontrar interpretações dela que sejam compatíveis com ambas as respostas. Numa interpretação, por exemplo, só fazemos bem ao mundo quando o tornamos menos injusto, e nessa interpretação ninguém poderia ter uma vida mell1or por meio do comportamento que produzisse mais injustiça no mundo. 'Em outra interpretação, a vida mais grandiosa é a que produz a arte grandiosa; nessa interpretação, a fuga de Céz.anne do serviço militar' tomou sua vida mais grandiosa, mesmo que essa vida tenha sido incontestavelmente injusta. No entanto o modelo do impacto, mesmo em sua for1na abstrata, assume uma posição com relação à segunda questão. Afirma que o fato de alguém viver em uma sociedade injusta não faz difere11ça, em si, para o êxito ou o fracasso da própria vida. Parece irrefutável qt1e hoje em dia i1os Estados Unidos algumas pessoas - que chamarei de ricas - tenham mais riqueza do que a justiça permite, e o·utras - as pobres- tenham menos. Contudo, o rico pode usar sua riqueza para gerar impacto positivo no mundo. Pode empregá-la para criar ou patrocü1ar a arte grandiosa, ou financiar sua própria pesquisa, ou a de outrem, em antibióticos, ou para trabalhar na política por maior igualdade, 011 1:1.té ajudar os pobres de maneira mais direta, doando-lhes seu dinheiro. Como quer que interpretemos o valor objetivo, o impacto da vida dessa pessoa provavelmente terá mais valor do que teria tido se ela tivesse apenas u1na riqueza mediana; já que a situação injusta (que estamos s·upondo) não foi criada por ela, não há valor de impacto.negativo, em sua própria vida, para se definir contra o ganho.

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Vejamos agora o pobre. Ele terá, quase que indubitavelmente, uma vida pior, avaliada por seu impacto, do que teria tido se tivesse mais riquezas. Mas isso não decorre do fato de sua menor riqueza ser injusta: não é a injustiça de seu quinhão de recursos, mas o total absoluto desse quinhão, que define os limites do impacto que podemos provocar. Ele não julgaria sua vida melhor se mudássemos de idéia com relação à justiça e decidíssemos que o qttinhão dele é justo. O modelo do desafio propõe outro modo de tratar as duas questões. Quem aceita esse modelo, e ite, assim, que alguns aspectos de nossas circunstâncias devem ser considerados parâmetros normativos do bem viver, achará difícil não considerar a justiça como membro desse conjunto de parâmetros normativos. Decerto os recursos precisam figurar como 'parâmetros, de alguma maneira. Não podem figurar somente corno limitações, porque não podemos pensar que a melhor vida ideal é a de quem tem a seu dispor todos os recursos que se possa imaginar. Isto é, não podemos descrever o desafio de viver bem sem formular algumas hipóteses sobre os recursos de que a vida boa deve dispor. 'Devemos, portanto, procurar alguma opinião adequada sobre o modo como os recursos entram na ética co1no parâmetros da vida boa, e acho que não temos alternativa senão inserir a justiça nessa história, estipttlando que a vida boa é adaptada às circunstâ11cias que a justiça exige. Se, para viver bem, temos de atribuir a nós mesmos o verdadeiro desafio na vida, e isso, por sua vez, significa esti.p·ular os recursos certos por meio de parâmetros, então quaisquer convicções norma.tivas que tivermos acerca da distribuição certa de recursos parecerão inevitavelmente pertinentes. Seria estcanho declarar, como juízo moral de nossa preferência, que seja apropriado qt1e cada pessoa tenha sua parcela justa de recursos, definidos de determinada maneira, e não pensar também, ao fazer um juízo ético sobre quais circunstâncias devemos tratar como apropriadas na decisão de q11al vida seria boa para nós, que as circuns-

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tâncias justas, assim definidas, sejam as apropriadas. Não podemos evitar essa conclusão ao dizer que o que é moralmente apropriado não é, necessariamente, o que é adequado eticamente, pois a idéia dos parâmetros normativos não teria sentido se insistíssemos em tal distinção. Devemos definir os parân1etros dos recursos da vida bem-vivida da melhor maneira que nos for possível, de modo que eles respei.tem nossa idéia de justiça. Se viver bem significa reagir da maneira adequada ao desafio certo, então a vida da pessoa piora quando ela trapaceia outras pessoas para obter uma vantagem injusta. Também piora quando, embora não tenha culpa, vive em uma sociedade injusta, pois, nesse caso, 11ão pode enfrentar o desafio certo se for rico, com mais do que a justiça lhe permite ter, ou pobre, com menos. Isso explica por que, no modelo do desafio, a injustiça, sozinha, é ruim para as pessoas. A pessoa a quem se nega o que a justiça lhe confere o direito de ter leva uma vida pior exatamente por esse motivo; leva uma vida pior do que levaria com os mesmos recursos absolutos em uma era mais pobre, digamos, quando ninguém tivesse mais do que ela. Não quero dizer, certamente, que o valor absoluto ou ;:i. qualidade dos recursos de que a pessoa dispõe não faça diferença para a vida. que leva, contanto que tenha o quinhão justo de tudo o que existe. Quem vive em uma co111unidade ou época mais rica, com a parcela justa de sua riqueza, encara um desafio mais interessante e valioso, e pode levar lima vida mais animada, diversa, complexa e criativa só por esse motivo, mais ou menos co1no um enxadrista tem uma oportunidade mais valiosa do que a pessoa que joga o jogo da velha. A vida pode ser melhor de diversas ma11eiras, e encarar desafios mais valiosos é uma de!las. Reconhecer a justiça como parâmetro da ética, porém, lhnita a bondade da vida ql1e se pode levar em quaisquer circunstâncias ecot1ômicas. Eu poderia ter uma vida melhor, presumo, se as circunstâncias mudassem de modo qt1e a justiça me concedesse mais recursos. Não se segue, porém, que eu poderia ter uma vida melhor com uma parcela injustamente maior de recursos agora.

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Mas será mesmo verdade que alguém possa, em quaisquer circunstâncias, levar un1a vida melhor tendo mais do que a justiça permite? A tese de Platão tem alguma plausibilidade se entendermos que ele afinna ser a justiça um parâmetro rígido do bem viver, que ninguém pode melhorar a vida no sentido crítico en1pregando mais recursos do que faz j'us, não mais do que se possa melhorar um soneto acrescentando-lhe mais versos. Quando itimos que a melhor vida é a que reage bem às circunstâncias adequadas e que tais circunstâncias são as da justiça, percebemos como é difícil levar uma vida certa quando as circunstâncias estão longe de ser justas. Percebemos, de fato, como é difícil até imaginar uma vida totalmente boa, então. Nossa própria sociedade é injusta. Portanto, nossa cultura não oferece exemplos de vidas que tenham prosperado ou fossem julgadaS bem-sucedidas nas circunstâncias em que deviam estar. Aqueles dentre nós que são ricos não podem estabelecer relações com outras pessoas, principa1men te as que são pobres porque somos ricos, que seriam importantes para uma vida boa em uma sociedade justa. Poden1os tentar viver somente com os recursos que achamos que teriamas em uma sociedade justa, fazendo o possível, com o excesso, para reparar a injustiça por intermédio de beneficência particular. l:Urém, já que não se pode implantar a distribuição justa de maneira contrafactual, mas só dinamicamente, por meio de instituições justas, não somos capazes de julgar qual parcela de 11ossa riqueza é justa. Por outro lado, simplesmente ignorar o fato da injustiça, e gastar o que temos na satisfação dos interesses volitivos que nossa cultura recomenda às pessoas de nosso meio, não parece uma resposta apropriada. Podemos trabalhar na política. Contudo é improvável que o façamos muito bem, e o nosso fracasso em tornar a comunidade mais justa vai piorar ainda mais nossa vida, pois o fracasso da comunidade é, então, também nosso. Assim, quando identificamos as condições de uma vida realmente boa, com as idéias claras, podemos ter considerável empatia com a tese platónica de que

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a justiça é um parâmetro rígido da ética, de que nada pode redimir uma vida destruída pela desgraça de viver em um Estado injusto. Não obstante, essa tese iigida não parece tão forte. Uma postura alternativa, de que a justiça é um parâmetro suave, e não rígido, também tomaria a justiça constituinte da ética, mas seria menos destrutiva para intuições éticas recalcitrantes. Segundo essa tese, embora uma pessoa sustentada por riqueza injusta não possa ter êxito total, pois não enfrenta o desafio apropriado, que é viver uma vida adequada a alguém em uma comunidade justa, su_a vida não é, entretanto, automaticamente sem valor, e poderia ser uma vida muito boa. De fato, assim como um patinador que se desvia das manobras obrigatórias, ela pode até ser, em casos raros, uma vida melhor do que a que essa pessoa levaria em uma sociedade perfeitamente justa. Isso não se aplica, porém, à maioria das pessoas que têm rr,ais riquezas do que deviam. Elas não farão i1ada de brilhante ou fa11tástico com o excesso sobre o que a justiça lhes permitiria e que viesse a compensar por sua incapacidade de levar uma vida boa em uma comunidade justa Alguns podem gozar mais a vida do que gozariam em uma comunidade assim, é claro . .Isso não significa que a vida dessas pessoas seja melhor no sentido crítico. Não obstante, itimos que algum. gênio financiado pela riqueza injusta - Michelangelo, pelos Médici - pode levar uma vida mais grandiosa do que qualquer pessoa poderia levar em um Estado justo. (Como disse Harry Lime em O terceiro hon1em, o século )0l italiano produziu a tirania e o Renascimento. A S·uíça, no mesmo período, produziu a democracia e o relógio de cuco.) A criança cuja vida é salva por um. tratamento médico caríssimo ao qual só tem o devido à riqueza inj'usta dos pais - tratamento que não seria ível a ninguém em uma sociedade justa n1uito provavehnente terá uma vida melhor em conseqüência disso. Parece que nosso senso de possibilidade ética t.'Xige essas concessões. Mas, c;1nbora qualifiquem as idéias de Platão, não as destroem. No modelo do desafio, Platão estava qt1ase certo.

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H. Cumulativa ou constitutiva? Nosso próximo grupo de enigmas trata da conexão entre nossas convicções e a bondade da vida que vivemos. Até que ponto e de que maneira ter eu uma vida boa depende de eu considerá··la boa? Presumimos instintivamente que os padrões éticos sejam objetivos: determinada vida, achamos, não pode ser boa para a pessoa só porque ela acha que é. Ela pode.ter se equivocado ao achá-la boa. Mas sabemos que as convicções têm um papel mais importante na ética do que esse simples enunciado afirma. Como seria bom para alguém, mesmo no sentido crítico, levar uma vida que despreze e considere indigna? Então somos todos tentados a dizer, pensando bem, que o valor ético deve ser, afinal, subjetivo - ter t1ma vida boa deve ser uma questão de satisfação ética, o ·que significa qt1e, no fim das contas, deve ser uma questão de achar a própria vida virtuosa. Contudo o círculo vicioso retoma ao início: não posso achar boa a minha vida, a não ser que ache que sua bondade não depende de minha opinião. O inodelo do impacto corta esse nó, afirmando com veemência que o valor ético é totalmente objetivo, de modo qt1e se possa realmente levar uma vida melhor do que alguma vida alternativa que se pudesse levar, mesmo quando se pensa que é uma vida muito pior. O valor ético é cumulativo, e não constitutivo, no modelo do impacto, pois o valor ético é uma questão do valor independente que a vida acres·· centa ao universo, e isso não pode depender de quanto valor a pessoa acha ql1e está acrescentando. Criar arte grandiosa não requer a crença do artista de estar criando arte grandiosa. Nem o fato de aumentar a felicidade do próximo requer que se acredite estar fazendo isso, muito menos que se acredite estar levando uma vida melhor ao fazê-lo. Em alguns casos, as convicções éticas do agente podem au · mentar o impacto do que ele faz. Talvez ell possa gerar mais prazer com o que faço se as outras pessoas souberem que acredito também estar me fazendo bem. Mas o impacto adi-

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cional é incremental. O modelo do impacto não teria problema, portanto, para explicar a sensação comum que relatei anteriormente: que Hitler teria tido uma vida melhor para si mesmo, bem como para o resto do mundo, se o tivessem internado ot1 n1esmo assassinado logo após nascer. O impacto da vida de Hitler teria sido, então, muito mais favoráveL mesn10 q11e não tivesse tido repercussão r1enhuma na época, e a vida teria sido muito melhor, no sentido crítico, também para ele. A tese do desafio resolve o enigma de 011tra form.a. Em qualquer interpretação plausível desse modelo, a ligação entre convicção e valor é constitutiva: minha vida não pode ser

melhor para mim devido a alguma caracterfstica ou componente que eu acredite não ter valor. Mesmo em sua forma mais abstrata o modelo pressiona na direção da perspectiva constitutiva, pois a intenção faz parte da ação: não damos crédito ao agente por alguma característica de se11 desempenho que ele se esforçasse por evitar, nem reconheceríamos, mesmo em retrospectiva, como boa ou desejável. O desempenho do aluno de arte não melhora quando o professor segura sua mão sobre a tela, 011 a impede de dar uma pincelada que viesse a estragar o que já fizera. Af, amizades que o mi·· santropo crê inúteis não melhoram sua vida. Evidentemente, teria sido melhor para todos se Hitler tivesse morrido no berço. Mas, na pcrspectiva do desafio, não faz sentido clizer que a vida dele teria sido melhor, ao contrário de não ter si.do pior, se isso tivesse acontecido. Não existe nada comparável sob tal inodelo a um impacto negativo no mundo. Talvez seja útil analisar, i1este ponto, como essa diferença entre os dois modelos afeta un1a questão comum da filosofia política- a legitimidade do paternalismo crítico coercivo. Será apropriado o Estado tentar melhorar a vida dns pessoas obrigando-as a agir de maneira que elas achem que vai piorar suas vidas? Grande parte do paternalismo coercivo não é de caráter crítico. O Estado obriga as pessoas a utilizar o cinto de segurança para protegê-las do mal que supõe pensarem con10 suficientemente ruim para justificar

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tais restrições, mesmo que não usassem o cinto de segurança se não fossem obrigadas. Alguns Estados, porém, reivindicam o direito, ou mesmo a obrigação, de melhorar a vida das pessoas no sentido critico, isto é, não só contra sua vontade, mas contra sua convicção. Esse motivo de coação não tem tido importância muito prática na atualidade. Os colonizadores teocráticos visam à própria salvação, e não ao bem-estar daqueles que obrigam a se converter, e os reacionários sexuais agem por ódio, e não por preocupação com as pessoas cujo comportamento julgam imoral. Não obstante, alguns filósofos declaram motivos paternalistas: alguns assim chamados comunitaristas ou perfeccionistas querem obrigar as pessoas a votar, por exemplo, com adesculpa de qtte as pessoas de mentalidade cívica levam uma vida melhor. O modelo dO ilnpacto aceita a fundamentação teórica do paternalismo crítico. Não estou dizendo que qualquer pessoa que aceite esse modelo deva aprovar o paternalismo. Talvez quem o aceite ache que as autoridades abusariam do poder ou fariam juízos piores sobre o valor ético do que as pessoas normais o fariam por conta própria. Contudo entenderiam o paternalismo ético: talvez fizesse sentido para elas, por exemplo, que as vidas das pessoas melhorassem se fossem obrigadas a rezar, pois, nesse caso, agradariam mais a Deus e teriam impacto mais forte, embora permanecessem atéias. A perspectiva do desafio, por outro lado, rejeita o pressuposto fundamental do paternalismo críticci: de que é possível melhorar a vida da pessoa obrigando-a a algum ato ou abstinência que considere inútil. Quem aceita o modelo do desafio pode muito bem achar que a devoção religiosa é parte essencial de co1no os seres humanos devem reagir a seu lugar no universo e, portanto, tal devoção faz parte do bem viver. Mas não se pode achar que o culto religioso involuntário - rezar à sombra do açoite - tenha algum valor ético. Talvez se pense que o homossexual ativo arruína a vida por não entender a finalidade do an1or sexual. Contu-

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do não pode achar que o homossexual que pratica a abstinência, contra suas convicções e por puro medo, tenha, por conseguinte, superado tal restrição na própria vida. Isto é, no modelo do desafio é o desempenho que vale, e não o mero resultado externo, e é preciso ter a motivação certa para a ação certa. Exagera-se a questão dizer que o modelo do desafio exclui qualquer forma de paternalismo, pois o defeito que encontra no paternalismo pode ser curado pelo endosso, contanto que o paternalismo seja de prazo suficientem.ente curto e limitado para que não restrinja as escolhas de maneira significativa caso jamais haja endosso. Sabemos que a criança a qttem se obriga estudar música·provave1mente mais tarde endossará a coação, concordando que melhorou sua vida, de fato; caso não endosse, perdeu pouco em uma vida que não utiliza d.a educação mttsical que recebeu. De qualquer maneira, o endosso precisa ser genuíno, e não é genuíno quando alguém é hipnotizado, a por lavagem. cerebral ou se converte por medo. O endosso só é genuíno qttando é, em si, o agente da açáo, e não o resultado dos pensanlentos de outrem que lhe enfiam no cérebro8 . Os exemplos de patemalis1no crítico que empreguei até aqui são casos de paternalismo cirúrgico: a coaçã.o é justificada porque o comportan1ento in1plantado é bom, ou o comportamento praticado é ruim para as pessoas. Agora analisare1nos ·uma forma ainda mais co1nplexa de paternalismo. O paternalismo de substituíção justifica uma proibição indicando não o mal do que proíbe, mas o valor positivo da vida substituta que viabiliza. itamos que as autoridades pensem que a vida de devoção religiosa é um desperdício e, portanto, proíbam as ordens religiosas. Os cidacl1.os qt1e talvez tenham ado a vida inteira en1 ordens levarão outra vida, com outras experiências e realizações que acharem valiosas, embora (a menos que tnudem de convicção e endossem o paternalisn10) achem q11e essa vida é pior do que a que lhes 8. Falo u1n pouco 1nais sobre esse assunto no C
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negaram. Uma pessoa que gostaria de ar a vida em uma

ordem monástica poderia, por exemplo, abraçar 11ma vida política bem-sucedida e valiosa para outras pessoas em aspectos que ele concorda que tornam sua vida melhor.

Agora reaparece o dilema que percebemos anteriormente. Suponhamos que concordamos que a vida de devo-

ção religiosa é um desperdício. A vida do político não foi desperdiçada. É verdade que não se pode creditar-lhe a decisão de abrir mão da devoção em prol da política, .pois .não

é algo que ele tenha feito ou aprovado. No entanto, podese creditar-lhe os diversos atos e decisões que fazem de sua vida pública uma vida bem-su.cedida; ele escolheu essa vida e tomou essas decisões com a noção de seu valor. Como não

podemos pensar que a vida decente que ele, de fato, levou foi melhor do que a vida que acreditamos que teria sido inútil, tanto faz o qúe ele pensa. Não obstante, a estranheza permanece: como a vida que ele l<.>vou pode ser melhor se ele for para o túmulo pensando que foi pior? Em que sentido foi mais bem-sucedida a vida que deixou uma pessoa ressentida, acreditando que levava uma vida falsa e distorcida, em conflito com sua própria noção de ética? O modelo do desafio (en1bora não o modelo do impacto) tem os recursos para resolver este dilema. Se aceitannos o modelo do desafio, podemos insistir na prioridade da integridade ética em quaisquer de nossos ju.ízos sobre a bondade da vida de alguém. A pessoa alcançou a integridade ética, pode-se dizer, quando vive com a convicção de que sua vida, em suas características principais, é apropriada, que ne11huma outra vi.da que poderia viver seria uma reação nitidamente melhor aos parâmetros dessa situação ética corretamente julgada. A prioridade da integridade faz uma declaração mais forte do que simplesmente afirmar que a decepção e a lástima destroem a vida, que essas sâo características de un1a vida que pro tanto torna pior. Se isso fosse tudo, então esses componentes i1egativos poderiam ser facilmente superados pelas características positivas da vida substituta. Estaríamos à vontade para dizer que; muito

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embora o político tivesse preferido muito mais a vida em ordens religiosas, sua carreira política estava, contudo, equilibrada, mesmo considerando seus próprios sentimentos, uma

vida melhor do que a vida desperdiçada que teria tido. Se dermos prioridade à integridade ética, transformamos a fusão de vida e convicção em parârr,etro de êxito ético, e estipulamos que a vida que jamais atinge tal tipo de integridade não pode ser essencialmente melhor para alguém do que a vida que já leva. É claro que a integridade ética pode fracassar por muitos motivos. Fracassa quando as pessoas vivem mecanicamente, sem o senso de ter e de reagir às convicções éticas.

Fracassa quando as pessoas deixam de lado suas convicções e servem aos interesses volitivos com uma noção vaga, porém persistente, de que não vivem como deveriam. Fracassa quando as pessoas acreditam, certas ou er.radas, que os parâmetros normativos corretos ainda não foram satisfeitos, quai1do têm menos recursos do que a justiça permite, por exemplo. E fracassa visivehnente quando as pessoas são obrigadas a viver, por ordens de outras, de maneira que lamentem e jamais aprovem. Assim, reconhecer a pdoridade da integridade ética não toma a ética subjetiva na primeira pessoa, isto é, para alguém avaliando como deve viver. Mesmo na pdmeira pes-· soa, porén1, a integridade ética às vezes adquire força independente. Não posso ar a vida inteira me torturando com a ética; preciso chegar a um acordo, pelo menos temporário, com as convicções que sobrevivem a uma análise decente e honesta. o a tratar essas convicções, então, não n1ais como simples hipóteses sobre o valor ético, mas, certo ou errado, como estipuladora.e; do que a integridade ética requer de mim. Afirmo uma outra virh1de quando 1ne apego a elas por esse ntotivo. Mas há limites para quando e até que ponto posso persistir assim em decisões anteriores, pois viver a con.vicção reque~ se não continuar a reflexão autocrítica, pelo n1enos levar a sério quais dúvidas ou remorsos possam s11rglr, bem como os conselhos de profes~ sares e amigos.

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O papel da integridade ética é diferente na terceira pessoa. Quando analiso qual vida é melhor para outra pessoa, devo co11templar suas convicções estabelecidas, as~ sin1 como os fatos, no meu juízo acerca de qual tipo de vida essa pessoa deve levar. Se o meu a.migo, depois de muita auto-análise e de abrir-se aos argumentos contrários, deci·· de ingressar em ordens religiosas, imagino a vida dele, então, seguindo em três rumos. Ele pode mudar de idéia (talvez depois de -refletir sobre outros.argumentos) e ingressar na política, com êxito, para o bem do país, e com satisfação e confiança totais no valor do que faz e na sensatez da escolha. Ou não se desviar do rumo tomado e viver u1na vida de devoção religiosa, novamente com satisfação e confiança totais .na escolha feita. Ou, por algum motivo, acatar os conselhos dos amigos e ingressar na política contra sua própria :intuição e co"nvicção; terá êxito, mas não encontrará satisfação genuína nem auto-aprovação, e nunca deixará, portanto, de se arrepender da escolha. Não duvido que a primeira vida é a melhor, para ele, do que qualquer uma das outras duas. Mas também não tenho dúvida de que a segunda é melhor que a terceira, e isso expressa meu compromisso co.m a prioridade da integridade na terceira pessoa. Não há ceticismo na minha classificação. Não quero dizer que a vida de devoção religiosa seja n melhor para ele por que ele acha que é. Não mudei de opinião de que a vida dele terá inenos êxito do qt1e poderia ter, e continuarei a discutir com ele se achar que posso fazê-lo mudar de idéia. Quero dizer que, dadas suas convicções inabaláveis, é a única vida que ele pode levar em paz consigo mesmo, e é, portanto, o melhor que ele pode fazer para resolver o desafio de sua situação, agora contendo esse fato. É claro que algumas co11vicções éticas são tão terríveis ou degradantes que não incentivaríamos alguém que fosse incapaz de se livrar delas a viver em paz com elas. Mas isso porque a vida perversa é ruim para outras pessoas, e não porque achamos que a vida contra as próprias convicções seria mell1or para ele. Se itirmos a prioridade da integridade ética, por que nos preocupamos com a vida das outras pessoas, con-

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tanto que elas a achem satisfatória? Por que devemos tentar persuadir alguén1 que só vê valor na riqueza e no poder a reconsiderar, se essa pessoa não tem dúvidas a respeito da solidez de suas convicções materialistas? A resposta pode estar shnplesmente no qt1e parece uma benevolência bem abstrata: acreditan1os que as pessoas devam levar uma vida melhor, procurar integridade em nível mais alto, mesmo que a satisfação qtte nela encontram não seja maior do que a da vida que levavam antes. O princípio da prioridade não oferece motivo para não tentarmos melhorar a vida do próximo dessa maneira, por meio de persuasão e exe1nplo. I.>orém, na maioria das circunstâncias, o princípio oferece um motivo mais positivo para a benevolência ter de assumir tal forma, pois desconfiamos que o materialista e o misantropo não acharão sua vida, no fim das contas, realizada ou satisfatória; desconfiamos que seu senso éticÜ um dia revelará que sua vida foi estéril e infrutífera, embora talvez tragicamente tarde demais. Também sabemos que a integridade, de certa forma, é uma questão de grau: mesmo pensando que sua vida é bem-sucedida agora, e continuando a pensar assim, achamos que poderiam juntar a vida e a convicção de maneira ainda mais bem-sucedida com outras convicções. Por conseguinte, será que a prioridade da integridade recomenda uma forma mais profunda de paternalismo do que as que analisa1nos até aqui? Estou pensando no paternalismo cultural: a afirmação de que se deve proteger as pessoas contra a escolha de vidas desperdiçadas ou ruins, não por meio de meras proibições do direito pe11al, mas de restrições educacionais e dispositivos que eliminem as opções hiins da vista e da imaginação das pessoas. Ninguém toma decisões sobre como viver em um vácuo cultural. As pessoas reagem de inúmeras maneiras ao que a cultura lhes torna ível por n1eio de possibilidade, exemplo e recomendação. Por que, então, não devemos tentar tor11ar o ambiente Cultural o mais sadio possível, pelo ben1 das pessoas que de cidirão como viver inflt1enciadas por ele?

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É claro que nossas circunstâncias, inclusive o vocabulário ético e o exemplo de nossa cultura, afeta1n nossas reações éticas. }.;las, de certa forma, essas circunstâncias dependem de nós, coletivamente, e quando dependem, devemos perguntar quais deveriam ser. Isto é, devemos pergun·· tar quais circunstâncias são apropriadas para as pessoas que valorizam à vida demonstrando habilidade para viver. N'a se-· ção anterior, vimos como a justiça se toma uma questão tanto ética quanto política. Precisamos de parâmetros normativos para definir o desafio da vida, e a justiça entra na ética quando indagamos como os recursos devem figurar na compreensão que as pessoas têm do desafio. As questões acerca do paternalismo critico entra1n na ética, no modelo do desafio, de maneira.semelhante. Quem defende o paternalismo cultural afinna, com efeito, que as circunstâncias apropriadas reflexão ética são aquelas nas quais as vidas ruins ou desperdiçadas forain eliminadas coletivamente, de modo que as decisões que cada indivíduo tem de tomar sejam escolhidas em uma relação deliberadamente restrita. Se essa fosse uma perspectiva menos sensata do que a reflexão ética deve ser, então meu argumento de que o paternalismo destrói o valor ético, porque arruína a integridade ética, estaria completa.mente deslocado. Viver bem si.gnificaria fazer as melhores escolhas em unla lista seleta, e o }1aternalismo seria indispensável, e n.ão uma ameaça ao êxito ético. Mas isso não é sensato: o desafio não é mais interessante, ou mais valioso, quando foi estreitado, simplificado e expurgado por outras pessoas, e isso também é verdadeiro tanto quando ignoramos o que fizeram quanto quando temos con11ecirnento disso. Suponhamos que alguém responda que o desafio é mais valioso quando se aumentam as chances de escolher uma vida verdadeiramente boa, co1no aumentariam se a lista de possibilidades fosse filtrada por sábios governantes coletivos. Essa resposta compreende muito mal o inodelo do de~ safio, poi.s confunde os parâmetros com as limitações. Presume que te1nos alguma idéia do que é a vida boa que trans-

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cenda a questão de quais circunstâncias são apropriadas para as pessoas decidirem como viver, e possa, asslm, ser empregada na resposta à última pergunta, estipulando que as melhores circunstâncias são as que têm mais chances de prodttzir a resposta realmente certa. Na perspectiva do desafio, viver bem é reagir de maneira apropriada às circunstâncias cotTetamente julgadas, e isso significa que o argumento deve tomar tal rumo. Devemos ter uma fundamentação independente para pensar .que.é melhor que as pessoas escolham ignorando as vidas que as outras pessoas desaprova1n; não podemos, sem petição de princípio, simplesmente argumentar que as pessoas levar_ão tuna vida melhor se suas opções forem restritas dessa inaneira. Depois de entendida essa questão, qualquer tentação ru.mo ao paternalismo culhtral deve desaparecer. Isso não q·uer dizer que o governo não tenha responsabilidade pelo plano cultural no qual o povo decide como viver. Um governo, ansioso por oferecer as circunstâncias adequadas para q11e os cidadãos escolham como viver, pode bem se esforçar para que a cultura da comunidade proporcione oportunidades e exemplos de vidas que pessoas sensatas tenham considerado boas no ado, e que possam ser vividas hoje de maneira ponderada e adequada, especialmente quando a cultura popular oferece poucos exemplos de vidas assim. Meus argu1nentos pelo apoio governamental às artes em Uma questão de princípio (A Matter of Principie) não continham esse ponto, pois naqt1ele livro eu estava tentando responder à objeção de que tal apoio é iI1justo quando se poderia utilizar a verba para ajudar a eliminar doenças e a pobreza injustificada9.1fus um Estado qt1e satisfez os requisitos da justiça pode utilizar bem as verbas públicas en1 apoio à arte que o m.ercado possibilite destruir, com o forte argumento de que a arte au1nenta o va1or das vidas disponíveis na comunidade. 9. Ver Dworkin, A Ma/ter of Prlridple, ca.p. 11.

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A questão do paternalismo, portanto, acrescenta uma nova dimensão às diferenças entre os modelos do impacto e do desafio do valor ético. O modelo do impacto permite defender o paternalisn10 cirúrgico porque ele divorcia o valor ético da escolha ética. O modelo do desafio funde o valor e a escolha. Faz questão de afirmar que nada pode aumentar o valor crítico da vida, a não ser que seja interpretado como melhori.a pela pessoa em questão, e isso torna contraproducente o paternalistno cirúrgico. 1ambém torna o paternalismo de substituição contraproducente quando falta integridade ética à vida substituta. Finalmente, o modelo do desafio solapa o paternalismo cultural, pois essa forma de paternalismo presume uma imagem independente, transcendente, do valor ético, e o modelo do desafio rejeita essa imagem. O mod~lo não exclui a possibilidade de que a comunidade deva endossar e recomendar coletivamente ideais éticos aos quais a cultura não dê apoio adequado. Nem exclui a educação compulsória e outras formas de legislação que a experiência demonstra tercn1 probabilidade de ser aprovadas de maneira genufua, e não manipulada, quando são suficientemente rápidas, não intrusivas e não sujeitas a outras objeções independentes. Tudo isso provém do papel central, constitutivo, que o modelo do desafio atribui à convicção reflexiva_ ou intuitiva. O valor ético é objetivo, mas tem caracteósticas, que já percebemos, que nos inclinam a chamá-lo também de subjetivo. 'É melhor, porém, resistir a essa tentação perigosa e tratar, pelo contrário, de expor a complexa fenome11ologia do juízo ético- em especial as diferenças entre julgar por nós mesmos e julgar por outrem.

I. Ética e comunidade O último conjunto de problemas sobre os quais discorri perquirc se a ética pode ser social, cm vez de individual, e até que. ponto. A integração ética - a idéia de que os i11teresses críticos do indivíduo não envolvem somente suas pró-

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prias experiências e realizações, mas também as dos grupos ao qual ele pertence - faz sentido? O modelo do impacto presume que o bem críLico de cada pessoa é o impacto que ela provoca no mundo. Somente pode defender a integração ética se argumentar que o indivíduo às vezes provoca impacto de mais valor, sozinho, quando não pensa só no próprio impacto, mas no impacto do grupo ao qual pertence. A teoria dos jogos e a filosofia moral e política inspiradas 11essa teoria definiram uma situação - o conhecido dilema dos prisioneiros - no qual isso é verdade. Nessas situações, cada indivíduo agindo racionalmente em defesa dos próprios interesses fazem juntos o que é pior para cada um deles, e isso pode ser verdadeiro, não só quando as pessoas aspiram a interesses próprios no sentido estreito, volitivo, mas quando pretendem provocar um impacto ol?jetivamente valioso no mundo10 . Nessas circunstâncias, seria melhor se cada um deles perguntasse, não como provocar o impacto máximo, mas como algum grupo poderia fazê-lo e, depois, fazer sua parte no projeto de tal grupo. Assim, cada u.m garante um impacto maior devido ao que faz e produz, portanto, segundo o modelo do impacto, u.ma vida critica.mente melhor para si mesmo. No entanto, o modelo do impacto não consegue explicar nossas verdadeiras convicções apela11do à eshutura de um dilema dos prisio11eiros, pois as convicções Ol-1 intuições inais comuns da integração ética são incompatíveis com essa estrutura Só nos sentimos integrados eticamente em grupos aos quais já pertencemos de alguma outra fornta., e também somente por atos desses grupos que já estejam consagrados nas práticas coletivas do grupo - tão-somente nas comuniclades políticas das quais somos cidadãos, e só para os atos dessas cênnunidadt..>s, tais como suas decisões políticas, que 10. Ver Derek Parfit, Reaso11s and Persans (Oxford: Oxford l.Jniversity Press, 1984).

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sejan1 institucionalmente coletivas11. IJortanto, reconhecemos a integração ética em muitas ocasiões q11ando pelo inenos parece não haver vantagens nos projetos dos quais estamos a favor. Não tenho molivos fundamentados na teoria dos jogos para crer que minha vida será pior se a minha comunidade fizer o que não quero que faça: a racionalidade coleti.va de u1na soh1çã.o para o dilema dos prisioneiros não explica a vergonha que sinto do Vietnã. Ademais, quase sempre não temos nenhum senso de integração ética quando a cooperação é claramente adequada. '18.nto meu colega de cela qttanto eu temos um forte motivo para assirtar o acordo legalmente válido de não confessar, e cada um de nós pode ter razão moral para não confessar, mesmo na ausência de tal acordo. Porém, a menos que sejamos sócios, ami·· gos, parentes, ou estejamos trabalhando juntos em algum projeto conjunto, provavelmente nenhum de nós vai raciocinar com base na integração ética: que sua própria vida não irá bem se a dupla não prosperar. Portanto, a ordem da exposição que qualquer argumento do modelo de impacto poderia oferecer a favor da integração ética iria na direção errada. A integração ética às vezes oferece a motivação necessária ao raciocínio coletivo. Mas não vice-versa. O modelo do desafio põe a integração ética sob luz completamente diferente. Não precisa demonstrar, para que tal integração tenh.a sentido, que cada indivíduo provoca maior impacto por intermédio de atos coletivos da comunidade do que sozinho. Só precisa demonstrar como a integração ética poderia parecer uma reação adequada a um parâmetro huportante das circunstâncias do indivíduo - o fato de viver ligado a outras pessoas em uma diversidade de comunidades. Essa é, de fato, uma perspectiva de bem comum do bem viver, e assim o n1odelo do desafio consegue dar sentido à integração ética de maneira natural, e não forçada. Talvez eu precise repetir que o modelo do desafio não 11. Ver Capítulo 5.

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é um mecanísmo de apoio a convicções como essa. Não cito a afir1nação abstrata desse modelo, de que a bondade do bem viver é uma questão de desempenho, e não de impacto, como componente da defesa da integração ética. Pretendo apenas assinalar, para o final desta longa seção, que interpretar as convicções que já temos como convicções acerca de uma reação talentosa a um desafio complexo lhes pro-

porciona mais sentido e coerência do que lhes possibilita a interpretação geral alternativa - de que são convicções acerca de provocar o melhor impacto.

III. Da ética à política

Disse que tinha dois objetivos neste capítulo: estudar a questão da métrica na ética, importante por "Si mesma, e dcmori_strar que uma resposta a essa questão - o modelo do desafio - é uma resposta importante aos argumentos contra o liberalismo, qtte citei logo no início. Agora vou tratar do segundo desses objetivos. No que se segue, vou supor que adotamos de maneira autocritica esse modelo ético do desafio, e também adotamos o que chamei de sua conseqüência irresistível - que a justiça é pelo menos um parâmetro suave da vida boa para nós. (Presumo, conforme explicarei, que 11os tomamos ao mesmo tempo liberais éticos e políticos.) 1entarei demonstrar que, com base nesses pressupostos, temos motivos especiais para adotar a igualdade liberal co1no nossa moralidade política e rejeitar suas diversas rivais.

A. Justiça e recurso

Um dos temas dos prin1eiros capítulos deste livro era q11e a justiça da di.stribuição económica depende de sua alocação de recursos, e não do be1n-suceder ou bem-estar. Os

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liberais éticos não aceitam qualquer meta de justiça definida nesses termos, pois o governo não espera realizar tal fi .. natidade, a não ser de uma dentre duas maneiras, ambas as quais seriam consideradas intoleráveis por eles. Vivemos em sociedades eticamente pluralistas: as pessoas discordam acerca de como viver bem, concretamente. O governo pode tentar superar essa dificuldade por meio da escolha de u1na concepção de bem viver- digamos, a concepção hedonista - e einpregar tal con-cepção para julgar o êxito de todos. Mas os liberais éticos não aceitariam isso, pois o governo usurparia, então, a parte mais importante do desafio que as pessoas enfrentam para levar a vida, que é identificar por si mesmas seu valor. Ou o governo poderia desejar evitar a dificuldade divorciando a ética radicalmente da justiça por intermédio de u1n método em duas etapas. Na primeira etapa, cada cidadão relataria qual nível de bem-estar atingiria, segundo seus padrões pessoais de ben1-viver, segundo diversos arranjos institucionais e econômicos propostos. Na segunda etapa, as autoridades escolheriam o arranjo no qual julgassem (ignoro como poderiam julgar) que o bem-estar das pessoas, conforme eles mesmos mediram, seria compatível com o que as autoridades achassem ser uma distribuição corretaque o bem-estar assim avaliado é igualitário, por exemplo, ou elevado ao máximo de n1aneira geral. Esse método em duas etapas separa a ética da justiça. Na primeira etapa, os cidadãos decidem por conta própria o que, para eles, torna bem-sucedida a vida e, na segunda etapa, as autoridades planejam a distribuição do êxito, assim definido, segundo alguma fórmula que acham justa. Contudo os liberais éticos não podem participar de tal processo, pois não conseguem separar a ética da justiça do modo que ela requer. Precisam confiar em pressupostos ou intuições de justiça - caso o que temos ou fazemos seja justo ou não, dada sua repercussão sobre a vida do próximo-para decidir quais modos de vlda são modos de bem viver. (Aprofundamo-nos mais nesse assunto nos Capítulos 2 e 7.)

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B. Igualdade Portanto, depois de aceitar o modelo do desafio, precisamos afirmar com insistência que a justiça distributiva é uma questão de quais recursos as pessoas têm, e não de qual bem-estar alcançam com tais recursos. Mas qual parcela dos recursos é a justa? Temos algum motivo, exatamente nesse modelo do desafio, para itir que a única parcela justa é a parcela igual? O modelo do desafio na ética é inerentemente igualitário? Por conseguinte, encaramos uma questão de lin1lar antes de iniciar qualquer resposta à questão substantiva. Quais estratégias os liberais éticos têm para raciocinar sobre a justiça? Grande parte da filosofia política liberal contemporânea está fincada ao redor do que parece um pressuposto natural, até mesmo indiscutível - de que é possível identificar os interesses dos diversos cidadãos que compõem a comunidade política antes de qualquer decisão sobre qual distribuição de recursos entre eles é justa. Essa é a premissa das teorias contratualistas da justiça, que presumem ser possível deduzir os princípios de justiça de experiê11cias de pensamento que perguntam com quais princípios as .ressoas concordariam por interesse próprio, ou devido a um motivo que as induz a procurar um compromisso razoáv'el entre os interesses de diversas peSsoas. O arg1Jmento de Rawls pelo seu princípio da "diferença" supõe, por exemplo, que podemos definir os interesses das pessoas em pelo menos um modo "rarefeito" antes de qualquer decisão acerca do que a justiça req·uer; mesmo as pessoas qt1e ignoram seus mais concretos interesses conseguem presumir de rnaneira sensata, segundo ele, que quanto mais recursos tiverem, melhor para elas~ assim podem aspirar, mesmo por trás do véu da ignorância sobre esses interesses mais concretos, a se resguardar contra um sacrifício grande demais de seus interesses "rarefeitos" assim concebidos. Não obstante os liberais éticos acreditam que o caráter dos interesses críticos das pessoas, pelo menos, depende da

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justiça: podem saber, em pormenores suficientes, quais são seus interesses críticos depois de descobrirem, pelo Inenos grosso modo, qual distribuição de recursos entre elas é justa. Cada liberal ético talvez espere que a parcela justa para si seja grande, mas sabe que a parcela grande provaveltnente não será boa para ele, a não ser que também seja justa. Assim, não pode aceitar nem uma teoria "rarefeita" do bem que afinne que, quanto mais recursos tiver, tnelhor será para ele, ou qualquer teoria que lhe pergunte o que acha razoável ceder, a título de seus próprios interesses, por respeito aos interesses alheios. A repercussão do modelo do desafio da ética na filosofia política, portanto, é profunda. Se somos liberais éticos, achamos que os pressupostos e as estratégias mais fundamentais da teoria política liberal contemporânea são tanto antinaturais quanto "impraticáveis, pois nosso modelo do desafio integra a justiça e a ética de modo que rechaça essas estratégias e pressttpostos. Precisamos pensar na j'ustiça e na vida boa de maneira mais integrada: devemos chegar a uma concepção com relação ao que a justiça requer e quais são nossos interesses por meio de um argumento que não pressuponha que podemos ter uma resposta completa para uma dessas questões independentemente da resposta à ouh·a. Devemos, po1tanto, começar (como diríamos) bem antes, em uma teoria mais geral do valor. Os liberais éticos supõem que é hnportante o modo como as pessoas vivem - importante qi1e levem vidas bem-sucedidas ou boas, em vez de ruins ou desperdiçadas. É possível achar isso mais importante no caso de alb:run1as pessoas do que de otttras - não mais importante para elas, porém mais .importante como uma questão de valor objetivo? É verdade que, durante séculos, algumas pessoas declaravam que sua própria vida tinha importância especial, assinalando, por exemplo, que pertencem a uma nação favorecida por Deus, ou que são pessoas de linhagem, talento, beleza, 011 mesmo riqueza especial. Tais declarações estão, felizmente, fora de moda entre nós, e não precisamos

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nos esforçar muito para refutá-las. Mas vale notar que os liberais éticos têm motivo especial para resistir a essas declarações. O modelo do desafio faz uma afinnação profunda-

que o valor da vida be1n-vivida não depende de nenhuma circunstância antecedente na qual a vida comece, mas no desempenho do próprio viver - e essa afirmação não nos

convence da idéia de que qualquer circunstância antecedente possa somar ou subtrair esse valor. O judet1 que ite o modelo do desafio pode achar crítico decidir se deve

tornar a religião esse11ciaJ à st1a vida. Todavia não pode achar que é essencial tornar tal decisão corretamente só por ser judeu. Isto é, o caráter abrangente do desafio que tal modelo implanta só tem sentido se entendermos o desafio como dirigido às pessoas e1n geraL a qualquer pessoa que tenha uma vida para viver. Assim, os liberais éticos partem de um forte motivo ético para insistir em uma distribuição símétrica de recursos. Se tên1 a mesma importâf'.cia o modo como cada pessoa vive, então a vida que levamos deve contemplar esse pressuposto importante, e ísso só é possível se os recursos forem distribuídos de maneira compatível com ele. O argumento que nos trouxe a este ponto tem uma certa simetria. Parte da idéia de que a justiça limita a ética, que alguém leva uma vida pior com os mesmos recursos quando e porque são injustamente pequenos ou grandes. Agora vemos como a ética limita a justiça. O esquema de justiça deve encaixar-se em nossa noção do caráter e da profundidade do desafio ético, e esse requisito apóia a igualdade como a melhor teoria da justiça. Não estou dizendo qu.e uma perspectiva diferente da ética - a do impacto, por exemplo - não daria apoio à igualdade, embora qualquer igualdade estrita provavelmente pareça uma posição extremista e doutrinária nessa perspectiva. Digo apenas que a perspectiva do desafio dá apoio direto à igualdade, fluindo da noção que as pessoas têm de seus melhores interesses entendidos criticamente. Viver bem tem uma dimensão social, e vivo pior quando vivo em uma comunidade com pessoas que tratam meu empenho por uma vida boa como menos importante

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que o delas. De fato, todos se ofendem com um sistema político e económico dedicado à desigualdade, mesmo quem lucra com os recursos prove11ientes da injustiça. No modelo do desafio, o interesse próprio crítico e a igualdade política são aliados. Hegel disse que tanto os senhores co1no os escravos são prisioneiros; a igualdade liberta a ambos dos grilhões.

e. Ética e parcialidade Agora temos mais urna questão para resolver. Os liberais éticos rejeitam a igualdade da perspectiva pessoal. Supõem qt1e aquele que tentou demonstrar tanto interesse pelo próprio destino, e pelo destin.o da famítia e dos amigos, quanto demonstra pelos estranhos seria um idiota ético. É incoerente insistir na igualdade em política e condená-la na vida cotidiana? Os liberais éticos precisam envergonhar-se de sua óbvia ambigilidade com relação à igualdade? Igualdade política e parcialidade pessoal seriam realmente ln.compatíveis caso a igualdade significasse igualdade de bem-suceder ou de bem-estar. Se lutarmos juntos na política, durante uma década, para igualar o bem-estar de todos os membros da comunidade a partir de determinada data, porém depois retomarmos a uma vida privada na qual cada um de nós invista todos os recursos que possui na melhoria do próprio bem-estar e do bem-estar da família e dos amigos, então apenas se houvesse uma coincidência esquisitíssima poderia o bem-estar pennanecer igualitário entre nós. Teríamos destruído individualtnente o que tivéssemos alcançado coletivamente, e teriamos de recomeçar. Mas isso não é verdade, pelo menos em princípio, se para nós a igualdade significa a igualdade de recursos. Nessa teoria da justiça, demonstro respeito igualitário pelo próxüno quando não me apodero de recursos qt1e pertencem a ele - quando não excedo minha parcela justa à custa dele. Suponhantos que o leilão descrito no Capítulo 2 comece com os

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mesmos recursos para os lances e termine com o reconhecimento comum de que não será útil prosseguir. Então, minha decisão, após o final do leilão, de cuidar de meu próprio bem-estar em meus planos e investimentos, e de trabalhar pelo bem-estar da família e dos amigos, não poderia, por si só, invalidar a igualdade alcançada pelo leilão1?.. A igualdade de recursos dessa forma faz concessão à parcialidade. Podemos explicar de outra forma: na igualdade de recursos existe uma divisão de trabalho entre as perspectivas política e privada. As pessoas têm liberdade de assumir aspirações e apegos pessoais na vida privada com toda a convicção, se e porque a política lhes assegurou uma distribuição publicamente igualitária. Evidentemente, não se deve interpretar essa divisão do trabalho com o significado de que os indivíduos não se preocupam com a jlistiça distributiva, que têm simplesmente o direito de consumir quaisquer recursos que o sistema em vigor lhes distribua, indiferentes às exigências dos que têm menos, como se a justiça distributiva sempre estivesse sob a responsabilidade de outrem. Seria inacreditável, por exemplo, que a teo1ia da justiça nfío fizesse exigências particulares a cidadãos que vives·· se1n com grande afluência em uma sociedade injusta. Mas, confom1e reparamos ao analisar a ligação entre justiça e éti12. Deixo de ];;,do uni problema n1ais crnnplexo, cuja solução ereto que exigiria unia elaboração da característica do seguro hipotético da igualdade de recursos mais pom1enorizada do que eu e outros já fizemos. Imaginemos que consuma todos os m•1us recursos, mas você economize e deixe a maior parte deles para os filhos. Ou que você investisse ben1 e tivesse mais para deixar de herança por esse motivo. Oi.1 que eu tenha mais filhos que você e, a~sim, pre· ci~<.' dh~.Jir a herança em partes menores. Assim, embora nenh11!l"I de nÓI; te· nha se apossado de recursos que pertençam a outrem, nossos filhos não terão recursos iguais: alguos cobiçarão o que outros têm. A igualdade de recursos deve descobrir um n1eio de identificar e, pelo menos, reduzir a desigualdade gerada dessa forma, talvei, corno ac<1bo de sugerir, consid€rando a situilção de beneficiário um risco - em princípio - segurável. No tc>xto, trato apenas do pcoble1na c·entral: se é incoerentP trabalhar pela igi.1aldade na política<", ainda assin1, tentar n1elhorar a síh1a<,-"iio de apenas algumas pessoas próxin1as a nós em nossa vida cotidiana.

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ca,' é uma questão complexa e talvez irrespondível o que a igualdade de recursos requer de 11ós, como indivíduos, em nossa própria sociedade injusta. Isso é, em parte, o motivo por que, segundo o modelo do desafio, nossa vida piora quando vivemos em meio à injustiça. Portanto, devemos dizer, de nossa própria parcialidade indelével na perspectiva privada, não que entre em conflito com uma política genuinamente igualitária, mas, pelo contrário, que entra em conflito com qualquer outro tipo de política.

D. Neutralidade de atração Chegamos, por fim, ao que é, para muita gente, a característica mais problemática da igualdade liberal, que é sua versão especial de neutralidade ou tolerância. Devemos distinguir dois modos como a teoria política pode ser neutra ou tolerante com relação às diversas convicções éticas. Em primeiro lugar, pode ser neutra em sua atração, isto é, ecuménica. Pode definir princípios de moralidade política que sejam aceitas por pessoas de diversas tradições éticas. Em segundo lugar, pode ser neutra em sua operação, isto é, tolerante. Pode especificar, como princípio de moralidade política, que o governo não deve punir nem discriminar ninguém por desaprovar suas convicções éticas. Obviamente, esses são dois aspectos da neutralidade intimamente ligados. Em muitas circunstâncias (embora não em todas), a maior esperança de atrair amplo apoio de grupos diversos está en1 alguma garantia geral contra a perseguição de qualquer desses grupos. Contudo, os dois aspectos são diferentes. O modelo do desafio da ética é ecumênico? Não toma partido, con10 questão formal, entre convicções éticas concretas. Aqueles que acham que a vida boa está na devoção religiosa e outros que pensam que ela requer variedades sexuais não convencionais podem tratar suas convicções como opiniões acerca do modo de vida mais habilidoso. Mas iti, logo no início, que o modelo do desafio só capta e or-

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ganiza algumas das intuições que as pessoas têm sobre a ética, e o modelo tem certas conseqüências que poucas pes-

soas já aceitaram. A maioria das pessoas ficaria con{usa, por exemplo, pelo menos à primeira in1pressão, cóm a tese de que a justiça é o parâmetro das vidas boas, de modo que a vida da maioria delas seria pior se tivesse mais recursos do que os permitidos pela justiça. Devemos concordar com a declaração mais fraca de que o modelo do desafio da ética poderia ser comumente aceito se1n que muitas pessoas tivessem de abandonar as convicções que ll1es pareçam mais importantes. Adotar esse inodelo não as obrigaria a mudar de idéia, por exemplo, sobre quais aspectos de suas circunstâncias - religião, nação ou vocação - oferecem os parâmetros mais fu11damentais de uma vida boa para elas.

E. A tolert1.ncia liberal A igualdade liberal é tolerante no seguinte sentido. Distingue dois tipos de motivos que a comunidade política pode oferecer como justificativa para negar a liberdade. O primeiro é de justiça: a comunidade deve proibir qualquer conduta quando e porque a melhor teoria da ju_stiça assim o exigir. Deve coibir o roubo, por exemplo, para proteger os direitos das pessoas à segurança da propriedade. O segundo é ético: a comunidade pode pensar que a conduta proibida, embbra não contra a justiça, seja humilhante, corruptora ou ruim para a vida de seu autor. Eu poderia pensar, por exemplo, que a vida do homos.~exual é degradante e, com base nisso, torrlar ilícitas as relacões homossexuais. A . igualdade liberal nega a legithnidad~ do segundo motivo, i ético, para tornar as condutas ilícitas. Isso não sigr1ifica, obviamente, que a igualdade liberal seja eticamente neutra, ou que pretenda ser. Qualquer esquema político e econômico tornará alguns tipos de vida mais difíceis e mais caros de se levar do que em outros esquemas. É muito menos provável que alguém esteja em posição de fazer uma grande coleção de obras-primas do Re-

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nascimento em u.m sistema de igualdade liberal do que no capitalismo ir. Mas a igualdade liberal põe tal vida em risco só porque a distribuição justa de recursos tem tal conseqüência, e não por julgar que colecionar arte seja intrinsecamente indigno ou degradante. Assim, a igualdade liberal rejeita a tese que uma vez a Suprema Corte afirmou fazer partt> da Constituição dos Estados TJnidos da .América: de que a maioria pode muito bem transformar em crime o homossexualismo só-porque a maioria acha que os homossexuais levam u1na vidaruim13 . Que1n tem fortes convicções éticas pode ser um liberal ético? Algumas pessoas acham que os homossexuais levam uma v:ida muito n1im. Outras acham que os empresários são desprezíveis, que os ateus desperdiçam a vida, que os Estados lJnidos se tomaran1 uma nação de videotas sem senso crítico, que as vantage11s do bem-estar enfer:rujam a alma das pessoas, qtte é imperativo preservar as identidades étnicas ou religiosas, que o patriotismo é a mais fundamerttal das virtudes e assim por diante. Algun1as pessoas defendem essas teses com paixão; vivem e pregam essas teses, e se desesperam quando os filhos as rejeitam. Como essas pessoas poderiam endossar a tolerância da igualdade liberal? Por que pessoas com essas fortes convicções nâo tentam convencer as ot1tras do que acham ser bom? Deveriam. A questão não é se devem.fazer campanha pelo que entendem por bem, mas como. A tolerância liberal lhes nega uma anna: não devem empregar a lei, mesmo quando estão em maioria, para proibir ninguém de levar a vida que quiser, ou pu11ir por fazê-lo, só porque acham que as convicções éticas dessas minorias estão profun.damente eqttivocadas. Se as pessoas sentem atração pelo liberalismo ético - mesmo as que tenham convicções éticas muito fortes - não terão motivo para resistir a essa única restrição a seu poder de propagar opiniões. Os liberais éticos sabem que .não podem melhorar a vida do próximo por meios coer13. Bowers oersus Hardwick, 106 S. Ct. 2841 (1986).

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citivos que a tolerância liberal proíbe, pois sabem que não se pode melhorar a vida de ninguém contra a firme convicção de que não melhorou. Mesmo achando que a vida de algué1n seria rnell1or se mudasse de convicções, sabem que não podem torná-la melhor se não conseguirem modificar tal pessoa, e da maneira certa. item que essa pessoa leva uma vida inell1or em paz co1n suas próprias convicções arraigadas do que, sob pressão externa, em guerra com elas. Esse argumento é companheiro do que salientarei no Capítulo 7. Assim como ningué1n merece comp.ensação adicional porque suas crenças éticas são (conforme julgamos) equivocadas, tambén1 não se deve negar a liberdade a ninguém pelo mesmo motivo. Em ambos os casos, o paternalismo é um equívoco porque trata as convicções inadequadamer1te como limitações ou deficiências. É importante lembrar, ao avaliar esse argumento pela tolerância liberal, que tal tolerância não chega ser o que se poderia considerar uma neutralidade absoluta. Conforme eu disse, a igualdade liberal não pode ser neutra nas conseqüências: deve ter como conseqüência o fato de alguns tipos de vida serem mais difíceis de se levar do que outros. E a igualdade liberal deixa espaço, nas circunstâncias apropriadas, para o paternalismo educativo de curto prazo que anseia, com confiança, pela aprovação livre e genuína. Nem pode a igualdade líberal ser neutra com relação aos ideais éticos que afrontam os set1s. Não é neutra acerca da ética na terceira pessoa: insiste, por exemplo, na tese que acabo de citar: de que nh1guén1 pode melhorar a vida de outra pessoa obrigando-a a se comportar de outra forma, com sua vontade e suas convicções. Nem todos aceitam essa tese, mas a igualdade liberal, não obstante, precisa insistir nela.

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IV. Epílogo Estou bem consciente de que ao argumento deste capítulo falta t1n1a dimensão histórica. Não me esforcei (nem sou competente para tanto) por fundamentar meu argu-

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mento principal na história intelech1al. Acredito que o modelo do desa.fio é predominante na ética grega, especial" mente na aristotélica, e que no período moderno tem tido um papel fundamental (em batalha indistinta com o ceticismo ético) na evolução da ética humanista. O modelo do impacto, pelo contrário, parece-me proeminente na ética teológica e em diversas fom1as da ética utilitarista. Seja qual for o sentido ou a clareza que esses comentários históricos loquazes possan1 ter, não estou dizendo que insrinuam o que neguei anteriormente: que a ética religiosa ou utilitária não tem lugar .no modelo do desafio. A idéia de que viver habilme11te significa reconhecer e constituir um relacionamento apropriado com Deus, ou que significa reconhecer e reagir ao sofrimento humano, não é a única interpretação possível do modelo do desafio, mas, para muita gente, é a sua mais convincente interpretação. Porém, muitas das conseqüências políticas que alguns acadêmicos extraíram da ética teológica ou utilitarista dependem do modelo do impacto, e deverian1 ser abandonadas, em prol de posturas mais liberais, se essas éticas fossem reformuladas na forma do modelo do desafio.

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1. Duas objeções

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Discutirei duas objeções à teoria geral da igualdade que estamos elaborarido. No Capítulo 1, distingui dois modos nos quais podemos comparar a situação de diversas pessoas. Podemos comparar os recursos que cada uma tenha à disposição para levar a vida, ou comparar o bem-estar (welj'are), ou bem-ar, que cada uma delas alcance com quaisquer recursos de que disponha. Empreguei tal critério para distinguir, por sua vez, du.a.s metas políticas bem diferentes; cada uma das quais pode ser considerada igualitária. A comunidade política poderia aspirar a que seus membros fossem iguais em recursos ou em bem-estar. Essa descrição dos dois objetivos é muito abstrata, poré.m, e diversos ideais se _encaixam em cada um desses dois objetivos gerais. A igualdade de bem-estar está sujei.ta a interpretações diversas. As pessoas discordam acerca do que é realmente o genuíno bem-estar, algumas acham que o alcançam quando sua vida é plena de animação, por exemplo, e outras acham que o bem-estar é mais uma questão de realizações duradouras do que un1a absorção transitória. A igualdade de bem-estar só se torna uma finalidade política concreta quando se especifica alguni.a concepção ou entendimento próprio do bem-estar. No Capíhtlo 1, afirmei que a igualdade de bem-estar conquistou a atração que porventu-

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ra tenha precisamente por permanecer abstrata e, portanto, ambígua: o ideal perde essa atração sempre que se especifica determinada concepção de bem-estar, o que talvez expliq1Je por que aqlteles que a defendem raramente tentam fazer essa especificação. A igualdade de recursos também precisa de maiorespecificação. Pode-se entender que os recursos consistem somente na riqueza da pessoa, ou na riq·ueza juntamente com as qualidades pessoais de força, talento, _caráter__e aspiração, ou todas juntas com suas oportunidades legais ou outros tipos de oportunidades. No Capítulo 2 e nos seguintes, defini a ibrt.taldade de recmsos adotando, de diversas maneiras, todas essas categorias de recursos, e tentei descrever um modo de avaliar a igualdade, por intermédio de leilões hipotéticos, mercados de seguros e das estruturas jurídicas descritas nos Capítulos 2 e 3, que as uniriam todas em uma teoria geral dos recursos igualitários. Fiz mais uma distinção crucial dentro da categoria ampla das qualidades pessoais, porém: entre a personalidade do indivíduo, compreendida no sentido a1nplo que contém seu caráter, suas convicções, preferências, motivações, gostos e aspirações, e seus recursos pessoais de saúde, força e talento. Disse que a comunidade política deve ter como aspiração eliminar ou atenuar as diferenças entre as pessoas e seus recursos indi·v:iduais - deve aspirar à melhoria da 5ituação dos deficientes físicos ou incapazes de ter rendimentos satisfatórios, por exemplo-, mas não deve aspirar à atenuação ou compensação de diferenças em personalidade-diferenças oriundas do fato de que os gostos ou aspirações de algumas pessoas são dispendiosos e os de outras pessoas não custam caro, por exemplo. As objeções que vou expor neste capítulo insistem que a igualdade de bem-estar e a de recursos não esgotam as possibilidades pertinentes, e que um terceiro ideal- a igualdade de "oportunidade" ou de "capacidade" de algum tipo - é preferível a ambas. De fato, como veremos, essas supostas alternativas não são genuínas. Um grupo de críticos -

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utilizarei a versão de G. A. Cohen como representante desse grupo - poshlla que os cidadãos devem ser iguais, não no bem-estar que alcançam, 1nas na oportunidade que cad.a um tem de alcançá-lo. Como veremos, nesse ideal supostamente diferente revela-se a igualdade de bem-estar co1n outro nome. Outro critico importante - Amartya Sen - postula outro ideal, de que os cidadãos devem ser iguais, não e1n recursos, mas na "capacidade" para diversos "funcionamentos" - isto é, na capacidade de agir ou rea.lizar de maneiras específicas. Todavia Sen declara esse ideal de inaneira ambígua. Se a evidente ambigüidade for resolvida de uma forma, dentre duas possíveis, sua igualdade de capacidades também se transforma em igualdade de bem-estar. Se for resolvida da outra forma, então a igualdade de capacidades é idêntica à de recursos. O fracasso dessas duas objeções em estabelecér alternativas genuínas às duas concepções de igualdade que descrevi logo no início demonstra que a diferença entre as duas concepções é especialmente profunda. Argumentarei que ela indica 11ma divisão polar entre duas perspectivas do papel que a filosofia política deve ter na democracia.

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II. Acaso e escolha Noss.os juízos sobre a responsabilidade pessoal e coleti\'a são dominados por uma diferença fundamental entre acaso e escolha (diferença que também exploro, no contexto das descobertas e manipulações genéticas, no Capítulo 13). Distinguimos, por mil motivos, entre qual parte do nosso destino está aberta a atribuições de responsabilidade, porque é o desfecho da escolha de uma pessoa, e qual parte não faz jus a tal atribuição porque não é obra de ninguém, mas da natureza ou da pura sorte. 1bda a rede das nossas convicções morais e éticas se desloca quando a tecnologia ou a descoberta realiza alguma grande modificação na fronteira entre as duas. I-Iouve uma n1udança sísmica quando

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as pessoas começaram a atribuir as catástrofes naturais ao acaso, e não às opções de deuses ou demônios sobrenaturais, a quem poderiam ter provocado. Sofreremos outra mudança sísmica, na direção oposta, se a biotecnologia um dia permitir que os pais decidam os pormenores das propriedades flsicas e mentais dos filhos. A diferença entre escolha e acaso figura em atribuições de diversos tipos de responsabilidade. Figura na responsabilidade causal: minhas escolhas estão entre as causas dos meus atos, ·mas não entre as causas da minha predisposição genética para determinadas doenças. Neste livro, temos tratado principalmente da outra idéia de responsabilidade, a conseqüencial. Quando e até que ponto é correto que os h1divíduos carreguem sozinhos o fardo das desvantagens ou infortúnios de suas próprias situações, e quando é correto, pelo contrário, que outros- os outros membros da comunidade em que vivem, por exemplo·- os aliviem das conseqüências dessas desvantagens, ou as atenuem? Empreguei a diferença e11tre escolha e acaso na resposta a essas perguntas. Em princípio, argumentei, deve··se livrar os indivíduos da responsabilidade conseqüencial por aquelas características de sua situação que existem por puro infortúnio, mas não das q11e devem ser encaradas como decorrentes de suas próprias escolhas. Se alguém nasceu cego ou sem talentos que outros tê1n, teve azar e, até o ponto em que se pode fazer a1gu1na coisa, t1ma sociedade justa o compensaria por esse infortúnio. No entanto, se tem menos recursos q11e as outras pessoas porque anteriormente gastou mais em luxos, ou porque :resolveu não trabalhar, ou trabalhiJ.r em empregos de remuneração mais baixa do que os escolhidos por 011tras pessoas, então a situação é resultante de escolha, e não da sorte ou azar, e essa pessoa não tem direitó a compensação nenhuma que a recupere da carér1cia atual. Cohen e outros refutam esse modo de traçar o limite entre a escolha e o acaso. Eles salientam que, mesmo quando a situação desafortunada de alguém é restiltante de escoll1a delibera.da, essa escolha pode ter sido ditada porcaracterísticas de sua pessoa otl personalidade que não tenha

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escolhido. Imaginemos que uma pessoa não tolere o sabor da água da torneira - o sabor é inavelmente amargo para ela- e ela decida, portanto, comprar água e11garrafada, que é mais cara. É verdade que tem a escolha de fazer isso ou não. Mas essa pessoa não escolheu essa característica uma reação sensorial especial - que tornou tão ruim arecusa de não fazê-lo. Essa situação fisiológica é um azar, e a pessoa deve, portanto, ser compensada por esse infortúnio: deve receber um recurso adicional para que, ao comprar água e11garrafada, não fique em situação pior do qu_e aqueles que conseguem beber água da torneira. Agora suponhamos que alguém deseje ser fotógrafo, mas descobre que para realizar esse sonho deve gastar a maior parte de sua renda na compra de câmeras e lentes caras. Novamente, poderia escolher não co1nprm os equipamentos. Contudo essa escolha o ·faria infeliz, pelo menos durante algum te1npo, e, mais uma vez, ele não escolheu ter a aspiração que tem tal conseqüência. Decerto (argumentam os críticos) tainbém é injusto fazer com que ele assuma a responsabilidade conseqüencial pela escolha de comprar os equipamentos, da mesma forma que seria obrigar uma pessoa com alguma outra deficiência - cego de nascença, ou sem talento, ou incapaz de tolerar água da torneira - a arcar com as conseqüências financeiras de tal situação. É importante notar que esse argumento não apela para nenhl.1ma forma geral de determinismo 1netaffsico ou psicológico. Não nega que as pessoas têm liberdade de escolha: não nega que o futuro fotógrafo te1n liberdade para não comprar equipamentos caros, por exc1nplo, contudo insiste apenas. que ele não deveria ser obrigado a viver em pior situação financeira se decidir comprá-los. De fato, os críticos se amparam fortemente na suposição de que as pessoas têm liberdade de escolha, pois afirmam que as pessoas deven1 assumir responsabilidade conseqiiencial pelas preferências dispendiosas quan.do as cultivarem deliberadan1ente. Co·· hen explica assim: jjÀ medida que as pessoas são, de fato, responsáveis por seus gostos, os defícits relevantes de bem-

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estar não exigen1 atenção da justiça. Devemos, portanto, compensar somente os deficits de be1n-estar que não sejam de alguma forma oriundos de escolhas individuais." t; por isso, declara ele, que a sociedade deve compensar o fotógrafo, cuja inclinação para a fotografia, segundo ele estipula, não surgiu por escolha, mas não deve compensar Lo11is, um personagem que gosta de charnpanhe do qual falei no Capítulo 2, e que (no resumo de Cohen) "simplesmente não se descobriu vinculada a esse gosto: ele se habituou a isso" 1. Por conseguinte, Cohen concorda que a igualdade de ben1-estar é um ideal político inadequado. Esse ideal deixa de distinguir entre as preferências dispendiosas que as pessoas simplesmente descobrem ter e as preferências dispendiosas que cultivaram deliberadamente. Assim, ele e outros críticos, que apresentam argumentos semelhantes, rejeitam tanto a igualdade de betn-estar quanto a igualdade de recursos em prol de um suposto terceiro ideal: a igualdade na capacidade, habilidade ou oportunidade de garantir bem-estar , ou algum outro tipo de vantagem. Já que Louis teve tantas oportunidades para alcançar o bem-estar quanto qualquer outra pessoa antes de cultivar suas preferências d.ispendio·· sas, não é necessário recompensá-lo ou compensá-lo por ,tê-lo feito. Mas o fotógrafo não escolheu sua ardorosa aspiração: ela simplesmente o tomou furtivamente. Ele 11ão teve a mesma oportunidade de atingir o bem-estar e, por .'isso, merece compensação. Essa última diferença que Cohen afirma ser fundamental é ilusória. Louis não culthrou suas preferências grandiosas para obter mais "bem-estar" na forma de arroubos de prazer ou i.11stantes de satisfação do desejo: isso teria sido i,fracior,al, pois, mesmo em uma comunidade comprometiJ.a com a igualdade de bem-estar, ele teria tido menos arroubos ou menos momentos em conseqüência disso2. Cul-

1. G. A. Cohen, "On the Currency of Egalitarian Justice", Ethícs 99 fjuL 1989): 911, 923. 2. Ver Capítulo 2.

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tivou gostos requintados porque, dada sua ascendência real de Bourbon, achava esses gostos adequados para si: tinha, podemos dizer, inclinação por gostos refinados. Mas esse gosto de origem, com base no qual ele agia, não é mais "rastreável" à escolha do qtte o gosto do fotógrafo pela fotografia. (Nem o fato se vincula à origem nobre ou à educação de Louis: eu poderia tê-lo cl1amado de Jay, em vez de Louis.) Não adiantaria Cohen descrever o gosto vigente de Louis como sendo de "segunda ordem" e, então, propor um princípio que compensasse os gostos de primeira ordem não cultivados, mas não os de segunda ordem. O "corte" de Cohen entre escolha e sorte pretende ser profundo, e qualquer que seja o sofrimento do fotógrafo de Cohen se não pudesse comprar lentes caras seria semelhante ao de Louis ao descobrir, consternado, que continuava a gostar de refeições congeladas3 . Assim, a igualdade de oportunidade para conseguir bem-estar ou vantagem, compreendida como Cohen a entende, não é, afinal, um ideal político distinto. Ela reb'Tide à simples igualdade de bem-estar que ele pretende abandonar. Se não nos responsabilizamos pelas conseqüências de nossos gostos "dispendiosos", argwnentando que não os escolhemos então não somos responsáveis por nenhum deles, e a comunidade é obrigada, segundo o princípio dele, a cuidar para que não soframos nenhuma desvantagem financeira comparativa devido a eles. 3. Cohen apresenta seu princípio citando o comentáiio de John Rawls de que co1npensar as pessoas por gostos dispendiosos "pressupõe que as preferências dos cidadãos estão além de seu controle por serem propensões ou anseios que silnplesmente acontecem. Parece que os cidadãos são vistos con10 portadores ivos do desejo" (citado em Cohen, "Currency of Egali· tarian Justicen, p. 913). Cohen afirma com veemência que certas "preferências" são, de fato, desse caráter, pois não foran1 deliberadamente escolhidas, e que a observação de Rawls in1plica q11e tais preferências devem atrair com· Pensação. Rawls não disse, creio, que os cidadãos só devem assun1ir responsabilidade pelos valores que escolhem; ele disse que devem assumir responsabilidade pelos valores que, nas palavras dele, "t€m partidpação na crinçiio", o que nos leva à outra tese que ofereço mo.is adiante neste capítulo.

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O argumento de Cohen é, de fato, 11m argumento pela simples igualdade de bem-estar, e tal argumento depende de se distinguir acaso/escolha de maneira diferente de como o faço. A minha distinção baseia-se na experiência ética das pessoas comuns. As pessoas comuns, em suas vidas comuns, assumem a responsabilidade conseqüencial por suas próprias personalidades. Sabemos que quando tomamos decisões, grandes ou pequenas, elas darão fonna a nossa vida, precisamos quase sempre lutar contra, ou ceder, ott submergir, ou resolver nossas inclinações, disposições, hábitos e desejos crus, e que devemos fazê-lo a serviço de nossos juízos e de nossas convicções de diversos tipos, inclusive as convicções morais sobre o que é justo para os outros, e juízos éticos acerca de que tipo de vida seria apropriado ou bem-sucedido para nós. Não achan1os que escolhemos esses diversos juízos e convicções em tlm catálogo de alternativas igualmente qualificadas, do modo como poderíamos escolher uma camisa de uma gaveta ou os pratos de um cardápio. É verdade que somos nós que decidimos o que ler, ou ouvir, ou se vamos estudar ou meditar, e por qt1anto te1npo e em quais circunstâncias. Mas não está em nossas mãos, tendo feito o que fizemos dessa maneira, o que concluímos disso. Contudo, não to1namos o fato de que ati11gimos alguma conclusão moral ou ética específica como uma queStão de sorte ou azar. Isso seria tratar a nós mesmos como dissociados de nossa personalidade, em vez de identificados com ela - tratar-nos como vítimas bombardeadas por uma radi
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mam a grande variedade de motivações humanas, simples ou complexas, brutas ou requintadas, de "desejos" ou "preferências". Esses termos insin1tam uma profunda divisão entre tais motivações, de um lado, e o juízo e a co·nvicção racionais, de outro. De fato, a maioria das motivações que as pessoas citam, na explicação do comportamento, não é das emoções brutas que o juízo enfrenta, mas a conseqüência desse confronto 4• As esperanças de vida das pessoas suas amb'ições - são claramente banhadas pelo j1úzo. Quem deseja alterar a arquitetura, ou tornar-se presidente, ou ajudar a abrigar mais pessoas sem-teto, além de desejar, confere valor a tal realização. Essa pessoa vibraria de satisfação se seus sonhos se realizassem, mas é a importância da realização, e não a sua probabilidade que sustenta seu esforço, e a satisfação é explicada pela importância da realização para essa pessoa, e não o contrário. Até grande parte do que chamarían1os com maior naturalidade de "preferências" está mergulhada no juízo. Algumas não são; outras são realmente apenas fruto do infortúnio. O infeliz cuja água encanada tem sabor amargo preferiria não ter tal deficiê11cia: sua si-

4. Ver T. M. Scanlon. ll\lliat We Owe to Each Other (Cambridge, Mass.: The Belknap Press of H
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tuação é u1na deficiência, e a igualdade de recursos a consideraria como tal. Porém, os gostos n1ais complexos estão entrelaçados nos juízos de endosso e aprovação. O fotógrafo apaixonado, é verdade, saboreia a tecnologia e a habilidade de seu ofício e a empolgação de capturar a vida para setnpre, e pode citar essas sensações na explicação de sua paixão. Mas ele as saboreia em alguma medida - quase sempre em grande medida - porque se encaixam tão bem com outras opiniões, mais gerais, que ele tem sobre o valor do juízo e reação estéticos, da destreza técnica, do discernimento visuaL e uma série de outros valores pertinentes, e essas opiniões mai.<; gerais, por sua vez, provêm e participam de um t1uadro mais amplo do tipo de vida que é certo, se não para todos, pelo menos para ele. Nada disso precisa ser (ou é .freqüentemente) uma questão de avaliação autoconsciente. Todavia uma rede de gostos, crenças e juí>'..os entrelaçados e que se reforçam mutuamente está, não obstante, cm ação na psique do fotógrafo, e essa rede explica a repulsa que ele sentiria se lhe oferecessem uma píl11la que acabasse com seu interesse por essa arte. I1areceria tão estranho para ele chamar seu empenho de azar quanto para outra pessoa descrever dessa maneira sua lealdade aos amigos.

III. Os viciados e nós

É difícil imaginar ramo se comportariam as criaturas que seriam iguais a nós se tratassem suas crenças, convicções, gostos, Juízos e ambições como acidentes afortunados ou desafortunados. Contudo devemos tentar imaginar tais criaturas, na esperança de entender melhor os pressupostos do argumento de Cohen. Imagine, então, un1 viciado em emoções fortes, cujo ú.nico objetivo é gerar para si n1esmo u1na série de picos emocionais; a experiência lhe diz que, talvez por tentativa e erro, ele encontraria as bebidas alcoólicas que procura ei11 certas atividades e eventos, mas não em OL1tras - em carros elegantes ou na notícia de que uma

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família sem teto foi alojada, por exemplo. Ele descreve as atividades e os fatos que acredita causar aquele pique emocional como suas "preferências". Com essa descrição, ele só quer dizer que servem a um objetivo instrumental, e apenas dá valor às suas preferências porque e até o ponto e1n que elas Il1e servem dessa maneira. Suas preferências não têm mais valor intrínseco do que o estado dos órgãos do corpo; na verdade, ele as considera como estados do corpo e talvez ache adequada .uma analogia médica. Ele poderia dizer que seu siste1na nervoso é tal que consegue u1n alívio maior da dor com certos medicamentos, e r1ão com outros, e obtém mais das sensações inebriantes que deseja em certas atividades do que em outras. Assim como ele 11ão tem preferência independente por uma fonna de inedicamento a outra, fora a repercussão sobre a dor, também não tem preferência independente por um tipo de experiência a outra, a não ser sua capacidade de prod.uzir picos emocionais. Ele sabe que, se sua constituição psicológica e fisiológica fosse diferente, para que tivesse outras preferências e ambições, estas seriam veículos mais eficientes para a geração de sensações extasiantes, porque qualquer ato de satisfação das preferências, ou na direção da aspiração, produziria uma sensação inebriante maior, ou porque produziria uma sensação comparável de 1naneira muito mais barata, de modo que poderia custear mais atos e picos emocionais. Ele preferiria ter essas propensões às suas próprias, e se considera desafortunado por não as possuir. Se lhe oferecessem uma pílula eficaz que lhe alterasse as preferências, ele aproveitaria avidamente a oportunidade de tomá-la, da mesma forma q1.1e alguém em tratamento com determinado analgésico aproveitaria a oportunidade de tomar drogas mais baratas e mais eficazes. Também podemos imaginar uma criatura semelhante, embora diferente: o viciado em realizações. Sua n1otivação não é um pico emocional, mas a satisfação de conseguir tudo o que acha que deseja. Sua missão é riscar da lista tantas ocorrências possíveis de "satisfação dos desejos", como

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ele chama essas realizações ou acontecimentos. (1:0.lvez ele tenha uma escala de realizações que lhe credita mais pontos qu.ando o desejo é, conforme ·ele o define, mais forte.) Ele acredita ter uma série de desejos: adora ópera, por exemplo, e é fanático pela conservação das grandes florestas e dos belos prédios antigos. Assim como o viciado em sensações inebriantes, para ele os desejos são apenas instrumentais: já que eles são o que deseja, o importante para ele é sua satisfação. Quais são esses desejos é, todavia, essencialmente indifere11te para ele: são apenas fatos contingentes acerca do estado de seu sistema nervoso, e importantes somente por esse motivo. Fle considera seu conjunto atual de desejos como vantagens até o ponto em que sejam mais fáceis de satisfazer do que outros desejos que possa ter tido, e co1no desvantagens até o po·nto em que sejam mais difíceis de satisfazer do que outros desejos que possa imaginar. Ele pode imaginar um desejo desesperado por caixas de fósforo, por exemplo, e lame11ta não ter esse desejo, pois poderia com facilidade tomar· se catnpeão nessa atividade. Ele também tomaria uma pílula para mudar seu objeto de desejo, de ópera para caixas de fósforo, caso existisse tal pílula, e tan1bé1n se considera desafortunado porque, na ausência de tal pílula, ele está preso ao desejo mais dispendioso que tem. Por mais que tente colecionar caixas de fósforo, percebe que não consegue fazê-lo e, porta11to, não consideraria que os colecionar fosse um incidente de satisfação da preferência. Esses viciados Oamento informar) tiveram um papel importante na filosofia e na economia, e ainda aparecem nesses rec~ntos. Vale notar, portanto, que achariam muito :atraente o argumento de Cohen. Pareceri.a, de fato, arbitrário para eles traçar qualquer distinção importante ao calcular os direitos das pessoas, e11tre deficiências e desvantagens, de ·um lado, e gostos, convicções e aspirações, do outro. Segundo os viciados, os gostos e aspirações relativa1nente caros são deficiências, e não faz sentido tratá-los de n1aneira diferente da que se tratam as deficiências. Eu e você somos

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diferentes dos viciados porque quase tudo o que considerariamos aspiração ou preferência, ou mesmo gosto, está imerso, como já disse, i1os juízos de valor independentes. Se você adora jazz, é o jazz que você adora, e não alguma sensação que por acaso perceba em um concerto de jazz, mas que poderia desejar obter de maneira diferente e talvez menos dispendiosa. Se quiser ajudar a salvar uma espécie ou um prédio, é isso que você quer, e não mais um risco correspondente à satisfação de mn desejo de sua lista. Ê claro que o jazz o emociona, e você sente um fonnigamento quando uma máquina de terraplanagem é desviada de seu trabalho pernicioso. Mas essas sensações baseiam-se em juízos - de que o bom jazz é maravilhoso, por exem_plo, e que salvar certos prédios é importantíssimo. As interconexões entre gostos, preferências, aspirações, motivações, convicções e juízos de diferentes tipos que nos distinguem dos ·viciados tornam impossível para nós tratar como deficiências quase tudo o que os críticos chamam de gostos. Não somos capazes de achar que estaríamos em melhor sihlação se abríssemos mão de alguma aspiração ou não encontrássemos mais satisfação no que agora achamos pro:ftmdamente satisfató1i.o. Pelo contrário, são os nos·· sos diversos gostos, convicções e aspirações que definem para nós o que seria uma vida satisfatória 011 gratificante, e tratá-los como empecilhos à realização dessa vida seria in-

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5. Cohen discorda dessa tese: ele diz que "nem todas as aspirações, e alguns gostos, são fruto&de crenças e atitlldes: muitas das preferências e aspirações slirge1n sem ser fruto de nenhum tipo de incentivo dogmático" ("Currer.cy of Egalitarian Justice", p. 930). Isso pode nos levar a concluir que sua discordância de mim é principttlmente de psicologia empírica ou talvez filosófica. Todavia, acontece qne ele acha irrclevante se os gostos e as aspirações estão vinculados às convicções e aos compromissos: reconhece, por exemplo, que os desejos de alguém que é in1pulsionado pela religiiio a construir monumentos caros siio gerados por convicções, não obstante, afirma que us pessoas que têm tais desejos precisam de recursos extras por t1:1! motivo, contanto que não prefiram que seus projetos sejam caros (pp. 935-8).

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coerente. Os recursos e as deficíências - inclusive os anseios

e as obsessões que gostaríamos de não ter, e lutamos por derrotar ou dispersar- capacitam-nos ou limitam-nos em seu potencial para fazer o que desejamos fazer. Crenças, convicções, ambições, projetos e gostos do tipo ordinário - contra os quais não lutamos nem desejamos elin1inar, mas, pelo contrário, satisfazem-nos - definem o que desejamos fazer. Temos prazer ou trabalhamos sem os primeiros. Mas raciocinamos, sentin1os ou ficamos intrigados em

busca dos segundos, e está entre os n1ais fundamentais de nossos pressupostos éticos que a responsabilidade de tal juízo seja nossa. Col1en não é viciado em sensações extasiantes nem em realizações, portanto poden1os especular sobre seu entusiasmo com um argumento que só seria atraente para tais viciados. Ele e outros que faze1n argumentos paralelos podem ter uma dentre duas razões. Podem adotar a perspectiva radical de que nossa ética pessoal conve·ncional se fundamenta em um grave equívoco filosóíico, de que devemos tentar não assumir responsabilidade por nossas próprias convicções, mas, pelo contrário, pensar e agir como os viciados. F'orém, os críticos não elaboram um argwnento de apoio a essa sugestão estranha, e é difícil imaginar como seria esse argumento. Não podem apelar para nenl1um determinismo psicológico geral por dois motivos: primeiro, nem eles refutam a nossa liberdade geral de escolha no agir e, segundo, a distinção convencional que todos fazemos entre as circuns tâncias e a personalidade não presume que escolhe1nos a nossa personalidade, e, portanto, não seria deslTuída por nenhum argumento, por mais geral ou metafísico, de qtte não poderíamos tê-la escolhido. Ademais, qualquer argumento que pretendesse solapar o alicerce de nosso senso de responsabilidade pessoal deveria ser moral ou ético: precisaria demonstrar alguma conseqüência não atrativa desse alicerce ou 11os dar algurna razão normativa para abandoná-lo, e parece improvável que tal argume11to tivesse o poder de abalar uma parte tão fundamental de nossa econon1ia

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ética 6 • Os críticos não poderiam simplesmente apelar para um suposto princípio normativo que afirmasse ql1e as pessoas não deviam r1unca se responsabilizar, em qualquer sentido da responsabilidade, pelo que não escolheram deliberadamente. Esse princípio seria contraditório não só com nossa prática de assumir responsabilidade conseqüencial por nossas convicções, mas também por muito mais da experiência ética e moral, inclusive, por exemplo, as obrigações e as responsabilidades que a maioria das pessoas acredita ter com relação à comunidade política, aos pais e aos parentes7. É mais provável que o argumento dos críticos se baseie em algo co1npletamente diferente: que presum.am que a teoria política não precise, ou não deva, acompanhar a estrutura ordinária de nossa moralidade e ética pessoais. A igualdade de ti;!cursos segue essa estrutura; tran.sporta-a intacta para dentro da política. Propõe uma política que possamos adotar como fluindo de nossas outras convicções, uma política na qual os cidadãos possam fazer e atender reivi11dicações de justiça se1n mudar para uma moral.idade especial, criada para a política. Permite-nos citar, como de5Vantage11s e deficiências, somente o que tratamos da mes1na forma em nossa própria vida ética. Os críticos talvez prefiram ver a política sob outra luz, imposta por agentes externos que adotam wna moralidade independente que possa co11tradizer aquilo em que seus súditos acredita1n. Cohen, por exemplo, diz que, embora uma pessoa cuja religião imponha fardos extenuantes a sua vida não consideraria sua fé como deficiência nem desejaria perdê-la se pudesse, não há rnotivo para que "nós", que não aceitamos essa reli,gião, não a tratemos como uma deficiência e a compens~'mos por suas despesas extras8. "Nós", aparentemente, 6. Ver Ronald Dworkin, "Objectív:ity and Truth: You'd Better Eelieve It",

Phi/osophy & Pub!icAffairs 25 (1996): 87. 7. VPr Ronald Dworkin, Law's Empire (Cambridge, Mass .. Harvard University Press, 1981.i), cap. 6.

8. Cohen, "Currency of Egalitari..1n Jusfr~e", pp. 938-9.

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refere-se à maioria política que adota um sistema de redistri-

buição cujas premissas seriam rejeitadas, por serern detestáveis, por aqueles aos quais foi elaborada para beneficiar. No entanto quaisquer desses procedinlentos parecem in-

compatíveis com os pressupostos fundamentais da demo-cracia co-participativa, que insiste que os cidadãos sejam capazes de se ver como autores conjuntos das decisões coletivas9._De qualquer maneira, nesta explicação do argumento deles, os críticos propõem a anulação da ética pessoal, não só de uma pequena minoria, mas de todos. Propõem que de-

vemos todos fingir, na política, que somos viciados~ q·ue devemos todos agir coletivamente de maneira que acharíamos 11umilhantes individualmente. Pode haver uma razão para essa autodegradação coletiva, mas não sei qual é.

9. Scanlon afirma que em certos casos, nos quais seria adequado culpar as pessoas por suas decisões, a comunidade poderia, não obstante, ter razão ao hberá-Jas da responsabilidade conseqüencia\ dessas decisões. Ver Scanlon, V\/hat We Owe tu Each Other, p. 292. Ele fala sobre alguém que foi criado em um ambiente em que ninguérn gosta de trabalhar e os colegas desesti.-nulam o gosto pelo trabalho. Podemos não estar tão dispostos a recusar o auxfüodesemprego a essa pessoa, pois ela não está dlli-posta a traballtar, quanto a alguén1 que não apresente tal lústórico. Precisamos estar atentos, porém, para distinguir dois motivos que talvez possamos ter para €8se tratamento especial. Podemos achar, em primeirn lugar, que como ele não escolheu essa falta de vontade de trabalhar, não se deve pedt- a ele que inude de compo!Tumento. Ou poderíamos pensar, em segundo lugar, que se ele e seus colegas nunca se interessaram pelo trdbalho devido a uma educação injusta e inadequada, ou a pobreza, ou a preconceitos que impediram ql1e houvesse empregos razoáveis disponíveis para eles, seria injusto obrigá-los a aceitar as conseqüências de tal desgosto_ Podemos dif~rendar os dols casos imaginando dua~ histórias: que o vagabundo de Scanlon é um imbecil da alta classe educado para pensar que trabalhar é uma atividade inferior para sua classe e, em segundo lugar, que foi uma pessoa educada em uma favela urbana paupérdrna na qual o desemprego é alto e endêmico. Os dois primeiros motivos que acabmnns de indicar ameaçariam do mesmo modo as duas histórias; o segundo as trataria de mandra ben1 diferente. Aceito o seguncl_c motivo e separaria as histórias. Ver Capíhdo 2. A~sim, creio, faz Scanlon, pois ele diz claramente que a pessoa que não quer trabalhar em um ernprego razoável 1nerece L'Ondenação moraL mesmo no caso que ele im.."lgina; e isso não parece compatiwl com o primeiro motivo.

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Nós, pessoas comuns, ademais, não atingiríamos, mesmo que quiséssemos, a descontinuidade entre nossa ética pessoal e nossa moralidade política que os críticos, nesta hipótese, acor1selham. Já que nossas preferências e aspirações são infundidas com juízos de valor e já que, pelo menos para a maioria de nós, esses juízos contêm convicções éticas sobre a forma de uma vida bem-sucedida completa e juízos morais sobre a sensatez e a justiça de qualquer atribuição de recursos, não poderíamos separar aspiração e juízo da maneira que requer qualquer plano de justiça definido em um vocabulário do bem-estar. Os viciados podem muito bem separar seu valor singular- se11sação inebriante ou realização - de quaisquer conhecimentos ou convicções que possam ter sobre aquilo de que falamos acima ou sobre a devida distribuição de recu.rsos. Suas preferências não expressam valor ou juízo independente, mas são simples fatos neurológicos sobre o que produzirá um pico emocional ou lhes renderá uma realização, e essas preferências são, portanto, insensíveis à distribuição de recursos que ambos esperam ou aprovam. Se preferem champanhe e arquitetura a cerveja e trabalho na construção civil, sabem que terão menos sensações inebriantes e menos realizações do que teriam se tivessem as preferências opostas. No entanto, independentemente das preferê11cias que tenl1am, isso não dependerá em hipótese alguma do nível de riqueza que prevêem desfrutar, muito menos de quaisquer juízos sobre o 1úvel de riqueza que lhes é mais apropriado ter. (Evidentemente, podem ter preferências quanto a esta última, e estas podem ter afetado, de mai1eira causal, as outras preferências que formaram, mas essas últimas terão, não obstante, uma existência neurológica e vida próprias.) Já que suas preferências são estáveis dessa maneira, podem comunicá-las a um. comitê ou a um computador, que pode utilizar tais relatos para calcular qual distribuição de recursos igualaria de modo geral a satisfação das preferências (ou, o que dá no mesmo, as mesmas oporhtnidades de satisfação das preferências, ou, se o utilitarismo voltasse à moda, maximizaria a

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satisfação total das preferências de um modo geral). Não estou dizendo que esse processo extravagante seja reahnente exeqüível, mesmo em uma comunidade de viciados. l\1as nós, as pessoas reais, não podemos participar de tun exercício como esse, inesmo em nossa imaginação, pois quase todas as nossas preferências, inclusive todas as importantes, estão embebidas em juízos que as tomam sensíveis, em grande parte, a suposições sobre a riqueza que temos probabilidade de ter. Se aprovo- e, portanto, tenho determinada aspiração, ela vai ativar meu juízo sobre as conseqüências para o resto da minha vida de procurar realizar tal aspiração, e essas conseqüências dependem dos recursos em geral que eu possa prever, pelo menos dentro de uma ordem de magnitude, que me estarão disponíveis. Eu. poderia, é verdade, pensar que alguma aspiração é tão importante que eu esteja disposto a empobrecer em·troca da oporturtidade de realizá-la: isso é o que gostamos de achar que os grandes artistas pensavam na juventude. Contudo até esse juízo requer algun1a expectativa do grau de pobreza que sofrerei, e suas conseqüências para outras pessoas que porventura dependam de mim. Já que as expectativas das pessoas reais entram dessa forma na formação de seus gostos e aspirações, não é possível para elas formar preferências estáveis antes da distribuição, e portanto não lhes é possível informar ao computador ou au comité o que este precisa saber. Ademais, para muita gente a ligação entre preferência e recursos também tem uma dimensão tnoral: acTedita que a justiça é, pelo menos, um parâmetro suave do bem-estar, portanto deve ter em perspectiva não só quais recursos provavelmente terá à disposição, mas tan1bém : quais recursos deve ter à disposição, para que seja possível definir as aspirações e as preferências de maneira estável. Assim, se tais pessoas se comprometessen1,. devido a seu próprio senso de justiça, com o igualitarismo de bem·-estar, só poderiam comunicar suas preferências depois de conhecer o resultado dos cálculos de suas preferências e das preferências de 011tras pessoas, e assim, como a flecha de Zenão, o processo jamais se iniciaria.

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IV. As pessoas e a sorte

Cohen tem duas outras objeções à igualdade de recursos que não dependem, pelo menos na opinião dele, de qualquer suposição, do tipo da do viciado, de que as preferências e as ambições sejam uma questão de sorte o·u azar. Ele dedica diversas páginas de um ensaio à primeira delas,

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mas acredito que se baseia em um mal-entendido. Ele diz que a igualdade de recursos não permitiria que a comunidade, em nome da eqü1dade, tomasse providências especiais

para as pessoas que precisam de remédios caros para aliviar a dor que, embora grave, não as impeça de realizar seus

planos, ou para as pessoas que, por serem especialmente suscetíveis aos resfriados, precisassem de agasalhos caros, ou para as pessoas que sofrem de depressão ou melancolia crônica e grave (pDrém não incapacitante) que lhes atrapalha a vida, mas que são incapazes de eliminar10 • A afirmação de Cohen levanta dttas questões distintas. Em primeiro lugar, as pessoas que sofrem nessas situações desafortunadas fazem jus, em princípio, à compensação do plano descrito no Capítulo 2? Em segundo lugar, se tal plano fosse posto em prática no mundo real, seria provável, co1no questão prática, oferecer compe11sação para essas situações? (Emprego a mesma distinção mais adiante neste capítulo ao analisar as objeções de Amartya Sen à igualdade de recursos.) A resposta à primeira dessas questões é bem simples. Quase todos concordariam que uma vida razoável sejam quais forem suas características, é ttma vida livre de sofrimento ou mal-estar físico ou mental grave e durável, e que ter uma enfermidade ou afecção física ou mental que tome inevitável a dor, a depressão ou o mal-estar sem remédios ou roupas caras é, por consegt.1inte, uma deficiência clara e evidente. Quem tem tal enfermidade não a escolheu e, portanto, a curaria se pudesse, e nenhuma de suas crenças, jttízos e convicções, ou compromissos, argumentariam contra 10. Cohen, "Currency ofEgalitarian Justice", pp. 917-21, 930.

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tal cura. 1Jma enfermidade que produz dor é um exemplo perfeito da falta de recursos pessoais para a qual a igualdade de recursos, em princípio, ofereceria compensação. A segunda questão não pode ser respondida de maneira abstrata. Mas se a dor que Cohen imagina fosse grave e, como ele também imat,>ina, os remédios pudessem aliviá-la, então um seguro hipotético possivelmente forneceria a verba adequada para a compra desses remédios. l)recisariamos supor muito mais fatos do que Cohen oferece para decidir se as pessoas melancólicas, ou as pessoas que precisam de agasalhos mais grossos, teriam desejado fazer seguro contra tais infortúnios pelo preço que esse seguro custaria. Contudo, novamente, se a situação fosse grave, e o dinheiro ajudasse, poderíamos muito bem pensar que o teriamt1. A objeção final de Cohen à igualdade de recursos é revelada de maneira diferente. Ele diz que, mesmo .que as pessoas não possam declarar sensatamente que foi azar terem os gostos e as aspirações que têm, decerto podem afirrnar que têm azar quando, devido aos gostos e ambições

11. Cohen aparente1nente açredita que essa resposta óbvi r caracterí~tka da pJrsonalidade des~a pessoa que diminua sua fu\iddade, ind1-1sive seus goslos e convicções, é uma d1~fidência; é um dos principais objetivos do Capítulo 1, e de~te capítulo, e>.plicar por que não se conclui isso. Seja como for, oferecer compensação aa, des.1fortunados que Cohen imagina não presume que adotemos a igualdade de bem-estar como meta. Se a comunidade dá dinhelro a alguém para çon1prar remédios que aiíviem a dor, não o faz para que seu be1n-estar seja igual":º de rúnguérn, ma<; porque sua ~onstituição física prejudica sua capacidade de levar a vida que deseja.

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concorrentes das otttras pessoas, o que querem é dispendioso. Quanto posso ter do que quero depende realmente do que os outros querem. Em alguns casos tenho mais do que quero se os outros quiserem o mesmo, pois o preço unitário de sua fabricação será mais baixo; em outros casos, as preferências semelhantes das pessoas tomarão mais caro o que quero~ em um leilão, por exemplo. Mas as preferên-cias de outre1n (ou a escassez de certos objetos ou matériasprimas que regem. como tais preferências afetam os preços) não são, com certeza, escolha ou juízo meu. Afirma Cohen que são questão de puro azar e, por conseguinte, devem requerer compensação mesmo na minha própria visão. Esse argumento, se bem-sucedido, certamente solaparia minha afirmação de que as preferências dispendiosas não deveriam conferir a ninguém o direito a recursos extras. Mas também, por si só, eliminaria a própria distinção de Cohen entre igualdade de oportunidades para o bem·-estar e a simples igualdade de bem-estar. Mesmo que aceitássemos a afirmação dele de que algumas pessoas, como Louis, escolheram sua própria preferência por champanhe, também teríamos de itir que tais pessoas não decidiram que tal preferência deveria ser dispendiosa: podem, sensatamente, reclamar que é um azar o champanhe, devido à falta de solo apropriado, ser mais caro do que a cerveja. Todos, de fato, por mais barato qt1e seja satisfazer seus gostos e aspirações, podem queixar-se do azar de que os gostos das outras pessoas, ot1 as fortunas da oferta e da procura, não sejam tais que suas próprias preferências fossem ainda mais baratas. A força indiscriminada do novo argumento de Cohen indica sua falha. Novamente devemos voltar· à ética para refletir outra vez sobre como a sorte, as escolhas e o juízo dão forma ao nosso senso ·pessoal de responsabilidade. Vemos, então, o equívoco de supor que as preferências ou os gostos das outras pessoas são questões de sorte ou azar que nos libere da responsabilidade conseqüencial de nossos atos ou circunstâncias. A mistura de aspirações, atitudes e preferências pessoais que encontro na comunidade, ou a si ..

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tuação geral dos recursos mundiais, não é, em si, justa ou injusta para mim; pelo contrário, a mistura está entre os fatos que definem o qt1e é justo ou injusto que eu faça ou te11ha11. Isso está claro na política: seria abs·urdo eu afirmar qttc há injustiça 110 fato de que tão poucas pessoas tenham as mesmas preferências que eu em arquitetura cívica ou as mesmas opiniões que eu em política internacional, que _me fazem estar do lado perdedor de todas as eleições nesses assuntos. Também está claro na moralidade: não posso evitar a culpabilidade por atribuir a meu azar que a vítima do meu roubo não tivesse ·uma preferência - de me dar o que roubei-que tomaria desnecessário o roubo. As necessidades e as opiniões das outras pessoas não são recursos que se possa distribuir, com ou sem justiça, entre nós: repetindo, fazem parte do que precisamos considerar ao julgar o q·ue é a injustiça ou o que a justiça requer. São, no vocabulário do Capítulo 6, parâmetros da justiça.

V. Igualdade e capacidade Se11 também rejeita as teorias da igualdade fundame11tadas em recursos em favor de tun.c.t concepçâo escrita no vocabulário da oportunidade ou da capacidade (termo empregado por ele). Sua objeção às teorias hn1damentadas em recursos, porém, assim como a de Cohen, não é q11e elas nos levam para longe demais da igualdade de bem-estar, mas que não nos dista11ciam· dela o bastante. Sen diz que filósofos que querem avaliar a igualdade em termos de re12. Porém. pennitir que o destino de alguérn dependa das preferências exten1as de outras pessoas, entre elas o preconceito contra pessoa~ de sua raça ou classe, é de fato injusto. Para consultar um relato da dlferença entre as preforêndas pessoais e externas, ver Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously (C;;imbridge, Mass .. Iiarvard University Press, 1977), cap. 12; e Dworkin, A lvfatter of Principie {Cambridge, ~íass.; HaJVard University Press, 1985), cap. 17. Sobre como a igualdade de recursos trata as preferências externas, ,,-er Capítulo 2.

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cursos - ele cita John Rawls e a mim - mirain a coisa certa, que é a liberdade pessoal dos .indivíduos. Diz ele: "Não é irracional encarar [seus] os nos levando rumo à. liberdade - para longe da atenção confinada exclusivamente à avalia-

ção das realizações. Se aspiramos à igualdade no espaço dos recursos ou dos bens primários, isso pode ser visto 1 1

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como um movimento do exercício avaliativo para o exame da liberdade, afastando-o da realização como tal."13 Porém, segundo Sen, esses avanços não chegam à genuína-igualdade da liberdade, porque ignoram o fato fundamental de que cada pessoa tem níveis bem diferentes de capacidade para fazer o que querem - estão capacitadas a alcançar, no vocabulário dele, níveis diferentes de "funcionamento" - com os mesmos recursos materiais. E acrescenta: "Mas é preciso reconhecer ao mesmo tempo que igualar a propriedade de recursos ou a posse de bens primários não vai necessariamente igúalar as liberdades substantivas de que desfruta cada pessoa, já que pode haver variações SÍ!:,"Fflificativas na conversão dos recursos e das liberdades fundamentais em liberdades." Essas variações podem expressar "problemas sociais complexos", mas também poden1 surgir de "simples diferenças fisicas". "A libertação do pobre da subnutrição", escreve ele, "dependeria não somente de seus recursos e bens prin1ários ... mas também de seu metabolismo, género, gravidez, ambiente climático, cantata com doenças parasitárias etc. De duas pessoas com rendas idênticas e outros bens e recursos primários (conforme caracterizados pelos enquadramentos rawlsianos e dworkianos), uma pode estar totalmente livre para evitar a subnutrição, e a outra não ter nenhuma liberdade para tanto14. Sen acredita que serviria mais completamente à shnetria de liberdade não comparar os recursos das pessoas, mas

13. Amartya Scn, Inequality Reexaminl'd (Can1bridge, lviass. Harvard Uni1992), p. 33. l4. Ibid.

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sua capacidade de exercer diversas funções ou atividades. Ele reconhece a dificuldade óbvia. Cada pessoa classifica as diversas atividades em ordens de importância diversas. Algumas pessoas crêem que um alto nível de realizações intelectuais e artísticas é mais importante do que as habilidades físicas, por exemplo, ao o que outras pensam o contrário. Como afirmei, essa é a dificuldade que enfrenta qualquer versão da igualdade de bem-estar: seja qual for a concção de bem-estar especificada, qualquer tentativa de igualar as pessoas em-bem-c:star assim especificado teria como objetivo igualá-las em algo que elas valorizam de ma·· neiras diversas. Sen afirma que talvez fosse possível elaborar uma classificação objetiva de atividades, embora ita que tal classificação sofreria de certa indetem1inação. Porém, conforme assinalei no Capítulo 1, a classificação objetiva seria controversa, mesmo que contasse com u~a generosa porção de indeterminação, e basear a distribuição em tal classificação não é compatível, de maneira alguma, com a igual consideração por todos. Por ora, deixarei de lado tal objeção, porém, para analisar, primeiro, se é consistente a crítica de Sen sobre as teo.rias da igualdade fundamentadas em recursos e, em segundo lugar, se sua "igualdade de capacidades" realmente proporciona, como ele pensa, uma alternativa genuína e atraente a tais teorias. Não tentarei aqui defender a versão rawlsiana da justiça distributiva fundamentada em recursos, porque, conforme já demo11straran1 diversas partes deste livro, minha própria postura é diferente de maneira que se poderia crer que a dele é mais vulnerável que a minha à crítica de Sen15. Mas a crítica de Sen à minha teoria da igualdade é 15. A lista de bens primários de I~awls não contém, por exemplo, habilidades físicas que possam tornar duas pessoas notavelmente diferentes na capacidade de alcançar as mesmas metas. É importante lembrar, poré1n, que Rawls tenta descrever os princípios de justiça da "estn:lttra básica" da comunidade polftica e espera que a& dáusulas relativas a deficiências físicas sejam assunto, não desse estágio constitucional, mas de um estágio legislativo posterior.

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misteriosamente mal interpretada. Salientei, logo nos primeiros capítulos deste livro, que entre os rectUsos da pessoa estão os recursos pessoais, tais como a saúde e a capacidade física, bem como os recursos impessoais ou transferíveis, como o dinheiro, e que embora seja preciso empregar diversos conjuntos de técnicas para corrigir ou reduzir as desigualdades nesses dois domínios principais de recursos, am.bos devem receber atenção dos igualitários. O leilão hipotético de seguros para doenças e deficiências físicas, descrito no Capítulo 2 e ilustrado no Capítulo 8, pretende, por exemplo, aumentar os recursos· impessoais daqueles cujos recursos pessoais estão obstruídos, de diversas maneiras. Sen descreve as diferenças físicas entre as pessoas em uma sintonia mais fina do que eu ao ilustrar os recursos pessoais: ele chama a atenção, por exl'mplo, para a possível importância das diferenças no metabolismo das pessoas. Contudo é importante distinguir entre duas questões ao analisar até que ponto sua maior pormenorização marca uma divergência teórica. Em primeiro lugar, quais tipos de diferenças entre ·as pessoas devemos considerar, em princípio, que justifiquem providêr1cias com o objetivo de compensar ou atenuar essas diferenças? Em segundo lugar, quais diferenças são tais que um plano exeqüível no mundo real, para aumentar a eqüidade, viesse realmente a atenuá-las ou con1pensá-las? A crítica de Sen é equivocada no piimeiro nível teórico. O metabolismo é um recurso claramente pessoal e a igualdade de recursos, portanto, considera-os, em princípio, uma questão de igual consideração. A segunda questão é mais difícil de responder de maneira abstrata. Se qualquer esquema prático e justificado de igt1aldade de recursos compensaria as pessoas pelo metabolismo ln.eficaz - fom.ecendo-lhes vales-refeição adicionais, por exemplo - deve depender de uma ínfinidade de fatos, inclusive, mais manifestamente, a gravidade da ineficácia. Um esqu.ema redistributivo inspirado no mercado hipotético de seguros compensaria qualquer distúrbio metabólico que tomasse necessária à sobrevivência

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uma alimentação cara ou abundante. Mas não faria, creio, o ajuste fino das necessidades metabólicas ao oferecer marginalmente mais dinheiro para comida às pessoas mais gordas, porque os custos istrativos de tal programa seriam desproporcionalmente altos. Sen não propõe nenhum esquema concreto e politicamente realizável para a instituição de sua concepão de igualdade, porém, e o tom de sua discussão indica que ele considera sua crítica teórlca, e não prática. Será que a concepção positiva de igualdade de Sen igualdade de capacidades - é realmente diferente da igualdade de recursos? Se for, será mesmo diferente da igualda- _ de de bem-estar? Analisemos a declaração de sua postura: Nesse aspecto, pode-se-encarar a realização da pessoa con10 vetor de seus "funcionamentos", que consistem em seres e fazeres. Os funcionamentos relevantes variam de coisas elementares como ser adequadamente nutrido, ter boa saúde, evitar as doenças que sejam possíveis evitar e a morte prematura, etc., a realizações mais complexas como ser feliz, respeitar a si mes1no, participar da vida da comunidade etc. A afirmação é de que esses funcionamentos são constitutivos do ser de cada um e que uma avaliação do bem-estar deve assumir a forma de un1a avaliação desses elementos constituintes. Intimamente ligada à idéia dos funcionamentos está a da capacidade de funcionar. Representa as diversas combinações de funcionamentos (seres e fazeres) que a pessoa realiza. A capacidade ... representa a liberdade que: a pessoa te1n de escolher entre vidas possíveis.16

Esse parágrafo é interpretado com mais espontaneidade, receio, como sugerindo que se deve fazer com que as dessoas sejam igualadas ao máximo em sua capacidade de Concretizar as realizações "complexas" da felicidade, do auto~respeito e um papel significativo na vida da comunidade. Todavia, se for interpretado assim, então não defende 16. Sen, Inequ1Jlity Reexamined, pp. 39-41l

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algo novo, mas somente u1na forma de igualdade de bem-e bem desalentadora. A capacidade de alcançar a "felicidade" varia de uma pessoa para outra por inill1ares de motivos, entre eles a riqueza, a personalidade, as aspirações, a sensibilidade ao sofrimento all1eio e suas atitudes con1 relação às musas rivais de Milton. Ao misantropo de Moliere falta a capacidade de ser feliz que possui o Pangloss de Voltaire. Varia a capacidade de se ter" auto-respeito" por todos esSes e inúmeros outros motivos, inclusive suas opiniões acerca dos tipos de vida que justificam o auto-respeito. (Ivan Ilych de Tolstói tinha uma capacidade in1ensa para o auto-respeito durante grande parte da vida, mas nenhuma quando estava perto de morrer, por exemplo.) A capacidade das pessoas de "participar da vida da comunidade" ou de atrair respeito e iração de outras pessoas da comunidade varia muito pela maioria desses motivos, e por uma ampla dimensão de motivos adicionais tan1bém. Outras pessoas -da minha comunidade também têm gostos, convicções, padrões e atitudes; suas opiniões a meu respeito e acerca de minhas diversas convicções, e até que ponto desejam unir-se a mim em causa comum, as expressarão. É claro que é bom quando as pessoas estão felizes, têm-se em alto conceito e são tidas em alta conta pelas outras. A idéia de que as pessoas devam ser iguais nas capacidades de alcançar essa situação, porém, é incoerente e estranha - por que isso seria bom? - e a idéia de que o governo deveria tomar providências para realizar essa igualdade - é possível imaginar que providências seriam essas? - é assustadora. Por que nada disso é óbvio? Porque sabemos qlte aquilo que impede a maioria das pessoas de ter felicidade, autorespeito e um papel razoável na vida da comunidade é a falta de recursos - em sua maioria recursos impessoais, entre eles a educação, mas também, em muitos casos, recursos pessoais. Assim, somos tentados a dizer que o que almejamos alcançar, com a redistribuição de recursos e a criação de oportunidades, é uma melhoria no potencial das pessoas estar~

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para obter esses bens importantes. Existe, porém, um risco ao se expor o assunto dessa maneira - o perigo de cair na falácia de supor que nossa meta política sttprema não é simplesmente fazer com que as pessoas sejam iguais nos recursos de que precisam para ter felicidade, auto-respeito e objetivos semelhantes, o que é uma meta atraente e vigorosa, mas torná-las iguais na capacidade geral de alcançar as metas, sejam quais forem suas aspirações, projetos, gostos, disposições, convicções e posturas, q·ue é a falsa meta da igualdade de bem-estar. Felizmente, temos urna razão excelente para rejeitar essa interpretação "natural" da tese de Sen, pois ela é fundamental à intenção dele, como eu já disse, de se afastar ainda mais d.a igualdade de bem-estar do que acredita que Rawls e eu fizemos, e não de se aproximar mais. Devemos, então, adotar a seguinte explicação, bem diferente, do que ele quer dizer. O governo deve esforçar-se por garantir que quaisquer diferenças no grau em que as pessoas não sejam , igualmente capazes de alcançar a felicidade e as outras realizações "complexas" devem ser atribtúveis às diferenças em suas escolhas e personalidade e as escolhas e a personalidade das outras pessoas, e não a diferenças nos recursos pessoais e impessoais que possuem. Se entendermos a ib'11aldade de capacidades dessa forma, ela não é uma alternativa à igualdade de recursos, mas apenas o mesmo ideal exposto com outra terminologia. É claro q11e as pessoas querem recu::sos a fim de aperfeiçoar suas "capacidades" para os "funcionamentos"~ isto é, para aumentar seu poder de fazer o que querem. Porém (nesta interpretação da postura de Sen), são os recursos pessoais e impessoais, e não a feli7idade 011 o be1n-estar, os quais podem alcançar por intermédio de escolhas, que são questões de igual consideração. Portanto, o esforço de Sen de alcançar uma classificação objetiva dos "funcionamentos" não é, afinal, necessária nem útil. Basta distribuir os recursos impessoais simetricamente, e descobrir dispositivos, como o mercado hipotético de seguros, p
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TEORTA

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cursos pessoais. Depois, podemos permitir às pessoas, por meio de suas escolhas nesse ambiente quase equânime, que façam suas próprias classificações dos "funcionamentos" que sejam importantes para elas. Mesmo que a teoria de Sen seja apenas a igualdade de recursos com outro vocabulário, esse vocabulário salienta a questão que acabo de chamar de óbvia-que as pessoas não querem os recursos simplesmente para tê-los, mas para fazer algo com eles. Essa ênfase só é vantajosa, porém, se tivermos o cuidado de afirmar também o que acabo de exp·or: que a igualdade que procuramos está nos próprios recursos pessoais e impessoais, e não na capacidade que as pessoas têm para alcançar o bem-estar com tais recursos. A diferença nessas metas igualitárias é profunda: é a diferença entre uma nação de iguais e uma nação de viciados.

PARTE II

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PRATICA

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Capítulo 8

A justiça e o alto custo da saúde

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Todos concordam que os Estados Unidos atualmente gastam demais co'm a saúde. Os serviços médicos perfizeram 14 por cento do nosso produto nacional bruto em 1991 - a França e a Alemanha gastaram 9 por cento e o Japão e a Inglaterra gastaram 8 por cento - e os economistas previam que, sem reformas, as despesas médicas chegariam a 18 por cento até o ano 2000. Mas quanto deve uma nação como a nossa gastar com a saúde das pessoas? Como saber se as outras nações não estão gastando muito pottco, em vez de estarmos nós gastando demais? A maioria das pessoas também concorda que os serviços médicos têm distribuição injusta nos Estados Unidos. Quarenta milhões de americanos têm assistência médica flagrantemente inadequada, ou nenhuma, e muitos que hoje têm um seguro razoável o perderão, porque perderão o emprego ou serão vítimas de uma doença ou afecção não coberta pelo seguro. No todo, sem reformas, um quarto dos americanos não terá cobertura de seguro-saúde durante algum período nos próximos cinco anos. Mas quanta assistência médica uma sociedade razoável deve tornar ível a todos? Não podemos oferecer a todos a assistência médica que os mais ricos dentre nós poden1 comprar para si. Como decidir qual é o nível mínimo de

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assistência médica que a justiça exige que até os mais pobres tenham? O plano de saúde que o presidente Ointon aprese11tou ao Congresso em 1993, que jamais foi adotado, teria institWdo ·uma forma de racionamento da assistência médica. Oferecia um pacote básico de assistência médica que estaria garantido para quase todos. O plano especificava alguns componentes desse pacote básico pormenorizadamente: o pacote continha, por exemplo, um programa abrangente de vacinação infantil, exames físicos de rotina em intervalos diversos para cada faixa etária e mamografias a cada dois anos para detectar o câncer de mama nas mulheres a partir dos 50 anos de idade. O plano também excluía do pacote básico alguns tipos específicos de tratamento - a maioria das cirurgias plásticas estéticas, por exemplo. A mais importante cláusula de racionamento do plano, porém, não era detalhada, mas extrema1nente abstrata: estipulava que a assistên.cia médica só fizesse parte do pacote básico se fosse "necessária e apropriada", e criava o National Health 'Board (Conselho Nacional de Saúde), responsável pela decisão de quais tipos de tratamentos seriam necessários e apropriados e em quais circunstâncias. O conselho deveria decidir, por exemplo, se os transplantes de medula óssea ou outras formas experimentais de tratamento seriam necessários e apropriados para determinadas doenças; deveria decidir se a maioria das pessoas poderia contar com esses tratamentos caros quando os médicos lhes dis-sessem que seria sua única possibilidade de sobreviver, por menor qt1e fosse. i Co1no um órgão do governo com tamanha responsabilidade deveria tomar tais decisões? Quando se deveriam fornecer os dispendiosos exames de ressonância magnética a quem não os pudesse pagar? Deveriam oferecer transplantes especulativos de intestinos e fígado? E1n caso afirmativo, a quais pacientes e para quais doenças? Se a nação não pode pagar todos os exames e tratamentos que seus cidadãos ve-

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nham a querer ou precisar, como deve decidir, como 11ação, quanto gastar coletivamente e com cada cidadão? Alguns críticos negam que seja necessário haver esse racionamento de assistência médica: argume11tam que se fossem eliminados os desperdícios e a ganância no sistem.a de saúde dos Estados Unidos, poderíamos economizar o suficiente para dar às pessoas todos os tratamentos médicos necessários. Porém, embora as despesas istrativas sejam parte significativa dos custos hospitalares 1, e os salários dos médicos americanos sejan1 altíssimos em comparação com outras nações 2, a maior contribuição para o aumento dos custos médicos nas últimas décadas tem sido a disponibilidade de novos meios de diagnósticos de alta tecnologia, como a'ressonância magi1ética e as novas técnicas, caríssimas, como. os transplantes de órgãos e, no futuro, o tratamento do câi1cer com o anticorpo monüclonal. ()s Estados Unidos não estão pagando muito mais pela medicina pela qual pagavam menos anteriormente; pelo contrário, agora têm muito mais tratamentos médicos para pagar. Muitos políticos e alguns médicos dizem que grande parte das novas tecnologias é "desnecessária" ou "desperdício". Não estão dizendo que não ofereçan1 beneficio nenhllln, porém que seus benefícios são limitados demais para justificar o custo, e isso é um argumento a favor doracionamento, e não um argumento que afirme que ele é desnecessário. Está surgindo um consenso entre os médicos de que as mamografias de rotina para mulheres com menos de 50 anos de idade, que são caras, não salvam mui1. Segundo um estudo do Neu' England fournal of Medicine, os cu5tos istrativos chegaram a 25 por cento das despesas hospitalares em 1990. Ver Erik Eckholn1, llStudy Links .Pape1work to 25% of Hospital Costs", New York Tin1es, 5 ago.1993. 2. O salâriu médico anual médio nos Estados Unidos em 1992 estava acima de US$ 160.000. Os salários varian1 muito confonne a especialização médica: o salârio médio de um cinirgião cardiovascular era US$ 574.769, o do clínico geral era US$119.186. Ver "Health Plun Would Hurt Most the Doctors Who Make the Most", Nr;JJ York Times, 7nov. 1993, p.1.

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tas vidas. Mas salvan1 algumas 3 . Os transplantes heróicos, que poucas vezes dão certo, acabam dando certo raramente. Não podemos, portanto, defender as decisões de racionamento que qualquer plano de saúde faria por estarem simplesmente evitando desperdícios. Não podemos evitar a questão da justiça: o que é um tratamento médico "apropriado" depende do que seria injusto restringir com adesculpa do alto custo. li

Há milénios, os médicos fazem, no mínimo, apologias a uma justiça ideal na medicina, que chamarei de_JWpcípio_ do r.esgatig,,~Ele tem duas partes vinculadas. A primeira afirma que a vida e a saúde são, como definiu René Descartes, os bens mais importantes: todo o resto tem menor.importância e deve ser sacrificado em favor desses dois bens. A .segunda afirma com veemêncía que se deve distribuir assistência médica com eqüidade que mesmo em uma sociedade na q11al as riquezas sejam muito desiguais e se deboche da igualdade, 11ão se deve negar a ninguém a assistência médica de que precisa só por ser pobre demais para custeá-la. São ideais compreensíveis, e n1esmo nobres. Baseiam-se no conhecimento humano geral dos horrores da dor e, alén1 disso, de serem a vida e a saúde indispensáveis a tudo o mais que fazemos. O pril1cípio do resgate é tão antigo, tão inhlitivarnente atraente, e recebe tão vasto apoio na retórica política, que é fácil achar que proporciona o modelo correto para se respo11der a perguntas sobre o racionamento. De fato, porém, o princípio do resgate é quase total11}ente inútil para esse fim, e a hipótese de que define um modelo adequado para a reforma do sistema de saúde tem sido mais prejudicial do que benéfico. O princípio oferece wna resposta à pergunta de quanto o país deve gastar com 3. 'ler Glna Kolata, "Mammogram Guidelin<> ls Dropped", New York Ti11ies, 5 dez. 1993, sec. 1, p. 30.

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a assistência médica em geral: diz que devemos gastar tudo que pudermos até que não seja mais possível pagar nenhuma melhora de saúde ou na expectativa de vida. Nenhuma sociedade sadia tentaria alcançar esse padrão, da mesma forma que uma pessoa sadia também não organizaria a própria vida segundo tal princípio. Nos últimos séculos, contudo, não houve uma lacuna tão grande entre a retórica do princípio do resgate e o que era medicamente possível para a comunidade fazer. Agora, porém, que a ciência criou tantas formas caríssimas de assistência médio;a, é absurdo que a cornttnidade contin11e tratando a vida como um bem fornecido a qualquer custo - mesmo que tornasse praticamente inútil a vida mais longa das pessoas. Assim, a resposta do princípio do resgate à pergunta de quanto a sociedade deve gastar com assistência médica em geral deve ser descartada por ser inaceitáveI. l;:.ejeitada essa importante questão, o princípio não tem uma segunda melhor alternativa ou nível de recuo para aconselhar: simplesmente se cala. Isso é pior do que inútil, pois incentiva a idéia de que a justiça não tem nada a dizer sobre quanto a sociedade deve gastar com a saúde, em comparação com outros bens cotno a educação, o controle do crime, a prosperidade material ou as artes. ()princípio do resgate tem algo de útil, embora negativo, a dizer sobre a outra questão da justiça, que é como se deve distribuir a assistência médica. Diz que, se o racionamento é necessário, não deve ser feito, como atualmente nos Estados U11idos, fundamentando-se no dinl1eiro. No entanto, precisamos de um conselho mais positivo: qual deve ser a base do raciocínio? O impulso igualitário do princípio afirma qt1e a assistência médica deve ser distribuída segundo a necessidade. Mas o que significa isso? Com.o avaUar a necessidade? Será que alguém "necessita" de uma operação que talvez lhe salve a vida, mas haja po·ucas probabilidades de isso acontecer? A necessidade de um tratamento que salve a vida de uma pessoa deve sofrer interferência da qualidade q11e sua vida teria se o tratamento ti-

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vesse êxito? A idade do paciente importa? Será que uma pessoa de 70 anos precisa ou merece menos o tratamento do que uma pessoa mais jovem? Por quê? Como devemos equilibrar a necessidade que muitas pessoas têm de alívio para o sofrimento ou incapacidade, com a necessidade de tratamentos que salvariam a vida de um número menor de pessoas? Em certa ocasião as instruções de um comité do Oregon queriam defin.ir prioridades médicas que preferissem obturações dentais a apendicectomia, porque é possível obturar muitos dentes pelo preço de wna o_peraç:ão. Por que isso era um erro tão flagrante? Precisamos de outra definição, mais útil de jttsti_ç_a ideal

na assistência médica, e devemos começar pela percepção de um problema que parece tornar obrigatória a reforma. Por que os Estados Unidos gastam tanto - tão n1ais que outras nações~ com a medicina? Em gTande parte porque as decisões de quanto pagar em assistência médica são feitas pelo paciente e pelo médico, porém são pagas por tun terceiro, a companhia de seguros, portanto quem toma as decisões não tem um incentivo direto para-economizar. Os prémios dos seguros são dedutíveis e, ade1nais, a contribuição do empregador não é tratada como parte da renda tributável do empregado. Assim, o seguro-saúde torna os pacientes insensíveis ao custo no mome11to de decisão, e o verdadeiro preço do seguro é subsidiado pela nação. Talvez as pessoas gastariam menos consigo mesmas 011 com a .família se tivessem de pagar do próprio bolso os custos reais, à custa de outros be11s e o·portunidades qtte talvez quisessem ter ou quisessem que a fanu1ia tivesse. Obviamente, no longo prazo a 1naioria das pessoas paga os verdadeiros custos da assistência médica, mas fazem-no indireta e insensatamente, porque as contribuições do empregador e a quantia paga em imposto de renda poderiam ser utilizadas para comprar o que escolhessem, caso fizessem elas mesmas as escofr,as: melhores escolas para os filhos, por exemplo, ou investimentos e programas financeiros que aumentassem a competitividade dos Estados Uni-

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dos e lhes dessem mais segurança no emprego. Nossas despesas médicas são, portanto, irracionais: o sistema faz para as pessoas as escolhas que elas não fariam sozinhas, e o resultado é que há um exagero no cálculo de nossos gastos coletivos, como deveria haver, com relação à quantidade de assistência médica que realmente queremos, em conjunto, pelo preço que queremos pagar. Os economistas conservadores aproveitam-se desse fato: dizem que devemos criar um mercado livre de assistência médica, eliminando todas as vantagens e todos os subsídios fiscais para que as pessoas só possam ter a assistência médica que puderem pagar. Embora seja, evidentemente, uma solução inaceitável, é importante averiguar a causa. É inaceitável por três motivos. Primeiro, a distribuição de riquezas é tão injusta nos Estados Unidos, que muita gente estaria in\pedida de pagar qualquer seguro-saúde substancial pelo preço de mercado. Segundo, a maioria das pessoas tem informações insuficientes sobre os riscos de saúde e as tecnologias n1édicas; i1ão sabem quais são os riscos de câncer na mama antes dos cinqüenta anos de idade, por exemplo, ou com que idade seria melhor começar a fazer mamografias para aumentar sua expectativa de vida. Terceiro, em um mercado desregulamentado, as companhias de seguro cobrariam um prêmio mais alto a algumas pessoas por correrem mais riscos de saúde (como, de fato, muitas companhias de seguro fazem atualme11te). Desse modo, as pessoas com histórico de saúde ruim, ou que fossem membros de grupos étnicos especialmente suscetíveis a certas doenças, ou que vivessem em áreas nas quais fossem maiores os riscos de ferimentos resultantes da violência, precisariam pagar preços proibitivas. Essa análise aponta para um ideal de justiça mais satisfatório na assistência médica - o "seguro_prudente" id~al. Devemos dividir os recursos entre a saúde e outras necessidades sociais, e entre os diversos pacientes que precisam de tratamento, tentando imaginar como seria a assistência médica se a deixássemos à mercê de um mercado livre e não-

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subsidiado, e se as três deficiências que acabo de descrever fossem corrigidas. Tentemos, então, imaginar que os Estados Unidos se transformassem de três maneiras. Imaginemos, em primeiro lugar, que a distribuição de riquezas e rendas seja tão justa quanto lhe é possível ser. Na minha opinião, isso significa que os recursos de que as pessoas podem dispor inicialmente, ao tomar suas decisões sobre educação, trabalho e investimentos, estão o mais próximos possível de igualitários; mas imagine uma distribuição que. seja justa segundo suas próprias opiniões, sejam elas quais forem. (Suporei, contudo, que 11as suas opiniões, bem como nas minhas, a riqueza de todos em lima sociedade justa estaria muito mais próxima da média do que realmente acontece hoje nos Estados Unidos: os grandes extremos entre os ricos e os pobres que marcam nossa vida económica atual teriam quase desaparecido.) Em segundo lugar, imagine que os Estados Unidos também mudaram tanto que todos os dados que se pudesse chamar de conhecir11entos avançadíssin1os sobre o valor, o p~eço e os efeitos colaterais de determinados tratamentos médicos - em outras palavras, tudo o que os bons médicos sabc1n - também é de conhecimento do público em geral. Em terceiro lt1gar, hnagine que ninguém - companhias de seguro, inclusive - tivesse o a nenhuma informação sobre como determinada pessoa tem probabilidade de contrair determinada doença, ou sofrer determinado tipo de acidente. Ninguém poderia dizer, de si ou de outrem, que tal pessoa tem probabilidades maiores ou menores de contrair anemia falciforme, ou diabete, ou de ser vítima da violência das ruas, do q·Lte qualquer outra4. 4. Estou ignorando uma questão importante que meu argumento levanta, mas não tratarei dl~so aqui. Será justo, no exerddo hipotético que estou elaborando, excluiJ: informrtçôes relativas ao risco de doença;, d~-correntes de comportamento deliberado? As companhias de seguros deveriam estar na situação de cobrar pr&mios mais altos aos fumantes e aos alpinistas, por <"xemplo? Parece razoável. Mas, nesse caso, o que se configura como comportamento voluntário? O cotnportamento sexual de detenninado tipo deve

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fil mudanças que peço aos leitores que imaginem são enormes, mas não estão, creio, além do alcance da imaginação. Agora suponhamos que as decisões relativas ao sistema de saúde dessa comunidade tr811sfonnada venham parar nas mãos das decisões de um mercado livre, como podemos imaginar, e os médicos, os hospitais e a indústria fannacêutica tenham a liberdade de cobrar quanto quiserem. O governo não oferece assistência médica a ninguém, nem as despesas médicas ou os seguros-saúde são dedutíveis. Não há necessidade de subsidiar a assistência médica de maneira alguma, pois as pessoas têm recursos suficientes para pagar a assistência que acharem apropriada. Que tipo de instituições de assistência médíca surgiriam realmente em tal comunidade? A maioria das pessoas se tomaria membro das organizações de assistência médica que oferecessem serviços de médicos contratados por preço relativamente baixo? Um número substancial de pessoas escolheria contratos de seguros que permitissem mais liberdade na escolha de médicos ou hospitais? O plano ou apólice normal daria cobertura aos exames médicos de rotina ou aos serviços de diagnósticos? Que tipo, com que freqüência e com que idade? Quantos planos ou apólices ofereceriam, por preços ou prêmios adequadamente altos, diversos tipos de tratamentos experimentais, muito caros, de alto risco ou de baixa expectativa de benefícios? Que parcela de seus recursos conjuntos a comunidade dedicaria à assistência médica por intermédio dessas diversas decisões individuais? É impossível responder a essas perguntas com qualquer precisãos. Podemos, não obstante, fazer duas afirmações fun-

ser tratado como voluntário para tais fins? Pareceria equivocado que as companhias de seguros cobrassem prêmios mais altos de.homossexuai~ masculinos porque são considerados mais propensos ao contágio pela aids. S~ria porque a preferência sexual está menos sob o controle das pessoas do que o vício na nicotina? Ou porque o sacrifício de abrir mão do sexo é tão maior do que o de parar de fumar? 5. Parece provável que, mesmo que os membros da comunidade imagi· nária começassem por tomar
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munidade transformada gasta realmente com a assistência médica em conjunto é a quantia moralmente apropriada: não poderia ser criticada, com base na justiça, por gastar demais ou muito pouco. Em segundo lugar, seja qual for a dlshib·uição da assistência médica nessa sociedade, é justa para tal sociedade: a justiça não exigiria que se fornecesse assistência médica a quem não a comprou. Essas afirmações provêm diretamente de uma hipótese muito atraente: que adis··

tribuição justa é aquela que as pessoas bem-informadas criam para si por meio de escolhas individt1ais, contanto que o siste1na econôrnico e a distribuição da riqt1eza na comuni-

dade na qual essas escollias são feitas sejam também justos6. Essas conclusões importantes ajudam-nos a decidir qual assistência médica devemos almejar oferecer a todos na nossa própria comunidade imperfeita e injusta. Podemos especular sobre o tipo de atendimento médico e seguros-saúde que seriam prudentes para a maioria dos americanos comprar para si se as mudanças que imaginei já tivessem acontecido; e usar tais especulações como diretrizes para decidir o que a justiça exige agora - ao decidir, por exemplo, quais exames e tratamentos médicos o National Health Board deve definir como "necessários e apropriados" se a Lei de Segurança na Saúde for aprovada. Analisemos o caso de uma pessoa de 25 anos de idade, com saúde normal, boas perspectivas e conhecimentos a riam instituições e acordos colettvos, por intermédio dessas dedsôes individui;i.i.s, como a[';éndas ou cooperativas para a compra de seguros, pois ofereceriam vantagens econômkas em u1n mercado livre entre pessoas de riquezas mais ou menos iguais. O resultado desse procedimento poderia muito bem ser algo fcindonalmente próximo do plano proposto por dinton. 6. Minha declaração precisa de uma pequena qualificação. Mesmo na comunidade imaginária, talvez seja necessária alguma interferência paternalista para proteger as pessoas contra decisões imprudentes com relação a seguros, em especial quando jovens. E talvez fossem necessárias algun1as restrições para proporcionar recursos adequados a gerações posteriores.

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respeito do que há de mais avançado em medicina. ita-

mos que ela possa escolher dentre uma série de possíveis contratos para o fornecimento de assistência médica que poderia desejar, em diversas circunstâncias, no decorrer da vida. Qual plano de saúde seria o mais prudente para essa pessoa ?7 Poderia sentir-se inclinada, inicialmente, a comprar um plano de saúde que lhe fornecesse todos os tipos de tratamentos que se pudesse imaginar que lhe seriam úteis em qualquer circunstância. Mas ela logo descobriria que o preço de um seguro tão ambicioso seria proibitivo - não lhe sobraria dinheiro para mais nada - e decidiria que a prudência exige um plano de saúde bem menos abrangente. Evidente1nente, o que é prudente para algué1n depende das necessidades, dos gostos, da personalidade e das preferências da pessoa, contudo podemos emitir alguns juízos com a confiança de que se encaixariam nas necessidades e nas preferências da maioria dos americanos contemporâneos. Podemos ter certeza, por exemplo, com relação ao seguro-saúde que não seria prudente para a maioria, pois certos seguros seriam equivocados, o que quer que acontecesse no futuro, inclusive o pior. Seria irracional para quase todas as pessoas de 25 anos de idade fazer seguro que lhes garantisse um tratan1ento de manutenção das funções vitais se caísse em um estado vegetativo persistente, por exemplo. A quantia substancial que precisaria gastar em prémios, ano após ano, para garantir a cobertura seria muito maü:; bem e1npregada em outras maneiras de melhorar sua vida consciente e real. Mesmo quem só viveu alguns meses após a compra do seguro, e caiu no estado vegetativo, teria cometido um erro ao abrir mão dos recursos que fariam com que

7. Isso é diferente de pergi.1ntar o que qualquer jovem de 25 anos de idade faria rE'.ahnente, porque muita gente, cm especial na juventude, não toma
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sua curta vida consciente restante fosse melhor para pagar por um estado inconsciente mais longo. Podemos ampliar essa tese e incluir a demência, bem como o estado inconsciente: não seria prudente, para quase ninguém, pagar seguro que fornecesse intervenções médlcas caras, mesmo do caráter que salve a vida, depois de entrar nos últimos estágios do mal de Alzheimer, ou outra forma de demência irreversível. Seria melhor gastar o dinheiro dos prêmios de tal seguro, aconteça o que acontecer, em um modo de fazer con1 qtte a vida valha a pena antes da demência. Certamente, a maioria das pessoas prudentes compraria um seguro que oferecesse internação, em condições adequadas de conforto e dignidade, caso se tomassem dementes; oferecer tal tratame11to ficaria muito mais em conta do que oferecer tratamento para salvar a vida - por exemplo, a diálise renal ou os transplantes de órgãos· - caso fosse necessários. Agora vejamos uma sttgestão um pouco mais controversa. Na maioria dos países desenvolvidos, grande parcela das despesas médicas - mais de um quarto dos pagamentos do Medicare nos Estados Unidos, por exe.mplo-destinase a pessoas em seus últimos seis meses devida. Obviamente, os médicos nem se1npre sabem se dete.rrninado paciente morre.rá em poucos meses, sejam qt1ais forem as despesas de seu tratamento. Porém, em inuitos casos, infelizmente, sabem que o indivíduo morrerá. A maioria dos jovens não acharia prudente co1n.prar seguros que os mantivessem vivos, por meio de intervenção médica cara, durante quatro, cinco ou mais meses, se Vivessem até idade avançada. Achariám mais sensato gastar o que tal seguro custaria em planos de saúde melhores mais cedo, ou em educação, ou em investimentos que proporcionassem mais benefícios ou segurança mais importa11tes. É claro que a maioria das pessoas 8. Ver Ronald Dworkin, Life's Dominion {Nova York: Alfred A. Knop[, 1993), cap. 9. [Trad. bras. Dmnínio da vida, São Paulo, Martins Fontes, 2003.]

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gostaria de viver esses meses adicionais se não adoecessem: a maioria quer continuar viva o máximo possível, con-

tanto que permaneçam conscientes e alertas, e a dor não seja grande demais. As_pessoas prudentes, porém, não quereriam garantir esses meses adicionais à custa de sacrifícios durante a j"uventude, quando estão em pleno vigor, embora, I1ovam.ente, decerto desejariam que o seguro oferecesse os tratamentos bem menos dispendiosos que manteria seu conforto e as afastasse da dor o máximo possível. Podemos utilizar essas hipóteses sobre o que a maioria

acharia prudente para si em condições mais justas do que

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as atuais como diretrizes de assistência médica que a justiça requer que toe.tos tenham. Se os mais prudentes comprassem determinado nível de cobertura médica em um mercado livre, se tivessem recursos medianos - se qt1ase todos comprassem segui-os que cobrissem os tratamentos médicos comuns, hospitalização quando necessária, tratamento pré-natal e pediátrico e exan1es gerais regulares, bem como outros tratamentos preventivos, por exemplo-, então a injustiça de nossa sociedade é, quase certamente, a razão por que algumas pessoas não possuem tal cobertura atualmente. O sistema universal de saúde deve garantir, com toda a justiça, qt1e todos a tenham. Por outro lado, se mesmo em condições justas, muito poucas pessoas prudentes quisessem fazer seguro em 11m nível bem mais alto de cobertura- se, conforme disse, pouquíssimas pessoas fizessem seguro que fornecesse tratamento de manutenção das funções vitais em caso de demência, ou tratamentos herólcos ou caros que prolongassem sua vida por poucos meses, por exemplo-, então é um desserviço à justiça obrigar todos a terem tal seguro compulsoriamente. Certamente, qualquer juízo acerca do que as pessoas n1ais prudentes fariam está sujeito a exceções: algumas pessoas têm preferências especiais e to1nariam dcdsões bem diferentes das de muitas ot1tras pessoas. Algumas poderiam pensar, mesmo depois de ponderar muito, que garantir alguns meses a 1nais de vida valeu o grande sacrifício anterior,

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por exemplo9. 1v1as parece justo elaborar um plano de cobertura obrigatória com base nas hipóteses sobre o que todos menos um pequeno número de pessoa::i julgariam apropriadas, permitindo que essa minoria disposta a gastar mais em ,. atendimento especial o faça, se puder pagar, por interinédio de um seguro complementar. Se s11bstituíssemos o princípio do resgate pela abordagem do seguro prudente como nosso -ideal de ji1stíça abstrata na assistência médica, aceitaríamos, portanto, certos [email protected],niv~rsal,_ e não os aceitaríamos como transigências da justiça, mas como exigidos por ela. Os tratamentos caros para pacientes inconscientes, dementes ou portadores de doenças tenninais seriam casos relativamente fáceis de se decidir se adotássemos tal método. M outras decisões seriam mais difíceis de se tomar, inclusive, por exemplo, decisões difíceis com relação ao tratamento de crianças nascidas com deformações ou doenças tão graves que provavelmente não vivam mais que algumas semanas, mesmo com as intervenções médicas mais heróicas e caras. Há alguns anos, certos médicos da Filadélfia separaram gêrrieos siameses que compartilhavam um coração, embora a operação viesse a matar t1ma da.s crianças e desse à outra 9. Pessoas com certas convicç6e~ religiosas podem fazer tal escolha, por cxe1nplo. Mas vale notar que mesino os católicos e outros que pensam Rer sempre errado recusar os tratamentos dioporúvcis para o prolongamento da vida não p<:nsam, obrigatoriamente, que se devam fazer todos os sacrifícios possíveis, antecipadamente, para assegurar a disponibilidade de tratamentn~ caríssin10~ de prolongamento da vida. !JguP.m qu<: achasse errado, por princípio,, religioso, recusar uma operação cara e difici1ima que pudesse pagar a fim de estender a vida por alguns meses poderia, não obstante, com perfeita coerência, achar prudente não pagar o seguro, durante toda a vida, quP. lhe ofere~eria tal tratai11ento_ Essa pessoa talvez ache mais sensato usar o dinheiro que tal seguro custaria para oferecer melhor tratamento médico para si mes1no e para a família mais cedo, ot1 melhor eduraçào, ou alguns outros bens ou oportunidades que suo1s convicções também julgue importantes. Nesse caso, o teste do seguro prudente não oferece motivo para que um plano ri<:icional de saúde devesse tornar ível a ela o que ek1 mesma não leria feito para si.

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u1na possibilidade em cem de sobreviver muito tempo, e as despesas estivessem calculadas em um milhão de dólares. (Os pais dos gémeos não tinham seguro-saúde, mas Indiana, o Estado no qual viviam, pagou US$ 1.000 por dia e o hospital da Filadélfia absorveu o resto das despesas.) O chefe da equipe de cirurgiões justificou o tratamento por intermédio do princípio do resgate: "O consenso geral é de que, se for possível salvar uma vida, vale a pena fazê-lo", disse ele. Mas o outro padrão que estou defendendo talvez fosse contra a operação. Suponhamos que pessoas de saúde normal tivessem a Oportunidade, ao se casar, de escolher uma dentre duas apólices de seguro: a primeira estipularia que se algum filho do casal nascesse com deficiência que ameaçasse a vida, só haveria cobertura para o tratamento neonatal se ele oferecesse probabilidades razoáveis (digamos, 25 por cento) de êxito, e a· segunda- muito mais cara- garante tal tratamento, mesmo que ofereça pouquíssimas esperanças. A maioria dos futuros pais decidiria, acredito, que seria melhor para eles e para a família comprar a primeira apólice e usar o dinheiro que economizariam todos os anos em outros benefícios para os filhos saudáveis - oferecer um melhor atendimento médico de rotina, ou uma casa melhor, ou uma melhor educação, por exemplo-, embora isso signifique abrir mão da tentativa desesperada de salvar um filho deficiente, se viessem a ter um fill10 assim. Qualquer órgão público encarregado da supervisão da distribuição de assistência médica deveria decidir quais tratamentos médicos são "necessários e apropriados" e, assim, fazer parte de um pacote abrangente de benefícios garantido para todos. Algumas dessas decisões seriam dificílimas: deçidir quando as técnicas muito caras de diagnóstico ou os transplantes experimentais com pouca probabilidade de êxito são apropriados, por exemplo. Essas decisões devem basear-se, evidentemente, nas melhores e mais recentes doeu-. mentações médicas, e ar por reformulações constantes, quando os estudos alterarem suas conclusões. Mas também devem orientar-se pelo pad.rão da prudência individual: teria

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sentido alguém fazer seguro na juventude para garantir um exame de sartgue caríssimo, que aumentaria um percentual mínimo a possibilidade de melhor diagnóstico de enfarte, para. o caso de um dia vir a ter sintomas duvidosos de doença cardíaca? Ou oferecer um transplante arriscado, caro e talvez ineficaz de intestinos ou fígado, se os médicos decidissem que proporciona uma pequena probabilidade de sobreviver?

O princípio do resgate insiste que a sociedade deve oferecer tal tratamento sempre que houver possibilidade, por mais remota, de salvar uma vida O princípio do s_eguro prudente equilibra o valor estimado do tratamento médico com outros bens e riscos: presume que as pessoas talvez pensem que levam un1a vida melhor quando investem menos em medicina duvidosa e mais para tomar a vida bemsucedida ou agradável, ou para proteger-se contra. outros riscos, incl11sive econômicos, que também possam arruinar sua vida. O órgão do governo poderia muito bem:tl"êcidirque, embora as pessoas prudentes oferecessem à fa:rrillia a assistência médica pré-natal e neonatal de que tantos americanos carecem, e fizessem ?eguro contra riscos médicos graves em todos os períodos da vida, oferecendo tratamentos con1provados e razoavelmente eficientes se precisassem, abririam mão dos tratamentos heróicos de valor improvável se necessário em troca de benefícios mais certos como educação, moradia e segurança económica. Nesse caso, então a justiça exige que o plano de saúde universal não ofereça tais tratamentos. En1 resumo, o teste do seguro prudente ajuda a respo11der a amtias··as perguntas da justiça que mencionei no início: qµanto os Estados Unidos devem gastar, no geral, em seu sistCma de saúde? E quanto desse sistema de saúde deve ser distnbuído entre os cidadãos? O teste pergunta quanto as pessoas decidiriam gastar com a própria assistência médica, individualmente, se comprassem um seguro em condições justas do mercado livre, e insiste, em pri1neiro lugar, que nós como nação devemos gastar tanto quanto os indivíduo!; gastariam, coletivamente, em tais condições; e, em segun-

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do lugar, que devemos usar a despesa agregada para garantir que tenhamos todos, individualmente, o que aquelas pessoas teriam. É claro q·ue algumas das decisões sobre as quais discorri seriam diferentes se tomadas por ot1tras pessoas que tentassem aplicar o teste do seguro prudente. É importantíssimo que qualquer órgão .encarregado dessas decisões seja composto por represent~ntes dos diversos grupos que se poderia esperar que tomassem decisões diferentes; deveria contar com tnédicos e especialistas da área de saúde, é claro, mas também com leigos de diversas idades, de diversas partes do

país e, se possível, de estilos de vida diferentes. Esse órgão poderia aproveitar a experiência de países com serviços de saúde com "único pagador", istrados pelo governo, que precisam racionar sistematicamente o atendimento médico. Na Inglaterra, por exemplo, os médicos do sistema nacional de saúde são obrigados a distribuir recursos escassos como máquinas de diálise renal e órgãos para transplante, e têm elaborado diretivas informais que contemplam a idade, o estado geral de saúde, a qualidade de vida e as perspectivas dos possíveis pacientes, bem como as perspectivas de cuidados adequados proporcionados pela famJ1ia ou pelos amigos. Embora esse suposto teste de custo-benefício seja diferente do teste do seguro prudente, as decisões que os médicos têm tomado provavelmente expressam seus critérios, orientados pela experiência, sobre o valor relativo dos diversos tipos de tratamento nas diversas faixas etárias e circunstâncias, e esses também são critérios que seriam exigidos à seguradora prudente. O teste do seguro prudente também deixa claro por que é tão importante consultar a opinião pública antes de se tomarem as decisões de racionamento. Já que o raclonamento deve expressar não só os cálculos técnicos de custo-benefício, mas também a noção de prioridades das pessoas, a consulta é essencial Quando o Oregon procurou definir prioridades do sistema de saúde do Medicaid, organizou uma série de "reuniões municipais" e um "parlan1ento" para discu-

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tiro assunto e, embora as reuniões fossem criticadas por algumas pessoas por contarem com pouquíssimos dos pobres cujo sistema de saúde estava em debate, tais reuniões foram fontes valiosas de informações sobre o que os participantes achavam ser as decisões de seguro prudente. Não obstante, por maior que seja o número de informações qt1e o órgão do governo é capaz de reunir, ~~_llr_e sultado deve ser provisório, aberto a revisão com base em outros indícios fornecidos pela preferência pública, bem como pela tecnologia e pela experiência médica. O plano de saúde de dinton, que não foi aprovado, teria pennitido que as pessoas com coberhtra do pla110 comprassem um seguro-saúde complementar pelos preços de mercado, sem clireito a dedução ou subsídios. Essa cláusula se encaixaria muito bem no método do seguro prudente1cl. Se, depois que o órgão do governo definisse o pacote de cobertura básica, um número substancial de pessoas de renda média comprasse seguros complementares, apesar da despesa, o pacote básico de-veria ser expandido. Se a maioria dos homens de saúde normal comprasse cobertura complementar que oferecesse exame de próstata anual a partir de idade inferior à do pacote básico especificado, por exemplo, o leste do seguro prudente exigiria que se baixasse a idade especificada no pacote básico.

10. O principio do resgate poderia afirmar que é injusto qualquer pessoa comprar atendimento médico melhor do que todos pod<:'m ter, e que o atendimento médico fora de um sistema de cobertura urúversal deveria ser abolido, porkinto, ou, como no Canadá, desestimulado. Mas o método prudente começa com outra idéia: de que ninguém pode rec\amJ.r, por questões de J'uStiça, que tem menos do que outra pessoa, contanto que tenha tudo o que teria k a sociedade fosse totaln1ente justa. Imaginemos, por exemplo, que ~e as riquezas fossen1 distribu(das com justiça, ninguém, devido nos custos e às perspectivas, faria seguro prudente qu\O oferecesse tran~plante de fígado ou intestinos para si mesmo, mesmo que isso possa um dia vir a salvar-lhe a vida. Nesse caso, a jt1sliça não exige que tais transpk1ntes sejam agora fornecidos a todos, n1esmo quando algumas peS$Oa5, injustamente ricas, possam pagá-los pcrra ~i mes1nas. Ver Ronald Dworkin, "Justice in the Dü;tribution of Health Cate", McGi!! Lnw fournnl 33 (1993): 883.

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O plano de saúde de Clinton fracassou, e a política convencional agora afirma que não se adotará nos Estados Unidos nenhuma reforma da assistência médíca que se aproxime da abrangência daquele plano pelo menos nesta geração. Se isso for verdade, nossa desgraça nacional continuará: é vergonhoso uma nação tão próspera não poder garantir ao menos um atendimento médico mínimo razoá,y~~l a_~odos sobre os quais exerce domínio. O plano de Clinton era complexo demais, mal avaliado em alguns aspectos e, de qualquer maneira, apresentado de maneira simplória. Mas alguns de seus mais veementes opositores argumentaram que, além de estar errado nos detalhes e até mesmo na elaboração, estava fundamentado em uma idéia "socialista" inaceitável de que o governo deve cuidar do povo do berço ao túmulo, em vez de lhes permitir que assumam a responsabilidade pela própria vida. Se o argumento deste capítulo- e, de fato, de todo o livro-for sólido, então essa objeção é totalmente infundada. A comunidade comprometida com a igualdade de recursos, de modo que o povo possa tomar suas próprias decisões acerca da vida que melhor lhe convier, incentiva, em vez de subverter, os princípios adequados da responsabilidade individual. Aceita que a intervenção do governo seja às vezes necessária para proporcionar as circunstâncias nas quais é justo pedir aos cidadãos que assumam responsabilidade pela própria vida Contudo respeita os juízos pessoais de necessidade e valor que os cidadãos tenham formulado nas condições adequadas, no exercício dessa responsabilidade. A meta está no âmago da concepção de igualdade em recursos e da hipotética estratégia de seguros que recomenda. O plano de saúde elaborado para respeitar as decisões dos cidadãos como seguradores prudentes é, de fato, igualitário. Mas é o oposto do paternalismo.

Capítulo 9

Justiça, seguro e sorte

I. Instrução: um dia ruim para a Justiça A reforma da previdência de 1996 foi uma clara derrota da justiça socia11 . O presidente baseara a campanha na promessa, entre outras, de "acabar com a previdência social que conhecemos" e insistia, ao promulgar a lei, que era necessária uma reforma radical do esquema de previdência social há tanto tempo financiado pelo governo federal. Embora algumas das estipulações punitivas da lei fossem lamentáveis, disse ele, ela era a melhor que se poderia esperar do Congresso republica.no, e uma reforma pequena era melhor que nada. A afirmação de Clinton de que o sistema de previdência fracassara e deveria ser substituído por outro não foi refutada, mesmo pelos que faziam pressão para que ele vetasse a lei. Mas ninguém deixou suficientemente claro o que havia de errado nos antigos planos federais, e quais testes deveriam ser aplicados para decidir se as substituições propostas seriam melhorias. Em muitos aspectos, o debate nacional '

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1. Personal Responsibility and Work Opportunity Reconciliation .Ai::t of 1996, Public Law n? 104-193, 110 Stat. 2105. A lei é popularmente conhecida como "o fim da previdência social que conhec('!llos~. "Previdência" é usada no restante do livro no sentido mais técníco adquirido na literatura filosófica e econôrnica, mas neste capítulo uso no sentido político mais familiar para fazer referência a programas de governo que transferem fundos aos cidadãO!l necessitados.

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acerca da reforma previdenciária foi semelhante ao debate de alguns anos antes sobre o sistema de saúdé. Dizia-se que a nação gasta demais com a previdência social, da mesma forma que se dizia que gasta demais com a saúde. Contudo essa é uma afirmação misteriosa e fora de contexto: tem pouco sentido sem alguma explicação de quanto a nação deve gastar com os pobres. Por que devemos pensar que estamos gastando muito, e não muito pouco? Também se dizia.que_o sistema previdenciário existente sofrera abusos, que pessoas indignas, que podiam sustentar-se, eram mantidas pelos impostos pagos por aquelas que trabalhavam duro. Essa demanda foi alimentada pelas imagens de alegres trapaceiros indo de táxi para a repartição da previdência social, e de adolescentes imorais tendo filhos à custa da despesa pública porque era melhor do que trabalhar. A classe dominava aquelas imagens, como ocorre com tanta freqüêncía em nossa política, o que despertou grande desconfiança de que as acusações de abusos eram exageradas. Mas é claro que havia, e há, abusos. Todavia esse fato óbvio não é, em si, decisivo para provor que os antigos programas previdenciários estavam fundamentahnente equivocados. Pelo contrário, levantou diversas questões de estratégia legislativa e justiça social. Queremos evitar dois males: um plano de previdência social tão poroso, que pennita abusos excessivos, e um plano tão rígido que recuse previdê11cia social a muitas pessoas que a mereçam e dela precise1n. Quais desses dois males é o pior? Podemos elaborar um plano de previdência social que aperfeiçoe planos anteriores em ambos os aspectos? Caso contrário, qual equilíbrio devemos procurar? Os liberais que atacaram o projeto de lei e pediram ao p~esidente que não o promulgasse itiram que havia graves problemas na estrutura existente. Discordavam dos conservadores somente na idéía de que a reforma fora longe demais. Porém, fizeram pouco mais que os conseivadores ao defender as respostas dadas às questões levantadas. Não ofereceram um padrão de decisão, mesmo tosco, com relação a quanto uma sociedade justa gastaria na proteção so-

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cial dos pobres, que forma deveriam assumir os pagamentos da previdência ou quais condições se deveria atribuir a eles. Será qtte conseguiremos definir melhor um plano distributivo justo? Precisaríamos de enfrentar e resolver uma série de ques-

tões mais específicas, que poderíamos dividir nas seguintes categorias.

Mérito. Quem, com toda a justiça, faz jus ao amparo público? Deve-se amparar- como afumam certos liberais ~quem não consegue encontrar trabalho que ache gratificante? E quem só consegue encontrar trabalho desagradável, ou de baixo status, ou que não explore nem desafie seus talentos

e sua cultura? Ou alguém que encontre emprego, mas à custa de entregar os cuidados com os filhos a terceiros?

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Nível Quanto deve receber a pessoa qualificada? Quanto recebe uma pessoa comum empregada? O que a nação definiu como salário mínimo? O que definiu como a linha de pobreza? Algoamaisouamenos? Com base en1 qual princípio, que não seja o da transigência política, é possível responder a essas perguntas?

istração. Suponhamos que distinguimos de maneira adequada entre as propriedades que dão a alguém o direi.to à previdência social e aquelas ql1e o desqualificam. Quanto devemos gastar para decidir a qual dessas categorias pertence determinado pretendente, supondo-se que cada dólar gasto nessas decisões istrativas encurta mais os pagamentos destinados à previdência? Podemos pagar para definir qualificações a fim de captar as mais sutis discriminações morais que possamos fazer? Caso contrário, como defini-las para alcançar um bom equilíbrio entre economia adn1inistrativa e justiça individual? Quais regulamentos - quais pressupostos e atribuições de ônus da prova, por exen1plo - uma sociedade justa utilizaria para testar se detemrinado pretendente faz jus a um benefício?

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Dependência. Em muitos casos, os que reivindicam previdência social são responsáveis pelo cuidado de outrem: recém-nascidos e crianças, por exemplo. Será justo limitar o que tal pretendente recebe com o argumento de que seu comportamento o desqualificou, quando as conseqüências forem graves ou catastróficas para seus dependentes? Os conservadores dizem que o governo não deve incentivar adolescentes a ter filhos, fornecendo-lhes auxílio previdenciário quando dão à luz. Mas podemos.aceitar uma política que pune os bebês que continuarão inevitavelmente a nascer? Essas estão entre as questões mais difíceis que uma teoria útil da justiça social deve reconhecer e tentar resolver. Seria tolice esperar que qualquer teoria filosófica as respondesse nUnuciosamente, e tolice ainda maior esperar que oferecesse soluções que todas as pessoas da comunidada política em questão aceitassem. Não obstante, devemos tentar oferecer uma estrutura dentro da qual possa ocorrer llm debate público útil, uma estrutura que defina os termos da argumentação e os limites para a abrangência das soluções que qualquer lado, de boa-fé, possa aceitar como plausível. II. O problema estratégico O destino das pessoas é decidido por suas escolhas e .circunstâncias. As escolhas expressam sua personalidade, que também tem dois ingredientes principais: aspiração e caráter. falo de aspiração em sentido bem amplo. As aspirações são os gostos, as preferências e as convicções, bem
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tante; cada uma dessas qualidades pode ser, para qualquer pessoa, positiva ou negativa. As circunstâncias consistem nos recursos pessoais e impessoais de que a pessoa dispõe. Os recursos pessoais são a saúde e a capacidade física e mental - o estado geral dessas capacidades, inclusive o talento para a riqueza, isto é, a capacidade inata de produzir bens ou serviços pelos quais outras pessoas queiram pagar. Os recursos impessoais são os que possam ser transferidos de uma pessoa para outra - a riqueza e outros bens materiais que possua, e as oportunidades que lhe são oferecidas, segundo o sistema jurídico, para o uso de tais bens. As díferenças desse tipo são esse11ciais para nossa ética pessoal, isto é, para a nossa noção de como devemos viver e de quando estamos vivendo bem ou mal. Assumimos responsabilidade por nossas escolhas de diversas maneiras. Quando essas escolhas são feitas de livre e espontâne
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vida com base nessa convicção filosófica. Não podemos p1anejar nem julgar nossa vida, a não ser distinguindo aqui-

lo pelo que devemos nos responsabilizar, porque foi o que escolhemos, e aq·uilo pelo que não podemos nos responsa· bilizar porque estava além de nosso controle. Precisamos de mais uma distinção: entre dois tipos de teorias da justiça. As teorias sensíveis à ética (ou contí11

nuas") brotam de nossa vida interna porque fundamentam os juízos acerca da justiça ou da injustiça de qualquer distri-

buição de-recursos impessoais, nas atribuições de responsabilidade extraídas da ética - atribuições que distinguen1 entre escolha e circunstância da maneira que acabo de descrever2. A teoria da justiça distributiva que defendo r1este livro - a igu
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tante que a vida de cada pessoa transcorra bem. O segundo, não obstante, afirma que cada pessoa tem responsabiHdade especial pela própria vida, uma responsabilidade que consiste em decidir que tipo de vida lhe é apropriado e como utilizar melhor os recursos para garanti-lo. Qualquer sociedade fiel a esses dois princípios deve adotar estruturas jurídicas e institucionais que expressem igual consideração por todos os habitantes da comunidade, mas deve também fazer questão de que o destino de cada um, por respeito ao segundo princípio, seja sensível a suas próprias escolhas. A diferença entre escolha e circunstâncias, porém, é problemática em diversos aspectos. Quase sempre há dificuldades imensas para se decidir se o fato de uma pessoa não conseguir emprego com salário razoável é decorrente de sua falta de riqueza-talento ou de sua falta de clilig'ê11cia e empenho, por e)\'.emplo. Em alguns casos, a dificuldade é mais do que epistemológica. Alguns traços de personalidade podem ser tão pronunciados e incapacitantes que se pareçam mais com deficiências: de fato, muitos deles - extrema indolência, por exemplo- podem ser sintomas ou conseqüências de doenças mentais. Por outro lado, escolhas e atitudes do ado com relação a planos de saúde, riscos físicos, educação e formação afetam mt1ito os recursos pessoais da maioria. Tais escolhas e atitudes, porém, também são afetadas por influências domésticas e culturais não escolhidas. No entanto, é quase sempre possível superar essas influências, e embora pareça ridículo supor, como alguns conservadores dizem fazê-lo, que o trab.:.1lho árduo pode salvar qualquer pessoa, sejam quais forem suas circunstâncias, é igualmente óbvio que o trabalho árduo e a dedicação podem ajudar muitas pessoas que, sem isso, não conseguiriam emprego. Essas interações apresentam um problema estratégico para qualquer teoria política contínua. Como, mais precisamente, deve-se traçar o limite entre essas influências sobre a vida do agente pelas quais ele deve assumir aresponsabilidade e aquelas cuja influência é a comunidade que precisa se encarregar de atenuar? Como, na prática, deve-se colocar em vigor tal distinção?

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III. Os argumentos conservadores Podemos distinguir dois importantes argumentos para a eliminação ou redução drástica do seguro-desemprego. (E1nprego a palavra "desemprego" abrangendo os que, involuntariamente, têm emprego de meio-expediente com salário baixo.) O primeiro argumento espera anular o problema estratégico que acabo de descrever. Declara que as pessoas que ganham dinheiro em uma economia de mercado merecem conservar o que ganham porque riqueza-talento

é uma espécie de mérito. O segundo aceita o problema e insiste em determinada solução. Afirma que o desemprego duradouro é tão predominantemente resultante da aversão

ao trabalho ot1 de outros traços negativos de caráter que é melhor para todos, para o desempregado inclusive, apenas presumir que é possível evitar o desemprego por -intennédio da auto-ajuda.

A. O argumento do rnérito Qualquer teoria contínua se depara com o problema estratégico que descrevi porque tais teorias não pretendem recompensar as pessoas por suas capacidades \'natas, inclusive por sua riqueza-talento. No caso du grande talento inato, nessa hipótese, é a boa sorte, e não uma questão de mérito, que faz jus à tributação. O primeiro argumento conservador~ o argumento do mérito - refuta a hipótese. Não presume que o talento seja escolhido, mas, pelo contrário, que deve ser reco1npensado, apesar de não ser escolhido. ;os conservadores que adotan1 tal postura - e muitos o fazem, pelo menos de maneira inarticulada - insistem que a riqueza que algumas pessoas atraem devi.do ao talento é tão merecida quanto o que ganham por mera diligência e empetlho. Precisamos ter o cuidado de distinguir tal afirmação das outras que agora não estão em questão. Em outra cultura ta\-

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vez se diga, por exemplo, que as pessoas com mais riqueza-talento são intrinsecamente mais importantes, que importa mais como vai sua vida, e que por esse motivo devem ter mais recursos à disposição. Essa atitude refuta um princípio ético fundamental de nossa cultura, porque nega que a vida de todos tenha a ·mesma importância objetiva. O argumento do mérito, pelo contrário, não nega_tal proposição. Exige, ao invés, novas bases de direitos: o governo deve manter instituições que recompensem a riq·ueza-talento, não porque aqueles que a possuem sejam inerentemente .mais importantes, mas porque têm algum atributo digno de louvor. O argumento do méríto também é diferente de um outro bem conhecido: de que as pessoas que possuem riqueza-talento merecem mais porque contribuem mais para nossa riqueza coletiva; Esse argumento não é adequado quando a questão é aquela fundamental sobre qual estrutura económica uma sociedade justa criaria. Somente algumas estruturas incentivariam ou mesmo permitiriam que as pessoas com uma dose maior de determinado talento contribuíssem mais para a riqueza geral. Se a produção tivesse uma istração centralizada, por exemplo, como em alguns países socialistas, então as riquezas-talentos, conforme as defini- talentos para produzir o que as pessoas realmente querem -, poderiam contribuir muito pou.co para a riqueza geral. f'ortanto, a afirmação de que a riqueza-talento produz riqueza pressupõe, em vez de defender, determinada estrutura econômica - uma estrutura de mercado na qual tal afirmação seja verdadeira Evidentemente, pode-se argumentar com bases instrumentais - por exemplo, com bases utilitaristas - que as comunidades devam ter sistemas econômicos de tal tipo. Mas a afirmação de que as pessoas com riqueza.-talento merecem mais riqueza não teria, então, papel nenhum no argumento. A presente afirmação é de que o talento merece recompensa devido a algum relacioname·nto intrínseco entre os dois - isto é, que as pessoas com riqueza-talento merecem

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mais riqueza do mesmo modo que o atleta mais veloz merece vencer a corrida. Mas a analogia é instrutiva contra essa pretensão. As corridas e outras competições foram criadas para transformar determinado bem em questão de merecimento: a relação que criam não é profunda - não temos a obrigação de organlzar corridas -, porém fabricada para e pela ocasião. Ninguém teria direito a coisa nenhuma devido à velocidade se não tivessem inventado as corridas. Não obstante a presente afirmação sobre a riqueza-talento, para ser eficaz, precisa ser profunda: deve afirmar que as pessoas com talento para produzir o que outras pessoas querem têm direito ao êxito financeiro - têm direito a uma corrida econômica que vencerão. Quando, porém, se faz a afirmação dessa maneira, parece não ser possíve_l sustentá-la. Em primeiro lugar, não decorre do fato de que devemos irar certas qualidades do espírito, ou gosto, ou ·habilidade física, que a iração deva assumir uma forma materia1. Uma sociedade que premiou com medalhas baratas os seus grandes cientistas e artistas não seria, de modo algum, inferior àquela que presenteou um cheque com a medalha. (A não ser que, talvez, o vocabulário social da comunidade fosse tal que somente o dinheiro simbolizasse respeito. Nesse caso, porém, a ligação entre a virtude e tal recompensa seria contingente, e não intrínseca.) Em segundo h1gar, é bem implausível supor que as riquezas-talentos propriamente ditas sejam virtudes, isto é, qt1alidades que se deva irar. O que se considera riqueza-talento é contingente em centenas de dimensões: até recente1nente, a capacidade de acertar uma bola em uma cesta a determinada distância tinha batxa classificação entre :as riquezas-talentos, e as qualidades intelectuais que tornaram Bill Gates a pessoa mais rica do mundo eram desprezadas por não se.rem atraentes. É verdade que algumas qualidades intelectuais dignas de iração mais duradoura são consideradas importantes na produção de riqueza, tais como inteligência, coragem e aquela virtude abrangente, o discernimento, Mas essas próprias qualidades têm dimen-

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sões, e qual climensão garantirá uma grande riqueza em uma economia de mercado e qual garantirá somente a iração de amigos seletas também é escrava da contingência. A sorte é, afinal, a mais importante das riquezas-talentos existentes - estar no lugar certo é quase sempre mais importante do que qualquer outra coisa - e, embora muitos de nós iremos a sorte, sabemos que não deveríamos. Por fim, mesmo que a riqueza-talento fosse uma virtude, e mesmo que a recompensa da virtude devesse ser dinheiro, ainda seria um mistério o motivo por que a métrica e o veículo da recompensa deveriam ser um mercado comercial -isto é, por que a recompensa correta deveria ser a quantia bruta que a pessoa que tem a virtude ganha. Por que não deveria ser a menor, porém ainda ampla, recompensa bruta que um diretor executivo é capaz de ganhar depois dos impostos, que são"usados, em parte, para reduzir a pobreza? Não existe mercado ".natural": usamos o termo "mercado" para designar uma série de mecanismos econômicos, todos regulamentados e, por conseguinte, definidos de alguma forma. o governo deve regulamentar os mercados de algum modo, e o valor de aluguel do "discernimento" de determinado executivo de empresa será função, dentre milhares de outras coisas, de circunstâncias de como a lei deve desestimular monopólios, regulamentar a segurança e a conservação nas indústrias ou restringir as empresas em aspectos desvinculados dos planos de previdência. Se não há uma escolha canônica entre esses diversos 1'mercados", como pode estar claro que a recompensa apropriada para as virtudes do financista deve ser definida como livre de impostos redistributivos?

B. O argurnento psicológico O segundo argumento conserva.dor- o argumento psi~ cológico - aceita o desafio do problema estratégico. ite que a personalidade e a circunstância interagerr1, mas in-

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siste que a personalidade é quase sempre o fator predominante, que as pessoas com coragen1 e energia "aproveitam ao máximo" suas capacidades inatas e criam uma vida decente para si e para a família. Quem não tem essas qualidades - os fracos e os indolentes - fracassa. É equivocado obrigar os bem-sucedidos a salvar os fracassados por dois motivos. Primeiro, é il1justo q·ue se obriguem as formigas da comunidade a sustentar os gafanhotos. Em segundo lugar, n.ão é sensato porque perpetua a "cultura da.dependência". As pessoas procuram e demonstram diligência q1lando precisam, mas não quando pouco importa se a demonstrarem. Acabar com a previdência social é bom para os pobres. É um ato de "amor bruto" que os ajudará a "evoluir" e possibilitará uma vida com mais dignidade e auto-respeito, fazendo-os sustentar-se, por meio do trabalho, e não arastejar pela vida à espera do que os outros lhes ofereçam. Esse argumento conservador enfrenta o problema estratégico com a hipótese de que a ausência de diligência - preguiça, irresponsabilidade ou outros defeitos de caráter-é responsável por todo o desemprego d·uradouro e, então, insinua, como solução para o problema, uma política de garantir os benefícios da previdência social somente às pessoas que possam refutar tal hipótese de maneira incontestável. A decisão da Lei de Previdência Social de suspender todos os auxílios aos desempregados depois de decorridos dois anos é um aperfeiçoamento de tal política. O argu1nento psicológico, portanto, baseia-se em .uma série de premissas reais sobre a proporção de larápios entre os beneficiários da previdência social e de prognósticos sobre as conseqüências motivadoras e co1nportamentais da :previdência social. Também se baseia em um juízo de moralidade controverso: qt1e é aceitável negar a previdência social a quem realmente precisa dela, por poucos que sejam, para punir ou coagir os que não precisam. Os liberais reagem principalmente refutando as premissas e as previsões. Mas essas reações liberais têm dois problemas. Não oferecem uma estratégia de previdência concorrente e não fazem

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nada para reduzir as ambigüidades problemáticas da responsabilidade comportamental que descrevi. Só rebatem a presunção conservadora com suas próprias presunções contrárias: presumem que os larápios são poucos, e não muitos. Podemos elaborar uma estratégia alternativa que tenha mais estrutura? Uma estratégia que se baseie menos em presunções psicológicas controversas, que são de fácil refutação pelos adversários, ou em sermões sobre tolerar as trapaças pelo bem dos dignos, que provocam facilmente o ressentimento dos adversários? Talve:1: seja tentador nos voltarmos para teorias descontínuas da justiça, pois elas não fazem nenhum uso fundamental das distinções cujas dificuldades expõem o problema estratégico. ,

IV. Respostas des.contínuas conhecidas

A. Utilidade

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A análise utilitarista do problema da previdência social pergunta qual plano resultaria em mais utilidade para toda a comunidade, conforme ·uma concepção adequada do que seja a utilidade - "felicidade" ou "as pessoas terem o que querem", por exemplo. Argumentei_, no Capítulo 1, que não se pode encontrar nenhuma concepção adequada de utilidade - e qualquer atrativo que tenha o utilitarismo depende de não especificar o q·ue significa utilidade, pois quando se escolhe urna especificação mais pormenorizada, como "felicidade" ou "êxito nas aspirações'', toma-se claro que a meta de elevar ao máximo a utilidade assim definida, ·mesmo quando exeqüível, é injusta, porque pelo menos algumas pessoas não considerariam a utilidade assim caracterizada como algo de importância predominante em suas vidas. O utilitarismo, depois de especificada a utilidade, viola o segundo princípio do individualismo ético. Mesmo q·ue deixemos de especificar o teor da utilida-de, porém, o utilitarismo parece inadequado principalmen-

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te como modelo de reforma previdenciária, simplesmente por ser descontínuo: deixa de contemplar o comportamento e a escolha da maneira que a política e a justiça fundamental requerem. Talvez a utilidade total seria melhorada com um plano que permitisse auxílios substanciais para as pessoas que optassem por não trabalhar porque preferem o ócio. O utilitarista responderia que uma análise utilitarista requintada não chegaria a tal resultado, pois qualquer política como. essa reduziria a força de trabalho produtiva da comunidade, diminuiria sua riqueza e, por conseguinte, reduziria sua utilidade média. No entanto tal resposta é insatisfatória, pois não é apenas contingentemente equivocado recompensar quem opta por não trabalhar com dinheiro proveniente dos impostos pagos por aqueles que trabalham isto é, rtão é equívoco apenas, quando temos motivos para pensar que o fazer terá conseqüências sociais indeSej áveis. "là.l política está inerentcmente errada porque é injusta. ,Bem que poderia ser, como qualquer. utilitarista agora afir:maria, que não achássemos injusto compensar os indo lentes, a não ser que presumíssemos, pelo menos inconscientemente, que os recompensar fosse ruim para a utilidade total d.a comunidade a longo prazo. Mas tal resposta confunde a fonte com o teor de nossas convicções. Enquanto pensarmos que as transferências obrigatórias da formiga para o gafanhoto são inerentemente injustas, não poderrtos aceitar que as escusas do equivoco se baseiem em uma previsão econômica contingente. Apenas imaginei que uma análise utilitarista poderia oferecer compensação excessiva para as pessoas erradas. É bem mais provável que oferecesse muito pouco para as pessÇ>as certas, pois, não é só concebível, mas também plausível, que a prosperidade dos Estados Unidos, e a média de bem··estar de seus cidadãos, viesse a sofrer se o país tivesse de instituir u1n plano eficiente de previdência social que oferecesse uma vida digna p<1ta todos os que não conseguissem empregar-se ou tivessem filhos para criar. É difícil elaborar qualquer argumento contrário atraente, Os liberais

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PRÁTICA

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insistem que os efeitos negativos a longo prazo de negligenciar a educação das crianças pobres, ou de sustentar uma subclasse que um dia poderia voltar-se para a violência, excede em peso os benefícios a curto prazo de aumentar a riqueza atual mesmo quando avaliada em escala utilitarista. Mas essas previsões são bem especulativas. Elas nos

atraem porque achamos que seria injusto negar a muitas milhares de crianças a oportunidade de vencer na vida, e não vice-versa.

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B. O princípio da diferença O princípio da diferença de John Rawls afirma que não se justifica nenhun1~ desigualdade em bens primários, a não ser que melhore a situaçã.o econômica do grupo em pior situação, e os que aceitam esse princípio talvez suponham q1Je oferece uma boa resposta à afirmação conservadora. Contudo há sérias dificuldades no uso do princípio dessa maneira. Em primeiro lugar, o conceito de grupo em pior situação é maleável demais para gerar qualquer plano minucioso de previdência social, pois é provável que faça uma diferença considerável, ao se aplicar o prinópio da diferença ao problema da previdência, a extensão da faixa inferior que escolhermos para compor tal grupo. As providências q·ue melhorarem as perspectivas do décimo da população em pior situação, por exemplo, podem prejudicar os do qt1into mais baixo, que deve conter mais trabalhadores mal-remunerados, e também as perspectivas do centésimo em pior sih1ação - os que sofrem de deficiências físicas graves e os que não podem trabalhar, por exemplo -porque um plano elaborado somente para eles talvez os beneficiasse mais. O princípio da diferença, porém, pelo menos como é comumente enunciado, não oferece sugestão relativa ao ponto em que se deveria delimitar a classe que definiria o teto. Se tivéssemos de estip·ular um percentual como classe definidora, então o proble1na estratégico sobre o qual di.s-

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corri não apresentaria dificuldades conceituais para o princípio da diferença, porque ele é um princípio descontínuo. Porém, assim como no ·utilitarismo, seu caráter descontínuo impede-o de levar em conta a escolha e a conduta da maneira correta. Comparemos, por exemplo, os seguintes planos de previdência social. No primeiro, só quen1 tentasse trabalhar receberia auxílio da previdência social, mas no segundo todos os que não trabalham, qualquer que fosse 0 motivo, receberiam os benefícios. IJodcria acontecer de nenhum grupo, no segundo plano, estar em situação tão ruim quanto o grupo em pior sihtação estipulado no primeiro. Nesse caso, o princípio da diferença recomendaria o segundo plano. Pode-se dizer, em resposta, que isso não poderia acontecer, pois o grupo em pior situação de qual.quer sociedade estaria em melhor situação se seu sisten\a econômico oferecesse incentivos para que todos os qlle estivessem em situação de trabalhar o fizessem. Mas isso 11ão é necessaria1nente verdadeiro: pode ser que algumas pessoas (o número dependeria de como se define o grupo em pior situação) preferissem o ócio com tanta convicção que fic:assem em melhor situação financeira em um plano que não punisse tal escolha. O princípio da diferença atende, além disso, somente à situação dos qtte tiverem menos bens primários. Exige a melhoria de sua situação, sejam quais forem as conseqüências para quem continuará tendo mais. Parece injustiça ig11orar totalmente a repercussão de um plano de previdência social sobre as pessoas q11e não estejam no grupo em pior situação, qualquer que seja sua definição, mas que, não obstante, precisam esforçar-se por garantir uma vida razoável para a farµilia, e que se sintam ofendidas, o que não é de surpreender, quando parte de seu suado salário é recolhido em impostos e entregue àqueles que não trabalham. O principio da diferença parece mais apropriado em épocas de expectativas gerais em alta. Parece justo empregar a riqueza constantemente em alta da comunidade, o máximo possível, para ajudar àqueles cujas perspectivas sejam essencialmen-

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te pobres, quando isso signifique apenas atenuar a ínclinação positiva dos recursos de todas as outras pessoas. Mas a mobilidade do capital global hoje ameaça constantemente baixar o nível geral dos salários nos cargos não-especializados e não-istrativos de qualquer comunidade próspera. Nessas circunstâncias, parece insensível dizer que as pessoas pelas quais a teoria da jt1stiça tem consideração são apenas aquelas cuja vida sofra mais danos, embora outras pessoas, que trabalham com o máximo afinco possível também sejam prejudicadas. lWwls nunca conseguiu explicar satisfatoriamente por que os membros de sua posição original, ignorantes de suas situações futuras, escolheriam o princípio da diferença por interesse próprio, e a política do problema previdenciário revela a sombra prática de tal falha teórica. Os políticos que apregoam justiça para as "laboriosas classes médias" estão, certa1nente, em busca de votos, mas também estão dando voz a um instinto generalizado de justiça. V. O esquema do seguro hipotético

A. A hist6ría As teorias da justiça eticamente insensíveis são inúteis na abordagem de un1 problema tão vinculado à responsabilidade individual como a previdência social. Poderíamos criar um plano eticamente sensível que não se ampare tanto em presunções sobre a responsabilidade causal, como o faze1n exortações líberais conhecidas, e que não se ampare na proposta não surpreendentemente ressentida, de que os assalariados que trabalham duro devam financiar as frau des para garantir que os genuinamente necessitados tenham apoio? Começo com um caso utópico3. Imaginemos 3. O que vem a seguir é un1 resumo e uma reformulação da nbordagem do seguro hipotético desçrito ~m pormenores no Capítulo 2.

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uma transformação dos Estados Unidos da seguinte maneira. A riqueza e as outras oportunidades foram distribuídas com justiça em determinado momento. Todos estão conscientes nesse momento, porém, da concorrência global, da instabilidade tecnológica, do aumento da lon.gevidade e de todos os outros fatores que contribuem para nossa própria insegurança econômtca contemporânea. A todos se concede a oportmúdade de comprar um seguro que oferece determinada-renda em caso de desemprego, ou de emprego con1 salário inferior a tal renda; e tal seguro é oferecido apreços comunitários, isto é, prêmio simétrico para pacotes com a mesma cobertura para todos, pois - esta é a única hipótese quase improvável - todos presumem que cada um, incluindo a si mesmo, tem as mesmas probabilidades de perder o emprego. As pessoas tomam suas decisões relativas ao seguro com prudência; isto é, decidem se vão faier seguro contra él baixa renda, e sobre qual renda fazer seguro contra a eventualidade de não obtê-la, de maneira adequada a suas esperanças, temores, preferências e valores predominantes. Mais adiante especularei sobre a forma desse mercado comercial imaginário - sobre o tipo de políticas que seriam escritas, com quais coberturas e quais taxas. Mas, antes, quero fazer uma afirmação importante sobre qualquer que seja a distribuição de riquezas resultante. O que quer que viesse a acontecer, não haveria base para objetar que pessoas não merecedoras, que pudessem trabalhar mas não o fizeram, ou qi1e pudessem ter-se educado mais cedo ou melhor mas não o fizeram, estivessem capitalizando com os esforços daqueles que trabalhassem. Quaisquer benefícios recebidos, pois, seriam conseqüêncías de decisões do ·;mercado de diversos tipos que refletissem o impacto das escolhas de todos sobre as oportunidades de todos. Ninb'llém poderia se opor, por exemplo, se uma mulher que tivesse comprado seguro recebesse a compensação estipulada, caso optasse por denUtir-se do e1nprego durante a gravidez porque era o que sua apólice fornL>eia. Ela teria pago um prémio correspondente ao preço de tal opção para os

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outros. É verdade que se poderiam oferecer apólices de seguro que dessem Oportunidade para a trapaça: uma apólice poderia estipular que o beneficiário do seguro tivesse a obrigação de procurar emprego, por exemplo, e alguém mentisse a esse respeito. Todavia embora outros talvez condenassem seu comportamento, não poderiam reclamar que o contrato institucional que lhe ofereceu tal oportunidade foi injusto com eles. Se uma apólice que forneceria maior proteção contra fraudes fosse, no cômputo geral, lucrativa para a seguradora, ela a ofereceria, a um prêmio mais baixo, em substituiçã.o ou acréscimo às apólices que os "trapaceiros" comprassem. Se tal apólice não fosse de fato lucrativa, a seguradora que fez que::itão de oferecê-la deveria compensar as perdas cobrando mais pelas outras apólices. Isto é, seria do i11teresse de todos que o sistema de detecção fosse poroso. Assim, nessas circunstâncias imaginárias, ninguém poderia sensatamente reclamar que o plano é injusto, porque compensa outras pessoas. Ademais, podemos fazer tal afirmação sem quaisquer hipóteses sobre a distribliição das influências causais - entre escolha e circunstância nas oportunidades educacionais e profissionais, no comportamento ou no êxito das pessoas. Ninguém resgataria a compensação, a não ser que tivesse tomado a decisão de fazer seguro; se alguém fez un1 seguro que cobriu o dese1nprego devido à falta de con.hecimentos tecnológicos, por exe1nplo, ninguém poderia reclamar com justiça que essa pessoa não deveria ser compensada porque seu caráter contribuiu para que não adquirisse tais conhecimentos. Evidentemente, um misto de aspiração, caráter e habilidade inata pode ter um papel ilnportante na decisão de fazer seguro. Se alguém decidiu não comprar um seguro que mais tarde lamentou não ter comprado, poderia reclamar que sua escolha sofreu a influência de um distúrbio de personalidade sobre o qual não exercia controle, e que sua sociedade deveria, portanto, tratá-lo como se tivesse comprado o seguro. Mas não é dessa queixa que estou falando agora: ex-

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cluo somente a acusação de que a estrutura do mercado de seguros poderia ser injusta para aqueles que não recebem

pagamento nenhum. Os Estados Unidos de hoje são diferentes do país que acabo de imaginar de duas maneiras importantes: a riqueza não é distribuída com justiça entre nós, e o risco antecedente de emprego sustentado é muito maior em algumas partes da população do que em outras. Não obstante, podemos ganh.ar com o exercício imaginário perguntando qual seguro-desemprego as pessoas comprariam com Uina mishtra representativa dos gostos e ambições que a maioria dos americanos tem (não precisamos supor que todos os representados tenham os mesmos gostos e aspirações), se tivessem a riqueza que é a média entre nós e estivessem agindo com prudência. Não existe uma resposta cecta, concordo, para questões hipotéticas como essa. Quais oportunidades de seguro seriam oferecidas às pessoas, e qttais delas seriam escolhidas, dependeria de h1úmeras contingências, do mercado e de decisões pessoais que possamos imaginar sensatamente de diversas maneiras. Mas, se pudéssemos criar uma faixa estreita de apólices de seguro-desemprego de modo que fosse plausível supor que quase todos os america11os que agissem racionalmente comprariam uma apólice dentro dessa faixa, fosse qual fosse o outro seguro que acrescentasse a esse, poderíamos planejar a estrutura nuclear de um plano eminentemente defensável de previdência social com base nessas informações. Se for verdade que quase todos teriam comprado seguro-desemprego de determinado nível geral, no caso imaginário, poderíamos presumir com confiança que o fato de determinada pessoa deixar de fazê-lo em nosso mundo seria atribuível às circunstâncias - as circunstâncias que tomam o seguro iI1disponível em nossa comunidade ou que o tornam inalcançável para tal pessoa. A.E diferenças entre nosso mnndo e o imaginário, pois; são claramente diferenças nas circunstâncias das pessoas - diferenças em riqueza e

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op:irtunidades educacionais e sociais que tomam uma parte de nossa comunidade-um grupo estatístico- antecedentemente mais propenso a sofrer um risco segurado. Assim, a meta geral da igualdade de recursos -que distribuição deve ser sens.ível à escolha, mas não à circunstância - é alcançada por um plano de previdência social que coloque as pessoas nas circunstâncias que presumimos teriam gozado se o seguro estivesse disponível para elas em condições de igualdade. Um plano de previdência social gerado dessa maneira teria várias outras vantagens sobre outros planos propostos. Deixaria espaço para o papel da escolha pessoal, da influência do caráter, be·m como da atração e da utilidade das apostas. Não eliminaria (como as sugestões igualitárias mais drásticas eliminariam) as diferenças de pessoas ou vidas. Não desestimularia a iniciativa, não nivelaria a sociedade nem comprometeria qualquer concepção sensata de liberdade4. Só insistiria no que parece um lema irrefutável da justiça: que a sociedade se aproxima mais de tratar as pessoas com igualdade quando acrescenta, às escolhas que têm, outras escolhas que teriam se as circunstâncias fossem mais próximas da eqüidade. É, sobretudo, un1 plano realista. Já que seus cálculos baseiam -se e1n decisões hipotéticas de pessoas reais que escolhem dentre vários usos de seus recursos, esses cálculos jamais exigiriam que a comunidade gastasse mais em benefícios previdenciários do que deveria devido a suas responsabilidades de proporcionar outros serviços essenciais à vida de seus membros. Já que os impos~tos sobre a renda para financiar esses benefícios teriam, como modelo, supostos prémios desse mercado, tais impostos seriam tão justos quanto viáveis.

4. Ver Ronald Dwork1n, "Do Liberty and Eguality Conílict?", in l.íving

as Equais, ed. Paul Barker (Nav-a York: Oxford lJniversity Press, 1996), p. 39 _;

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B. A forma do 1nercado IJor conseguinte, devemos especular sobre a forma do mercado de seguros-desemprego no mundo imaginário. Pode parecer, à primeira vista, que o método do seguro hipotético justificaria (ao contrário do que acabo de dizer) um nível totalmente irreal de proteção social, porque as pessoas racionais do mundo imaginário procurariam a estratégia "maximin" -isto é, uma estratégia que elevasse o máximo possível o piso de suas perspectivas. De fato, as pessoas prudentes não adotariam tal estratégia. Todo seguro é uma compra ruim: os prémios precisam cobrir a istração e os lucros da seguradora, bem como prover os fw.1dos com os quais se paga a compensação, e os prémios precisam, portanto, exceder substancialmente o retorno esperado. Isso é verdadeiro.especialmente no caso do seguro-desemprego, que inevitavehnente contém, como veremos, um alto "risco moral" - o risco que as seguradoras correm de fraude, inclusive, por exemplo, de falsas declarações de tentativas de arranjar einprego. O seguro-desemprego só tem sentido, portanto, quando protege, não só contra ter menor riqueza do que a pessoa teria em outra situação, mas também contra estar em tal posição significativamente pior, que valha um in·vestimento tecnicamente ruim para evitar qualquer risco. A apólice da baixa renda "maximin" é, assim, imprudente para todos, menos (se tanto) para aqueles que qualq11er redução da quantia específica segurada fosse tão grave quanto saliente. Parece também evidente, porém, que as conseqüências do desemprego prolongado ou de renda extremamente : baixa são séria'> o bastante .rara que as pessoas de recursos médios queiram ter algum grau de seguro contra tais conscqüências: tentariam co1nprar coberturas que lhes permitissem pelo menos manter a vida com alguma dignidade fornecer alimentos, abrigo decente e um rúvel mínimo de cuidados médicos para si e para a farm1ia. A maioria das nações calcula agora esse nível de sustento para diversas fina-

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.lidades, definindo uma "linha de pobreza", e podemos supor que quase todos que pudessem pagar o devido prémio fariam seguro para se manter pelo menos no nível da linha de pobreza de sua comunidade. As pessoas da comunidade imaginária poderiam pagar tal apólice? 1sso depende doestado da economia, mas contanto que o emprego continuasse sertdo a norma em toda a comunidade, a compra da cobertura do sustento não exigiria uma grande fração da renda média, e podemos supOr que a maioria das pessoas a compraria. Contudo, chegamos agora a questões mffis complexas relativas à definição do risco segurado. Como as apólices populares definiriam o risco de desemprego ou de emprego com salário baixo a ser coberto? É óbvi.o que não seria possível fazer ,seguro çontra não ter o en1prego desejado: o prémio de tal seguro talvez se aproximasse da cobertura. Pelo contrário, qualquer apólice de compra viável estipularia a tentativa do beneficiário de mitigar sua situaç.ão procurando emprego. Mas como estruturar 011 impor tal cláusula? Seria possíveL certamente, que as fontes pagadoras acreditassem na palavra das pessoas e, em certas comunidades, isso poderia ser suficiente. Mas suponhamos que, nos Estados Unidos, uma apólice de compra viável e)dgisse mais em termos de investigação de sinistros. Agora analisemos as seguintes apólices de seguro contra desemprego. Todas exigem que o segurado procure emprego e todas extinguem o auxílio se houver provas de que o segurado recebeu oferta de emprego e a rejeitou. A apólice severa estipula também que a cobertura de cada incidente de desemprego seja extinta se o segurado não arranjar emprego em dois anos, tenha ou não conseguido algum emprego, e que, nesse caso, ninguém possa reivindicar mais do que o total de cinco anos de benefícios durante toda a vida. A apólice generosa não tem cortes nem outras formas de restrição além de estipular que o segurado deve procurar e aceitar o emprego que lhe for oferecido. A apólice intervencionista~opcional não proporciona cortes, mas estipula que

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a seguradora tenha o direito de exigir que o segurado procure formação profissional à custa da seguradora, como empregado, e que aceite qualquer emprego que ela lhe ofereça ou encontre para ele, recusando-lhe a compensação se recusar um número estipulado de ofertas. A apólice intervencionista-obrigatón·a copia a intervencionü;ta-opcional, mas também estipula que a seguradora ofereça treina1nento e empenhe-se na procura de emprego. Talvez se pudesse oferecer a apólice severa pelo prémio inais baixo das quatro (presumindo-se, porém, cobertura idêntica), pois permite à seguradora economizar de duas maneiras importantes. Em primeiro lugar, já que os "larápios" receberão cobertura, de qualquer maneira, durante apenas dois anos, a seguradora precisará gastar menos do que gastaria na onerosa e incerta identificação dos segurados. Em segundo lugar, alguns dos que permane·cessem desempregados durante dois anos não seriam larápios, mas pessoas que não têm a experiência, a formação ou a sorte de achar emprego em um ambiente economicamente inseguro. A seguradora, portanto, economiza ao oferecer, de fato, cobertura muito inferior à total - 11ão oferece seguro contra desemprego, mas contra alguns incidentes de desemprego de c11rto prazo. Assim, a apólice severa seria decerto mais barata do que a generosa, e talvez também fosse mais barata - embora isso dependesse de fatos adicionais - do que ambas as apólices intetvencionistas. Mas talvez também não fosse atraente, apesar de seu preço mais atraente. Presumimos que as pessoas comprariam seguro-desemprego em um nível baixo - digamos, na linha de pobreza- não como nova forma de loteria, mas por temerem o que julgam ser uma catástrofe. Não são levadas a fazer seguro nesse rúvel porque ele se torna um investimento melhor quando a cobertura é baixa, mas porque o risco de não ter tanto é terrível, e achari
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A apólice generosa seria muito mais atraente, é claro. Em comum com as outras apólices, requer que o segurado procure e aceite emprego, mas não impede a cobertura que a maioria das pessoas quer. Não obstante, a apólice generosa também seria muito cara. A seguradora que a oferecesse precisaria adotar métodos de investigação mais estritos que, se eficientes, seriam caros. Talvez acabasse diante de uma burocracia inistrável de reivindicações. Por mais minucioso e caro que fosse seu método de investigação, abrigaria alguns corruptos atraídos para a apólice exatamente porque lhes ofereceria a chance de viver sem trabalhar, e quanto menos a seguradora gastasse com a investigação dos sinistros, maior seria a perda com essas falcatruas. Se também houvesse oferta de outros tipos de apólice, a apólice generosa também sofreria com a seleção adversa - a propensão que as pessoas teriam de só escolher tal apólice se tivessem tendência ao roubo ou fossem fatalmente destituídas de qualquer qualificação para o trabalho-, e isso faria com que o preço da apólice subisse ainda mais. A apólice intervencionista-opcional não poderia ser mais cara do que a generosa, pois a seguradora que oferecesse aquela não forneceria nem financiaria treinamento nem tentativas de arranjar emprego, a não ser que sua execução favorecesse seus interesses comerciais, isto é, a não ser que a economia pretendida com pagamentos mais baixos excedesse os custos de tais serviços. Já que atualmente, e no futuro previsível, parece provável qite tais economias excederiam os custos no caso de alguns segurados, e talvez de muitos deles, a apólice intervencionista-opcional seria mais barata do que a generosa. Assim, se tal apólice fosse oferecida na comunidade imaginária, tiraria do mercado o plano generoso. Pdra a maioria das pessoas - todas, menos os candidatos a larápios-, as próprias caracteristicas intervencionistas do plano aumentariam seu valor, pois o treinamento poderia ajudá-las a arranjar emprego qtte pagasse muito mais que o nível coberto, e também porque muitos, e provavelmente a maioria, dos segurados da previdência so-

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cial preferem trabaJhar especialmente em cargos que exijam qualificação profissional. Se a apólice intervencionista-opcion.al também fosse mais barata que a apólice severa, dependeria de um cálculo complexo. É possível que alguns segurados pela apólice severa, que receberiam compensação até o momento do corte, arranjassem emprego antes de chegar a esse ponto se lhes fossem oferecidos assessoria e treinamento. A apólice intervencionista-opcional seria mais barata do que asevcra se a compensação adicional que seria paga a tais segurados nessa última apólice fosse no agregado maior do que os custos do treinamento e do programa de assessoria da primeira. Quanto mais longo o prazo para o corte na apólice severa, portanto, mais provável se toma que a apólice intervencionista-opcional seja mais barata e, já que essa política também é muito mais atraente, esse fato limíta o prazo para o corte que uma apólice severa proporia. Segue-se que a única dessas apólices no mercado seria a menos desejável e, talvez, a que tivesse menos popularidade. A apólice intervencionista-obrigatória seria ainda inais atraente para a maioria do que a intervencionista-opcional pois promete urna chance ainda maior de viver melhor. É verdade que a versão obrigatória seria mais cara para as seguradoras a curto prazo. Mas, a longo prazo, essa equação talvez mudasse: uma geração mais tarde, por exemplo, caso não acontecesse uma catástrofe econômica, seria possível esperar que o programa inicialmente caro de trein3.mento e assessoria em recursos humanos fosse mais barato para as seguradoras do que uma apólice generosa de fato seria, e se . aproximaria dos custos do pacote intervencionista-opcional. : A<;sim, as seguradoras fariam bem ao oferecer uma versão obrigatória da apólice estipulando compromissos de longo prazo, e isso talvez viesse a ter mais popularidade do qt1e a versão opcional, mesmo que um pouco mais cara.

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C. Dependência As mulheres que procurassem o seguro-desemprego ficariam muito ansiosas para obter cobertura suficiente para

atender os filhos dependentes e procurariam isenção de qualquer trabalho ou treinamento exigido durante os últimos

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meses de gravidez e enquanto as crianças fossem muito pequenas. Mas as seguradoras se preocupariam com a disponibilidade de tal seguro porque geraria aumento de natalidade entre as mulheres de baixa renda. Essa desco·nfiança de que a previdência social é em boa parte responsável pelo aumento do número de pais adolescentes e solteiros - foi uma das principais forças políticas a amparar a "reforma" da previ.dê.ncia que acabou ganhando patrocínio federal do programa Aíd for F(lmilies with Dependent Children (AUXI1io às famílias com filhos dependentes) e estipulando que os estados não podem beneficiar pais solteiros durante mais de dois anos. Muitos políticos declaram que tal rigidez é necessária para romper o ciclo da dependência que, segundo eles, fez com que muitas adolescentes se tornassem indiferentes à gravidez e levou algumas a desejá-la deliberadamente, co·mo meio de sair de um lar insosso para ir morar em uma residência independente. Porém, embora as conseqüências da "reforma" tenham poucas chances de proporcionar uma queda significativa no índice de gravidez de adolescentes, é quase certo que prejudiquem muito as crianças pequenas, ·muitas das quais serão afastadas dos pais e encaminhadas a programas de adoção, Se usarmos a abordagem do seguro hipotético que estamos analisa11do e tentarmos elaborar um plano de previdência social perguntando qual seguro as pessoas da comunidade imaginária comprariam, e se restringíssemos nossa atenção ao segt.tro que as pessoas que correm o risco do desemprego talvez comprassem para si, chegaremos a 1.tma conclusão deprimente. As apólices de seguros elaboradas para pais em potencial, que oferecem cobertura suficiente para sustentar a família e a si mesmo, provavelmente conte-

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riam uma cláusula g ue negasse tal cobertura a pais solteiros (ou economicamente desqualificados), jogando sobre eles o risco da ausência de controle de natalidade ou do controle da natalidade malsucedido. Se baseássemos em nossa própria sociedade a cláusula da previdência social desse seguro, o auxilio da previdência seria negado a muitos pais solteiros que atualmente o recebem. A abordagem do seguro hipotético parece, pelo menos neste caso, endossar a estratégia austera da legislação recente. Contudo isso é um mal-entendido, já que o seguro hipotético foi. criado para servir às necessidades de uma teoria da justiça eticamente sensível tornando a distribuição suscetível à escolha e à conduta, e não pode, portanto, ser usado para condicionar a distribuição a um grupo - crianças - à conduta de outro - os pais. Precisamos fazer outra per·· gunta: quanto em seguro as crianças comprariãm, e sob quais co11dições, para não nascer de pais indigentes ou desempregados? Não precisamos imaginar fetos negociando apólices de seguros para tentar responder a essa pergw1ta. Podemos perguntar: quanto em seguros, e sob quais condições, os tutores prudentes compraria1n em seu próprio nome, compreendendo que os filhos deveriam pagar prêmios mais tarde, em um plano pago em prestações a longo prazo? Parece claro que o tutor pn1dente compraria um seguro que ofereces.se coberh1ra suficiente para permitir que o filho vivesse com os pais, e recebesse atendimento médico e educação suficientes para sobrevhrer e se q11alilicar para trabalhar quando chegasse o momento. As seguradoras abordariam de maneira estatística a elaboração de tal apólice, da mesma forma que fariam com qualquer outro tipo de seguro-saúde, já que não poderiam condicionar a compensação ao comportamento de ninguém sem destruir a finalidade do seguro. Estariam atentas à importância comercial de não incentivar a gravidez de mulheres pobres e solteiras, porém, e talvez fosse apropriado que as seguradoras reservassem parte dos lucros para ca1npanhas educativas, como o fazem agora com relação ao tabagismo. Talvez também exigissem,

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como uma cláusula da apólice, que se S"ubordinassem aos direitos da criança contra o pai ausente: talvez funcionassem

como uma espécie de dissuasão se as companhias de seguros tivessem de ir atrás de pais ausentes com reclamações de patenUdade.

D. Resumo A abordagem do seguro hipotético tenta isolar uma faixa dos planos de previdência social que uma pessoa ou le-

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gislação sensata acharia ser a exigida pelo duplo princípio de

que a vida de todas as pessoas tem a mesma importância e que cada pessoa deve responsabilizar-se pelo controle da própria vida. A abordagem confinna uma convicção, que acredito que muitos leitores já têm: de que o plano previdenciário sem cortes, tanto com a possibilidade quanto com a obrigação de oferecer treinamento e assessoria em recursos humanos, e que as condições de compensação baseadas na boa-fé na l-entativa de obter emprego são preferíveis ao plano mais severo ou mais generoso. Se é assim, isso é bom para a abordagem do seguro e para tal convicção, poisambas se amparam mutuamente. Vários estados dos Estados lJnidos vêm, de fato, procura11do implantar tais planos preVidenciários, embora apenas como planos-piloto especiais, com desistências garantidas pelo governo federal. Mas as estipulações da nova l . ei de Reforma da Previdência Socilli não estão dentro da faixa itida pela abordagen1 do seguro. Tên1 por base a apÓ·lice severa, e tal apólice seria nitidamente impopular entre as seguradoras prudentes. As cláusulas que interrompem o recebimento do auxílio da previdência social para os pais pobres após dois anos e, portar1to, condenam as crianças à mais negra miséria ou à adoção são deploráveis. O seguro hipotético, como acabamos de ver, condenaria tais cláusulas, não tanto por oferecer a solução equivocada, mas por apresentar a questão errada.

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VI. A sorte da aposta Os argumentos conservadores sobre os quais discorri anteriormente insistem que os planos de previdência social autorizados pelo seguro hipotético são generosos demais. I1 recisamos agora analisar a objeção mais profunda e mais grave que afirma, pelo contrário, que é um recurso muito tímido. As transferências que utilizarem como modelo o seguro hipotético mitigarão, porém não eliminarão, a desigualdade gerada pelo desemprego, porque nenhuma pessoa prudente em uma projeção compraria um seguro que não lhe garantisse nem a média salarial dos que estão empregados, muito menos salários iguais aos mais altos do mercado. A nova objeção reclama que o recurso do segt1ro hipotético faz com que muito ainda dependa da sorte: os que nasceram com menos riqueza-talento, ou em am·biente no qual é menos provável que a riqueza-talento seja lapidada, terão tnenos recursos durante toda a vida, mesmo depois de receber os benefícios que o seguro justificaria. Precisamos, segundo essa queixa, de um programa de proteção social mais abrangente e radical. Precisamos, talvez, de um plano previdenciário que satisfizesse totalmente o teste de "cobi·ça'' sobre o qual disconi no Capítulo 2, tomando iguais os recmsos de que as pessoas laboriosas dispõem durante toda a vida, seja qual for o talento inato com que nasçam. Há 11ma série de problemas conceih1ais i1essa última aspiração, todos descritos no Capítulo 2, e o problema estratégico que analisamos antes neste capítulo acrescenta mais dificuldades, pois qualquer programa político que pretendesse tomar a renda dos involuntariamente desemprei gados igual à dos que trabalham violaria, na prática, inevitáve1 e gravemente o princípio de que a distribuição deveria ser sensível à escolha. Não é mais possível apagar todas as diferenças em riqueza oriundas da desigualdade em talento sem também apagar aloumas das decorre11tes da escolha do que foi para Shylock extrair sua hbra de carne humana sem derramar uma gota de sangue. Mas devemos

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deixar de lado essas graves dificuldades conceituais e práticas agora para nos concentrar na subjacente questão de princípio que essa objeção levanta. Será que o dispositivo do seguro hipotético é falho porque compensa mal aqueles que querem mesmo trabalhar, mas não conseguem arranjar emprego? Quando apresentei tal dispositivo, no Capítulo 2, eu o fiz com reservas: disse que os igualitários poderiam defender pelo menos tanta compensação quanto o dispositivo recomendasse, m.as que poderíamos ter esperança de descobrir outra ferramenta analítica que justificasse uma compensação maior. A objeção que analisamos oferece uma oportunidade de voltar àqt1elas reservas. Até que ponto eram justificadas? O efeito da estratégia do seguro hipotético não é eliminar as conseqüências da má sorte bruta - má sorte oriunda não de uma aposta deliberada, mas da própria vida-, mas apenas atenuá-la até o ponto e da maneira que o seguro prudente normalmer,te faz. A estratégia pretende deixar as pessoas em situação igualitária em relação ao risco, em vez de o anular totalmente. Esse objetivo demonstra igual consideração por todos os cidadãos? Ou será que a genuína consideração igual requer o que chamei, no Capítulo 8, de abordagem do "resgate", que exigiria que a comunidade oferecesse qualquer tratamento médico, por mais caro ou. especulativo, que aumentasse, mesmo que marginalmente, a expectativa de vida do pacie11te? Assinalei que nen'hun1a comunidade cumpriria tal promessa sem se prejudicar: deveria gastar tanto em assistência médica qlte não lhe sobraria nada para tentar fazer da vida de seus membros - tanto dos afortunados quanto dos desafortunados - tão boa quanto longa. É mais difícil estipular qual abordagem de resgate exigiria, à guisa de compensação, não por doença, mas por desemprego, mas deve-se imaginar que exigiria, por exemplo, que qualquer pessoa demitida sem justa causa pudesse contil1t1ar a receber o equivalente a seu {tltimo salário, ajustado de tempos em tempos de acordo com a inflação. Os custos múltiplos dessa política para a comunidade e os danos que infligiria à economia seriam enormes.

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A abordagem do seguro expressa uma compreensão bem diferente de como uma comunidade com igual consideração por todos trata o risco. Essa concepção diferente parece claramente superior à abordagem do resgate em alguns contextos. Imagine1nos uma doença debilitante que não seja nem genética nem fundada na condição de classe, e que ataque as pessoas aleatoriamente, porém só após os quarenta anos de idade, e imaginemos uma comunidade na qual a riq11eza seja distribuída com justiça e todos os cidadãos estejam abaixo dessa idade. A abordagem do seguro exige que a comunidade ofereça seguro contra tal doença, a preços de mercado, por meio de seguradoras privadas .ou comerciais, ou ·publicamente, por intermédio de um programa estataL para que os cidadãos possam decidir por si mes1nos se compram o seguro e em qual nível de cobertura. Essa abordagem é ex ante melhor para todos (a não ser, talvez, para cidadãos imprudentes) do que a do resgate, porq11e possibilita a cada um a escolha de quanta proteção furura deseja em comparação com quanto sacrifício, na forma de prêmios, está disposto e julga correto fazer agora, em vez de lhe impor uma decisão coletiva que ninguém faria para si rnesmo. Essa política parece a maneira ideal, pelo menos nessas circunstâncias, de demonstrar igual consideração por todos, mas exige que a comunidade litnite sua ajuda aos que mais ta·:rde contraírem a doença à cobertura que con1praram (com exceção, talvez, da ajuda paternalista aos muito imprudentes). Se a comunidade resolvesse mudar para algo mais próximo do método do resgate quando a primeira vítima adoecesse, teria, então, de fato imposto a todos, para o futuro, um reghne de seguros n1uito mais caro do que seus cidadãos julgaram sensato e adequado co1nprar para si mesmos. Agora in1aginemos outro caso. itamos que a doença seja, de fato, genética - pessoas com certa estrutura genética têm muito mais probabilidades de contraí-la-, mas que ninguém, inclusive o próprio cidadão corn tal estrutura genética, soubesse que qualquer cidadão tem tais genes pe-

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rigosos até a doença atacar. Agora devemos distinguir entre interesses subjetivos e objetivos. Ainda é do interesse subje-

tivo de todos - interesses até o ponto em que saibam- que a comunidade escolha a abordagem do seguro, e não a do

resgate, mas isso não é (ou, pelo menos, não igualmente) do interesse objetivo de todos. Por que, então, isso deve fazer diferença? Por que deveria importar quando o acaso intervém em nossa vida? Parece não haver cliferénça, na justiça da questão, se o azar recai sobre nós em um momento após a decisão de fazer seguro ou se já recaiu sobre nós, sem que-0 soubéssemos, algum tempo antes. Existem tipos

de pôquer nos quais os jogadores apostam .nas cartas que receberam, mas não viram, e não são menos justos do que os jogos nos quais apostam nas cartas que estão porvir. Assim, a abordagem do seguro ainda parece justa, mesmo quando a história 'mt1da dessa forma. A comunidade trata as pessoas com igual consideração quando permite que todos façam seguro, nao; n1esmas condições, e com o nível de cobertura que escolherem, mesmo quando o infortúnio contra o qual fazem seguro já atacou secretamente. Agora mudemos a história novamente: imaginemos que as informações genéticas necessárias à previsão de quem terá a doença sejam fáceis de se obter, de modo que todos saibam quem serão as vítimas. De fato, suponhamos que algumas das vítimas já apresentem a doença quando a comunidade começa a pensar em qual política de compensação adotará. Agora não há mais possibilidade de um mercado comum de seguros contra a doença. Mesmo que as seguradoras oferecessem apólice com as mesmas cláusulas para todos, somente as pessoas que soubessem que corriam o risco a comprariam, e as seguradoras iriam à fa lência, a não ser que cobrassem prêmios tão altos que o seguro fosse inútil para as futuras vítimas. Não obstante, o governo pode adotar o dispositivo do seguro hipotético: pode, dessa forma, transformar a história de modo que se torne, contrafactualmente, igual aos dois primeiros casos analisados. O governo pode pagar àqueles que contraírem

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a doença, ou à.queles que já a contraíram, segundo as apólices - que parecia razoável que a maioria das pessoas teria comprado no primeiro ou no segundo caso. A abordagem do seguro, compreendida dessa maneira contrafactual, seria menos apropriada - menos uma demonstraçã.o de igual consideração por todos - neste caso do que nos outros? Há duas diferenças pertinentes entre os dois primeiros casos e esse terceiro. Nos dois primeiros, o governo toma sua decisão inicial de elaborar u1n método de seguro, em vez do resgate, quando nenhum cidadão pudesse reclamar que a decisão oposta o favoreceria mais; no terceiro caso, por outro lado, alguns cidadãos podem fazer essa acusação sempre qt1e o governo tomar sua decisão inicial. Nos dois primeiros casos, além disso, cada cidadão decide se fará seguro e por quanto: a decisão quanto a quais riscos valem a pena correr é deles. No terceiro caso, porém, o governo deve tomar tal decisão, coletivamente, por todos, e algumas vítimas podem dizer que teriam feito seguro maior se tivessem tido a chance de tomar a decisão por si mesmas. A primeira dessas duas diferenças poderia parecer a mais i1nportante, mas é, de fato, ilusória, pois qualquer decisão política tomada é constantemente refeita Quando a primeira vítima apreserltasse a doença, no prirneiro caso, caberia à com·unidade mudar de idéia e adotar a política do resgate a favor dessa vítima, e a decisão da comunidade de o não fazer, diante das necessidades especiais então identificáveis da vítilna, seria uma decisão nova que precisaria de justificativa nova. É verdade qtle qualquer vítima do primeiro caso já teria tido os benefícios da abordagem do seguro .antes de adoecer - lucraria com os gastos que a comuni1dade conseguiu fazer em educação, investimento de capital que gerasse empregos, e todo o resto que pudesse fazer por não estar reservando dinheiro para financiar a abordage1n do resgate. Mas isso também é verdade no terceiro caso, porque mesmo aqueles que estão condenados desde o nascimento compartilham os benefícios dos gastos comunitá-

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rios que não teriam sido feitos se tivessem implantado a abordagem do resgate muito tempo antes. Pode muito bem ser que a vítima do terceiro caso tivesse ficado em melhor situação, em todo o caso, se a abordagem do resgate tivesse sido adotada, digamos, pouco antes de seu nascimento. Mas isso talvez também se aplique à vítima do primeiro caso, conforme as coisas se desenrolaram para ela Assim como a diferença no momento da vulnerabilidade objetiva não faz diferença no que a justiça exige quando pas..samos do primeiro para o segundo caso, também a diferença na vulnerabilidade subjetiva não deve fazer diferença no que a justiça exige quando amos do segundo para o terceiro. A abordagem do seguro só tem sentido se a tratarmos co~ mo política efetiva de uma comunidade na qual ingressam indivíduos: protege-os contra a má sorte, mesn10 quando trazem essa má sorte ao mundo quando nascem. A outra diferença que mencionei - que no terceiro caso os cidadãos não tomam as decisões pertinentes a seguros para si mesmos-é mais importante. É uma grande força da abordagem do seguro nos dois primeiros casos, em comparação com a do resgate, que permita às pessoas tomar decisões sobre a importância relativa dos diversos riscos para si mesmas, de modo que possam adaptar a utilização de seus próprios recursos a seus próprios juízos, ambições, gostos, convicções e compromissos. Isso toma a política do seguro mais equânime e mais liberal do que a política do resgate nesses dois casos: ela ilustra uma afinnação central deste liVTo, ao servir à igualdade e à liberdade em conjunto. No terceiro caso, porém, não é possível às pessoas julgar por si mesmas. A comunidade deve fazê-lo por elas; e o faz de maneira contrafactual, tentando recapitular o que provavelmente teriam decidido por si mes1nas se tivessem tido tal oportunidade. Na prática, porém, isso não pode ser uma questão de psicologia individualizada - como poderíamos decidir o que o indivíduo que sempre teve conhecimento de sua vulnerabilidade teria decidido com relação ao seguro, se não tivesse tal conhecimento?

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Uma comunidade que adota a concepção de seguro da igual consideração deve tratar a questão contrafactual como estatística, e não como individualizada. Deve perguntar, grosso modo, qual nível de cobertura contra riscos do tipo em questão pareceriam razoáveis para a maioria das pessoas da comunidade, ou para qualquer pessoa normal, ou algo assim, dada a estrurura provável do prên1io e as necessidades e as aspirações da maioria das pessoas. É preciso ter discernimento para responder a pergunta tão vaga, é claro;· cada cidadão e cada autoridade responderia de maneira um tanto diferente. Mas suas respostas recairiam quase todas em certa faixa. A pessoa comum insistiria em algum seguro - o suficiente para proporcionar tratamentos médicos de confiança dos quais se pudesse esperar a cura da doença ou amenizar bastante suas conseqüências, por exemplo-, todavia r1ão compraria t1ma apólice.de resgate que oferecesse cobertura para tratamentos especulativos ou marginais, pois o preço da apólice de "resgate" significaria qt1e s"L1a vida seria prejudicada, mesmo que ela nunca contraísse a doença. Obviamente, qualquer que seja o juízo contrafactual da comunidade sobre o que uma pessoa normal teria feito, o nascido com a doença ou com propensão genética para ela poderia muito bem acreditar que teria comprado uma cobertura superior àquela, mesmo que ignorasse sua afecção. Mas não poderia argu1nentar que teria comprado algo semelha11te a 11ma apólice de resgate e, dada a impossibilidade de definir qual coberhrra seria inferior àquela, porém maior do que a suposta cobertura média que teria comprado, parece razoavelmente justo lhe pedir qt1e se sinta satisfeito com a última. O assu11to prir1cipal deste capítulo não é a doença, mas o desemprego, e não há diferença importante entre os dois assuntos. Embora pareça lícito supor que a doença - mesmo quando tem fundo genético - é questão de má sorte, isso não parece totalmente correto no caso do desemprego. A sorte genética tem seu papel no cálculo de quais probabilidades alguém tem de encontrar um emprego desejável, já

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que as riquezas-talentos são, em certo grau, e talvez em grande parte, inatas. Mas classe e preconceito são questões de injustiça, e não de sorte, e também têm um papel importante na distribuição de e1npregos e renda nas democracias modernas. En1 nossa análise, porém, devemos tentar separaresses dois fatores - sorte e injustiça. Se as características principais da igualdade de recursos fossc:m utilizadas, a classe desaparece1ia, pelo menos depois de algum tempo. Se os direitos fundamentais fossem estabelecidos e vigorassem, a influência do preconceito sobre o emprego definharia~ há muito menos discriminação sistemática contra as mulheres e as minorias nos locais dl.'! trabalho dos Estados Unidos hoje, três décadas depois que a discriminação no emprego se tornou ilegal, do que antes de tal lei. A objeção à abordagem do seguro que· estamos agora analisando é mais ampla, e ainda seria pertinente, mesmo que a classe e o preconceito não tivessem rr«ais importância, pois ainda seria verdade que alguns cidadãos estariam desempregados, ou empregados com salário relativan1ente baixo, sem ter culpa disso, mas somente porque lhes faltou o talento correspondente ou não estavam no lugar certo no momento adequado. lsso é uma má sorte deles, e o argumento que acabamos de delinear a favor do seguro, em vez do resgate, no caso da doença, aplica-se com força igual ao desemprego por esses motivos. A objeção ciue estamos analisando nesta seção ~ de que a abordagem do seguro deixa de mostrar igual consideração ~ é compreensível, porém equivocada. VII. Sorte, classe e geração

Devo agora dizer algo sobre por que a igualdade de recursos não geraria diferenças de classe. Por motivos que já percebemos, esse conceito de eqüidade não igualaria os recursos pe;e;soais dos cidadãos corno ar do tempo. Algumas pessoas ganharão mais que outras devido à escolha

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que fizeram de empregos bem remunerados ou por trabalhar mais e ter menos lazer, ou por meio de apostas em in ~ vestimentos que prospere·m, em vez de decepcionar. O dispositivo do seguro que estudamos, ademais, pretende igualar as pessoas no risco de má sorte a priori, mas não nas circunstâncias a posteriori, depois que a má sorte prospera. Assim, com o ar do tempo alguns cidadãos ficarão mais ricos que outros. O imposto sobre a renda com base no seguro hipotético, e usado para compensar os desempregados e outros que sofreram de puro azar, tornará as diferenças em renda e riqueza muito menos notáveis do que o são nos Estados Unidos~ em outras economias maduras de hoje. Não obstante, alguns cidadãos acumularão mais riqueza do que outros, e se tiverem a liberdade de deixar sua riqueza maior para os filhos, seja por meio de doação em vida ou por herança, as diferenças tenderão a crescer e assufnir o caráter conhecido do sisteni_a de classes. Que política legítima poderia evitar isso? Muitas nações impõem impostos às doações e às heranças, quase sempre altos e bem progressivos- em alguns casos aproximando de 100o/o dos bens do rico falecido-, embora a tendência em muitas nações nos últimos anos tenha sido baixar esses i1npostos. Mas não fica claro de imediato que esses impostos sejam justificados na igualdade de recursos e, caso o sejam, em que nível. Se for criado e implantado o imposto de renda fur1damentado no seguro-desemprego hipotético, e se a.receita dessa tributação for distribuída às vítimas que podiam reivindicá-la devido a esse seguro hipotético, então nenhum cidadão tem renda desmedida depois de descontados os impostos. Caso isso ocorra, os cidadãos estão moralmente hvres para gastar sua riqueza como quiserem - corn carros caros, obras de arte ou viagens, por exemplo- sem precisar pagar inais impostos. 1-'or que deveriain estar impedidos de gastar sua riqueza, sem pagar impostos adicio11.ais, de uma maneira específica doando-a, em vida ou após a n1orte - segunclo seus próprios desejos?

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Quero dizer: pode-se taxar o que as pessoas doam ou deixam de herança porque essa é uma forma de gasto, diferentemente de todas as outras, que gera injustiça na próxima geração. Mas precisamos nos encarregar de especificar qt.te injustiça é essa, e por que o imposto sobre heranças ou outra forma de transferência de capital é o remédio certo para isso. lJm dos princípios vetores da igualdade é ser injusto algumas pessoas viverem com menos riqueza à disposição, ou em circunstâncias menos favoráveis, do que outras, não devido à escolha ou aposta que tenham feito, mas devido ao puro azar. É wn infortúnio nascer em uma família relativamente pobre ou em uma farm1ia egoísta ou perdulária. Não precisamos fantasiar, para adotar tal idéia, que as pessoas gozam de uma pré-existência espiritual antes da concepção, e que algumas dessas hipotéticas pessoas têm a sorte de serem concebidas por pais trabalhadores, afortunados e generosos, ao o que outras têm o azar de serem concebidas por pais pobres, desafortunados ou egoístas. Ora, tratamos a estrutura genética como questão de sorte - a sorte ou o azar que as pessoas trazem consigo ao mundo - o que devemos necessariamente fazer se aceitarmos a opinião comum de que os diversos tipos de deficiências são mn infortúnio. A sorte, em nossa análise, conta com o que se poderia imaginar ser questão de identidade e também de acidentes que acontecem depois de determinada a identidade, e a situação e as propriedades dos pais ou parentes da pessoa são tanto uma questão de sorte, nesse sentido, quanto a própria capacidade física dessa pessoa. Se a herança for, para nossos fins, uma questão de sor te, então podemos justificar os impostos sobre heranças e outras transferências de capital da maneira atualmente cornum. Em um mundo mais equânime, as pessoas conseguiriam fazer seguro tanto contra a má sorte hereditária quanto contra a má sorte genética, e podemos, portanto, justificar tais impostos e determinar a faixa de seus níveis aceitáveLc;;, criando outro mercado hipotético de seguros, no qual as pessoas hipotéticas pudessem todas comprar tal seguro

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do mesmo modo. Assim como imaginamos tutores que façam seguros-desemprego ou invalidez em nome de pessoas ainda não nascidas, também podemos imaginar tuto-. res que façam seguros contra o azar de seus protegidos serem filhos de pais que só possam ou queiram transmitir-lhes relativamente p:iuco. É n1ais difícil, porém, especificar as propriedades de um mercado hipotético no seguro de herança. Devemos começar perguntando por que alguém quereria tal seguro e quais ponderações afetariam a quantia que estariam dispostos a pagar por ele. Os danos contra os quais tal seguro protege, pode-se dizer, é relativo, e não absoluto. Supomos que as pessoas decidiram quanto comprar em seguro-saúde e desemprego: decidiram que faz sentido oferecer atendimento médico útil, mas não especulativo, e salário, caso desempregado, um pouco acima do limite da pobreza·em sua comunidade. Decidiram que um seguro adicional que garanta mais assistência méclica ou renda-salário mais alta não valeria o preço do prêmio. O seguro-herança teria sentido, portanto, para garantir, não um padrão de vida mais alto em termos absolutos, mas contra os danos diferentes edistintos de ocupar uma camada mais baixa no sistema de classes -isto é, em comparação con1 a vida em uma comunidade na qual os outros tenham muito mais dinheiro e, conseqüenternente, mais status e poder do que tenham e que seus filhos terão. Porém não faz sentido para essas pessoas pagar prêmics, a partir de sua renda corrente, para proteger-se contra e$sa desvantagem relativa, porque, como acabei de dizer, já decidiram que gastar mais para garantir uma renda absoluta mais alta seria insensato. 11..gora entendemos por que o imposto sobre heranças, com índices prob:rressivos íngremes, parece uma solução evidente para o problema: nesse caso, retrocedemos das propriedades de um imposto conhecido para a estrutura de um mercado hipotético de seguros que justificaria esse imposto para testar a plausibilidade dessa estrutura. Criamos um mercado hipotético no qual não se deve prêmio nenhum até que

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segurado morra ou faça uma doação voluntária. Quaisquer prêmios então devidos são avaliados com relação aos bens doados ou legad9s, e esse prêmio sobe de maneira íngreme de zero, no caso da doação de uma propriedade modesta, a urna parcela marginal altíssima da própria grande fortuna. Essa estrutura permite que se faça seguro sem que o prêmio provoque um impacto em sua própria vida, isto é, nenhum sacrifício de suas metas ou aspirações para si mesmo, inclusive para o cônjuge, para quem as doações ou heranças geralmente estão isentas de prémio. É claro que a maioria das pessoas se preocupa com o bem-estar dos :filhos, em geral mais do que se preocupam consigo mesmos, e querem poupar ou mesmo sacrificar-se, se necessário, pelos filhos. Mas essa motivação é uma faca de dois gumes. Dá razão para que alguém não queira que os prêmios sobre. o seguro-herança, qt1ando esses finalmente forem devidos, esgotem todos os bens deixados quando da morte. Mas isso também é forte motivo para assegurar que eles mesmos tenham um início razoavelmente simétrico em suas próprias vidas, que não começarão prejudicados pelo fracasso ou azar dos próprios pais no desejo de levar uma boa vida para si mesmos e, por conseguinte, para os filhos também. De qualquer maneira, uma tabela de prémios em progressão exorbitante asseguraria que seu próprio trabalho e seu próprio êxito beneficiassem os fill1os; o t.ínico sacrifício a que se arriscariam, ao fazer seguro com prêmio em progressão íngreme, seria a incapacidade de fa ~ zer com que os fill1os fossem mu'ito mais ricos do que seus contemporâneos. Assim, a característica dos impostos sobre heranças insinua um mercado hipotético de seguros contrafactualmente plausível. A forma mais plausível desse mercado, por sua vez, insinua a maneira mais concreta que a tnbutação das heranças deveria assumir: afuma que os impostos sobre heranças devem ser progressivos e colocados em um patamar suficientemente alto para proteger contra a estratificação econômica. Esta é, afinal, a razão do seguro. Em n1uitos países, os impostos sobre heranças caíra1n de níveis historicamen0

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te altos, e nossa análise demonstra que essa queda, embora politicamente bem recebida, pode muito bem ser injusta. Nosso exercício tainbém sugere como o governo deve gas-· tar os fundos levantados com a tributação de doações e heranças. Não deve usá-los para pagar por benefícios médicos ou contra o desemprego, o que, em nossa análise, compete ao imposto de renda. O governo deve, pelo contrário, usar a receita do imposto sobre heranças para aprimorar a educação pública, empréstimos para educação e treinamento a futuros profissionais, e outros programas que aliviem o impacto de qualquer estratificação econômica que pennaneça depois de recolhido o imposto.

VIII. Seguro e utilitarismo Ainda falta salientar, como precaução contra mal-entendidos, que, embora a concepção de igual consideração elaborada neste capítulo ressalte os benefícios ex ante da abordagem do seguro, ela não transforma a igualdade de recursos em qt1alquer forma de assistencialismo, inclusive em utilitarismo. A comunidade que adotou o método do seguro para resolver os diversos p.roble1nas que discutimos garantiria, de fato, maior bem-estar coletivo, em qualquer concepção de bem-estar que possa1nos escolher, do que a qt1e tentasse adotar o método do resgate.11as a finalidade da estratégia é a justiça para os indivíduos, em vez de qualquer meta coletiva, e no resultado é bem improvável que se iguale ao que os planos elaborados para elevar ao máximo a utilidade coletiva recomendariam. O utilitarista acharia inse11sato estipular que os impostos sobre a redistribuição imitassem um mercado de seguros, no qual se oferecesse a cada indivíduo um seguro com taxas paralelas. As diferenças em riscos objetivos e subjetivos entre as pessoas reais seriam de importãnci.a primordial em qualquer cálculo utilitarista, mas não teriam importância nenhuma para a igual consideração conforme agora a entendemos. ,

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Capítulo 10

Liberdade de expressão, política e as dimensões da democracia

I. Introdução

A política americanq. no fim do século Nossos políticos são uma desgraça, e o dinheiro é a raiz do problema. Nossos políticos precisam, levantam e gastam mais e mais dinheiro a cada campanha eleitoral. O candidato que tem ou levanta mais dinheiro, como as eleições de 1998 demonstraram mais uma vez, quase sempre vence. k3 autoridades começam a levantar dinheiro para a próxima eleição no dia seguinte à última, e quase sempre dedicam mais tempo e esforç.o a essa tarefa do que às tarefas para as quais foram eleitas. Gastam a maior parte do dinheiro que levantam para a campanha, além disso, em comerciais de televisão que são, não raro, negativos e quase sempre fúteis, trocando argumentos por slogans e jingles. Quanto mais dinheiro os políticos precisam para serem eleitos, de mais contribuintes ricos necessitam, e mais influência esses contribuintes têm sobre suas decisões políticas depois de eleitos. Há leis federais que limitam quanto cada cidadão e cada grupo pode doar a campanhas políticas. Mas artifícios novos e mais amplos tomam esses limites crescentemente ineficazes ano após ano. Nos últimos anos, ansiosos candidatos e doadores exploraram o artifício do soft money, que permite aos doadores - e não só a

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pessoas físicas, mas também a grupos empresariais e sindicatos, que estariam, por lei, proibidos de fazer contribuições políticas - fazer doações ilimitadas a partidos ou comitês políticos. Os partidos gastam esse dinheiro em campanl1as publicitárias de "defesa de causas" que não pedem votos - tecnicamente, em termos explícitos -para candidato nenhu1n, mas elogiam ou denunciam candidatos despudoradamente, e quase sempre terminam aconselhando os telespectadores a "dizer'' aos candidatos denunciados que se emendem. O recurso à "defesa de causas" eviscerou os tradicionais controles jurídicos sobre as contribuições políticas. Na eleição presidencial de 1996, os candidatos dos dois grandes partidos recorrera1n a esse artifício para contornar não só os limites das contribuições, mas também suas obrigações legais de observar os limites voluntários de gastos de campanha em troca de financiamento federal e o New York Tímes denominou essa eleição, por esse motivo, uma das mais corruptas da história dos Estados Unidos. O grupo istrativo da 1:-"ederal Election Commission (Comissão Eleitoral Federal) recomendou que tanto a cainpanha de Ointon quanto a de Dole fossem obrigadas a devolver as contribuições, mas a comissão plena recusou-se a aceitar o conselho do grupo istrativo, e sua decisão ajuda a garantir que a eleição presidencial do ano 2000 testemunhe mais uma intensificação do recurso ao soft 111oney. Os prováveis candidatos à Presidência de ambos os partidos fL1ndaran1 comitês de atividades políticas próprios pma que as grandes empresas, os sindicatos e os cidadãos ricos possam doar altas quantias para a veiculação de comerciais a set1 favor e contra seus adversários nas eleições primárias ou gerais. Outras democracias, horrorizadas com a força impressionante do dinheiro nas eleições americanas, perguntamse por que não definimos um teto, como elas fazetn, para a quantia que os candidatos podem gastar legalmente em cada campanha eleitoral. A maneira mais eficaz de evitar dinheiro oriundo da política predominante, e de evitar que

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empresas, sindicatos e outros grupos poderosos recebam favores em troca de contribuições, é diminuir a necessidade de dinheiro dos políticos, e a rnaneira mais eficaz de fazer isso é lünitar o que os políticos podem gastar. O Congresso definiu limites de gastos em ·1974, após os escâ11dalos de Watergate. Mas em menos de dois anos, em Buckley versus Valeo1, a Suprema Corte decidiu que tais limites são inconstitucionais porque violam a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que estipula que o Congresso "não pode legislar" de modo que reduza a liberdade de expressão ou associação. Proibir um político, ou qualquer outra pessoa, de gastar o tanto que quiser para expressar suas convicções políticas, segundo a Corte, é restringir sua liberdade de expressão. Regulamentar gastos de campanha teria levantado muitos problemas, mesmo que a Corte tivesse mantido os liffiites aos gastos. Contudo, a experiência das outras democracias mencionadas, que limitam com rit,ridez os gastos de carr1panha, demonstra que tais limites são praticáveis. Muitos estudiosos da Constituição (embora nem todos) acham que o veredicto de Buckley derrubando os limites aos gastos foi um equívoco, e esperam que seja revogado. É otimismo supor, contudo, qtte Buckley será revogado, pelo menos por algum tempo. É mais plausível imaginar que, à medida que a convicção de que tul veredicto foi um erro se difunda, ele será reinterpretado e redt1zido para permitir mais regulamentação. Não obstante, é importante parar para perguntar se e por que Buckley foi um erro, já que muitas das críticas a tal veredicto ignoram os argumentos mais fortes a seu favor. Enq.uanto não identificarmos esses argumentos, não podemos entender por que o veredicto, que parece tão equivocado para tantos acadêmicos e advogados, pareceu tão certo para a Suprema Corte e para tantos outros académicos e advogados que continttam a defendê-lo. 1. Bucklcyversus Valeo, 42.1US.1 (1976).

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De fato, a discordância jurídica e política com relação a Buckley é profunda e importante, porque acharmos que o ·veredicto foi certo ou errado depende de como concebemos o caráter da democracia americana e o papel da Primeira Emenda na definição e no aperfeiçoamento dessa democracia. Nossa resposta a uma pergunta filosófica - qual é a melhor concepção de democracia? - talvez seja decisiva para endossarmos ou rejeitarmos, não só os limites dos gastos de campanha, mas também outros modos de regulamentar o processo eleitoral. O argurnento por vir A maior defesa do veredicto de Buckley, de que os limites aos gastos são inconstitucionais, depende deuma suposição estratégica popular sobre a melhor maneira de realizar e proteger a democracia. Chamo essa suposição (de acordo com o famoso juiz federal 'Learned 1-fand) de "aposta democrática". 'Ela afirma que a melhor proteção para a democracia é um princípio que proíba o governo de limitar ou controlar qualquer tipo de expressão política com a finalidade de proteger a democracia. Portanto, proibe leis que tentem tornar mais justas as eleições limitando quanto os candida-· tos ou os partidos ricos podem gastar. Esse princípio pode parecer paradoxal: como impedir o governo de restringir a expressão política pode aperfeiçoar a democracia, quando o governo acredita que a própria reshição aperfeiçoará a de1nocracia? Mas a aposta presume que as restrições à expressão política provavelmente prejudiquen1 a de1nocracia, mesmo quando são promulgadas com a intenção, real ou fictícia, de aprimorá-la. Foi isso que Hand chamou de aposta "na qual jogamos tudo o que temos". Assim, adota a técnica profilática de proibir o governo de tentar tornar o nosso sistema mais democrático por intermédio daquele dispositivo. En1bora o governo possa regulamentar e restringir a expressão por outros motivos - em defesa da segurança nacio11al,

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por exen1plo, ou de reputação privada-, não pode regulamentá-la nem a restringir por aquele motivo específico. Confonne a Corte disse no caso Buckley, em uma declaração tão explícita da aposta democrática quanto qualquer outra registrada, restringir "a expressão de alguns elementos de nossa sociedade para aumentar a voz relativa de outros é totalmente contrária à Primeira Emenda". Se aceitarmos a aposta democrática, temos de reconhecer esse argumento fortíssimo a favor do veredicto de Buckley. Devemos aceitá-la? Talvez devêssemos, se concebermos a democracia, como muitos teóricos políticos, somente como um arranjo político pensado para fazer valer a vontade da maioria. Mas, se rejeitarmos essa co11cepção .majoritarista de democracia para favorecer uma concepção maL'S ambiciosa, que entecyda a democracia como uma parceria no autogoverno coletivo, na qual todos os cidadãos têm a oportunidade de serem ativos e parceiros iguais, então devemos rejeitá-la. I)evemos adotar, em vez disso, um tt.'Ste mais apurado e n1ais discriminante, en1bora ainda rigoroso, para decidir quando se deve permitir que o governo .regulamente a expressão política em defesa dos interesses da democracia. Tal teste permitiria limites razoáveis nos gastos em campanhas políticas; esclareceria por que Buckley estava errado em princípio, e deve agora ser anulado. Não estou supondo que a liberdade de expressão só tenha valor instrumental, que não a de um meio para um fim mais importante. Pelo contrário, aquela liberdade é, em si, um direito humano fundamental A liberdade de expressão e a democracia não estão vinculadas instrumentalmente, mas de maneira mais profunda, pois a digi1idade que a liberdade de expressão protege é um componente essencial da democracia corretamente concebida Só pode1nos esperar compreender plenamente a liberdade de expressão ou a democracia, ou interpretar adequadamente a Primeira Emenda como parte integrante da Constituição, se interpretarmos esses valores j11ntos, tentando entender o papel que cada um deles tem em ttma explanação completa

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do outro2. A suposição de que as duas idéias estão vinculadas dessa maneira faz-parte de uma prática constitucional americana: tratamos a Constituição como algo que elabora uma forma distinta de democracia e avaliamos a IJrimeira Emenda como algo que contribui para definir essa forma. Evidentemente, a liberdade de expressão também tem outras finalidades. Muita gente presume, como John Stuart Mill, que uma sociedade que adota a estratégia do mercado livre será.mais cficíente na descoberta da verdade, por exemplo, do que uma sociedade que a rejeite ou a qualifique. Mas é a ligação entre a liberdade de expressão e a democracia que tem sido o cerne da jurisprudência da Primeira Emenda. Tentarei atenuar de duas maneiras a abstração deste debate jur:isprudcncial. Em primeiro lugar, descreverei, de saída, a forma geral das diversas propostas que os críticos têm feito para reformar a legíslação eleitoral americana . .A5 propostas servem de ilustração e teste dos prit1cípios sobre os quais discuto e, no fim, podemos analisar como avaliar essas propostas, se Buckley não fosse mais um obstáculo a sua implantação. Embora não seja provável que o Congresso aprove n.enhuma dessas propostas na atual co11juntura política, será revelador examinar como a escolha entre as diversas concepções de democracia que descreverei afeta a possibilidade de desejar, em princípio, reformas desses tipos. Em segundo lugar, no debate a seguir, precisamos perguntar 11ão só qual concepção de democracia, e o papel da liberdade de expressão na proteção da democracia, é superior em termos de moralidade política abstrata, mas quais concepçâo e papel oferecem uma melhor interpretação da prática constitucional e jurídica americana. Assim, ilustrarei e depurarei as afirmações teóricas em uma tentativa de interpretar alguns veredictos da Suprema Corte, inclusive Buckley, à sua luz. 1

' 2. Amplio a afinnação de que a liberdade de e>.pressão e a democrada estão conceitualmente ligadas dessa maneira em Freedoin's L1Jw (Ca.n1bridge, Mass.: Harvard University Press, 1996).

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II. As reformas propostas

Podemos agrupar em quatro categorias as propostas de reforma co11hecidas. 1. Limites de despesas. As despesas gerais de partidos e can-

didatos devem limitar-se a quantias estipuladas durante cada período eleitoral. O teto das despesas deve ser generoso o suficiente para-permitir qtte candidatos e partidos pouco conhecidos alcancem conhecimento público, porém suficientemente baixo para que os candidatos e os partidos sem o a fundos monumentais não sejam eliminados. 2. Contribuições e despesas coordenadas. As contribuições de pessoas físicas a campanhas e partidos políticos devem continuar a ser llinitadas, e as despesas que estejam coordenadas com a campanha de um determinado candidato devem entrar nesse limite. Para esses fins, a definição de coordenação abrange qualquer consulta ou pedido de assessoria em p·ublicidade, pesquisas de opinião e organizações estratégicas, bem como outras partes do pessoal que trabalhe na campanha. O artifício do soft rnoney deve ser eliminado. 3. Despesas índependentes. Pessoas físicas e comitês políticos devem, obviamente, continuar livres para gastar seus próprios fundos em causas políticas. Durante o período eleitoral, porém, cada despesa de pessoa física que mencione um partido político ou um candidato a car"go político de âmbito nacional deve si1jeitar-se a um limite adicional e distinto. Essas despesas, feltas durante o período eleitoral por um comitê ou grupo político que tenha recebido contribuições de pessoa física, devem ser debitadas, no total da contribuição, ao limite global dessa pessoa física. 4. Fundo público condicional para radiodifusões políticas. Deve haver fundos generosos de campanha disponíveis para os candidatos e os partidos, porém somente para aqueles que concordarem em não exibir, durante o período eleitoral

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comerciais comuns de campanha - os comerciais curtos exibidos nos intervalos da programação normal de rá·· dia ou televisão, que se tornaram carro-chefe de nossas eleições. C)s que aceitassem tais fundos teria1n liberdade para transmitir programas mais longos em nome de 11m candidato ou partido durante certo período. Essas transmissões políticas devem ser programas independentes, e não transmitidos durante intervalos comerciais das emissoras, de pelo menos três minutos de duração, nos quais o candidato ou o representante do partido político fala à câmera ou ao microfone durante a Inaior parte do programa. Esses fundos devem ser oferecidos, sujeitos a tal condição, igualmente aos principais partidos, e aos outros partidos e1n proporção fixada pela evidência de apoio público. f--s três primeiras propostas tratam diretamente do papel do dinheiro em nossas eleições, impondo limites a gastos e contribuições de campanha. A quarta proposta vai além, impondo condições pensadas para alterar a forma da mídia política eletrónica. Traça uma linha entre alguns meios de comunicação- televisão e rádio - e os outros, e não pretende apenas reduzir o impacto do di11heiro 11as eleições em geral, mas aprimorar o caráter e a qualidade do debate político, eliminando os comerciais políticos. A quarta proposta é, portanto, mais problemática do que as três primeiras, porq1v: a Primeira Emenda é particularmente hostil às tentativas de regulamentar o teor da expressão pol.{tfca, e pode-se considerar que incentivar os políticos a trocar os com.erciais por argumentos substantivos é uma tentativa de regula1nentar o teor. Embora o teto para as despesas limite a quantidade da comunicação política, é neutro quanto à forma dos cornunicados políticos que as despesas item para 1.ransn1issão. As condições in1postas na última proposta 11ão são neutras nesse sentido. Circunscrevem os meios eletrônicos para uma rest1ição especial - não para proibir totalmente, mas para condicionar a concessão pública- e a

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restrição destina-se a afetar a forma do discurso político, tornando-o mais polémico, embora não para discriminar a fa vor ou contra qualquer partido, atitUde ou convicção política. A última proposta levanta questões da Primeira Emenda que poderiam multo bem ser consideradas graves, mesmo que Buckley fosse anulado.

III. O que é democracia? A democracia está extraordinariamente em alta no mundo inteiro. Todavia há discordância com relação ao sentido da democracia. Quando essas discordâncias atravessam culturas, sempre são monumentais. Alguns lideres declaram, por exemplo, que um Estado com partido único, que só tenha imprensa e tneios de comunicação controlados pelo Estado, cujas eleições sejam formalidades, chega mais perto de realizar o ideal democrático. Mesmo dentro das democracias ocidentais maduras, as discordâncias são consideráveis. Alguns americanos acham que a revisão judicial da legislação, feita pelos tribunais federais, qtte têm o poder de declarar a inconstihtcionalidade de tais leis, solapa a democracia; outros afirmam que a revisão judicial ajuda a aperfeiçoá-la. Americanos e europeus discordam se a representação proporcional, ou o federalismo, ou os diversos tipos de iniciativas dos eleitores tornam o governo representativo mais ou menos democrático. A concordância quase universal de que a democracia é a única forma aceitável de governo oculta discordâncias mais profundas desse caráter. Muitas das discordâncias entre constitucionalistas sobre a compreensão correta da Prirr1eira Emenda, inclusive o argumento sobre a constitucio11alidade dos limites aos gastos de can1panha, são mais bem explicadas como conseqüências dessas discordâncias mais gerais acerca da democracia. Evidentemente, poucos advogados formularam um conceito explícito de democracia~ confiam em uma noção intuitiva da de1nocracia. Mas

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algumas dessas compreensões intuitivas são muito diferentes das outras. A democracia, dizemos todos, significa governo exercido pelo povo, e não por alguma família, classe social, tirano ou general. Mas pode-se entender "governo exercido pelo povo" de duas maneiras radicahnente distintas. Em urna delas - a concepção "majoritarista" - significa o governo exercido pelo maior número de pessoas. Nessa visão majoritarista, o ideal democrático repousa na compatibilidade entre a decisão política e a vontade da maioria, ou plltralidade de opinião. Podemos elaborar diversas versões dessa teoria geral da democracia. Uma delas é a versão populista: o Estado é democrático, segundo esta versão, até o ponto em que o governo aprova as leis ou procura exercer a política que tenha, na época, a aprovação do maior número de cidadãos. Uma versão mais sofisticada da concepção majoritarista, porém, afirma com veemência que a opinião da maioria não conta como sua vontade, a não ser que os cidadãos tenham tido uma oportunidade adequada de se informar e delíberar sobre os assttntos. O Estado é democrático, nessa teoria mais elaborada, quando suas instituições
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()s cidadãos têm dois papéis principais em un1a democracia madura. São, em primeiro lugar, os jt.úzes das competições políticas cujos veredictos, expn.:'Ssos em eleições formais, em plebiscitos ou em outras formas de legislação direta, são normalmente decisivos. A opinião pública" significa as opiniões relevantes dos cidadãos que agem nesse sentido. Os cidadãos também são, porém, participantes das competições políticas que julgam: são candidatos e correligionários, cujos atos ajudam, de diversas maneiras, a dar forma à opinião pública e a decidir o voto dos outros cidadãos. A concepção majoritarista de democracia confere atenção exclusiva ao primeiro desses papéis, Insiste, na versão mais sofisticada que descrevi, q Lte, na medida do possível, as opiniões informadas e reflexivas do maior número de pessoas devem decidir quem será eleito para governar e o que o governo eleito fará. Mas não diz nada mais sobre o papel de cada cidadão e de cada grupo na formação das opiniões alheias. A concepção co-participativa reconhece ambos os papéis, pois presume que em uma verdadeira democracia os cidadãos devem ter 1un papel, como parceiros iguais em um empreendimento coletivo, tanto na formação quanto na constituição da opinião pública. 11

IV. Democracia e liberdade de expressão

A. A liberdade de expressão e o ideal niajo1itarista A liberdade de expressão tem papel evidente na con cepção majoritarista. Essa concepção de democracia exige -' que se dê oportunidade aos cidadãos de se informar da maneira mais completa possível e deliberar, individual e coletivamente, acerca de suas escolhas, e é um critério estratégico vigoroso que a melhor maneira de proporcionar essa oportunidade seja permitir que qualquer pessoa que deseje se dirigir ao público o faça, da maneira e na duração que pretender, por mais impopular ou indigna que o governo ou os

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outros cidadãos julgue.1n sua mensagem. Obviamente, essa estratégia não pode ser absoluta. A liberdade de expressão precisa, às ·vezes, curvar-se a outros valores, entre eles a segurança e, talvez, um interesse particular na reputação. Em tais casos, as leis que proíbem ou regulam a expressão podem ter o resultado incidental de influir no veredicto público sobre as autoridades ou sua política. Mas esse é um efeito colateral lastimável das restrições adotadas por razões bem independentes daquele efeito. As leis que pretendem aprimorar a democracia, contudo, assim como as diversas propostas de_reforma eleitoral que descrevi anteriormente, têm como objetivo deliberado mudar de alguma forma a opinião pública. Não pretendem que o público chegue a um veredicto geral diferente e1n nenhuma eleição em especial. Porém, já que atacam o que consideram defeitos na formação da opinião pública, pretendem que o teor dela seja diferente do que seria de outra forma. ()s reforma.dores querem li:mitar os gastos de campanha, por exe·mplo, porque acha1n que os candidatos e os grupos ricos agora têm poder demais para moldar a opinião pública à sua maneira. Presumem, portanto, que limitar o que os ricos podem gastar faria diferença pelo menos no que alguns membros do povo venham a acreditar ou desejar. Tais limites talvez não favoreçam a perspectiva de um partido ou de um polílico·. poderian1 muito bem ser, na linguagem dos constitucionalistas, neutros quanto ao ponto de vista. Mas certamente alterariam a opinião pública. Essa é sua intenção, afinal. Assim, a proposta levanta a seguinte questão para o modelo majoritarista: será compatível com essa concepção de democracia permitir restrições legais que diminuam o volume total de discursos eleitorais, quando tais reshições tiverem, como meta, que a opirúão pública seja diferente da que seria sem tais restrições? A concepção majoritarista põe à prova qualquer estrutura eleitoral perguntando se tal estrutura revela o que a maioria dos cidadãos escolheria, depois de ter a oportuni··

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dade mais ampla possível de se informar e refletir. Para tornar esse teste viáveL porém, precisamos especificar mais detalhadamente quais condições proporcionam essa oportunidade mais_ampla possível. Qual estrutura de debates e discussões públicas seria ideal para essa finalidade? Alguma estrutura específica se aproxhna de realizar tal ideal? Poderíamos analisar uma resposta orientada para os resultados: as condições ideais, poderíamos dizer, são as que tornam mais provável que os cidadãos votem segundo seus interesses "verdadeiros" ou" autênticos". Essa sugestão pode ter algum sentido se limitarmos nossa atenção aos interesses estritamente econômicos dos cidadãos. Poderíamos pensar que certo imposto ou outras políticas eco11ômicas real.mente agiriam contra os interesses econômicos da maioria dos cidadãos, por. exemplo, embora saiba1nos que os políticos com dinheiro suficiente para gastar com publicidade possam persuadi-los do contrário, e poderíamos analisar, de maneira inteligível, quais formas de legislação eleitoral melhor protegeriam contra esse logro. É di6'Lil prever o que indicaria um estudo orientado para os resultados. Poderíamos decidir que um programa que desse tempo a todos os partidos e candidatos para defender suas causas daria aos cidadãos a melhor possibilidade de ch.egar às conclusões certas. Ou poderíamos chegar a alguma conclusão mais surpreendente e nada atraente -por exemplo, um programa que in1pedisse totalmente os candidatos ricos de falar ofereceria a melhor proteção. Não precisamos procurar tais possibilidades, porém, porque, de qualquer maneira, uma estratégia orientada para os resultados não conte1nplaria os interesses e as convicções qt1e os cidadãos tivessem além de seus interesses estritamente económicos - não poderia considerar suas convicções acerca da justiça econômica, das relações internacionais ou do aborto, por exemplo. Não faz sentido, pois, pensar que existe um fato fundamental no qual se baseiam as convicções morais, sociais ou políticas "verdadeiras" ou "autênticas" de detennü1ado cidadão, fato que possa ser determinado sem que ele responda a uma

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pergunta ou vote. Já que uma consulta ou votação dessas tem de acontecer após um debate público, mesmo que mínimo, não podemos defi11ir qual estruhtra de debate terá mais probabilidades de produzir respostas "verdadeiras" sem fazer uma petição de princípio favorável a uma estrutura como essa. Precisamos, então, de outra estratégia para refinar o teste que a concepção majoritarista apresenta, e precisamos procmá-la em uma combinação de duas áreas: em primeiro lugar, hipóteses relativas às condições da boa argumentação em geral e, em segundo lugar, hipóteses que subjazem a própria concepção majo1jtarista de democracia. Sabemos, por experiência, primeiro, que certas práticas e ambientes intelectuais têm mais probabilidade do que outros de produzir uma boa argumentação sobre uma ampla gama de assuntos. Cientistas, historiadores e pessoas comuns que se deparem com decisões práticas se dão melhor, por exemplo, quando baseiam suas conclusões en1 um conjunto mais amplo, e não , de dados pertinentes, e quando já analisaram e testaram taís conclusões no decorrer do tempo, em vez de adotá-las precipitadamente. Não temos motivo para não supor que essas condições gerais da boa argumentação se apliquem tanto aos juízos políticos quanto a tudo o mais. Assim, a concepção majoritcirista pode endossar qualquer intervenção do governo no processo político - subsídios para a p·ublicação de opiniões não financiadas ou impopulares, por exemplo - que proporcione ao público o o a informações, argumentos ou exortações que não teria de outra forma. Pode parecer tentador utilizar um argumento semelhante a favor dos limites de despesas. Poderíamos argumentar que o povo raciocil18.Tá melhor se não ouvir maís de u1n lado do que de qualquer outro. Mas tal argumento, se refletirmos n1elhor, é muito fraco. É verdade que podemos imaginar circunstâncias r,as quais limitar a publicidade de um candidato rico evitaria que os eleitores fossem enganados de alguma forma. Tais lhnites poderiam impedir um candi-

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dato bem financiado de divulgar propagandas mentirosas em tantas áreas que os adversários com menos recursos não conseguissem responder a todas, por exemplo. lVfas podemos imaginar com facilidade circunstâncias nas quais esses limites impediriam que alguns eleitores recebessem informações às quais dessem valor. Até a mensagem política repetida incessantemente na televisão é v:lsta, a cada repetição, pelo menos por alguém que ainda não a tenha visto, e tal mensage1n poderia parecer de valor para esse eleitor. Não podemos dizer, portanto, em geral e antecipadamente, que reduzir a quantidade total de ir1formações políticas para igualar mais a influência de todos os candidatos aumentaria a capacidade dos eleitores de pensar com clareza. De qualquer forma, não poderíamos apoiar tal sugestão, como não .podemos apoiar a idéia de que quanto mais informações os eleitores tiverem melhor será o processo político, apelando-se a princípios gerais sobre os bons métodos de reflexão. Nenhum cientista, historiador ou responsável por decisões práticas evitaria a leitura de todo o material favorável a uma hipótese ou decisão só porque h.á mais literatura disponível a favor de tal hipótese ou decisão do que a favor de suas rivais, mesmo que soubéssemos que o grupo que produziu mais textos fosse, por algum motivo irrelevante, mais bem financiado. A pessoa pode considerar este últilno fato ao avaliar o que lê, mas não limita1ia suas leituras por esse motivo. Con fiaria em seus próprios critérios. É verdade que, em alguns contextos - argumentações legais apelatórias e debates formais, por exemplo -, cada lado tem direito ao mesmo tempo. Mas esses contextos são especiais de duas maneiras pertinentes. Em pri1neiro lugar, o tempo total reservado para a argumentação apelatória ou o debate formal é fixo, portanto o tempo ocupado por um lado é, necessariamente, perdido pelo outro. Em comparação, embora por motivos práticos o tempo que cada eleitor tem dlsponível para a política é limitado, esse limite não é forn1al nem rígido, e permitir que os candidatos ricos usem

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os meios de comunicação com maior freqüência não significa que os eleitores sejam incapazes de prestar tanta atenção para q·ualquer propaganda que um candidato mais pobre possa oferecer quanto poderia se as despesas fossem as mesmas. Em segundo lugar, os regulamentos de tempo igualmente dividido 11as argumentações legais e nos debates formais são justificados principalmente por preocupações independentes sobre justiça para as partes ou participantes: é justo para os participantes que nenhum dos lados tenha maior oportunidade de expor suas idéias do que qualquer outro. Essa preocupação com a j·ustiça é distinta de qualquer preocupação com a precisão ou a boa argumentação. Ela é reconhecida pela conc~·pção co-participativa da democracía, mas não pela concepção majoritarista, cujas implicações estamos agora analísando. . O segundo conjunto de idéias nas quais a concepção majoritarista pode inspirar-separa definir as condições ideais da argumentação política é a própria teoria democrática. A afirmação democrática de que o povo deve ser livre para julgar por si mes1no, sem que nenb_um.a autoridade ou casta pense por ele, significa que os cidadãos devem ter tal li.berda.de como indívíd"Ltos. Não é compatível com esse pressuposto permitir que o legislativo, mesmo que represente a vontade da maioria, imponh.a a cada cidadão o que precisa considerar ao pensar em como votm. É incoerente o legislativo impedir que os cidadãos assistam a tantas peças pt1blicitárias de determinado canàidato quanto tal candidato estiver disposto e for capaz de oferecer. O veredicto de Buckley exprimiu o assunto, novamente, com a clareza qtte o transforma ern nítido endosso da concepção majoritarista. ''Na sociedade livre regulamentada pela nossa Constituição, não é o governo, mas o povo- cada cidadão e cada candidah1, e, coletivame11te, na forma de associações e comitês políticos-q1.1e deve deter o controle sobre a quantidade e a extensão dos debates sobre os assuntos públicos em campanhas políticas." Pela concepção majo1itarista, o único argume11to a favor da li1nitação dos debates políticos é o pa ··

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ternalista e inaceitável de que as pessoas pensarão com rnais clareza se o governo limitar o que ouvem. (Essa suposição não é necessária na concepção co-participativa, porque essa concepção justifica os limites aos gastos apelando para uma consideração independente pela eqüidade entre os contendores políticos.) Assim, nenhum dos dois fundamentos que o proponente da concepção majoritarista poderia contemplar para aceitar limites aos gastos- suposições gerais sobre as condições da boa argumentação e presunções gerais embutidas· na própria concepção majoritadsta- oferece um argumento convincente a favor de tais limites. Pelo contrário, juntos, configuram uma defesa potente - e alguns podem achar também irresistível - da aposta democrática que descrevi anteriormente, a aposta que serviu de premissa para o veredicto do proce<sso Buckley.

B. A concepção co~parlicipativa: as três dimensões da democracia A concepção majoritarist8. de democracia é benquistaé a que recebe com mais freqüência o endosso de cientistas e filósofos políticos- e não é, portanto, de surpreender que muitos advogados e juízes con.siderem correto o veredicto do processo Buckley contra os limites aos gastos. A impressão, igualmente difundida, de que o veredicto de Buckley foi um erro indica que muitos 01.ttros advogados e leigos rejeitam essa concepção de democracia, pelo menos intuitivamente. Em outro local afirmei que a concepção majoritarista é radicalmente deficiente 3 • Quase todos pensamos que a democracia é uma forma de governo valiosa, ou mesmo índi~pensável. Achamos que vale a pena lutar, e talvez até morrer, para protegê-la. Precisamos de uma concepção de democracia que se encaixe nessa noção de valor da democracia: precisamos de ttma noção que nos mostre o que há 3. Ver a introdução de Frecdont's Law.

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de tão bo1n na democracia. A concepção majoritari.sta não faz isso, porque não há nada que possua valor incrente em um processo que permite a um grande nümero de pessoas impor sua vontade a um número menor. O governo da maioria não é j11sto nem valioso em si. Só é justo e valioso quando atende a determinadas condições, entre elas as exigências de igualdade entre os participantes do processo político, por meio do qual se definirá a maioria. Por conseguinte, devemos agora explorar a concepção rival, a co-participativa consociativa de democracia, que faz questão de reconhecer essas condições como essencjais à verdadeira democracia. Na concepção co-participativa, as instituições são democráticas até o ponto em que permitem aos cidadãos se governarem a si mesmos, coletivamente, por meio de uma parceria, na qual cada um é membro ativo e igual. Essa meta, conforme iti, é muito ãbstrata, e seria concebida, mais ou menos bem, por meio de grupos de instituições bem diferentes. A democracia britânica tem uma estruhlra diferente da democracia americana, e ambas têm estruturas diferentes da democracia sul-africana. Mas todas garantem alguma medida de democracia co-participativa, embora nenhuma a garanta totalmente. Não testamos se uma sociedade teve êxito na crlação da democracia co-participativa comparando suas instituições com um padrão único, como o que elaborei para ilustrar a construção majoritarista, mas com um conjunto de ideais mais complexos, que compreenda diversas ditnensõt:.-s. A pr:imtira dimensão da democracia co-participativa é a soberania popular, que é uma relação entre o público como um todo e as diversas autoridades que co1npõem seu governo. A democracia co-participativa exige que o povo, em vez das autoridades, seja senhor. Os slogans revolucionários que exigiam igualdade nos primórdios da democracia moderna no século XVIlI tinham em mente esse tipo de igualdade: o inimigo da democracia era, então, o privilégio por hera11ça ou castas. A concepção majoritarista também exige a soberania, mas não a define como uma relação e11tre o

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povo em geral e suas autoridades, mas co1no o poder do maior número de cidadãos de finalmente fazer prevalecer sua vontade. A segunda dimensão da democracia co-participativa é a igualdade de cidadania. Na democracia, os cidadãos, embora coletivamente soberanos, também são, como indivíduos, participantes das contendas que julgam coletivamente. A eqüidade entre os cidadãos exige que partícip<-->m con10 igi.1ais. A importância distinta dessa dimensão da igualdade só se tomott evidente mais tarde na história da democracia, quando já não era mais controverso que o povo, em conjunto, e não um monarca ou déspota, tivesse o poder supremo de governar, não obstante, continuava sem clareza sobre como o poder coletivo poderia ser distribuído individualmente entre os cidadãos - quem deveria ter autorização para votar e falar nos diversos processos pelos quais se tomarr1 as decisões políticas coletivas e se formam a opinião e a cultura públicas. Agora há acordo entre as de1nocracias maduras que, em princípio, todos os cidadãos adultos, com pül.tqttíssitnas exceções, devem ter igual poder de voto. A concepção majoritarista de democracia só faz questão do sufrágio universal porque, assim, as eleições podem ter a esperança de avaliar a vontade do maior número de cidadãos. A concepção co-participativa também fez questão do sufrágio universal, mas exige que os cidadãos sejam igi.tais, e não só como juízes dos processos políticos, porém também con10 participantes deles. Isso não significa que cada cidadão precise exercer a mesma influência sobre as idéias dos outros cidadãos1. É inevitável e desejável que alguns cidadãos exerçan1 maior influê11cia porqti.e sua voz é especialmente convincente ou comovente, ou porque são alvo de especial ad1nira.;ão, ou dedicaram a vida à política e ao serviço público, ou esco_lheram investir ou seguir carreira no jornalismo. A influência especial conquistada dessas maneiras não é incom4. Neste ponto e sobre observações gerais acerca da igualdade de influência como meta de1nocrática, ver Capitulo 4.

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patível com a noção co-participativa de democracias. (Pelo contrário, a democracia não teria êxito em sua terceira dimensão, que apresento no próximo parágrafo, a não ser que incentivasse a influência especial pelo menos em alguma dessas bases.) Mas a democracia co-participativa sofre danos quando alguns grupos de cidadãos não têm oportunidade nenhttma - ou a têm bem reduzida - de defender suas convicções porque não têm fundos para competir com doadores ricos e poderosos. Ninguém pode, plausivelmente, considerar··se parceiro em uma empreitada de auto-governo quando é completamente alijado do debate político por não poder custear um preço altíssimo de issão. A terceira dimensão da democracia é o discurso democrático. A ação coletiva genuína requer interação. Se o povo pretende governar coletivamente, de manei,ra que torne cada cidadão um parceiro da empreitada política, deve deliberar, como indivíduos, antes de agir coletivamente, e a deliberacão deve concentrar-se nos motivos a favor e contra essa a"ção coletiva, para qt1e os cidadãos que perderem em um assunto possam ficar satisfeitos por terem tido a oportunidade de convencer os outros e não o conseguiram, e não apenas porque foram numericamente derrotados. A democracia não pode oferecer uma forma genuína de autogoverno se os cidadãos não puderem falar à comunidade e1n uma estrutura e em um ambiente que incentive a atenção aos méritos do que dizem. Se o discurso público for mutilado pela censura, ou cair em urna briga de gritos e calúnias, na qual cada lado só tenta distorcer o que os outros dizem ou

5. Em uma sociedade de riquezas e recursos muito desiguais, alguns cidadãos só terão oportunidades muito maiures de ocupar as posições de elevada influência porque são mais ricos, e isso é, de fato, um inSulto à igualdade dos ddadãos. Porém, não se poderia pôr fim a essa injustiça 1nais g€ral a não ser por meio de luna vasta redistdbuição das rí<juezas e do que as riquezas trazem consigo. A i11justiça mais específica que só traz influênda aos ricos porque podem pagar contríbuições maiores aos políticos poderia terminar ou ser reduzida por meio do simples expediente dos limites aos gastos- Austin versu.s Michigan Chan1ber of C01nmerce, 494 U.S. 652, 679 (1990).

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gritar mais alto do que os outros, então não há governo coletivo, nenhum tipo de empreendimento coletivo, mas somente a contagem de votos como uma espécie de guerra_ Essa curta teoria da democracia co-participativa é uma idealização tripla,. obviamente. Nenhuma nação conseguiu alcançar o perfeito controle das autoridades pelos cidadãos, a perfeita ígualdade política entre eles ou um discurso político imaculado pela irracionalidade. Os Estados Unidos não têm soberania popular total pois nosso governo tem grandes poderes para manter obscuro o que não quer que saibamos. Não temos igualdade total de cidadania, pois o cünheiro, que é injustamente distribuído, é importante demais na política. Não temos nem um discurso democrático respeitável: nossa política está mais próxima da guerra de que falei do que de qualquer argumentação cívica. Mas precisamos ter em mente o ideal triplo ao julgar, como devemos fazer agora, que papel se poderia atribuir de maneira sensata à Primeira Emenda no aprimoramento da democracia na concepção participativa, para aproximá-la pelo menos t1m pouco da forma pura inatingível dessa forma de governo.

C. A liberdade de expressão na parceria democrática Cada uma das três dimensões da democracia, na concepção co-participativa, sofre influência dos arranjos constitucionais e jurídicos que faz para incentivar e proteger o discurso político. A soberania popttlar exige que o povo, e não as autoridades, tenha poder supremo de governo. Mas se for permitido às autoridades ptmir a crítica a suas decisões como "rebelião", ou proibir a publicação de informações que possam levar a tal crítica, ou extinguir novos partidos ou jornais que possam expor seus erros ou aimes, então o povo não está no poder, ou pelo menos não está totalmente no poder. Assim, uma estrutura constitucional cj_ue garanta a liberdade de expressão contra a censura oficial protege os cidadãos en1 seu papel democrático de soberanos.

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A liberdade de expressão também ajuda a proteger a igualdade dos cidadãos. É essencial à democracia co-participativa que os cidadãos sejam livres, em princípio, para expressar qualquer opinião relevante que tenham, por mais que tais opiniões sejam rejeitadas, odiadas ou temidas pelos outros cidadãos. Grande parte da pressão a favor da censura nas democracias contemporâneas não é gerada por tentativa oficial de ocultar segredos do povo, mas pelo desejo de uma maioria de cidadãos de silenciar aqueles cuja opinião desprezam. Essa é uma aspiração de grupos que querem, por exemplo, leis que evitem marchas neonazistas ou desfiles racistas com os participantes vestidos com lençóis brancos. Mas tais leis desfiguram a democracia, pois, se uma maioria de cidadãos tiver o poder de recusar a um concidadão o direito de expressar sempre que considerar sua5 idéias perigosas ou agressivas, então ele não é um igual na competição arsiumentativa pelo poder. Devemos permitir a cada cidadão, que pretendemos ter a obrigação de cumprir nossas leis, uma voz igual no processo que produz tais leis, mesmo quando justamente detestamos suas convicções, ou então perdemos o direito de lhes impor nossas leis. A liberdade de expressão impõe esse prinC'Ípio e, assim, protege a igualdade dos cidadãos. Há que·m afirme que a expressão de opiniões pejorativas com relação a grupos raciais, étnicos ou sexuais prejudica a igualdade dos cidadãos porqtte, além de ofender os cidadãos que são seus alvos, também prejudica sua própria capacidade de participar da política como iguais. Diz-se que o discurso racista, por exemplo, "cala" as minorias raciais que são seus alvos. A força empírica dessa ampla generalização é incerta: não está clara a extensão do impacto que tal discurso tem e sobre quem. Mas, de qualquer forma, seria um grave mal-entendido da igualdade dos cidadãos, e da concepção geral de democracia co-participativa, supor que permitir a livre circulação até de opiniões políticas psicologicamente
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protegidos pela censura, mesmo contra as crenças, convicções ou opiniões que dificultem para eles conquistar atenção para suas opiniões em um concurso político justo, 011 que prejudiquem sua própria opinião sobre si mesmos. Não seria possível generalizar um direito a tal proteção - um ctistão fundamentalista, por exemplo, não poderia ser protegido de tal forma - se1n proibir completamente o discurso e a expressão de opiniões. Precisamos atacar coletiva1nente o preconceito e a predisposição, mas não assim. A igualdade dos cidadãos requer, porém, que os diver·· sos grupos de cidadãos não fiquem em desvantagem, na tentativa de conquistar a atenção e o respeito por suas opiniões, por uma circunstância, como a riqueza, tão remota da substância da opinião ou argumentação, ou das fontes legítimas de influên.cia. A experiência comprovou - e nunca com tanta ênfase quanto nas eleições recentes - que o êxito de qualquer grupo político está tão diretamente vinculado à extensão de seus gastos, em especial na televisão e no rádio, que esse fator anula os outros na explicação do êxito político. Esse é o âmago do argumento democrático a favor dos limites de gastos em campanhas políticas. A ligação entre a liberdade de expressão e a terceira dimensão da democracia - o discurso democrático - também é complexa. Algumas leis que regulamentassem o discurso, que o governo poderia ter a tentação de estabelecer, inclusive leis limitando os poderes de investigação da imprensa, prejudicariam o discurso democrático, pois lhe negariam informações e diversidade. Mas a degradação de nosso discurso político por meio de comerciais políticos grotescos, que não fazem o debate e não vão além de jingles e slogans repetitivos, também compromete o caráter argumentativo do discurso, e certas formas de regulamentação indireta desse discurso, como a última proposta de minha lista, poderiam ajudar a impedir esses danos. Assim, a ligação entre uma garantia constitucional à liberdade de expressão e a qualidade de uma democracia coparticipativa, em suas diversas dimensões, é complicada e

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delicada. Se estivéssemos elaborando essa garantia como parte de uma nova Constituição, precisaríamos de escolher entre três estratégias: a aposta de1nocráhca que descrevi anteriormente, uma abordagem "balanceadora" que permitisse regulamentações do discurso político que prejudicariam a democracia em uma de suas dimensões, mas a aperfeiçoarian1

etn outra, quando o efeito combinado fosse pensado para aprimorar a democracia no todo, ou um método mais minucioso que combinasse elementos de ambas as estratégias. Deveríamos permitir uma abordagem balanceadora que

permitisse a criação de leis que enfraquecessem uma dimensão da democracia, quando essas leis fossem elaboradas para proporcionar um aprimoramento geral da democracia? A defesa desse balanço poderia parecer, no abstrato, uma defesa forte. A garantia da liberdade de expressão não pode, em hipótese alguma, ser absoluta: IJ-âo podemos proibir leis razoáveis que sejam necessárias pma proteger a segurança nacional ou, talvez, reputações privadas. Ademais, seria mais provável que apoiássemos legislações por motivos menos prementes: talvez permitíssemos restrições de "hora e local", co1no as que proíbem caminhões equipados com alto-falantes de serem utilizados à noite. Se restrições como essas são aceitáveis, pois têm finalidade útil e não prejudicam a democracia, então por que não devemos abrir exceções para outras leis que realni.ente sirvam de aprimoramento geral para a democracia? Mas há d11as respostas fortes a esse argumento simples. Em primeiro lugar, as diversas dimensões da deinocracia Tião podem reduzir-se a ·uma meta prevalecente, q11c per1nita violações a uma dimensão em troca de ganhos gerais. A igualdade dos cidadãos, em especial, é uma questão de direito individual, e não poderiamas j11stificar as violações a esse direito - censurando os racistas com a justificativa de que isso melhoraria o discurso democrático, por exemplo por intermédio de qualquer cálculo agregatório. F.m segundo lugar, qualq11er exceção desse tipo estaria especialmente aberta a abusos: haveria o constante risco de que o governo tentasse aniquilar partidos novos e barulhentos, ou críticos

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poderosos, em nome do discurso democrático ou da igualdade dos cidadãos, como têm feito os governos totalitários em outros lugares. O Congresso ou um legislativo estadual poderia desqualificar um partido cuja mensagem declarasse perigosa para a soberania popular por ser confusa, por exemplo. Esses temores justificam a rejeição de uma estratégia de equilíbrio. Devemos, então, aceitar a aposta democrática? Os riscos que acabo de descrever $ão tão grandes que deveríamos insistir que, embora o governo possa regulamentar a expressão política por inúmeras razões prementes, não possa fazê-lo nunca para, segundo seu julgamento, aprimorar a própria democracia? Nossa ConstituiÇãe, poderiamas dizer, deve nos impingir o critério profilático de que a melhor maneira de exercer a democracia, a lon.go prazo, é uma lei que proíba ao governo qualquer poder de tentar aprimorá-la, de vez em quand_o, por meio da restrição à liberdade das pessoas de dizerein o que quiserem quando e com que freqüência lhes aprouver. O juiz Scalia empregou esse argumento cm uma linguagem caracteristicamente vívida em 1990. Ele referiu-se à idéia de que "discurso demais é um mal que a maioria democrática pode proscrever", e declarou que essa idéia "é incompatível com a verdade absolutamente fundamental da lJrimeira Emenda: que não se pode confiar no governo para assegurar, por intermédio da censura, a 'justiça' do debate po1ítico"6. Se aceitássemos essa cautela, faríamos com que a aposta democrática fizesse parte de nosso direito constitucional. Esse argumento a favor da aposta democrática tem duas partes. A primeira é um diagnóstico dos riscos: que a maior ameaça à democracia, mesmo hoje em dia, está no desejo do governo de se proteger e retirar dos cidadãos sua soberania democrática, filtrando e escolhendo o que o povo pode ver, ler ou aprender, e tentando justificar esse controle ilegítimo afirmando, como muitas tiranias de fato afirmam, que esse 6. Austin versus Michigan Chamberaf Cammerce, 494 U.S. 652, 679 (1990).

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controle é necessário para proteger a democracia em alguma outra dimensão. A segunda parte é uma máxima de estratégia: presume que a melhor proteção contra essa ameaça está na superdose profilática, isto é, em uma doutrina que proíbe 0 governo de apelar para esse tipo de justificativa a fim de restringir o discurso, mesmo quando a legítimidade do apelo pareça óbvia. Porém, embora a história apóie tmto a plau.stbilidade desse temor quanto a sensatez de tal estratégia, não poden1os mais nos dar o luxo de ignorar os riscos opostos principalmente nesta era eletrónica - de um discurso político completamente desregulamentado. Precisamos comparar 0 risco de uma garantia constitucional menos rígida permitir que um governo engenhoso oculte do povo informações e discussões que deveria divulgar, mesmo que os tribunais estejam vigilantes para evitar tal abuso, com o risco adversário de uma proteção mais rígida pennitir à riqueza e aos privilégios um poder flagrantemente antidernocrâtico, e permitir que o discurso político se tome tão depreciado que perca completamente seu caráter argumentativo. Os sinais desse desgaste estão agora óbvios demais para que os deixemos de lado: temos tanto uma paródia da democracia quanto a própria democracia. Nas eleições de 1996 e 1998, os gastos políticos subiram a montantes anteriormente inacreditáveis, e os políticos de todos os i1íveis, inclusive o presidente e o vice-preside11te, foram obrigadoS a se humilhar perante doadores ricos. Os políticos continuam a implacável e exaustiva caça ao dinheiro, mesmo enquanto requerem leis que a tomariam desnecessária. Para muitos políticos, a situação é llm clássico dilema dos prisioneiros. Todos preferem que os gastos sejam limitados, mas, se não o forem, todos precisam lutar para levantar e gastar o máximo possível. Os pretendentes mais pobres são expulsos do campo e1n todos os níveis, e os grupos que representam convicções malvistas pelos ricos não conseguem nem começar a conquistar amplo apoio político. As autoridades eleitas devem iniciar a caça ao dinheiro na manhã seguinte à eleição, e o esforço intenso e contínuo devora o tempo que tê1n para

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os assuntos públicos. Os fundos que esses políticos levantam são gastos sob a orientação de institutos de pesquisa de opirúão e consultores que não têm interesse em prinópios ou po-

líticas, e cuja capacidade consiste somente na sedução dos consrunidorcs por meio de repetição, jingles e frases de efeito. A conseqüência disso é o discurso político mais degradado e negativo do mundo democrático. A participação pública na política, mesmo que avaliada pelo número de cid.adãos que se dão o trabalho de ·votar, caiu abaixo do nível no qual podemos declarar, de cara limpa, que estamos nos governando. O público atribui sua própria alienação ao processo em si. Declara q·ue o poder do dinheiro na política o tornou cético e que a prostituição da política na televisão lhe provo-

ca náuseas. A superdose profilática da aposta democrática agora é cara demais na genuína democracia. Atualmente é tolice, e não cauteli:i.; cegueira, e não sensatez. Assim, temos fortes fundamentos para tentar elaborar uma estratégia de proteção ao discurso político que tenha certa flexibilidade, mas não os riscos da estratégia do balanço. A estratégia "minuciosa" (como a denon1inarei) reconhece esse perigo e proíbe qualquer legislação do discurso qtte prejudique perceptivelmente a soberania dos cidadãos ou a igualdade entre eles. Não permite q·ue o governo comprometa a soberania popular ao proibir a imprensa de debater a vida sexual das at1toridades, por exemplo, embora fosse bem plausível que a terceira dimensão da democracia - o discurso democrático - se aprimorasse com tal restrição. Rejeita, por ser incompatível com a igualdade dos cidadãos, o argumento que mencionei de que se deva proibir o discurso racista ou machista para evitar que se "silenciem" os grupos minoritários ou as mulheres, ou para aperfeiçoar o caráter do discurso político7 • Mas a estratégia minuciosa permite regulamentações do discurso político que aprimorem alguma dimensão da de7. Discuti esse assunto amplamente em F1·eedon1's La;.11 çaps. 9 e 10. 1

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mocracia quando o defeito que pretendem reparar é substancial e quando a restrição não provocar nenhum dano genuíno à soberania dos cidadãos ou à igualdade entre eles. Assim, permite tetos de gastos em campanha, quando possibilitarem reparar desib'l.laldades significativas entre cidadãos na política, contanto que os tetos sejam suficientemente altos para não amortecer a crítica ao governo, e que não se crie nenhuma desigualdade nova por excluir partidos ou candidatos desconhecidos. V. O histórico jurídico

A. O enquadramento da questão Examinei a base filosófica da "aposta démocrática" na qual a Suprema Corte fundamentou o veredicto do processo Buckley. Essa estratégia profilática flui nahrralmente da concepçâo majoritarista que assume estar o centro nervoso da democracia no governo, segundo a vontade informada e reflexiva da maioria. Alguns críticos de Buckley dizem que o veredicto representa um retomo à mentalidade de Lochner 8 que levou a Suprema Corte a rejeitar leis sociais e econômicas progressistas fundamentando-se no direito de as pessoas usarem suas propriedades e gastarem seu dinheiro conforme lhes aprou·ver. Mas a analogia com Lochner confunde a verdadeira atração da interpretação profilática, que não está na opinião, quase universalmente rejeitada, de que as pessoas que têm dinheiro devem estar sempre livres para gastar como lhes aprouver, mas na idéia muito mais aceita de que a demoCl'acia significa o governo segundo a vontade da maioria. Se a democracia só tiver essa única dimensão, então se pode julgar que a aposta democrática é uma boa aposta. S. Lachner versus Nova York, 198 U.S. 45 (1905) (lei notável que impô~ um teto ao nümero de horas que o patrão poderia exigir que o empregado trabalhasse).

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A concepção majoritarista não é, contudo, a única concepção existente de democracia. A concepção co-participativa é uma alternativa mais atraente: essa concepção ofe·· rece pelo menos três dimensões pelas quais a democracia deve ser testada, e ela não recomenda a aposta democrática, porém a interpretação mais discrllninadora da liberdade de expressão que descrevi. Se estivéssemos elaborando uma nova Constituição, da estaca zero, teriamas fortes motivos para criá~la com a democracia co-partidpativa cm mente e para rascunhar uma proteção discriminadora à liberdade de expressão. Mas não estamos criando uma nova Constituição. Estamos tentando interpretar a Constituição que temos, e a história das práticas e da jurisprudência dela oriunda. Devemos, então, perguntar: qual concepção de democracia oferece uma melhor interpretação de nossa estrutura e prática constitucionais? Em outro lugar, argumentei que a concepção co-participativa a oferece, pois explica, embora a concepção majoritarista não consiga fazê-lo, as cláusulas constitucionais de proteção dos direitos individuais contra a maioria democrática 9 • É verdade que se poderiam explicar alguns desses direitos como necessários para criar e proteger até mesmo uma democracia majoritarista10. Se interpretássemos que a Primeira Emenda compreende a aposta democrática, então poderíamos tratar o direito dos cidadãos à liberdade de expressão como o direito de proteger a democracia majoritarista, apesar do fato de limitar o que a maioria democrática pode fazer. Mas a Constituição contém direitos individuais - como o direito de proteção igualitária das leis conforme os tribunais vêm interpretando- que não se reconciliam com a concepção majoritarista de democracia dessa maneira. Seria bom, porém, neste momento, enquadrar nossa questão interpretativa de maneira mais estrita. Devemos nos 9. Ver a introdu~ão de Dworkin, Freedom's Law. 10. Como John Hart Ely argumenta em Democracy and Distrust: A Theo1y of]udicial Rl.'"Jieu' (Can1bridge, Mass.: Harvard University Press, 1980).

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limitar à jurisprudência da Primeira Emenda e distinguir en-

tre ac; duas interpretações da cláusula da liberdade de expressão. A primeira é uma interpretação profilática que tem con10 modelo a aposta democrática. Declara que o discurso político não pode jamais ser limitado ou regulamentado em nome da democracia. A segunda é uma interpretação mais flexível, oriunda da concepção co-participativa. Permite a regulamentação da liberdade de expressão que aumente a

igualdade entre os cidadãos, contanto q11e observe os padrões rigorosos da estratégia discriminadora que descrevi. Qual das duas interpretações parece explicar melhor o que a Constituição diz ou o que os tribunais têm feito com relação à liberdade de expressão?

B. 1exto e retórica O texto da Constituição oferece pouca ajuda na escolha eritre essas duas interpretações. A Primeira Emenda estipula que "O Congresso não legislará ... cerceando a liberdade de expressão". É possível ler essa linguagem de maneira absolutista, interpretando-a como uma proibição de legislação sobre a expressão por qualquer motivo. :Porém, tanto a aposta de1nocrática quanto a estratégia discriminadora rejeita essa interpretação absoh1tista, bem como quase todos os estudiosos e juízes, e o texto não oferece orientação adicional quanto à escolha entre essas duas interpretações. Se o texto permite a legislação do discurso para proteger a set:,'1.lrança nacional ou a paz e a tranqüilidade do próximo, então também permite, apenas por uma questão de ví11culos de lii1guagem, a regulamentação para proteger ou aperfeiçoar a den1ocracia. A retórica jurídica também não é decisiva em nenhuma das duas direções. A simples declaração, em Buckley, de que a preocupação com a igualdade & "alheia" à Primeira Emenda é, conforme eu disse, claro endosso da aposta democrática. Mas é possível encontrar declarações ainda mais

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conhecidas que também endossam claramente a estratégia discriminadora adversária. Uma das principais é a fan1osa declaração do juiz Brandeis em sua opinião sobre o processo Whitney: Aqueles que conquistaram nossa independência acredi-

tavam que o objetivo supremo do Estado era tornar os homens livres para desenvolver suas faculdades, e que em seu governo as forças deliberativas devem prevalecer sobre as arbitrárias. Valorizavam a liberdade tanto como fim quanto como meio. Acreditavam ser a liberdade o segredo da felicidade, e ser a coragem o segredo da liberdade ... que a maior ameaça à liberdade é um povo inerte; que o debate público é um dever político; e que esse deve ser o princípio fundamental do governo americano.11

Essa declaração reconhece a importância da soberania popular. Mas também põe ênfase especial, como parte de uma justificativa geral da Primeira Emenda, nas 011tras dimensões da democracia: na importância da igualdade dos cidadãos e, sobretudo, no valor do discurso democrático deliberativo. Declara que o objetivo da liberdade de expressão não é só impedir que o governo oprima o povo, mas permitir que cada cidadão desenvolva suas faculdades, qtte a liberdade é, por esse motivo, um fim den1ocrático, bem con10 um. meio para outras finalidades democráticas, e que a deliberação cívica com outras pessoas é um "dever político" que cantinha lado a lado com o dever do cidadão soberano de votar. Seria estranho aceitar esse forte endosso dos diversos objetivos da Primeira Emenda e, não obstante, continuar a afirmar que ela n.ão pode nt1nca ser interpretada ou aplícada para aprimorar essas metas. Devemos, então, olhar para além do texto e da retórica para avaliar nossas interpretações adversárias como interpretações das práticas jurídicas. Precisamos examinar os 1.1. Whitney versus Calif6mia, 274 U.S. 357, 375 (1927) (Brandeis, J., de acordo).

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veredictos dos processos nos quais as duas interpretações se enfrentam. Não há muitos desses casos: a maioria dos veredictos fundamentados na Primeira Emenda são compatíveis com ambas as interpretações. Ambas justificam New York llmes versus Sullivan12, o veredicto sobre os Documentos do Pentágono 13, o processo Skokie14, os casos da ql1eima de bandeiras1s e a maioria dos outros pontos de referência da Primeira Err,enda. Concentrar-me-ei em vários desses relativamente poucos processos nos quais as du.as interpretações levam a direções opostas, para saber que força gravitacional de qual leitura foi mais forte em cada processo. O ass·unto não é resolvido pela linguagem das opiniões em questão, que qt1ase nunca aborda nossa questão diretamente. Precisaremos examinar o que os tribunais americanos fi ~ zerarn nesses casos, comparando com o histórico dos fatos a eles apresentados, para julgar qual das duas interpretações explica melhor o que fizeram.

e. !,imites às contribuições Como já vimos, uma parte de Buckley - sua afirmaçã.o de que os linU.tes aos gastos são inconstit11cionais - só tem amparo na interpretação profilática. A Corte declaro11, em seu argumento a favor dessa afirmação, que o objetivo da Primeira Emenda se li!nita a proteger a soberania popularoferecer ao público "a mais ampla possível disseminação de informações oriundas de fontes diversas e antagónicas" - e rejeitou especificamente o argumento de que o goven10 poderia regulamentar o discurso para proteger a igualdade 12. 376 u.s. 254 (1964). 13. New York Tinws Co. vers~I.'! Uniled Slates, 403 U.S. 713 (1971). 14. Col/in versus Smith, 578 F.2d 1197 (7th Gr.), ccrt. denier~ 439 U.S. 916 (1978). 15. 1b:us versus ]ohnson, 491 U.S. 397 (1989); United Stales versus Eichman, 496 U.S. 310 (1990).

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dos cidadãos. Devemos adotar a mesma perspectiva de alguns processos oriundos de Buckley - os processos, como Colorado Republican16, que foram decididos recorrendo-se ao veredicto de Buckley como precedente. Mas houve mais um veredicto no processo Buckley - o veredicto da Corte que permitiu ao Congresso impor lim·ites às contribuições que as pessoas podem fazer às campanhas políticas de outras - e tal veredicto também faz parte do histórico constitucional. Não pressupõe a interpretação profilática, mas a discriminadora, pois só pode ser justificado co1n a hipótese de que o Congresso tem o poder de limitar as atividades políticas de algumas pessoas para salvaguardar a igualdade de cidadania das outras. A Corte negou ter baseado o veredicto nesse raciocínio: disse que impedir as pessoas de falar indiretamente, contribuindo com tanto quanto desejarem para ajúdar a financiar o discurso de outras pessoas, é diferente de impedi-las de gastar seu próprio dinheiro para falar por si mesmas, e que os limites às contribuições estavam, por conseguinte, sujeitos a um padrão constitucio·nal inferior aos dos limites aos gastos. Mas essa suposta diferença é ilusória, como afirmou o juiz Thomas com veemência no processo Colorado Republican, O n1eio mais eficaz que as pessoas têm de expressar suas convicções políticas é contribuir com uma organização ou campanha dedicada a divulgar ou agír con1 base nessas convicções. Os limites às contribuições oferecem um desafio tão grande- ou tão pequeno -à soberania popular quanto os limites aos gastos. Caso se impéça os ricos de contribuir com tudo o que desejarem para campanhas políticas, os políticos não poderão divulgar suas mensagens com tanta freqüência quanto gostariam, e os cidadãos soberanos não ouvirão a mensagem que, de outra forma, teriam ouvido. O governo teria limitado o fluxo de informações e apelos de 16. Co/orailli Republican federal Campaign Carmnitteeversus FEC, 518 U.S. 604 (1996) (protegendo o direlto dos partidos políticus de gastar quantias ili· n1itadas em campanhas "independentes" de seus candidatos).

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campanha tão diretamente quanto teria se tivesse litnitado o que os políticos podem gastar. Embora os contribui11tes pudessem teoricamente gastar tanto em outras maneiras ou fóruns quanto teriam contribuído para campanhas específicas, caso tivessem permissão para tanto, poucos têm chance de fazê-lo, por diversos motivos, inclusive o fato evidente de que os gastos independentes têm menos chance de atrair a gratidão das poderosas autoridades públicas. Nada na interpretação profilática justifica o teste de leis que limitem as contribuições políticas por meio de um padrão menos rigoroso do que as leis qtte limitem os gastos diretos. A conclusão a que muitos comentadores chegaram que a Corte, no processo Buckley, procurou um compromisso ao anular os limites aos gastos e aceitar limites às contTibuições - parece irresistível. Mas foi uma transigência do tipo errado, um compromisso qt1e aplica uma interpretação da Primeira Emenda ao primeiro desses problemas, e outra interpretação ao outro. O veredicto de Buckley, que, em um aspecto, é a maior autoridade disponível co11tra a interpretação discriminadora, é, em seu outro aspecto, um forte argumento a favor dela.

D. A doutrina da eqüidade A Prhneira Emenda não é pertinente apenas quando o governo quer impedir urna editora de in1primir ou divulgar o que deseja, mas quando a obriga a publicar o que não publicaria, pois, nesse caso, o governo também intervém no discurso político alterando quais irlformações se deve ofere<.'er a.os cidadãos, e isso, també1n., fere o princípio da sobera11ia popular, de que o governo não deve escolher o que os cidadãos devem ouvir. Em Red Lion17, porém, a Suprema C.orte defendeu a "doutrina da eqüidade" do FCC*, então

17. Red Lion BroadCt1$fír;g Co. versus FCC, 395 U.S. 367 (1969). • Federal Comrnunications Commission (Cornissão Federal das Comunicações). (N. e.la T.)

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em vigor, que exigia dos meios de comunicação que optassem por editoriais sobre um assunto político controv
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De fato, a Corte só mencionou a escassez em amparo à tese de que a entrada nos meios de radiodifusão é muito cara - citou a posição de liderança dos primeiros a ingressar, que, segundo a Corte, era ameaçadora, mesmo guarido ainda havia vagas no espectro. Mas é claro que os portavozes a quem é negado o uso da televísãopor esses motivos econômicos estão livres para procurar outros n1eios, menos escassos, e, de qualquer forma, mais baratos por intermédio dos quais divulgar suas opiniões. O argumento da Corte dependia, de fato, do pressuposto, quase explícito em sua opinião, de que é injusto e antidemocrático tomar o o a um meio de comunicação tão predominante na política quanto a radiodifusão - seja por concessões ou poder económico - a pouquíssimas pessoas e, por conseguinte, muito poderosas, e que o governo, portanto, tinha o direito de intervir para tornar o proc<:"sso político mais igualitário. O veredicto pressupõe a interpretação discriminadora: que a igualdade dos cidadãos na política é tão essencial à concepção geral de democracia da Constituição, que a Primeira Emenda deve reconhecer que aumentar a igualdade é, às vezes, inativo premente para uma legislação apropriada. É claro que isso não implica obrigatoriamente, mesmo que aceitemos a interpretação discriminadora, que a Corte que julgou o processo Red Lion tenha aplicado corretamente essa interpretação. Poder-se-ia argumentar que a soberania do cidadão fica muito prejudicada quando se convencem os editorialistas a não divulgar opiniões controversas, porque seria caro ou de mau gosto permitir a divulgação de opiniões em conflito, e que a decisão estava equivocada, mesmo presumindo-se a interpretação discriminadora, por essa razão. Esse 11ão é um argumento forte no caso das empresas de radiodifusão, cujo teor editorial raramente constitui parte significativa da programação, e, contudo, acho que o veredicto estava correto. Em outras circunstâncias, porém, tal argumento seria mais convincente: no processo Tonúllol~, 18. !Ylfrun1 Iierald PuU/ishi11g Co. versus Tonii//o, 418 U.S. 241 (1974).

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por exemplo, a Corte anulou uma lei da Flórida que exigia dos jornais o 1nesmo espaço para o direito de resposta de candidatos que eles tivessem criticado. Já que os juízes poderiam achar que essa lei teria um efeito negativo sobre o fervor crítico dos editorialistas, tal veredicto é compatível tanto com a interpretação discriminadora quanto con1 a profilática.

E. Regras "Devem Carregar" Nos dois veredictos de Titnter1 9, a Suprema Corte defendeu legislações chamadas "Devem Carregar", que exigem das empresas de TV a cabo, em certas circunstâncias, transmitir estações locais de sinal aberto. O juiz Breyer, cujo voto decidiu o veredicto no processo Turner 11, que estava empatado em 4 à 4, iniciou sua análise afirmando que se encontravam os interesses da Primeira Emenda cm ambos os lados do processo. É difícil entender tal afirmação com base na interpretação profilática. A l)ri.meira Emenda, nessa interpretação, compromete a nação à estratégia de proteger a democracia, mantendo o governo afastado dos diversos veredictos que decidam o que se oferece ao público através da palavra falada. N'esse caso, portanto, só há interesses da l)rimeira Emenda etn Uili. lado - no lado das empresas de TV a cabo que desejam permanecer livres da interferência do governo em sua decisão relativa à programação a oferecer. A ponderação de Breyer - de que exigir que as empresas de TV a cabo transmitam as estações de sinal aberto aprimora o discurso político, porqtte oferece notícias e debates locais que os s de cabo teriam, caso contrário, de procurar em outros locais - é irrelevante. Segundo a interpretação discriminadora, porém, Breyer estava certo, pois essa interpretação reconhece a llnportância democrática do discurso bem informado e ite qt1e o go19. Turner Broadcasting Syste111, Inc. versus FCC, 512 U.S. 622 (1991) IT11r" ner l]; Turner Bro1.1dcasting Systein versus FCC, 520 U.S. 180 (1997) [Tunt~r II].

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verno possa intervir nas decisões dos meios de comunicação para ajudar a garanti·lo. F1e adotou a opinião discriminadora quando declarou que a política em questão "procura facilitar o debate público e as deliberações bem-informadas que, como o juiz Brandeis assinalou muitos anos atrás, o governo democrático pressupõe e a Primeira Emenda procura alcançar". Ele sublinhou sua confiança na interpretação discriminadora, além disso, ao citar não só a opinião de Brandeis no processo Whitney, mas também_Red Lion. A opinião de Breyer foi apenas uma das opiniões em 'IUrner II, e ele não participou de Turner I. Mas sua opinião tem muito mais sentido do que a opinião da pluralidade, que se baseava na análise económica, como salientou a juíza O' Connor em sua opinião contrária em Turner 11. Em geral, interpreta-se melhor o complicado processo Turner reconhecendo-se uma das exigências mais fu11damentais da interpretação discriminadora: que o governo interfira nos poderosos meios de comunicação eletrónica para aprimorar o discurso político público, quando a intervenção não favorecer nenhum po11to de vista, popular ou não, e também não comprometer a soberania dos cidadãos ou a igualdade entre eles. f: Zonas de voto seni campanha

Em Burson20, a Suprema Corte ateve-se às leis eleitorais estaduais que proíbem a campanha de "boca-de-un1a" no dia das eleições a uma distância estipulada dos locais de votação. Embora a Corte tenha tentado justificar tal decisão de um modo que a interpretação profilática da I)rimeira Emenda exigiria, o veredicto só pode, de fato, St'r amparado pela interpretação discriminadora. A Corte afir-· mou que proibir o discurso político em um amplo perÍlnetro ao redor das urnas no dia das eleições não era um ato neu-· 20. Burson versU$ Freeinan, 504 U.S. 191 (1992).

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tro, pois tocava somente a expressão política, e nenhuma outra forma de expressão ou campanl1a. Mas também afirmou que a legislação obedecia ao rigoroso padrão da "justificativa irresistível" para sobrepujar a proibição da l:>rimeira Emenda de tal legislação sensível ao teor, porque o Estado tem um interesse irresistível nas diretrizes eleitorais que eliminem a intimidação. Esse argumento tem a forma certa para a interpretação profilática, pois não apela ao discurso bem informado, nem a qua1quer outra dimensão da democracia, para justificar uma restrição ao discurso político. Pelo contrário, apela ao nítido interesse do povo de não ser intimidado. Mas, embora esse argumento tenha a forma profilática certa, é um argumento tolo, e foi devidamente ridicula.tizado pelos juízes Stevens, O'Connor e Souter em sua discordância no processo21 . O Estado não precisava proibir o discurso político em um raio de 2. 787 m.2 (ou, no caso de alguns Estados, mais de 69.675 m 2) para evitar intimidação. Novamente, o veredicto é muito melhor justificado se presumirmos que a Corte realmente rejeitou a il.1terpretação profilática e adotou a discriminadora. Se interpretarmos que a IJrimeira Emenda permite uma regulamentação do discurso que a1.tmente sua meta presumida de proteger a democracia, melhorando a igualdade dos cidadãos ou o caráter do discurso político, o caso se toma fácil. É mais justo para os cidadãos participarltes não permitir a t1enhum candidato ou grupo a vantagem especial e indecorosa de um apelo de última hora no momento crucial do voto, e melhora a deliberação democrática pe.nnitir aos cidadãos um espaço para a reflexão final, livre de assédios, antes de votar - para lhes permitir liberdade da política, quando tal liberdade é importru1te. A Primeira Emenda, na interpretação discriminadora, não proíbe o governo de intervir para ajudar os cidadãos dessa maneira, contanto que essas regulamentações não 21. 504 U.S. em 217 (Stevens, J., discoràante).

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ofendam os princípios fundamentais da .imparcialidade política ou qualquer outro aspecto da soberania popular. A importância de tal qualificação é salientada por um veredicto anterior, no qual a Suprema Corte anulou uma lei que inicialmente poderia parecer semelha11te à que manteve em Burson. Em Mills versus Alaba1na'.2, a Corte declarou inconstitucional uma lei que proibia os jornais de publicar editoriais que endossassem ou se opusessem a qualquer candidato no dia da eleição. Essa lei privaria os cidadãos de uma fo11te tradicional de discussão e orientação política que poderia ser lida e ponderada em casa, longe do alvoroço da cabine eleitoral mesmo no dia das eleições. Seu impacto sobre a soberania do consumidor era maior, portanto, e sua contribuição para a capacidade de deliberação, inexistente.

G. Engajamento eleitoral das corporações No processo Austin versus Michigan Chamber of Commerce, a Corte obedeceu a um estatuto que proibia as corporações de usar seus ativos gerais em apoio 011 oposição a candidatos políticos, embora permitisse que usassem fundos segregados que juntassem expressamente para fins políticos. O argumento da Corte endossou quase explicitame11te a interpretação discriminadora e reíeitou a profilática. itiu que, segundo Buckley, os estados precisam de ttm interesse "irresistível" para justificar restrições ao discurso político, e também que o Único desses interesses, reconhecido nesse caso, era o de proteção contra a corrupção. Po·· rém, segundo o que a Corte disse emAustin, o tipo de" corrupção" contra o qual os estados podem se proteger não é limitado à contribuição do tipo que se faz em troca de favores, porém abrange ''outro tipo de corrupção na área política: as conseqüências corrosivas e deformadoras dos imensos agregados de riquezas acumulados com a aíuda da forma 22. 384 U.S. 214 (1966).

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empresarial, e que têm pouca ou nenhuma correlação com o apoio público às idéias políticas das empresas". A "deformação" em questão não se refere ao tipo ordinário de corrupção. 'Ela não compromete a soberania popu .. lar: o fato de um comercial político ter sido pago por uma contribuição empresarial não toma a informação ou o apelo que contém 111enos valioso para o público que assiste ao comercial. O impacto "corrosivo" dos altos gastos corporativos é, inteiramente, seu impacto na igualdade dos cidadãos, isto é, na dimensão da democracia que a interpretação profilática da Primeira Emenda em Buckley declarou irrelevante. 1à.mbém não importa, da perspectiva da interpretação profilática, como são ganhos os lucros da corporação. É irrelevante, nessa interpretação, que esses lucros não expressem convicções políticas populares: o valor das informações fornccidaS ao público soberano é o mesmo, quer sejam as contribuições empresariais oriundas dos fundos segregados para fins políticos ou da tesouraria geral da empresa. Não é irrelevante, porém, para a interpretação discriminadora, pois essa interpretação permite que o governo regulamente o discurso eleitoral para proteger a igualdade dos cidadãos, quando essa regulamentação não prejudique a democracia em qualquer outra dimensão, e a igualdade dos cidadãos sofre danos graves quando as empresas têm liberdade de usar seus amplos recursos para exercer uma influência política que poucos ou nenhum cidadão pode exercer. A interpretação discriminadora, além de uma justificativa convincente para Austin, proporciona uma distinção convincente entre este veredicto e um veredicto anterior qt1e, para muitos críticos, pareceu contrária ao espírito de Austin. No processo Bellotti23, a Corte declarou inconstitucional um estatuto de Massachusetts que proibia as corporações de gastar qualquer quantia em campanhas pró ou 1

23. First Natio1111/ Bank o/Boston versus Bcl/otti, 435 lJ.S. 765 {1978).

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contra iniciativas eleitorais diretas no Estado. Tal restrição impunha uma ameaça muito mais grave à soberania dos cidadãos do que o estatuto mantido em Austin, pois ameaçava privar os cidadãos de informações que, de outro modo, poderiam não lhes estar disponíveis. Muitas iniciativas diretas dizem respeito a complexas questões econômicas, e as corporações quase sempre têm o incentivo que falta aos cidadãos individuais para apresentar determinada faceta da discussão. O estatuto de Bellotti não permitia que essas corporações usassem nem fundos segregados, levantados especificamente para apresentar seu ponto de vista. O estatuto de Austin, pelo contrário, limitava-se às eleições, nas . quais os partidos políticos e outros grupos têm grande interesse em oferecer qualquer argumento favorável a seus candidatos e contra os adversários, e ele permitia que as corporações usassem os fundos segregados para marcar uma posição contra ou a favor de um candidato, quando acreditassem que outros não a tivessem marcado co1n eficiência.

VI. O argumento epistêmico

A interpretação discriminadora, que associei à concepção consociativa de den1ocracia, encaixa-se nos precedentes pertinentes tão bem quanto a interpretação profilática associada à concepção majorltarista. Se a análise da seção anterior estiver correta, encaixa-se ainda melhor nesses precedentes, no todo. A interpretação constitucional, porém, não é apenas uma questão de encaixe: uma interpretação irrefutável não deveria apenas encaixar-se no caso, mas justificá-lo tambén1. Qual é a superior nesse caso: a interpretação profilática ou a discriminadora? É verdade que a interpretação discriminadora é, pelo menos marginalmente, mais aberta aos abusos de um governo ansioso por proteger-se contra as criticas ou de solidifica.r sua posição. 13.1 governo poderia regulamentar o discurso político, afirmando proteger a democracia, quando está apenas protegendo a si mesmo. Po-

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rém, a interpretação discriminadora não corre um risco grave de tal abuso porque, ao contrário da interpretação balanceadora que distingui, não permite regulamentações do discurso político que prejudiquem a soberania dos cidadãos ou a igualdade entre eles de alguma maneira significativa e, de qualquer modo, o risco de abuso é mais do que contrabalançado pelos danos evidentes à democracia que a interpretação profilática exige de nós. A interpretação profilática, porém, poderia parecer mais atraente por motivo bem diferente. É justificativa conhecida da Primeira Emenda que a liberdade de expressão ajuda o povo, e não só o governo, a descobrir a verdade sobre como governar melhor. Os proponentes dessa afirmação quase sempre se remetem ao argumento de John Stuart Mill de qt1e uma competição de idéias, da qual não se exclua nenhuma idéia, é o 'melhor meio de descobrir a verdade tanto na ciência quanto no valor - não só a verdade sobre o que as pessoas querem, mas a verdade sobre o que devem querer. A interpretação profilática parece mais profundamente comprometida com tal competição, pois rejeita qualquer regulamentação do discurso em nome dos supostos interesses do aprimoramento da democracia. Assim, a hipótese epistêmica de 1v1ill talvez pareça defender essa interpretação. De fato, porém, ambas as interpretações encontram apoio na pretensão epistêmica de Mill, embora essa pretensão assuma formas diferentes nas duas interpretações e seja, real1nente, mais plausível na interpretação discriminadora do que na profilática. Se aceitarmos a pretensão de Mill como justificativa da interpretação profilática, devemos itir que tal pretensão afirma q·ue a quantídade do discurso tem, em si, valor epistêmico. Nessa perspectiva, o valor do debate público é aprimorado, em geral, pelo menos a longo prazo, pois aplica o princípio de que quanto mais atos de fala houver, melhor. Assim, as repetições de declarações ou idéias substancialmente iguais devem ser valorizadas como uma contribuição, pelo menos marginal, à promessa epistêmica do debate,

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e como t11na rejeição a qualquer qualificação de tal p1incípio elaborada para aumentar a qualídade da argumentação. Se oferecermos a pretensão epistêmica como justificativa da interpretação discriminadora, por outro lado, salientamos a importâ11cia disso em um princípio que afirma, não que não se deva excluir nenhum ato da fala, mas que não se deva excluir idéia nenhuma. Nessa outra perspectiva, o importante é a mistura cognitiva e emocional do que se apresenta, e não a quantidade em si, e é a mistura, e não a quantidade, que é beneficiada quando declaramos, como o faz a interpretação minuciosa, que não se deve censurar nem restringir discurso nenhum pelo fato de o que diz ou .expressa ser considerado perigoso ou ofensivo. Aplicar esse princípio com rigor é a melhor maneira de gara11tir que o debate receba o mais amplo possível leque de idéias; não é necessário também elevar ao máximo a quantidade de discorsos. P,_ interpretação discriminadora permite uma pretensão epistêmica ampliada e ainda mais plausível, além disso, que é a de qt1e o discurso do qual não se exclua formalmente nenhuma idéia tem ainda mais probabilidade de garantir a verdade, se o discurso for estruhrrado para incentivar a investigação das idéias em seus méritos. A interpretaçâ.o profilática não pode fazer essa declaração ampliada, pois insiste na única virtude epistêmica da grande quantidade de discursos não estruturados por qualquer regulamentação. Essa idéia-de que tanto a quahdade quanto a qllantidade são importantes - é bastante aceita em ot1tros contextos, como nas argumentações apelatórias ou nos debates formais, nos quais insistimos nos argu1nentos e não nas apresentações multimídia. O modelo profilático, pelo contrário, põe todos os ovos em um cesto frágil: depende, para qualquer afirmação de que sua rigidez é útil à descoberta da verdade, da duvidosa st1posição de que o debate desestruturado é mais eficaz como meio de descoberta do que o estruturado com tantas ldéias porém menos atos de fala.

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VII. Recapitulação das propostas

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A interpretação discriminadora da Primeira Emenda pennlte leis que limitem e regulamentem o discurso político quando tais leis não impedirem que o povo tome con_hecimento de informações ou discussões que, do contrário, estariam a seu alcance, quando não forem criadas para favorecer o governo, ou qualquer partido, ideologia ou política em detrimento de qualquer outra, quando não expressar qualquer pressuposto acerca de verdade, falsidade, perigo ou agravo de qualquer mensagem o·u exposição, e quando tiver probabilidade de aprimorar o caráter democrático do discurso político público, tomando viável a participação de mais cidadãos em pé de igualdade, ou aprimorando a qualidade do discurso público, ou-ambos. Serta difícil defender a constitucionalidade de qttalquer proposta exposta no início deste capítulo, inclusive os limites às contribuições de campanha já em vigor, se aceitássemos a interpretação profilática da lTimeira Emenda. Precisamos agora examinar essas propostas em comparação com a interpretação discriminadora que defendi. Seria útil reparar, primeiro, que, embora algumas das propostas possan1 parecer radicais para todos os americanos, são comuns em outras democracias. Adotar todas as propostas tomaria o siste1na americano bem n1ais parecido com o esquema eleitoral ir1glês, por exe1nplo, que, segundo a opinião internacional geral, funciona n1uito bem. É verdade que as eleições en1 um sistema parlamentar, com forte controle partidário, diferem muito das eleições em nosso complexo sistema federativo, que separa os poderes executivo e legislativo. Mas as diferenças não anulam a comparação. O presidenIe Clinton, pedindo reformas nas campanhas, afirmou em 1997 que a eleição em que 1bny Blair derrotou John Major foi mais justa e teve melhores debates e argumentações do que aquela em que ele derrotou Robert ·oole2·1. AB 24. Meet the Pres1;, 9 nov. 1997.

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propol>tas também aproximariam mais nosso sistema eleitoral dos existentes em outras grandes democracias. Nenhum deles permite gastos ilimitados e todos regulamentam a política no rádio e na televisão. AB propostas que limitam os gastos em campanha são, evidentemente, contrárias ao veredicto de Buckley. Se tal veredicto fosse anulado em deferência à interpretação discriminadora, então a Primeira Emenda permitiria tetos de gastos suficientemente altos para não aumentar a Vdfltagem que os candidatos que exercem cargo eletivo já têm sobre os concorrentes, e não impedir os cancüdatos sem nomes famosos ou grupos com novas políticas de conquistar interesse público suficiente para chamar a atenção dos jornalistas e das emissoras. A não ser que esses requisitos sejam ate11didos, os limites aos gastos comprometeriam a igualdade dos cidadãos e tatnbém prc:judicariam asoberania popttlar, pois seriam negadas ao público as idéias qtte tais candidatos ou grupos ofereceriam se pudessem. A interpretação di<;criminadora não permite danos significativos a nenhuma dimensão da democracia. A última proposta concede generosas verbas públicas às campanhas políticas, mas proíbe os candidatos que aceitarem essas verbas de fazer comerciais políticos no rádio e na televisão, a não ser i1a forma de programas políticos cujo formato incentive o debate e desestimule técnicas subli1ninares e outras técnicas não argumentativas. Esta proposta é mais nova e perturbadora, e seria controversa, mesmo que a interpretação discriminadora fosse reconhecida e adotada. A legislação não proibiria nada. Simplesmente imporia condições ao uso das verbas públicas e deixaria qualquer político, que preferisse pagar por comerciais políticos comuns com recursos de sua limitada verba de campanha, livre para fazê-lo ao recusar as verbas públicas. Mas a pressão sobre candidatos e emissoras para aceitar o dinheiro público seria tão forte, principalmente na hipótese de que ouh·os candidatos e e1nissoras já o tivessem feito, que as co11dições impostas teriam uma tendência coerciva. A interpretação

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discriminadora, por conseguinte, exige que os proponentes dessas propostas demonstrem que, na prática, não prejudicariam a democracia em nenhuma de suas dimensões. Alguém poderia objetar, por exemplo, que um programa de concessão de verbas que impusesse tais condições agrediria a soberania dos cidadãos, porque induziria os políticos a não produzir atrativos políticos no formato que o povo prefere. Afinal, os políticos inundam a programação com frases de efeito negativo de-30 segundos;·não por gosto pessoal, mas porque supõem que tal propaganda tem mais repercussão. Devemos to1nar o cuidado de distinguir, porém, entre o que as pessoas julgam apropriado, à guisa de discurso político, e aquilo que de fato lhes agrada- o ramo publicitário baseia-se em grande parte na distinção entre esses dois fenómenos. Descobrimos, em pesquisas de opinião e també1n ccim os políticos, que o público desaprova o gênero de comerciais políticos, e acredita-se qtte essa aversão é respon.sável, em parte, pelo afastainento de tantas pessoas da política. No entanto, isso não responde totalmente à objeção, pois continua sendo verdade que, em conseqüência da condição imposta ao financiamento público, pelo menos algumas pessoas não teriam o a apelos políticos r10 volume e na forma que preferem, e que os políticos, ao contrário, ofereceriam. Mas é um eqt1ívoco pensar que a soberania dos cidadãos, ou qualquer uma das duas outras dimensões da democracia, exige que cada cidadão tenha o direito de receber informações políticas em seu formato predileto. Mesmo na interpretação profilática, o governo tem permissão de regulamentar o tempo, o local e a maneira dessas mensagens políticas. Alguns cidadãos talvez prefiram qtte essas mensagens políticas sejam divulgadas por caminhões com equipamento sonoro, em casa, às três horas da madrugada: isso pode encaixar-se perfeitamente em seu horário de trabalho ou em seu ritmo diário. Jlvfas a democracia não é comprometida por leis que impossibilitem campanhas feitas de madrugada por caminhões com equipamento de som, contanto que

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essas leis não diminuam as informações razoavelmente disponíveis para cada cidadão. A regulamentação das transmissões políticas que descrevi tem apenas a·mesma conseqüência limitada. Não diminui as informações ou os debates que estariam disponíveis para qualquer cidadão que deseje fazer um esforço razoável, sintonizando programas políticos na hora marcada, ou assistindo a outras coberturas eleitorais, para saber o que um candidato ou grupo tem a dizer. A Primeira Emenda não exige, em qualquer interpretação, que um cidadão tão alienado que 11ão faça tal esforço, possa ter um substituto barato e ir1adequado nos comerciais enquanto assiste ao seu time de futebol favorito. Poder-se-ia dizer agora, porém, que'as condições que linútam o uso das verbas públicas na política eletrónica, as quais se destinan1 a enriquecer o debate poµtico, agridem a igualda,ie dos cidadãos, porque afinal não são neutras entre as perspectivas políticas. Favorecem uma form.a elitista de discurso político. Novamente, contudo, devemos ter cuidado para não entender mal a forma de neutralidade que a igualdade dos cidadãos, bem entendida, exige. Ela não requer que se elaborem processos políticos de modo que as argumentações ruins possam ser tão eficazes quanto as boas, e os jingles tão poderosos quanto as razões, ou que os can·· didatas sem conhecimentos, convicções ou qualificações tenham o máximo de oportunidades para ocultar essas falhas constrangedoras. r\ neutralidade que devemos almejar é quase exatamente o contrário: ela exige mn esquerna que permita aos cidadãos julgar a estrutura, os méritos e a mensagem de todos os candidatos e de todas as idéias, inclusive a me11os financiada e inicialmente menos benquista, e o esquema proposto apresentaria essa concepção de neutralidade co1n eficácia muito maior do que é possível à política não regulamentada na televisão e no rádio. Não pretendo agora afirmar que a interpretação discriininadora permi t:iria claramente tal esquema, porém somente que o argumento de que ela deve fazê-lo é mais complexo e mais pla11sível do que pareceria à primeira vista.

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VIII. Conclusão

Comecei relatando a visão ampla1nente difundida de que nossa democracia foi gravemente prejudicada pela maldição do dinheiro. Para tornar mais explícita essa acusação, precisamos das diversas dimensões da concepção co-participativa que acabamos de destacar. Não é óbvio que os gastos ilimitados em campanha, que dão mais influência aos ricos na política porque eles podem financiar grandes peças publicitárias nos meios de comunicação, agridem a soberania dos cidadãos. O dinheiro deles é gasto na formação de uma opinião majoritária, e não em evadir o que a opinião majoritária exige. É discutível que grandes disparidades em riq11ezas possam ludibriar o povo e levá-lo a pensar que quer o que não está em seus interesses económicos, estritam.ente definidos. Mas· não temos base para supor que seus votos expressariam com mais exatidão suas convicções gerais "autênticas" se os gastos em campanha fossem limitados, em parte porque não temos uma maneira independente de definir ou descobrir essas convicções "autênticas". Portanto, se a soberania popular fosse nossa última preocupação, pareceria razoável oferecer ao público tantas informações ou propagandas quanto qualquer um quisesse e pudesse oferecer, e então confiar que o povo não consideraria as mensagens repetitivas ou enganosas, e procuraria informações sobre candidatos peque·nos e mais pobres no jornalismo e em meios de comunicação mais baratos como os pequenos canais a cabo. A soberanía popular não é ameaçada por tal política, e seja qual for a atração do veredicto de Buckley, ela repousa na aparente razoabilidade dessa política. Quando adotamos a concção co-participativa de democracia, porém, acrescentamos mais duas dimensões à métrica democrática, e em cada un1a dessas duas dimensões adicionais ficam evidentes as distorções de nossa atual de · mocracia. A igualdade dos cidadãos é destruída quando somente os ricos particip8111 da contenda política, e ninguém confundiria nossa política publicitária com a deliberação de-

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mocrática. A concepção co-participativa também deixa claro o que está em jogo nessas derrotas. Nós nos orgulha1nos da legitimidade democrática de nossa forma de governo: orgulhamo-nos porque somos uma nação em que o povo governa a si mesmo. Mas o autogoverno significa mais do que o sufrágio igualitário e eleições freqüentes. Significa ·uma parceria de iguais, raciocinar juntos sobre o bem comum. Não poderemos nunca alcançar esse ideal plenamente - nação nenhuma poderia. Mas quando os políticos estão encharcados de dinheiro, como nossos políticos estão, então nos arriscamos, não à simples imperfeição, mas à hipocrisia.

Capítulo 11

Ação afirmativa: funciona?

1 Há mais de trinta anos as melhores universidades e faculdades dos EUA vêm empregando diretrizes de issão sensíveis à raça para aumentar o número de alunos negros, hispânicos, indígenas e de outras minorias1• Autores e políticos conservadores atacaram essa política de "ação afirmativa" desde o início, mas ela está agora correndo o maior risco de toda a sua existência - em d11as frentes, política e jurídica. Em 1995, por 14 a 10, a direção da Universidade da Califórnia declarou que não se poderia mais contemplar a raça nas issões em qualquer departamento da universidade. Em 1996, os eleitores da Califórnia aprovaram o· Projeto 209, que ratifica e amplia tal proibição, estipulando que nenhuma instituição do estado pode "discriminar nem oferecer tratamento preferencial a qualquer indivíduo ou grupo com base em raça, sexo, cor, etnia ou nacionalidade no serviço público, educação pública 011 contratações públicas"2 •

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1. Emprego o conceito de raça neste capítulo da forn1a co1no figurou nos debates político e legal sobre os quais discorro. Anthony Appiah, entre outros, afirmou que esse confunde "raça" con-. "cor da pele" ou "população". Ver a discussão dele l'ffi Appiah e Amy Gutmann, Color Conscious: The Politic11l Morality of R.n.ce (Princeton: Prin<:eton University Press, 19Y6), p. 73. 2. Urr1 juiz federal de San Francisco &'Uspendeu a aplicação da "Proposition 209", mas o Nono Tribunal Itinerante de Apelação anulou a suspensão. A

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O efeito da decisão da direção foi imediato e, na opinião de muitos professores da universidade, desaslToso: a Faeuldade de Direito Boalt Hall, em Berkeley-principal faculdade de direito pública do estado - recebera em média 24 alunos negros por ano nos últimos 28 anos. Em 1997 recebeu somente um, e ele fora itido no ano anterior, mas havia trancado a matrícula3 • A campanha política contra a ação afirmativa continuará, incentivada pelo êxito da iniciativa californiana, em outros estados. Uma proibição similar foi promulgada em Washington em 1998, e é provável que outros estados façam o mesmo. O segundo perigo talvez seja ainda mais ameaçador. Em 1978, no famoso processo Bakke, a Suprema Corte decretou que os planos de issão sensíveis à raça não violam a 14~ Emenda da Constihtição dos Estados Unidos, que declara que "nenhum estado poderá negar a qualquer pessoa a igual proteção das leis", contanto que tais planos não estipulem quotas fixas para qualquer raça ou grupo, porém considerem a raça somente como um fator dentre outros 4 . Em 1996, porém, no processo Hopwood, o Quinto Suprr.ma Corte recusou-se a aceitar a apelação e agora a proposta está em vi· gor. Ver The Coalilion for Econon1ic Equity versus Wilson, 122 EM 692 (9th Gr. 1997), cert. denfrd, 118 S. Ct. 397 (1997). 3. Ver John E. Morris, uBoalt Hall's Affirmatlve Action Dilemma", American Lawyer, nov. 1997, p. 4_ 4. Regents of the U11iversity of Califomia versus Bakke, 438 U.S. 265 (1978). Os juízes fedr::rais redigiram diversos pareceres sobre o processo, e o parecer do falecido juiz federal Lewis Powell, que formulou a lei que descrevi no texto, veio a ser considr::rado como enunciado das opiniões de cinco juíie.~, entre os quais outros quatro que teriam mantido até o plano de quotas usado pela Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia Qm Davis, que PowclL em conjunto com os outros quatro juízes, derrubou. No parecer de Hopwood que dt.>screvo adiante, no mesmo parágrafo, dois juízes declararam que Powell fatiou ~ó por si mesmo. Mas essa interpi:etação tem sido alvo de debates acalo· rados (ver "Recent Case: Constitutional Law'', Harvard Law Review 110 [1997]; 775), e a opinião contrária prevaleceu no entendimento constitucional geral. Para consultar uma discussão dos diversos pareceres do processo, ver Ronald Dworki.n, NThe Bakke Decision: Did Jt Decide Anything?", };'ew York Review, 17 ag<:i.1978.

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Tribunal Itinerante de Apelação declarou inconstitucional o programa de issões da Faculdade de Direito da Universidade do Texas, e dois dos três juízes que constituíram a maioria nesse processo declararam que o veredicto de Bakke fora anulado, embora não expressamente, por decisões mais recentes da Suprema Cortes. As conseqüências imediatas do veredicto do Quinto Tribunal Itinerante foram, novamente, impressionantes: embora a Faculdade de Direito do Texas tivesse matriculado 31 alunos ·negros em 1996, só conseguiu itir quatro no ailO seguinte. A Suprema Corte recusou-se a alterar a decisão do Quinto Tnbunal Itinerante que, por conseguinte, tem força de lei no Texas e nos outros estados qt1e percorre. Em outubro de 1998, o Centro dos Direitos Individuais, com sede em Washington, D.C., que engendrara o ataque à Universidade do Texas no processo Hopwood, abriu processo semelhante em :Michigan, argumentando que o programa de issões da Universidade de Michigan também é inconstitucional, e espera-se que surjam processos semelhantes em outros estados. Mais cedo ou mais tarde, a Suprema Corte terá de analisar um desses processos, e se ela anular ou restringir Bakke substancialmente, a ação afirmativa estará, doravante, prejudicada no país inteiro. Sem uma emenda constitucional ou outra mudança de parecer na Corte,

5. Hopwood versus Texas, 78 F.3d \!32, cert. denied, 116 S. Ct. 2581 (1996). Dos cinco juízes que decidiram o processo, dois - Smith e DeMoss - decretaram que Bakk.e foi anulado e que as universidades não podem mais usar clas~1·ficaçôL"S raciais para produzir um corpo discente racialmente diverso. Outro juiz- Weiner -votou para derrubar o plano da Faculdade de Direito do Texas, que fora substituído por outro plano com a justificativa muito mais rígida de que não fora adequadamente "adaptado" para garantir sua meta declarada de diversidade racial. Mas dü;cordoL1 de Smith e DeMoss no plano geral, e recusou-se a decretar que a diversidade racial não fosse meta legítima. Os dois juízes restarites - o presidente do Supremo, Politz, e o juiz King- discordarmn. Assim, somente dois dos cinco juízes realmente declararam o cancelamento de Bakke, mas todo o Quinto Tribunal Itint~rante, presente no tribunat recusou ·se a conceder nova audiência.

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nem mesmo uma alteração no ambiente pol.ftico poderia trazê-la de volta6. Grande parte dos ataques políticos e jurídicos à ação afirmativa tem-se concentrado em suas conseqüências: segttndo os críticos, ela baixou os padrões educacionais ao itir alt1nos que não estão qualificados para se beneficiar

da formação que, recebem, e isso exacerbou, em vez de aliviar, a tensão racial._E, portanto, oportuno que se tenha publicado recentemente o primeiro exame abrangente e estatístico das conseqüências reais dos 30 anos de ação afirmativa nas universidades dos Estados Unidos. The Shape of the River (A forma do rio), de William G. Bowen, que foi reitor da Universidade de Princeton, e Derek Bok, ex-reitor de Harvard, analisa uma imensa base de dados de históricos escolares, chamada base de dados Faculdade e ACIMA (College and Beyond, C&B), que foi compilada pela Fundação Mellon, da qual Bowen é presidente há mais de quatro anos 7 • Essa base de dados contém informações sobre os mais de 80.000 graduados que se matricularam em 28 faculdades e universidades seletas em 1951, 1976 e 1989: essas insti6. A 14~ Einenda só se aplica a atos estatais, e não a atos particulares, e todos os réus dos principais processos de ação afirmativa na educação superior foram departamentos de universidades estatais. }.1as as universidades particulares estão, de fato, si.tjeítas às mesmas leis, porque a Lei dos Díreitos Políticos proíbe qu
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tuições são representantes das escolas de elite que aplicaram a ação afirmativa, e vão de Bryn Mawr e Yale a Denison e North Carolina (Chapel Hill) 8 . No caso dos grupos de 1976 e 1989, a base de dados registra raça, sexo, notas no ensino médio, notas no SAT (exame semelhante ao vestibular aplicado no Brasil), carreira escolhida e notas, atividades extracurriculares, qualquer registro de curso de graduação ou profissionalizante e, para muitos, histórico econômico e socíal da família dos graduandos. Também apresenta infonnações sobre atividades posteriores à universidade de todos os que responderam aos questionários minuciosos, enviados quando da compilação da base de dados. Um número excepcionalmente alto de pesquisados respondeu ao questionário - 80°/o das turmas de 1976 e 84o/o das turmas

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de 1989.

Bowcn, Bok e seus colegas aplicaram técnicas estatísticas avançadas para analisar, na medida do possível, a repercussão de cada uma das numerosas variáveis que o estudo isola. Fizeram-no na tentativa de traçar as conseqüências reais da ação afirmativa, no período da sua agora substancial existência, para c;:i,da aluno e graduando, para suas faculdades e universidades, e para as relações raciais em todo o país. Esse livro é um estudo sociológico valiosíssimo, além de suas descobertas específicas sobre a ação afirmativa, e oferece, em apêndices pormenorizados, uma descrição clara das complexas técnicas estatísticas que emprega. 8. O estudo dividia as escolas da C&B l'm três grupos, segundo seus níveis de rigor na issão de candidatos. Enumero as escolas em seus grupo~ de seletividade em 1989: houve algumas variações en1 atnbuições de seletividade na lista de 1976. O grupo mais exigente (em ordem alfabética) continha Bryn Mawr, Duke, Prtnceton, Rice, Stanford, Swarthmore, Williams e Yale; o próximo grupo mais exigente: Bamard, C0lumbia, Emory, Hamilton, Kenyon, Northwcstem, Oberlin, Smith, Tufts, Universidade da Pennsylvania, Vanderbilt, Universidade de Washington, Wellesley e Wesleyan; o grupo menos exigente: Denison, Universidade de Miami (Ohio), Pennsylvania State, Tulane, Michigan (Ann Arbor) e North Carolina (Chapei Hill)_

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O eshtdo de River tem limitações, evidentemente, q11e os autores tíveram o cuidado de reconhecer. A pesquisa estatística, por mais substanciais que sejam os dados e minuciosas as técnicas, não é uma experiência de laboratório, e ernbora os autores demonstrem considerável engenhosidade na pesquisa e no uso de controles e de outros métodos em suas conclusões, algumas dela.s, conforme os autores assinalam, inevitavelmente contêm hipóteses. O estudo limita-se à ação afirmativa na educação superior, e seus resultados podem ter pouca influência sobre as conseqüências das classificações para outras finalidades~ em empregos, por exeinplo, ou em dar oportunidades para negócios oriundos de minorias. A maioria dos planos universitários de ação afirmativa é criada para au1nentar o ingresso de uma série de grupos minoritários, mas, à exceção de algumas discussões sobre alunos hispânicos, o estudo apresenta e analisa principalmente os dados de alunos e formados negfos. Ademais, as instituições da lista C&B representam universidades e faculdades seletíssimas, e as conclusões do estudo não se aplicam a setores menos distintos. Os autores não conseguiram responder a todas as questões que seus dados levantaram. item que não conseguiram explicar totalmente, por exemplo, o fato especialmente preocupante de que os alunos negros, em gn1po, têm desempenho menor nas notas quando comparados aos brancos da mesma instituição que tiveram as mesmas notas no SAT e em outras qualificações acadêmicas 9 • Nenhuma dessas limitações prejudica a força das conclusões do estudo, porén1, e muitas dessas conclusões, como .veremos, contradizem premissas e declarações que se tornaram matéria-prima do debate sobre a ação afinnativa na atualidade. Para avaliar a importância e os limites do estudo de Ri-

ver, precisamos ter o cuidado de distit1guir os dois principais 9. Os autores considerar11, co1no fatores conlribuint~.s para os índices de evasão de negros; formação média ruim em técnkas de estudo e constante fomrnção de estereotipugem na faculdade.

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aspectos desse debate1º. O primeiro é uma questão de princípio: a ação afirmativa para negros é injusta porque viola o direito de todo candidato ser julgado por seus méritos individuais? O segundo é uma questão de diretriz ou conseqüência prática: a ação afirmativa produz mais mal do que bem, porque faz com que alguns negros se matriculem em cursos além de suas capacidades, ou estigmatiza todos os negros como irúeriores, ou faz com que a comunidade se tome mais, em vez de menos, prevenida com relação à raça? Essas duas perguntas estão vinculadas, pois muita gente acha que a ação afirmativa é justa quando proporciona um bem substancial, ou para aqueles aos quais se destina a beneficiar ou a toda a comunidade, mas injusta se 11ão o fizer, pois os danos que provoca às esperanças de issão dos outros candidato;; (entre os quais não há só brancos, porém outras minorias, como asiático-americanos, cujas notas em grupo são relativamente altas) serão, então, inúteis. Não obstante, as perguntas são independentes, porque as políticas de adntissão sensíveis à raça podem ser injustas para os candidatos rejeitados ou para o grupo dos negros como um todo, mesmo que eles alcancem exatamente o que foram preparados para alcançar. A pergunta prática tem sido mais debatida nos últimos anos. Os defensores da ação afirmativa quase sempre insistem qt1e os diversos tipos de políticas sensíveis à raça são essenciais, no curto prazo, se tivermos a esperança genu_ína de erradicar ou diminuir o impacto da raça no longo prazo. Os críticos mais destacados desses programas, tanto brancos quanto negros, respondem que a ação afirmativa tem sido contraproducente em todos os aspectos: que "sacrificou", em vez de ajudar, os negros itidos nos programas, 10. Ver a discussão mais geral da distinção entre as questões de princípio e de política, com menção especial ao dE'bate da ação afirmativa, em Ronald Dworkin, A Matter 1if l'rinciple (Cambndge, Ma~s.: F-larvard University Press, 1985).

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perpetuando a noção da inferioridade negra entre os brancos e os próprios negros, e promovendo o separatismo negro e uma sociedade prevenida com relação à raça, e não a integração dos 11egros e uma comunidade genuinamente indiferente à cor11_ 'fanto os defensores quanto os críticos se baseiam, porém, apenas en1 dados superficiais para amparar suas grandes afirmações. Citam relatos publicados em jornais sobre incidentes isolados de cooperação inter-racial- ou sobre desarmonia racial- em universidades. Baseiam-se em relatos introspectivos ou casuais de negros bem-sucedidos que atribuem à ação afirmativa o fato de terem tido uma chance, ou a culpam por estigmatizá-los, insultá-los ou vulgarizá-los. A maioria deles apela a pressupostos tidos como de senso comum sobre como os brancos e os negros "devem" ou "podem" pensar ou reagir. · Seria errado acusar os defensores e os críticos por confiar em provas tão frágeis para elaborar suas grandes declarações, porém, porque, embora se tenham produzido alguns estudos excelentes sobre essas questões - Bowen e Bok mencionam alguns deles-, houve poucos eshtdos com a abrangência necessárta. É por isso que The Shape of the RiVer é tão importante: oferece estatísticas muito mais abrangentes e 11ma análise n1uito mais aprofundada do que to-

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11. Ver, entre outros mateiiais citados em The Shape of t!ie River, Stephan

Thc=rnstro1n e Abigall Then1Strom, An1erica in Black and White (N"ova York: Sin1on and Schuster, 1997) ("A 1iniversidade queria que os alunos minoritários se sentisse1n à vontade. l\1as, com o grande aumento no nú1nero de alu,-ios minoritários e co111 a criação de alojamentos étnicos, o nível de desconfcrto dos alunos n1inoritários aumentou."); e Shelby Steele, "A Negative Vote on Affinnative Action'', in Debati11g A(firmative.1(.tion: Race, Gender, Ethnicily, m1d tlie Politics ofinciusion, ed Nico]aus !viills (Nova Yorko Delta, 1994) ("O resultado do tratamento preferencial - o rebaixamento dos padrêks norffiais para aumentar a representação negra - deixa os negros em guerra com um domí" nio ein expansão de dú'llidas debilitantes, de n1odo que a própria dúvida se torna unta preocupação não reconhecida que solapa o desempenho, especialment~ em situações integradas.").

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dos os estudos anteriores. Teve considerável repercussão: suas descobertas foram muito divulgadas e debatidas na imprensa. Precisamos tomar cuidado, obviamente, para não aceitar nem mesmo esse estudo tão imponente de maneira acrítica. Pode-se descobrir mais tarde que sua análise estatística contém falhas. Ou podem vir a ser publicados estudos ainda mais abrangentes que refutem algumas ou todas as suas principais conclusões. Mas seria surpreendente e lamentável se The Shape of the River não aprimorasse bastante o longo debate político e jurídico. Sua análise elevou de maneira significativa o padrão da argumentação. Não bastarão mais indícios impressionistas e casuais: qualquer debate respeitável acerca das conseqüências da ação afirmativa nas universidades precisa agora reconhecer suas descobertas ou refutá-las, e qualquer refutação deve estar à altura dos padrões de amplitude e profissionalismo estatístico que Bowen, Bok e seus colegas alcançaram.

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Os dois ex-reitores de universidades são acadêmicos cautelosos e prudentes e têm o cuidado de limitar suas declarações ao que as provas justificam. Não obstante, não têm dúvidas no tocante ao resultado mais importante de seus eshrdos:

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Se, no fim das contas, a pergunta é se as faculdades e universidades mais exigentes threram êxito na formação de um grande número de alunos pertencentes a grupos minoritários, que já alcançaram considerável êxito e parecem ter probabilidade de, com o tempo, vir a ocupar cargos de liderança em toda a sociedade, não ternos dificuldade para responder à pergunta. Com certeza ... No geral, concluí1nos que as faculdades e as universidades acade1nicamente exigentes tiveram muito êxito no uso

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das políticas de issão sensíveis à raça para promover metas educacionais importantes para todos12.

Não podemos avaliar essa conclusão, contudo, sem salientar a grande variedade de descobertas distintas nas quais se baseia. Não posso, evidenterr,ente, resumi-las todas_-de maneira adequada, nem descrever as técnicas quase sempre geniais utilizadas para obtê-las e defendê-las. Vou me concentrar, pelo contrário, nas descobertas que parecem mais pertinentes à argumentação política e jurídica. A ação afirmativa aceita negros de:iqualificados? Em 1951 foi itido um total de 63 negros- somente wna mé. dia de 0,8 por cento por escola - nas 19 instituições da C&B para as quais há registros disponíveis. 'Em 1989, os negros constituíram 6, 7 por cento das issões em todas as escolas da C&B, e 7,8 por cento do grupo mais seleto. Deve-se atribuir grande parte desse aumento às .issões sensíveis à raça. Bowen e Bok calculam, descontando o impacto das outrac; variáveis, que uma política de issão neutra com relação à raça teria reduzido o número de negros para uma faixa entre 2,1 e 3,6 por cento em todas as escolas pesquisadas (dependendo de diversas hipóteses relativas a quantos dos negros itidos haviam decidido inatricular-se). O declínio seria maior nas escolas mais exigentes. Se.da uin erro grave, porém, supor que esses negros ''retroativamente rejeitados" eram desqualificados para a formação qtte receberam13. Os candidatos brancos às escolas tiveram .notas significativamente mais altas nos exames, em grupo, do que os candidatos negros. A diferença diminui nitidamente, contudo, quando comparamos as notas dos negros que ingressaram com o décimo inferior das notas dos brancos aprovados: um estudo das issões às faculdades 12. llowen e Bok, The Shape of the River, pp. 284, 290. 13. A lacuna entre as notas médias de negros e brancos nu SAT diminuiu consideravelmente de 1976 a 1989 nas escolas mais exigentes da C&B; ibid., p. 30.

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de direito indicou uma diferença, nas notas do exame SAT, de apenas 10 por cento. A diferença nas notas entre candidatos brancos e negros se explica melhor, em qualquer caso, por meio do apriinoramento extraordinário nas décadas recentes das qualificações acadêrnicas dos candidatos brancos às escolas seletas - Bowen e Bok chamam esses candidatos como "espetacularmente" bem-qualificados-do que qualquer hipótese de que os candidatos negros não eram qualificados. Cinco das escolas da C&B, que do contrário eram representativas de todas, mantiveram i:hformações completas :i:obre todos os candidatos d~,1989, mais de 75 por cento dos candidatos negros tiveram 'ó: otas .mais altas em n1atemática no exame SAT e mais de 7~ por -Cento dos candidatos negros tiveram orais mais altas fio SAT do que a média nacional dos brancos, O êxito profissional dos negros formados nas escolas da C&B, discutido abaixo, refuta qualquer hipótese de que o grupo dos negros era desqualificado para tal formação. É fato marcante, ademais, que a média das notas no SAT dos negros n1atriculados nas escolas mais exigentes em 1989 foi mais alta do que a média de todos os matrictilados nas mesmas instituições em 1951. Como os a11tores observam, os formados de meia-idade e mais velhos deveriain pensar no fato antes de afirmar com veemência que os negros itidos por intermédio dos programas de ação afirmativa são inadequados para suas universidades. Também vale notar que as notas dos negros retroativamente rejeitados - aqueles que o estudo presume que não teriam sido itidos se tivessem feito exames neutros com relação à raça - não foram muito diferentes das notas do negros que seriam aceitas de qualquer maneira. Nas cinco escolas mencionadas, a nota média dos primeiros no SAT foi 1.145, e dos segundos 1.181. Assim, embora eliminar a ação afirmativa viesse a reduzir muito o número de negros que freqüentam escolas seletas, não aumentaria muito as notas 1nédias dos que freqüentam.

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Os negros desperdiçam a oportmüdade que lhes oferecem? Estariam em melhor situação se estudassem em instituições menos exigentes, nas quais se "encaixariam" melhor? Em seu livro recente, America in Black and VVhite (Arr1érica em preto e branco), Stephan e Abigail Themstrom relatan1 que em cerca de 300 das "principais" faculdades e universidades, entre 1984 e 1987, o índice de evasão foi de 43 por

cento entre os alunos brancos e de 66 por cento entre os negros. Citam um artigo do ]oumal of Blacks ín Higher Education, que define esse fato como "desastroso", e o mesmo fato para jttstificar sua própria conclusão de que "as políticas de issão com base na ação afinnativa ... funcionaram para aumentar o número de issões, mas se seu objetivo mais amplo era au1uentar o nltmero de afro-americanos que co11cluiriam os esrudos com êxito, as políticas preferenciais tiveram resultados decepcionantes e até coritraproducentes"l-1. Mas (como teria ficado evidente se tivessem citado as duas frases imediatamente após a frase do ]ournal da quill a extraíram)lS, seu argumento é m·uito enganador. Os números que citam foram extraídos dos arquivos de 301 escolas da Divisão Ida Associação Atlética Nacional de Faculdades (National Collegiate Athletic A.ssociation, NCAA), e, embora essas escolas contem com algumas instituições que estão entre as mais "importantes", também contam com muitas que não estão16. Embora o número total de desistentes en14. Then1strom e Themstrom, America in Black and White. 15. As duas frases seguintes são: "Mas nas escolas de mais alto nívd o índice de formatura de negros é altfasÍJno, em ulguns casos quase alcançando o índice Je brancos. Isso refuta a tese de que a ação afirmattva nas faculdades e universidades de elite do país IE'V
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tre os negros nas 301 escolas seja muito maior do que o de brancos, o total de brancos é tão assustadoramente alto que indica que a ação afirmativa não pode ser o problema principal. Os Themstroms não oferecem prova nenhuma, em caso algum, no tocante a quantas dessas 301 instituições praticam a ação afirmativa. (Bowen e Bok mencionam um estudo que sugere que somente 20 por cento das primeiras da lista de todas as instituições de quatro anos o fazem.) Se mttitas não o fazem, a diferença nos índices de formaturas seria abalada, mesmo que tal prática fosse elimina_da em outro lugar17. O estudo River é muito mais minucioso e útil do que o estudo citado pelos Themstroms. Demonstra que o índice de evasão de negros nas escolas da C&B é pequeno em comparação com os índices nacionais: 75 por cento dos negros da tunna de 1989 da"C&B formaram-se na escola em que ingressaram seis anos depois, comparados aos 59 por cento de alunos brancos das 301 escolas que pertencem à Divisão I da NCAA. Mesmo assim, o índice de formaluras de negros é mais baixo do que o fudice de brancos, mesmo nas escolas da C&b -11 por cento mais baixo no grupo de 1989. l:>arte dessa lacuna pode ser explicada por fatores óbvios - os negros provêm, em média, de famílias mais pobres e é mais provável que sejam obrigados a abandonar a faculdade por motivos financeiros, por exemplo - mas nem tudo pode ser explicado dessa maneira. Não obstante, o Úl.17. Um eshido recente, publicado pela Southern Education Foundation, descrevia as issões de negros a universidades em 19 Estados -principalmente, embora não apenas, em estados do slll, onde é bem alta a proporção de negros em idade urúvewitária. O estudo relatou um índke deprimente de evasão negra nas instituições públicas desses estados - os negros representavam 17 por cento dos ca!ouros, mas só 10 por cento dos formandos. Mas o estudo também relatou que muita~ dessas instituições foram duramente criticadas por insístin~m em normas de issão com neutralidade racial e por rejeitarem ou limitarem a ação afmnativa. Ver Ethan Bronner, "Black Gains Found Meager in lhe Old Segregated States", New York Times, 28 ago. 1998, p. BS.

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dice de formaturas de negros, para neb>ros de todos os níveis de notas 110 SAT, é progressivamente mais alto nas escolas mais exigentes do grupo da C&B. Até os negros com as notas mais baixas no SAT (1.000 ou menos) se formaram em números mais elevados quando freqiientaram escolas mais seletivas e exigentes do grupo da C&B, nas quais adiferença entre suas notas e a média de outros colegas era maiorts. Bowen e Bok analisam uma série de explicações para esses resultados. As escolas mais exigentes também são mais ricas, com mais recursos disponíveis para bolsas de estudo e outras formas de aUXI1io aos alunos. Já que o valor econômico do diploma universitário aumenta sobretudo com o prestígio da escola, todos os alunos têm maior inci;ntivo financeiro para permanecer em uma escola mais seleta. Tais escolas também têm recursos para criar programas de "orientação" e outros para ajudar os negros, com formação anterior menos adequada em estudos e capacitação para pesquisas, a alcançarem o 11ível exigido, e o estudo demonstra o valor dessa ajt1da em outras maneiras. De qualquer modo, essas descobertas têm gi-ande importância porque parecem r€futar a hipóte.se da "adaptação" que os Themstroms e outros defendem: que se formariam mais negros se fosse abolida a ação afirmativa e, em conseqüência disso, eles freqüentassem escolas menos exigentes e competitivas. Essa hipótese deprimente também é desmentida por muitos outros dados e análises do estudo de River. O grupo

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18. ()estudo de Ri·ver também contradiz outro pressuposto bastante divulgado. Alguns críticos que cita acusam os negros de se formarem principalmente em matérias "negras", como ºestudos negros e nlulticulturalis1no", porque é mais fácil para eles tirar boas notas nessas matérias. Ver Lino A. Graglia, "Racial Preferences in ission to Institutlons of Higher Education", in The Jinperiled Academy, ed..Howard Dickman (Nova York: lhln~action, 1993), p. 135. Na verdade, os negros das escolas da C&B estão distribuídos entre os curso~ m~is ou menos na mesma proporção que os brancos.

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dos negros não sofre, financeiramente ou de outras maneiras, quando freqüenta uma escola mais exigente. Em todos os níveis do SAT, os negros se dão melhor depois de freqüentar escolas mais seletas e se declaram mais satisfeitos com a carreira. A maioria dos negros que freqüentam escolas exigentes também não relata nenhum constrangimento ou arrependimento quando recorda o período em que cursou a faculdade, nem insinua que foi "sacrificada" pelos programas de ação afirmativa. Os formandos negros das escolas da C&B expressam satisfação com a vida universitária nos mesmos altos índices- no grupo de 1989, 91 por cento declararam-se "muito" ou "uin tanto" satisfeitos-de todos os outros alunos. Ademais, em todos os níveis do SAT, os negros que freqüentaram escolas mais exigentes da C&B, nas quais o desnível e11tre suas notas no _SAT e a norma para a escola era mais alto, relataram um grau mais alto de satisfação, que é o contrário do que a hipótese da "adaptação" afirma. Essa hipótese teve papel importantíssim.o no debate sobre a ação afirmativa dos últimos anos: o estud.o de River - pelo menos até ser refutado por provas concretas, e não por estudos de má qualidade ou casos isolados deve pôr fim a esse papel. llI

A ação afirmativa produziu, como se esperava, mais empresários, profissionais liberais e líderes comunitários negros bem-sucedidos? Se avaliannos o êxito pela renda, é certo que sim. Os negros formados nas 28 escolas da C&B no grupo de 1976 encontraram en1pregos menos bem-pag0s do que seus colegas brancos que tiveram as mesmas notas nos exames e na faculdade 011 nos cursos profissionalizantes19, e esse triste fato basta para refutar qualquer insi19. A diferença foi menor para as mulheres. Ver Bowen e 'Bok, The Shape ofthe River, p. 123.

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nuação de que o racismo desapareceu de nossa economia. Mas os ne~os formados da C&B ganham bem mais do que a maioria dos negros com diploma universitário: as mulhe-

res negras da turma de 1976 ganhavam, em média, 73 por cento, ou US$ 27.200 mais do que a média geral das mulheres negras com diploma universitário, e os homens negros nesse grupo ganham 82 por cento, ou US$ 38.200, mais do que a média geral dos home11s negros com diploma.

Vários fatores ajudam a explicar essas diferenças: os negros do grupo da C&B tiveram médias mais altas nos exames e são oriundos, em média, de famílias de nível socioeconômico mais alto do que os outros negros com diplomas em geral Mas o alto nível da escola que freqüentaram é parte importante da história: quanto mais exigente a escola do negro formado, tanto maior será sua renda futura, mesmo que todos os outros fatores sejam os mesmos. Conforme indicam os autores, "embora o diploma de uma faculdade seleta não garanta uma carreira bem-sucedida, pode abrir portas, ajudar os can.didatos negros a superar qualquer estereótipo negativo no qual alguns empregadores ainda se baseiem e gerar oportunidades que, do contrário, não estarirun disponíveis" 2º. A vantagem em renda dos 11egros por freqüentarem escolas mais seletas é reveladora porq11e não só demonstra que essas políticas de issão ajudaram, e não prejudicaram, os beneficiários a que se destinavam, mas oferece mais provas de que os beneficiários estavam perfeitamente qualificados para ganhar com a formação recebida. Os formandos negros das instituições da C&B não conseguiriam nem manteriam seus cargos bem-pagos em istração, Direito e Medicina se sua capacidade e sua formação não os habilitassem a auferir tais salários, na concorrência com outros, por meio de contribuições genuínas à empresa ou à profissão. Não podemos avaliar o êxito da ação afim1ativa concentrando-nos somente nos salários, porém, ou somente no 20. Tbid., p. 130.

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número cada vez maior de executivos, advogados, médicos e professores negros que, segundo o estudo, tal política ajudou a produzir..A ação afirmativa, escrevem Bowen e Bok, "também foi inspirada pelo reconhecimento de que o país tinha necessidade premente de negros e hispânicos cultos, que pt1desscm assumir papéis de liderança em suas comunidades e em todas as nuanças da vida nacional"21. Nesse aspecto, também, o estudo relata êxito. Em todo o país, são simétricas as probabilidades _de-participação _de diplomados negros e brancos nos diversos tipos de gru_pos cívicos e profissionais. Entre os graduados da C&B, porém, é bem mais provável que os negros do sexo masculino o façam, principalmente nas atividades que pareçam mais importantes para as comunidades negras, entre elas a assistência social, os clubes para jovens e as escolas de ensino fundamental e médio. O número de negros que participaram de instituições de serviços comunitários no grupo de 1976 foi quase o dobro do número de brancos, por exemplo. Ademais, em todos os tipos de atividades citadas, era maior a probabilidade de que negros do sexo masculino, e não brancos, assumissem posições de liderança. Essas descobertas são especialmente interessantes em face do temor generalizado, expresso por Henry Louis Gates e Orlando Patterson, entre outros, de que os negros cultos da classe média escolhem vida nova distante dos problemas da comunidade negra em geral22• Esse temor permanece, mas as estatísticas do estudo são promissoras. "O fato de que esse grupo está oferecendo cada vez mais serviços de liderança cívica do que seus equivalentes brancos indica que o compromisso social e as preocupações com a comunidade não foram abandonados ao primeiro sinal de êxito pessoal."23 21. Ibid., p. 156. 22. Ver ibid., p. 171. 23. Ibid. Bowen e Bok também remetem a estudos que demonotram que é bem maior a probabilidade de médicos negros e hi>pánicos trabalharem em bairros minoritários e contar com minorias e pobres entre seus pacientes.

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.A diversidade racial no corpo discente da universidade ajuda a acabar com os estereótipos e a hostilidade entre os alunos e, caso isso aconteça, essa vantagem continua na vida pós-universitária? Ou será que a preferência racial gera animosidade no campus, e um retrocesso que aumenta, em vez de diminuir, a tensão racial geral na comurúdade? Os críticos citam incidentes bastante divulgados de hostilidade racial no campus, e práticas como "mesas negras" nos refeitórios das universidades, para insinuar que a diversidade racial nada fez para reduzir o isolamento e a hostilidade raciais, e pode até tê-los exacerbado. É difícil analisar atitudes e emoções, mas o estudo de . Bowen-Bok produziu estatísticas impressionantes sobre elas. O questionário de Rivers perguntou aos diplomados das turmas que analisou que importância davam às relações raciais, se achavam que s11a formação universitária contrib11iu para melhorar suas próprias relações com outras raças, quais cantatas tiveram com membros das outras raças enquanto estavam na faculdade, e se achavam que as políticas de issão na universidade haviam dado ênfase demais, ou de menos, ou na medida certa à diversidade racial. k:, respostas às pergt.mtas de múltipla escolha só conseguem captar uma parte da complexidade da experiência pessoal e da opinião, mas os resultados são, não obstante, reveladores. Como era de prever, tnais negros do que brancos acharam que conhecer pessoas de outra raça foi especi::tlmente importante. Na turma de 1976, 45 por cento dos bran.cos acharam que foi "importantíssimo" conhecer pessoas com "crenças diferentes" e somente 43 por cento acharam importante conhecer pessoas de outras raças, ao o que 74 por cento dos negros daquela turma acharam q11e a segunda opção era importantíssima e somente 42 por cento escolheram a primeira. O número de brancos e negros que achavam importantíssímns as relações raciais aumentou na turma de 1989, porém -modestos 2 por cento para os negros, mas impressionantes 13 por cento para os brancos .

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(Para os graduandos brancos que ocupavam cargos de chefia em organizações cívicas, o aumento foi ainda maior- 59 por cento.) Quando lhes pediram que classificassem o valor da experiência universitária no aprimoramento da capacidade de "se entender" com pessoas de outras raças, 46 por cento dos bra11cos e 57 por cento dos negros da turma de 1976 deram a esse valor a nota 4 ou 5 (5 indicava "importantíssimo"), e 18 por cento dos·brancos e 30 por cento dos negros deram nota 5. No.grupo de 1989, esses números subiram muito: 63 por cento dos entrevistados brancos escolheram nota 4 ou 5, e 34 por cento escolheram 5; 70 por cento dos negros escolheram nota 4 ou 5; e 46 por cento escolheram 5. São diferenças significativas entre os dois grupos: os autores especulam que os alunos podem ter-se tornado mais conscientes da importância da interação racial em 1989, ou que as universidades podem ter adotado tnais a idéia de gerar um ambiente que facilite tal interação, ou, o que é mais provável, talvez tenham acontecido as duas coisas. É importante tentar confirmar esses juízos subjetivos relativos à importância da diversidade, observando até que ponto se expressaram realmente no comportamento, em especial em face da crença generalizada de que os grupos de alunos quase sempre se isolam raciahnente uns dos outros. O estudo perguntou aos entrevistados se haviam "conhecido bem" dois ou mais alunos diferentes de si mesmos em cada uma das diversas categorias, entre elas origem geográfica e económica, orientação política geral e raça. Embora os alunos negros constihÚssem menos de 10 por cento do corpo discente (menos em uma escola, onde chegavam a 12 por cento), 56 por cento dos entrevistados brancos da turma de 1989 disseram que conheceram bem dois ou mais alunos negros. (88 por cento dos alunos negros disseram qt1e conheceram bem dois ou mais alunos branco.e;;.) Os autores concluem que, embora 11ouvesse indubitavelmente certa

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auto-segregação racial nesses campi, em clubes e nos refeitórios, por exemplo, "os muros entre os subgrupos eram bem porosos" 24• A pergunta seguinte que o estudo apresentou aos entrevistados, sobre aprovarem ou não o nível de preocupação com a diversidade racial que acreditam que sua instituição demonstro·u, tem importância dupla, pois nos ajuda a avaliar não só o valor que os graduandos atribuem a essa diversidade em sua própria vida, mas também até que ponto eles, enqt1anto componentes do público em geral, ressente1n-se com as prefer@ncias raciais. A maioria dos brancos do grupo de 1976 acha que sua instituição dá atenção excessiva a interesses de ex-alunos, competições atléticas inter-universitárias e à pesquisa acadêmica. Mas somente 22 por cento deles acham que ela confere atenção excessiva à diversidade racial e étnica, comparados aos 39por cento que acham ser pequena essa atenção. Os negros dessa turma concordam com seus colegas brancos acerca dos exalunos, das competições atléticas e da pesquisa, mas, compreensivelmente, um número muito n1aior deles acl1a que a instituição dá mlrito pouca atenção a assuntos raciais. (As opiniões do grupo de 1989 são, surpreendentemente, semelhantes às do grupo de 1976, exceto qlte os graduandos de 1989 acham que a universidade dá mais ênfase à diversidade racial do que os graduandos anteriores.) O estudo também divulga dados interessantes sobre a turma de 1951, agora com mais de 60 anos de idade. Era de esperar que esse grupo fosse mais conservador com relação à ação afirmativa, a qual não existia quando estava1n na faculdade, do que as turmas mais rece11tes. Mas 41 por

24. lbid., p. 231. O estudo também investigou onde começaram as interações entre alunos de raças diferentes. Noventa e três por cento dos negros e 80 por cento dos brancos que mencionaram dois O'J mais amigos Íntimos de outra raça citaram "turma oll grupos de estudosn e "mesmo alojamento ou colega de quarto", e cerca de 67 por cento de ambus os grupos citaram #festas e outras atividades sociais" eº atividades extracurricu!ares".

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cento da turma de 1951 (comparados aos 37 por cento e 38 por cento das turmas de 1976e1989) acham que se deve dar muita atenção à diversidade racial. Embora aproximadamente um terço de seus membros ache que a instituição agora dá ênfase excessiva a isso, metade acha certa a atual ênfase, e 17 por cento gostariam que fosse maior. Pode parecer plausível supor que os alunos brancos com notas relativamente baixas nos exames SAT, que poderiam ter-se preocupado mais com os efeitos das issões sensíveis à raça antes de serem itidos, teriam uma desaprovação maior. Não há, porém, diferença significativa em aprovação ou desaprovação de tais políticas em toda a faixa de notas no SAT. Talvez seja ainda mais surpreendente que esses alLmos brancos, que não foram itidos na primeira opção da escola, e que se pode esperar que atribuam seu fracasso às preferências raciais, não desaprovam mais adiversidade racial do que seus colegas inicialmente mais bemsucedidos o fazem. Os números dos formandos brancos rejeitados uma vez, tanto nas tunnas de 1976 quanto de 1989, são quase idênticos aos do total de graduandos brancos. Essas estatísticas parecem importantes em qualquer tentativa de avaliar o grau de reação geral contra a ação afirmativa nos Estados Unidos. A2. guerras políticas contra a ação afumativa têm-se concentrado nas preferências raciais na contratação, que muitos eleitores da classe operária acham ter motivos pessoais para desaprovar, e alguns comentadores já duvidaram se existe reahnente um profundo ressentimento nacional contra a ação afirmativa mesmo no trabalho. Louis Harris, por exemplo, argumentou que o êxito do projeto de lei da Califórnia, que pedia a extinção da ação afirmativa, foi decorrente de illna apresentação enganadora; sua própria pesquisa conclui, segundo ele, que uma apres~ntação mais justa do projeto teria levado a sua derrota2S. 25. Louis Harris, "The Po>ver of Opiniori"', Crnerge, mar. l 996, pp. 49-52. A pesquisa de Hanis é discutida em um artigo importante de Andrew }Iacket, "Goodbyeto Affinnative Action?", NewYork Review, lljul. 1996.

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De qualq11er maneira, o estudo de River oferece alguns motivos para duvidar se existe um antagonismo geral e arraigado à ação afirmativa especificamente nas issões às universidades. Certamente, muitos candidatos rejeitados por universidades (inclusive, talvez, os queixosos dos processos que mencionei) estão mesmo ressentidos. O estudo, porém, calcula que o número dos alunos rejeitados que estão ressentidos é relativamente baixo. A ação afirmativa prejudica os negros porque os insulta ou constrange, ou destrói se11 auto-respeito, ou envenena a imagem dos negros? Os argumentos mais comoventes contra a ação afirmativa provêm dos negros que se sentem ofendidos ou prejudicados pelo pressuposto de que eles precisam de favores especiais. Qualquer pessoa, Seja um graduan.do negro ou o filho bem-sucedido de pais ricos ou famosos de qualqtter raça, magoar-se-á com desconfianças que desvalorizem suas realizações, e o fato de que mttitos negros importantes acreditem qlte a ação afirmativa tenha incentivado tal suspeita é o preço indubitável e lamentável de tal poütica. É obviamente importante, porém, ao avaliar esse preço, descobrir quantos negros têm essa opinião. Se forem muitos, o preço é alto. Mas se a opinião for rejeitada pela maioria dos negros das instituições de elite, que tem mais probabilidades de sofrer na vida profissional e pessoal com qualquer hipótese de que suas credenciais ou realizações são falsas, ou com a imagem maculada do negro no país se a maioria de tais formandos achar, pelo contrário, que essa"luta pela diversidade racial por intermédio de políticas de issão sensíveis .à raça foi boa para eles e para sua raça - então não se pode considerar Sltficientemente importante o sofrimento da pequena, embora genufua, minoria que discorda a ponto de sobrepujar as vantagens que a maioria acredita que a raça conquistou. De fato, a maioria esmagadora dos negros entrevistados no estudo de River aplaude as políticas sensíveis à raça de sua Miversidade.

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Acham que as universidades agora dão mais, e não menos, importância à diversidade racial, e item o que o estudo confirma, que a ação afirmativa foi boa para eles, para aumentar sua renda e em outros aspectos, menos materiais. Seria possível manter a proporção de negros em instituições de prestígio se a ação afirmativa fosse abandonada e fossem utilizados os padrões de neutralidade racial? O estudo de River calcula, com base em suposições plausíveis, que as issões com neutralidade raciaLteriam diminuído entre 50 e 75 por cento o número de negros nas escolas da C&B26. As conseqüências das políticas de neutralidade racial nas profissões seriam muito grandes e prejudiciais: os negros só totalizariam entre 1,6 e 3,4 por cento do número total de alunos itidos nas 173 faculdades de 'Direito aprovadas pela American Bar Association (Associação Americana de Advocacia) se tais escolas só se baseassem em notas, e menos de 1 por cento nas faculdades de Direito mais seletas27. AJguns acadêmicos, inclusive muitos que não queren1 que caia o número de negros nas escolas de elite, afirmam que seria itido aproximadamente o mesmo número, se as escolas dessem preferência a candidatos de baixa renda, em vez de candidatos negros, pois muitos candidatos negros são pobres. O estudo demonstra que tal afirmação sebaseia numa falácia: embora os candidatos negros sejam desproporcional1nente pobres, a maioria dos candidatos pobres ainda é branca, e até os exames fundamentados na neutrallda-

26. Em uma análise, dos 2.171 negros que ingressaram em escolas da C&B em 1989, mais de 1.000 teriam sido rejeitados na política de issões con\ genuína neutralidade racial, e dos 646 que ingressaram no grupo mais exigente dessas escolas, 473 teriam sido rejeitados; Bowen and Bok, 1"he Shape of the River, p. 350. 27. Um estudo recente calculou que se a ação afirmativa fosse elimínada das issões às faculdades de Medicina, o ingresso de negros "nas melhores faculdades de Medicina do país cairia em 90 por cento"; "What Jf There 'Vas No Affirmative Action in Medical School issions?", Journal of Black~ in Higlter Ediication, primavera 1998, p.11.

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de racial que tivessem como meta a diversidade económica resultariam em números cada vez menores de i1egros2~. É verdade que o cálculo presume que as instituições como as da lista C&B ficariam satisfeitas com uma redução tão acentuada na presença de negros em suas salas de aula, e que não tentariam fugir a qualquer decisão política ou ju-

rídica que as obrigasse a aplicar políticas de neutralidade racial. Essa hipótese não é obrigatoriamente válida. Boalt Hall e outros departamentos da Universidade da Califórnia __ estão estudando alterações nos métodos de issão, inclusive o de tratar as notas altas em faculdades muito me-

nos exigentes como tão importantes quanto as notas altas em Harvard, e basear-se menos em notas de exames29. A legislação estadual do Texas, em reação ao veredicto do Quinto Tribunal Itinerante, pôs em vigor ~ novo programa que exige que as universidades do estado aceitem todos os formandos das escolas que estejam na faixa dos 10 por

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28 .. As escolas da C&B, assin1 con10 a maioria das grandes faculdades e universidades, relatam que tentam recrutar o maior número possível de candidatos de origens desprivilegladas. Mas tais candidatos têm, o que não é de surpreender, preparo muito ruim e relativamente poucos, mesmo entre os negros, podem ser aceitos por escolas exigentes. O estudo de River, usando u1na classificação rudimentar do status sodoecon6mico, descobriu que, embora 50 por cento das famílias negras americanas com filhos dos 16 aos 18 anos de idade pertencessem à rnais baixa de suas três classes (nenhum dos país tem diploma universitário e a renda familiar anual é inferior a US$ 22.000), son1ente 14 por cento dos que se matricularam em escolas da C&B em 1989 eran1 daquela classe e que, embora somente 3 por cento dessas famíli
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cento de notas mais altas: já que algumas escolas de ensino médio são compostas quase exclusivamente por negros, espera-se que essa alteração aumente a issão de negros nas un.iversidádes anteriormente mais exigentes do Texas. Mesmo que tais alterações atinjam sua meta, podem muito bem fazê-lo substituindo aqueles que um programa de ação afirmativa aberto e reconhecido teria escolhido por matriculandos negros menos qualificados. Alguns ex-opositores da ação afirmativa, preocupados com tal possibilidade, estão voltando atrás. O Professor John Yao, de Boalt Hall, que fez campanha pelo Projeto de Lei 209, agora diz ter percebido que a ação afirmativa convencional é um modo útil de manter a diversidade racial, ainda que, segundo ele, "limitando os danos" aos padrões acadêmicos gerais30 •

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Melhorou a situação dos Estados Unidos, julgando-se estritamente pela renda, porque suas Wliversidades e faculdades mais seletas praticam a ação afirmativa há 30 anos? Muitos dos 70 alunos negros "retrospectivamente rejeitados" da turma de 1976, que não teriam estudado em uma escola da C&B se tivessem se submetido aos padrões de neutralidade racial, teriam estudado em outras universidades, menos exigentes. Mas a alta correlação que o estudo estabelece entre a seletividade da escola e o êxito posterior, para todos os níveis de notas no SAT, notas altas no ensino médio e histórico socioeconómico, indica que muito menos estudantes teriam se tomado professores, médicos, advogados ou executivos de altos salários, ou políticos, ou líderes de serviços à comunidade, do que os que estão realmente formados. Os mil alunos negros "retrospectivamente rejeitados" da turma de 1989 já prometem êxito ainda maior. Podemos, então, reformular a pergunta: a situação dos Estados Unidos seria melhor se muito menos cargos importantes fossem exercidos por negros nesta e na próxi30. lbid., p. 58.

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ma geração? Parece incrível supor que sim. Em todas as dimensões nas quais nossa sociedade está estratificada- rerida, riqueza, poder, prestígio e autoridade - os negros estão sub-representados nos níveis mais altos, e a estratificação racial de facto resultante é uma vergonha duradoura, u1n desperdício e um perigo. Como nos imaginaríamos em melhor situação se essa estratificação racial fosse ainda mais absoluta do que é, e se não víssemos sinais, ou víssemos menos sinais, de que está diminuindo?

IV Contudo, se a ação afirmativa é injusta, por violar os direitos dos brancos e de outros candidatos que são recusados, ou dos poucos negros que se sentem ofendidos, então seria inadequada, mesmo que melhorasse a. situação do país. Devemos reparar, antes de começar a examinar tal possibilidade, que os danos que a ação afirmativa inflige a qualquer candidato não preferencial são muito pequenos: o estudo de River indica que, caso se usassem padrões de neutralidade racial em um conjunto dao; escolas estudadas e, por conseguinte, fossem itidos menos negros, a probabilidade de issão de qualquer candidato branco que tenha sido de fato rejeitado teria subido somente de 25 para 26,5 por cento, porque houve tantos candidatos brancos rejeitados com mais ou menos o mesmo nível de notas i10 exame e outras qualificações, que acrescentar mais algmnus vagas não teria aumentado muito as probabilidades para nenhum deles. Quando o Quinto Tribunal Itinerante declarou inconstihtcional o esquema de issão da Faculdade de Direito do 'fexas, e encaminhou o processo a um tribunal de instância inferior para que os querelantes brancos rejeitados que abriram o processo recebessem indenização por perdas e danos, a corte de alçada infetior estabeleceu indenização de apenas um dólar, pois era mttito pouco provável que qualquer um deles fosse itido, mesmo com padrões de neutralidade racial

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A ação afirmativa viola o direito dos candidatos de só serem julgados com base nas gualificações individuais? O que se define como qualificação neste contexto? Em algumas competições, como os concursos de beleza ou os programas de perguntas e respostas, a qualificação é apenas uma qualidade física ou intelectual: o vencedor deve ser o mais bonito ou o mais instruído. Em outras, como a premiação de livros ou as medalhas concedidas por coragem, a qualificação.é alguma realização anterior: o vencedor deve ser o candidato que produziu o melhor trabalho ou produto, ou demonstrou algum tipo de característica especial, 110 ado. Ainda em outras competições, porém, a qualificação é questão de possibilidades futuras, e não de realizações adas ou de dotes naturais: uma pessoa racional não escolhe um médico em homenagem a suas habilidades ou para recornperisá-lo por curas adas: escolhe o médico que espera fazer o melhor por ela no futuro, e só considera o talento inato ou as realizações anteriores do médico porque, e na medida que, sejam bons indicadores do valor do médico para ela no futuro. A concorrência por vagas na universidade é, obviamente, uma competição do último tipo. Os responsáveis pelas issões não devem oferecer as vagas como prémios por realizações ou trabalhos ados, nem como medalhas por talentos ou virtudes inerentes: seu dever é tentar escolher um corpo discente que, 110 todo, venha a dar a maior contribuição possível às metas legitimas que a instituição definiu. A educação superior de elite é um recurso valioso e escasso, e, embora só esteja disponível para pouquíssimos alunos, é paga por toda a comunidade, mesmo no caso das universidades "particulares", que são parcialmente financiadas por verbas públicas e cujos doadores "particulares" se beneficiam das deduções tributárias. As universidades e as faculdades têm, portanto, responsabilidades públicas: devem escolher metas que beneficiem uma comunidade muito mais ampla do que seus próprios corpos docente e discente. Não é preciso que sejam metas econô-

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micas, sociais ou políticas em sentido : pelo contrário, esperamos que todas as nossas instituições educacionais, e em especial as mais bem financiadas e as mais prestigiadas, contribuam para a ciência, as artes e a filosofia, cujo progresso faz parte de nossa responsabilidade pública coletiva, e selecionem alunos e professores com essa meta em mente. Mas o progresso _dos-conhecimentos não é a única meta que permitimos ou esperamos que as instituições educacionais procurem alcançar. Esperamos que todas, especialmente as mais bem financiadas, também ajudem tanto os alunos quanto a comunidade de outras maneiras, inclusive mais práticas - uma grande universidade pode decidir apropriadamente estudar o tratamento da aids ou do mal de Alzheimer, mesmo quando sabe que outras pesquisas, mais simples, seriam teoricamente mais gratificantes. Também não esperamos que todas as escolas adotem as mesmas metas ou dêem a mesma importância relativa às metas que escolhem. As grandes universidades de pesquisa da base de dados C&B têm prioridades diferentes daquelas das faculdades menores de ciências humanas presentes na base de dados, e an1bas têm metas diferentes das metas das pequenas faculdades agrícolas, das faculdades comunitárias e de outras instihlições de um tipo não representado na base de dados. A liberdade académica que prezamos significa, entre muitas outras coisas, que cada instituição está livre, dentro de llinites amplos, para definir metas para si mesma e estratégias acadêmicas, inclusive estratégias de issão, que creia serem mais apropriadas a essas metas. Todas as escolas da C&B consideram, tradicionalmente, as notas altas em ensino médio, faculdade ou SAT, e cm outros exrunes, qualificações importantes para a educação universitária e profissional Mas nenhuma delas trata essas qualificações estritamente académicas como exclusivas: de vez em quando todas rejeitam candidatos com notas altas até candidatos negros - e dão preferência a outros alunos,

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com notas mais baixas. A lista das outras qualificações é longa: nela figuram motivação para o serviço público, capacidade atlética, origem geográfica incomum e, no caso de algumas dessas escolas, "hereditariedade", que significa ser filho de ex-alunos da universidade. Os responsáveis pelas issões consideram todos esses atributos, e muitos outros, como indicadores (embora nada perfeitos) de que determinado candidato contribuirá para uma ou mais metas tradicionais da instituição. O estudo de River demonstra, e as grandes universidades e faculdades dos EUA reconhecem isso há 30 anos, que pelo menos duas dessas metas tradicionais tornam-se mais íveis quando incluem a raça do candidato entre os inúmeros fatores a contemplar. Em primeiro lugar, como já disse, as escolas americanas almejam turmas de alunos que sejam diversificadas em diversos aspectos. Presumem, plausivelmente, que os alunos estão mais bem equipados para a vida profissional e comercial, e mais bem preparados para se comportar como bons cidadãos cm uma democracia pluralista, se trabalharam e se divertiram com colegas de diversas origens geográficas, classes económicas, religiões, culturas e - sobretudo agora - raças. Os críticos argumentam que a seleção segundo critérios de raça é um modo inadequado de procurar a diversidade, pois este presume, de maneira equivocada e ofensiva, que todos os alunos negros, e somente os negros, proporcionam a diversidade desejada em termos de classe social, atihtdes políticas ou cultura: seria melhor, segundo esses críticos, aceitar alunos de qualquer raça cujos pais sejam pobres ou gostem de soul music, em vez de procurar allU1os negros, alguns dos quais têm pais ricos ou preferem Bach. Mas essa objeção não alcança o aspecto da diversidade em questão, que não é o que a raça pode ou não indicar, mas a própria raça. Infelizmente, os piores estereótipos, desconfianças, temores e ódios que ainda envenenam os Estados Unidos são codificados pela cor, e não pela classe ou pela cultura. É fundarnental que os negros e os brancos se conheçam e se irem, e se alguns 11egros não tiverem a classe,

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a cultura ou outras características que lhes sejam associadas por estereótipos, é óbvio que isso aumenta, em vez de destruir, as vantagens da diversidade racial Em segundo lugar, nossas escolas sempre almejaram ajudar a melhorar a vida da comunidade, não só protegendo e aprimorando sua cultura e sua ciência, ou aperfeiçoando a medicina, o comércio e a agricultura, mas ajudando a tornar essa vida coletiva mais justa e harmoniosa - essas estão, afinal, entre as principais aspirações de nossas escolas de direito e das escolas de istração pública e política, e devem estar entre as metas de todo o resto do meio acadêmico. Nossas universidades e faculdades têm o direito de pensar que a segregação incessante e debilitante de raça, classe, oc_upação e status nos Estados Unidos é inimiga tanto da justiça quanto da harmonia, e uma das conclusões mais impressionantes do estudo de River é que a ação afirmativa começou a erodir tal segregação de um modo que talvez nenhum outro plano ou política poderia fazer. Esperamos que as instituições de ensino contribuam pa.ra nossa saúde física e econômica,. e devemos esperar que também faça o possível por nossa saúde moral e social. Assim, a ação afirmativa, ao tentar realizar qualquer uma das duas metas, ou ambas, da diversidade estudantil e justiça social, não compromete em hipótese alguma o princípio de que só se devam conceder vagas com base nas qualificações legíti1nas e apropriadas. Nenhum aluno tem direito a uma vaga na universidade devido a realizações adas ou virtudes, talentos ott outras qualidades inatas: só se devem julgar os alunos pela probabilidade de contri.buição que cada um deles, em combinação com outros sele·· cionados pelos mesmos critérios, fará para as diversas metas que a instituição escolheu legitimamente. Não estou dizendo (como alguns críticos vêm acusando os defensores da ação afirmativa de supor) que a cor negra seja em si uma virtude ou aspecto de mérito. É, não obstante, uma qualificação no sentido que venho descrevendo. Não se considera a altura da pessoa uma virtude ou mérito. Mas a pessoa alta pode, exatamente por esse motivo, estar melhor capa-

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citada para contribuir, em uma quadra de basquete, para uma das metas tradicionais da universidade e, da mesma maneira, e1nbora por motivos mais lastimáveis, o negro pode, por esse motivo, estar mais habilitado para contribuir em outras metas, na sala de aula, no alojamento e no decorrer de sua carreira posterior.

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Por que, então, tanta gente con.sidera injusta a ação afirmativa? Por que muitos de seus defensores também item que é um remédio amargo, mesmo que seja, na opinião deles, necessário? 'Devemos nos encarregar de identificar e analisar uma série de respostas a essas perguntas, pois cada uma delas tem tido um papel importante, embora desarticulado, na reação pública. Quase sempre se diz, em primeiro lugar, que as políticas de issão sensíveis à raça não julgam os candidatos como "indivíduos, mas somente como membros de grandes grupos. Essa objeção foi usada com ênfase contra as primeiras formas, ainda toscas, de ação afirmativa, tais como o sistema de quotas que foi declarado inconstitucional no processo Bakke, porque, como o Juiz Powell disse, depois de preenchida a quota, nenhum outro candidato branco poderia ser comparado, mesmo apelando-se ao critério de avaliação geral, a ttm negro que fosse itido em seu lugar31 • Nas versões contemporâneas da ação afinnatíva nas issões em universidades, porém, não se usam quotas: esses planos são, nesse aspecto, semelhantes ao plano da Harvard, que Powell aprovo·u expressamente. Os res_ponsáveis pelas issões agora julgam cada caso, recorrendo a critérios de avaliações abrangentes, e às vezes aceitam um aluno branco com nota no SAT inferior à de um candidato negro rejeitado. Ninguém é aceito ou excluído simplesmente devido à raça. 31. A diferença presumida entre os primeiros planos de quota~ e os planos mais complexos subseqüentcs é exagerada - ver Dworkin, "The Bakke Dedsion" -, mas ·a diferença está agora firmementt' estabelecida no Direito Constitucional.

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Muitos acham que, mesmo que as u.niversidades devam analisar uma vasta série de propriedades-entre as qualificações para issão, reconhecem que a raça, por motivos especiais, não devia estar entre elas. É essencial, porém, distinguir diversas modos de se classificar a raça como item especial e analisar as conseqüências de cada um deles. Já discorremos sobre um: muita gente acha que os critérios de issão sensíveis à raça exacerbam, em vez de ajudar a aliviar, a tensão racial. Mas podemos descartar essa afirmação, à luz do estudo de River, a não ser que ele venha a ser invalidado. Muita gente também acredita, porém, que as classificações raciais estão sempre erradas em princípio, mesmo quando seus resultados são os desejados. Indicam que não aceitariam o argumento de uma faculdade de Direito que rejeite todos os candidatos negros, porqt1e pretende ajudar a economia da comunidade produzindo fonnandos que realmente venham a trabalhar nas firmas locais de advocacia, as quais não aceitam negros. Insistem que não podemos, em tese, reconhecer esse uso ofensivo da raça para alcançar resultados oriundos do que chamam de uso "benigno". E mesmo que pudéssemos fazê-lo, em princípio, não o seria de maneira realista na prática, pois as práticas hostis podem, com facilidade, disfarçar-se de benignas. O primeiro desses argume·ntos é o mais fácil de refutar: é possível distinguir a ação afirmativa do uso maligno da raça, pelo menos em princípio, de duas maneiras. Em pri·meiro lugar, podemos definir um direito individual que as formas malignas de discriminação violam, mas que programas bem elaborados de ação afirmativa não o fazem: esse é o direito fundamental que cada cidadão tem de ser tratado pelo governo, e pelas instituições que têm apoio do governo, como igualmente dignos de consideração e respeito.Nega-se esse direito ao cidadão negro quando as escolas justificam a discriminação contra ele recorrendo ao fato de que outras pessoas têm preconceito contra membros de st1a raça.

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Mas a defesa da ação afirmativa não expressa, seja direta ou indiretamente, preconceito contra cidadãos brancos; procurar uma diversidade racial não expressa mais preconceito contra os brancos do que expressaria a procura de uma diversidade geográfica contra as pessoas dos grandes centros urbanos. Em segundo lugar, embora seja importante dar bastante liberdade às universidades na elaboração de suas próprias metas e finalidades, podemos, porém, insistir na afirmação de que algumas metas que determinada universidade poderia adotar sejam ilegítimas e inaceitáveis, e podemos refutar, como tal, uma meta que defenda ou incentive a estratificação racial de nossa sociedade. É verdade, porém, que talvez seja difícil pôr em prática essas distinções de princípio, em especial porque se baseiam em juízos acerca de motivações institucionais, quase sempre difíceis de identificar. Como podemos ter certeza, por exemplo, de q·ue um programa que dá preferência a algumas minorias, como os negros ou os hispânicos, não é motivado pela h.ostilidade a outros grupos de cidadãos os de origem asiática ou os judeus, por exemplo - que têm boas notas nos exames e seriam itidos em maior número se as pollticas de issão empregassem critérios de neutralidade racial? Ou por um desejo ainda mais rude da parte dos responsáveis pelas issões de algumas instituições - que podem ser negros, eles mesmos - de favorecer seu próprio grupo à custa dos outros? Não seria melhor proteger-se contra essa possível corrupção simplesmente proibindo o uso de critérios raciais nas issões às universidades? Esse argumento vem sendo usado em situações que não são universitárias, como um argumento, por exemplo, para que não se pennita às câmaras municipais, que be111 poderiam ser dominadas pelos membros negros ou depender do apoio dos negros, para reservar uma quota de contratos na construção civil para firmas pertencentes a negros, ou permitir-se que a legislação estadual, que poderia ser influenciada pela política racial, dessa e de outras ma-

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neiras, crie distritos eleitorais que venham a eleger mais políticos negros3 2. l)orém, por mais convincentes que esses ar~ gumentos favoráveis à proibição de classificações raciais possam ou não ser nessas outras situações, parecem fantasiosos e deslocados quando aplicados à educação superior. O corpo docente e os es acadêmicos que estipulam e usam políticas de issão sensíveis à raça não têm, em hipótese algurr.a, dívida de gratidão ou de poder a nenhuma das comunidades qt1e tais políticas benefit."iem. Agem com a finalidade de realizar as metas tradicionais que o es-

tudo de River demonstra serem dessa forma alcançadas de maneira mais eficiente. Ademais, qualquer desconfiança de hostilidade oculta com relação a outro grupo q11e também tenha sido alvo de preconceito seria facilmente comprovada, verificando-se se tal grupo está desproporcionalmente representado entre aqueles que talvez fossem adinitidos, caso se aplicassem os critérios de neutralidade racial. É verdade que tais ponderações não eliminam todas as possibilidades concebíveis de que as motivações ilegítimas tenham tido seu papel. Mas negar a todas as universidades o poder de fazer o que lhes for possível para aumentar a diversidade, a justiça social e a estabilidade, com base na remota possibilidade de que uma ou d·uas instituições possam abusar de tal poder sem ser detectadas, seria o mesmo que negar o uso de verba pública na pesquisa médica porque alguns pesquisadores poderiam ser plagiadores ou ladrões. Podemos, portanto, descartar esses argumentos equivocados de princípi.o e de política. Devemos, contudo, reconhe-

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32. V!óro veredicto da Suprema Corte em City ofRichmond versus f. A CroCompany, 488 U.S. 469 (1988), que derrubou um programa de reservas cria-

do pela assembléia legislativa da cidade de Richmond, dominada pelos negros; e seus veredictos em Shaw vmus Mio, 509 U.S. 630 (1993) e Miller versus Johnson, 515 U.S. 900 (1995), que J~dararam inconstitucionais os planos de manipulação eleitoral que tinham a finalidade de aun1entar o nlunero de representantes negros. Discuto o veredicto de Croson rninudosan1ente no Capitulo 12.

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cer o importante fato psicológico de que muitas pessoas acham que ser rejeitado pela universidade por não pertencer à raça "certa" é muito pior- ofensa e agressão maior-do que ser rejeitado por falta de outra qualidade, uma habilidade ou capacidade física, ou mesmo porque os pais não se formaram em tal escola. Essa indignação é ~ompreensível, porém, não porque a raça tenha alguma impoi:tância especial na metafísica da identidade pessoal - a cor da pele não é menos questão de- escolha, e não tem mais fundamentos genéticos do que as habilidades que garantem que alguns adolescentes não conseguirão pontuação superior a 1.400 no SAT, seja qual for o empenho que tenham dedicado à preparação para os exames. Ecompreensível porque conhecemos muito bem o caráter e as conseqüências das classificações raciais hostis. A discriminaç'ão racial expressa desprezo, e é profundamente injusto e prejudicial ser condenado pelas características nahuais; a discriminação racial é, sobretudo, destruidora da vida de suas vítimas-não lhes rouba uma ou outra oportunidade que esteja ível a outrem, mas os prejudica em quase todas as perspectivas e esperanças que possam imaginar. Em uma sociedade racista, as pessoas são de fato rejeitadas pelo que são e é, portanto, natural que as classificações raciais sejam encaradas como capazes de infligir um tipo de danos especial. Seria, contudo, cruel desaprovar o uso de tais classificações para combater o racismo, que é a verdadeira_ e_ constante causa de tais danos. O caráter psicológico especial da raça não é um fato fixo ao qual as políticas devam sempre respeitar. É um produto e sinal do racismo, e não se deve permitir que proteja o racismo que o gerou. Devemos analisar uma última razão para que se classifique a raça como algo especial, a qual está na interseção entre as ponderações morais e jurídicas. Quase sempre se argumenta que a história social e constitucional dos Estados 'Unidos nos aprisionou, como povo, em ll'ma sociedade que é indiferente à cor não só por finalidade suprema, mas também como um meio que te1nos o direito de empregar para

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atingir qualquer fim. Segundo esse argumento, as emendas constitucionais adotadas após a Guerra Civil, entre as quais figura a garantia da 14~ emenda de "igual proteção das leis", foram um compromisso nacional - tanto moral quanto jurídico - de recusar à raça qualquer papel oficial em quaisquer que sejam os assuntos. Nesse caso, os programas universitários de ação afirmativa estão errados em princípio, violem ou não os direitos individuais de qualquer pessoa, pois desconsideram um compromisso nacional importante . .tvlas esse argumento, embora muito difundido, não é convincente. Alguns críticos da ação afirmativa declaram, como vimos, que o co1npromisso de indiferença à cor seria uma sábia decisão estratégica: que os resultados do enfrentamento e da eliminação do racismo seriam melhores, a longo prazo, se sempre evitássemos qualquer classificação racial, mesmo as que possam parecer, no curto prazo, eficazes contra o racismo. Mas não oferecem um argumento para essa hipótese estratégica, e o estudo de River parece demonstrar que é falsa. Nem há fundamentos para supor que a Constituição, ou qualquer outra coisa, tenha amarrado a nação a tal estratégia. A 14~ eme11da não menciona raça, e nenhuma interpretação plausível de tal emenda demonstra que ela exclui, automaticamente, todas as classificações raciais como meios de se alcançar mais justiça. Nem o povo dos Estados Unidos, por meio de nenhum consenso de longa data, excluiu todas essas classificações com tal finalidade. O suposto campromlsso nacional é ttma ilusão. Assim, segundo as melhores provas até este momento disponíveis, a ação afirmativa não é contraproducente. Pelo contrário, parece muito bem-sucedida. Nem é injusta: não transgride os direitos individuais nem compromete nenhun1 princípio moral Será, não obstante, inconstitucionaL como julgaram os juízes do Quinto Tribunal Itinerante no processo Hopwood? No Capítulo 12, 3TI.aliso os argwnentos do princípio constitucional e a análise dos veredictos recentes da Supre~ ma Corte nos quais se fundamentaram tais juízes. AJi, ar~

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gumento que tanto o princípio quanto os precedentes continuam a amparar o princípio de Bakke, que afirmou apropriadamente que os critérios de issão sensíveis à raça são constitucionais. Evidentemente, a ação afirmativa tem sett preço - tanto para os candidatos brancos decepcionados quanto para os negros bem-sucedidos que se ofendem com qualquer desconfiança de que precisaram de uma preferência especial para ter êxito - e, sem dúvida, essa política vem provocando mais ressentimentos, em geral mesmo que a escala desses ressentimentos continue incerta. Mas o preço moral e prático de proibi-la seria muito mais alto. A discriminação racial sistemática do ado gerou uma nação na qual os cargos de poder e prestígio sempre ficaram reservados para uma só raça. Não foi um ato irresponsável os críticos se orem à ação afirmativa, argumentando que faria mais mal do que bem, quando as conseqüências da política ainda eram incertas. Mas seria um erro a nação proibir tal política agora, quando estatísticas e análises abrangentes demonstraram de maneira óbvia o seu valor. A não ser que, e até que, o estudo de Ríver seja refutado por um estudo maior e mais pormenorizado, não temos motivo para proibir a ação afirmativa universitária, como arma contra nossa deplorável estratificação racial, exceto nossa indiferença ao problema, ou nossa ira petulante por ela não ter desaparecido sozinha33_

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-_;: J33. Alguns juízes da Suprema Corte realmente falaram do ideal consti-

tucional dos Estados Unidos como uma sociedade não sensível à cor. Mas eles o fizeram ao analisar quais díreitos constitucionais a cláusula da igual proteção garante contra as classificações raciais, e não como parte do argumento de que se deve interpretar que a Constituição proíbe tals classificações por uma questão de estratégia. Os juízes não têm autoridade para emitir seus próprios juízos políticos estratégicos desconsiderando o saber coletivo dos especialistas, e de empregar a Constituição para proteger esses juízos estratégicos contra todas as refutações. Ver Ronald Dworkin, Freed-Om's Law (Cambridge, Mass .. Harvard University Press, 1996).

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Capítulo 12

Ação afirmativa: é justa?

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A ação afirmativa é inconstitucional? Transgride a garantia da 14~ EmeRda de "igual proteção das leis" para que as universidades dêem preferência a negros e a outras minorias na feroz competição pelas vagas, como nossas n1elhores universidades vêm fazendo há 30 ai1os? Em 1978 o juiz Lewis Poweli, em seu parecer no famoso veredicto da Suprema Corte no processo Bakke, decretou que as preferências raciais são pemtlssíveis se sua finalidade for aumentar a diversidade racial entre os alunos, e se não estipularem quotas fixas para as minorias, mas levarem em consideração a raça como um dos fatores dentre muitos1 . Já que quatro outros juízes desse processo endossavam até o sistema de quotas, cinco dos nove concordaram que os planos que atendessem aos requisitos de Powell seriam constitucionais. Mttitos advogados temem que a Suprema Corte em breve reconsidere seu veredicto no processo Bakke, porém, e declaram que qualquer preferência racial no processo de issão é, afinal, inconstitucional. Em 1996 o Quinto Tribunal Itinerante de Apelação, no processo Hopwood, derrubou o plano de ação afirmativa da Faculdade de Direito do Texas, e dois de seus três juízes declararam que as decisões L Regents of the U'niversity of Califon1ia versus Bakkc, 438 U.S. 265 (1978).

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recentes da Suprema Corte com relação às políticas de ação afirmativa em áreas que não sejam a da educação já anularam Bakke, na prática, de modo que agofa toda ação afirmativa universitária é inconstituciona12. O veredicto do Quinto Tribunal Itinerante teve resultados imediatos e, na opinião do corpo docente da Faculdade de Direito do Texas, desastrosos: essa faculdade itira 31 alunos negros em 1996, mas só matriculou quatro em 1997. A Suprema Corte recusou-se a rever o veredicto, mas o Center for Individual Rights (Centro para os Direitos Individuais), instituição com sede em Washington, D.C., que havia mediado o processo Hopwood, abriu novo processo em Michigan em 1998, refutando o plano de ação afirmativa da Universidade de Michlgan, e podem-se esperar outros processos e1n outras jurisdições. A Suprema Corte terá de julgar a questão em breve. Além de irónico, será triste se a Cort!:' inverter agora seu veredicto tão antigo, pois acabam de tomar-se disponíveis provas impressionantes do valor da ação afirmativa nas instituições universitárias de elite. Os críticos da política há mtLito argumentam que, entre outras coisas, ela faz mais mal do que bem, pois exacerba, em vez de reduzir, a hostilidade racial, e porque prejudica os alunos oriundos de minorias que são selecionados para escolas de elite, nas quais precisam competir com outros alunos cujas notas nos exames e outras qualificações acadêmicas são muito mais altas. Mas um novo estudo - The Shape of ihe River (A forma do rio), de William G. Bowen e Derek Bok- analisa uma grande base de dados sobre as fichas e os históricos dos alunos e, com requintadas técnicas estatísticas, além de refutaressas afirmativas, demonstram o contrário3 • Segundo o estu2. Hapwood versus Texas, 78 E3d 932, cert. denied, 116 S. Ct. 2581 (1996). No Capítulo 11, mencionei dois pareceres discordantes no processo; na verdade, eram discordâncias numa rejeição de nova audiência u1n mês depois. O relatório Lexis do processo estava errado nesse aspecto.

3. William G. Bowen e Derek Bok, The Shape of the River: Long-Ten11 Con" sequencies of Considering Race in Cullege and llnivcrsity fosions (Princeton: Princeton University Press, 1998).

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do de Fiver, a ação afirmativa alcançou um êxito impressionante: produziu notas mais altas de formatura entre alunos universitários negros, mais líderes negros na indústria, nas profissões, na comunidade e nos serviços comunitários, bem como uma interação e amizade mais duradouras entre as raças do que, caso contrário, teria sido possível. (Discorri pormenorizadamente sobre as descobertas e as conseqüê11cias desse estudo no Capítulo 11.) O estudo afirma que, se a Suprema Corte declarar inconstitucional a ação afirmativa, o número de negros nas universidades e nas faculdades de elite diminuirá muito, e raros serão os negros aceitas pelas melhores faculdades de Direito e Medicina4. Isso seria uma grande derrota para a harmonia e a justiça raciais. Será que a Suprema Corte decretará que a Constituição exige que aceitemos essa derrota? Os juízes do Quinto Tribunal Itinerante estão convictos de que isso acontecerá, e se quisermos compreender por que pensam assim, e por que tantos co1nentadores receiam que estejam certos, devemos explorar o aparato de doutrinas jurídicas e méritos que a Corte criou, nas últimas décadas, para ajudá-la a aplicar a cláusula da igual proteção, pois esse é um dos casos, criados pelo nosso sistema constitucional, em que o fururo social e político dos Estados Unidos depende de minuciosa anáhse judicial. Evidentemente, a cláusula da igual proteção protege os cidadãos contra todas as discriminações ou classificações ju -

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4. Abigail ThemstIO!l\. que é forte oponente da ação afirmativa, argumentou que o estudo de River, ao chegar a suas condusões sobre as conseqiiências hipotéticas das issões com neutralidade radal, ignorou o efeito "cascata": alguns dos negros que teriam sido aceitos por escolas rigorosíssi1na0. no regime da ação afirmativa, mas seriam rejeitados por <$Colas com padrão de neutralidade racial, seriam inscritos em uma escola menos exigente. Ver Abigail Thernstrom, ºA Flawed Defense of Preferences", Wa/I Street ]ourna/, 2 out. de 1998. De fato, o estudo de River chamou atenção explicita para tal conseqüência, que estava claramente expressa na conclusão do livro, de que as polítk~s de neutralidade racial reduziriam em pelo 1nenos 50 por cento o número de negros nas escolas analisadas. \Ter Bowen e Bok, T'lte Shape of the River, pp. 35-42, 349, € tab€las B.4 e B.5 do apêndice.

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rídicas que lhes sejam desvantajosas. O governo precisa decidir a qual pesquisa médica dar apoio, quais artes subsidiar, quais ramos de atividades ou produtos proteger por meio de tarifas ou outras políticas comerciais, quais empresas regulamentar por motivos ambientais, onde criar nova base militar, aeroporto ou local para depósito de lixo nuclear, e milhares de outros assuntos que afetarão o destino e a sorte de cada cidadão de maneira bem diversa. As autoridades to1nam tais decisões por inúmeros motivos. Em tese, deveriam concentrar-se em decisões que, embora beneficiem alguns cidadãos'e prejudiquem o·utros, sejam do interesse geral de toda a comunidade. Na prática, a política de grupos de interesses quase sempre tem papel importantíssimo: 0 ramo de atividades a que se nega proteção ou que se escolhe para regulamentação pode ter perdido sua batalha legislativa, não porque outra decisão seria menos favorável ao interesse público, mas porque lhe faltava poàer político, em tal ocasião, para forçar uma decisão diferente. Não há transgressão à cláusula da igual proteção quando algum grupo perde uma decisão importante sobre os méritos do caso ou por intermédio da política, mas quando sua perda resulta de sua vulnerabilidade especial ao preconceito, à hostilidade ou aos estereótipos e à sua conseqüente situação diminltída - cidadania de segunda classe - nacomunidade política. A cláusula não garante que todos os cidadãos terão benefícios iguais em todas as decisões políticas; ela lhes garante somente o tratamento igualitário - com igual consideração e respeito em deliberações e processos políticos que resultem em tais decisões. A 14~ Emenda, por conseguinte, apresenta uma dificuldade especial para os tribunais que a precisem impor: requer que não julguem mera1nente as conseqüências das leis para grupos diversos, mas també1n o motivo dessas leis. A lei qi1e prejudica a este ou aquele grupo foi produto de uma atitude proibida e preconceituosa com relação ao grupo, ou foi produto de motivos mais benignos? É dificílimo atribuir motivos e atitudes a leis gerais, não só porque é difícil identificar o estado psicológico de cada legislador e das

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outras autoridades, mas pela razão mais profunda de que nem sempre está claro como devemos traduzir esses motivos individuais - bem como os motivos e as atitudes dos constituintes cujos interesses se presume que tal lei adota em um motivo geral que possamos atribuir à própria leis. Em alguns casos é um julgamento fácil, pelo menos retrospectivamente. A Corte decidiu, corretamente, em 1954, que a segregação racial nas escolas transgredia os direitos de igual proteção das crianças negras, pois a segregação indicava sua inferioridade e exclusão. Decidiu com justiça, em 1996, que uma emenda constitucional do estado do Colorado, que proibia qualquer proteção antidiscriminatótia local para homossexuais, violava os clireitos de igual proteção dos me1nbros daquele grupo, porque, segundo o juiz Antho11y Kennedy, "a emenda parece inexplicável por quaisquer meios, a não ser p·ela animosidade à classe que afeta''6_ Outros casos, contudo, são muito mais difíceis de avaliar. Um decreto municipal de controle de alugueL por exemplo, expressa uma teoria sobre a istração de aluguéis justa e sensata ou uma hostilidade especial contra a classe dos proprietários. de imóveis? Parece tolice convidar juízes a rever a sociologia política de todas as leis que qualquer pessoa refute, pois eles não têm tempo nem equipamento para tais esh1dos. Também parece arriscado para a democracia, pois os juízes podem anular decisões democráticas com base em especulações superficiais sobre n1otlvos descabidos7.

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5. Tento identific.TI os diversos enignia.s suscitados pelo conceito de unla intenção legislativa, e esclarecer tal conceito em Law's Empire (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1986), cap. 9. 6. Ramerversus Evans, 488 lJS_ 469 em 511 (Stevens, J., concordando cm patle e concordando no julgamento). Discuto esse veredicto no Capítulo 14. 7. Muitos historiadores da Constituição achain que a Suprema Corte elaborou em estágios o conjunto de doutrinas que descrevo no próximo parágrafo, principalnu•nte em reação à hostilidade que a Corte suscitou quando denubou leis econômicas progressistas fundantentais, antes e durante o Neu.1 Deal. Ver, por exemplo, KG. Jan Pillai, "Phantom of the Strkt Scrutiny", New E11glm1d L1J1v Rc-vit"<-l' 31 (1997): 397.

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Os tribunais, pelo contrário, tentam tratar indiretamen~ te da questão do motivo, por intemLédio de doutrinas que pretendem expor publicamente os motivos inadequados, concentrando-se na questão evidentemente mais objetiva das consegüências reais da lei. Sujeitam todas as decisões políticas refutadas com fundamentação na igual proteção a uma classificação inicial. Se a decisão impõe desvantagens graves ao que a Suprema Corte cham.a de classe "suspeita'' - uma classe que, segundo certa definição famosa, "está dominada por tais incapacidades, ou sujeita a uma história de tratamento desigual proposital, ou relegada a uma posição de impotência política que exige proteção extraordinária do processo político majoritário"ª-, então a decisão deve sujeitar-se a um "escrutínio estrito". Isso significa que deve ser rejeitada porque transgride a cláusula da igual proteção, a não ser que seja possível provar que a desvantagem é essencial para proteger algum interesse de "irresistível" importância para o governo. Mas se aqueles a quem a lei prejudica não configurarem essa classe "suspeita" - se forem apenas membros de determinado ramo de atividades ou profissão, ou residentes de determinada área, e não forem diferentes dos concidadãos de nenhuma maneira historicamente associada ao preconceito ou à antipatia -, então tal lei só está sujeita a um escrutínio "frouxo": é constitucional, a não ser que seja possível demonstrar q·ue não tem utilidade nenhun1a. O encaminhamento inicial de qu.alquer lei ou parecer a um ou outro desses "níveis de escrutínio" quase sempre foi definitivo. Co1no um famoso comentador definiu há muito tempo, o escrutínio estrito é '"estrito' na teoria e fatal de 8. Juiz Pawe// em San 11.ntonia bulepmulent School Dístrid versus Rodriguez, 411U.S.1em28 (1973). Nesse processo, a Suprema Corte rejeitou a afirmação de que os pobres, corno tais, constituem um:i classe suspelta. O conceito de classe suspeita não está hvre de graves dificuldades e am\Jigüidades; discuto essas dificuldades do conceito no Capítulo 14. Mas esses problemas não são pertlnentes à controvérsia da ação afirmativa.

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fato", pois praticamente nenhum interesse pareceu ter importância suficientemente "irresistível" para ju.stificar que se impor1ham mais desvantagens a uma classe suspeita9, e o escrutínio "frouxo" não é, de fato, escn1tínio nenhum, porque sempre se pode atribuir uma finalidade ou outra até às leis mais fúteis. Assim, os advogados que analisam a constitucionalidade dos programas de ação afirmativa começam, obviamente, perguntando se tais programas devem ser classificados, em tese, como casos que mereçam escrutÍn:io estrito ou apenas frouxo. Todavia eles têm grande dificuldade para responder a essa pergunta, pois nenhuma das duas opções parece totahnente adequada. Os planos de ação afirmativa parecem fazer jus ao escrutínio frouxo, pois, embora usem classificações raciais, o grupo que mais prejudicam - os candidatos brancos a faculdades e universidades - não constitui uma "classe suspeita", isto é, uma classe que seja vítima de preconceito. No entanto a raça está tão intimamente ligada à arbitrariedade e ao favoritismo que algumas classificações raciais que pareçam benignas a olho nu podem revelar-se, após exame minucioso, agressivas à Constituição. Pode-se imaginar que as câmaras municipais negras favoreceram empresas de negros por solidariedade racial, por exemplo, ou para punir brancos inocentes por crimes raciais de seus ancestrais; pode-se imaginar que o esquema de issões às ·universidades que dê preferên.cia a negros foi elaborado para reduzir o número de asiático-americanos ou jttdeus matriculados. Uma inspeção minuciosa quase sempre revelaria esses motivos inadequados - as estatísticas poderiam demons9. Gerald Gunther, "The Suprem e Court, 1971 Term-Forewordo In Search of Evolving Doctrine on a Changing Court: A Mude] for a Newer Equal Protection", Harvard Lnw Review 86 (1972): 8. Algumas das poucas exceções - os "processos do aprisionamento dos japoneses", em que a Suprema Corte apoiou a prisão de 11ipo-americanos durante a II Guerra Mundial ·- foram infolizes. Ver Koretrmlsu versus United State.~ 323 U,S. 214 (1944) e Hirabayashi versus United States, 320 U.S. 81 (1943).

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trar se algum grupo desses estava desproporcionalmente represe11tado entre os candidatos rejeitados pela ação afirmativa-, mas um escrutínio frouxo não permitiria tal averiguação. Por outro lado, sujeitar, aos mesmos padrões de escrutínio estrito, as classificações raciais que beneficiem grupos "suspeitos" como classificações que i1npõem mais danos a esses grupos parece carecer de sensibilidade com relação às importantes diferenças morais entre esses dois objetivos. Também parece cruel, porque, como o estudo de River tão bem demonstra, a ação afirmativa é uma das armas mais eficazes que temos contra o racismo qtte o escrutínio estrito se destina a sabotar. Assim, a ação afirmativa apresenta ·um grande desafio à doutrina convencional, e os advogados e os juízes oferecen1 respostas diferentes para tal desafio. A resposta mais díreta - e, creio, a mais atraente - seria declarar a estratégia d.o nível de escrutÍ11io inadequada ao· problema. Essa estratégia, corúorme entendida e empregada historicamente, destina-se a identificar tipos de leis que, por natureza, envolvam risco tão alto de discriminação hostil que a hipótese de hostilidade deva ser quase irrevogavelmente presumida, ou tão baixo que sua possibilidade deva ser quase irrevogavelmente descartada. Os programas sensíveis à raça que sejam, à primeira vista, criados para ajudar um grupo racial que esteja em desvantagem não recaem em nenhuma dessas categorias, e é um leito de Procusto tentar im.por a um ou ao outro. I-'elo contrário, os juízes dev·em inspecionar tais planos, quando refutados em processos, mais caso a caso: devem empregar, como o juiz Thurgood Marshall uma vez recomendot1, o método da régua de cálculo para decidir se há algum indício convincente de que a classificação racial realmente expresse preconceitos ou 11ostilidades do tipo proil:iido na cláusula de it,>ual proteção10. Tal método contemplaria 10. lv1'1I'Shall endossou o método d.1 llesc<1la J~~li.J..unte" em sua discordãn" cía en1 Sa11 Aritonio versus Rodrig11ez, 411 U.S. em 98-99; F11r111a11 versus Georgia,

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entre outros fatores pertinentes, o caráter dos grupos bene-ficiados e prejudicados pelo programa, o aspecto racial ou outros aspectos das autoridades que elaboraram e istrarão o plano, e se o plano tem como objetivo a diversidade educacional, por exemplo - isso é historicamente reconhecido como apropriado para a instituição em questão. É verdade que esse método pormenarizado de analisar caso a caso o problema da ação afirmativa exigiria mais trabalho jlldicial e proporcionaria menos previsibilidade e orientação para os trib11nais de instância inferior, pelo menos inicialmente, até que começassem a surgir novas regras práticas e estratégias doutrinárias. Mas qualquer perda inicial em previsibilidade seria mais do que contrabalançada pela discriminação mais acurada entre políticas valorosas e injustas, permitida pela maior flexibilidade. Os juízes da Suprema Corte discordam há muitos anos se devem ou não abandonar o método dos níveis de escrutínio para a ação afirmativa e, caso não os abandonem, qual nível escolher. Em dois processos, a Corte tentou resolver o problema definindo um nível "intermediário" de escrutín.io, que exige a demonstração de que o plano de ação afirmativa atende a interesses "importantes", mas não obrigatoriamente "irresistíveis''1 1 . Em processos recentes, porém, principalmente por meio de uma série de pareceres escritos pela juíza Sandra Day O'Connor, a Suprema Corte decidiu que todas as classificações raciais, até mesmo as que se destinam obviamente a favorecer, e não a prejudicar, os grupos suspeitos, estão sujeitas ao escrutínio estrito. Em 1986, no processo Croson, a Corte derrubou um projeto da câma'

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U.S. 238, 330 (1972); e Dandn'dge venms Williams, 397 U.S. 471 em 520521-·(1970). 11. Ver Fullilove versus Klutznick, 448 U.S. 448 (1980) e i\:letro Broadca5ting Inc. Ver.JUS FCC, 497 U-5. 547 (1990). O modelo "intermediário" de ponderação foi aplicado à discriminação sexual na Mississippi University for Wrnnen ver:ous Hogan, 458 U.S. 718, 722 (1982); Califano versus Webster, 430 U.S. 313, 322 (1977); e Craigversus Bonm, 429U.S. 190, 197 (1976); e a questões de ilegitimidade em Clark versus Jcter, 486 lJ.S. 456 (1988). ~.08

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ra municipal de Richmond, Virgínia, que exigia dos em~ preiteiros a subcontratação de empresas pertencentes a minorias no valor de pelo menos 30 por cento do contrat0 12. Richmond chamou seu plano de "terapêutico" e disse que adotara o projeto "com a finalidade de promover uma participação mais ampla das empresas pertencentes às minorias nas obras públicas". O' Connor decretou que Richmond só poderia declarar interesse "irresistível" na retificação das conseqüências de longa duração da discriminação ada se ela própria tivesse sido autora da injustiça, diretamente, por suas próprias práticas segregacionistas ou "como participante iva" em um sistema de exclusão racial praticado por elementos da construção civil local" 13; e afinnou que a cidade não havia demonstrado que seu projeto não fora minuciosamente elaborado para retificar somente as.conseqüências de sua própria discriminação direta ou iva. Ela disse que não satisfazia ao escrutínio estrito ao declarar o interesse em alcançar um ambiente de construção civil local com maior diversidade racial, pois pode haver muitos motivos, além dos efeitos de longa duração da discriminação ada, para a participação em pequeno número de representantes de determinada raça em determinado ramo, e não era issível que o governo tivesse como meta alcançar a diversidade racial ou uma proporcionalidade sem objetivos definidos. ()s juízes do Quinto Tribunal Itinerante, no parecer sobre o processo Hopwood que denubou o plano da Faculdade de Direito do Texas, basearam-se principalmente no veredicto da Suprema Corte no processo Croson para justificar sua declaração de que os planos de ação afinnativa nas universidades agora são inconstitucionais. A Faculdade de Direito do Texas argumentou que seu plano de ação afirmativa era justificado, mesmo ando pelo crivo do escrutínio estrito, 12. Cidade de Richmond versus J. A. Croson Company, 488 U.S. 469 (1988). 13. Id. em 492.

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pois, entre outras coisas, a ação afirmativa era necessária para produzir a diversidade racial no corpo discente - a meta que Powell aprovara no processo Bakke. Mas os juízes disseram que Croson e outros processos haviam, com efeito, anulado o princípio de Powell Esses veredictos firmaram jurisprudência: nenhuma instituição estadual pode utilizar a classificação racial para qualquer finalidade, a não ser para remediar conseqüências duradouras de sua própria discriminação direta ou indireta. Os juízes disseram que a faculdade de Medicina não ou no teste, porque havia eliminado a discriminação muitos anos antes. Estão certos esses juízes ao afirmar que Croson e processos posteriores tiveram conseqüências tão impressionantes e devastadoras? Essa é uma questão fundamental para o futuro da educação e da sociedade americanas, e é importante que as pessoas entendam a força real dessa jurisprudência da Suprema Corte.

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De fato, o crivo do escrutínio estrito, conforme costuma ser formulado nos livros didáticos e nos pareceres judiciais, pode ser interpretado de duas maneiras bem distintas. Uma delas (que chamarei de versão da "necessidade mais importante") apóia o parecer dos juízes do Quinto Tribunal Itinerante, de q·ue a Suprema Corte já declarou de fato que toda ação afirmativa en1 universidades é incoristitucional. A outra (qtte chamarei de versão da ''refutação") rechaça essa opinião. Quando analisamos os recentes veredictos da Suprema Corte que os juízes do Quinto Tribunal Itinerante citaram tendo em mente a distinção entre essas duas interpretações do escrutínio estrito, descobrimos que, embora três dos juízes atuais da Sttprema Corte-Rehnquist (presidente da Suprema Corte) e os juízes ScaJia e Thomas-prefiran1 a versão da necessidade mais ilnportante, os principais pareceres de O'Connor pressupõem a versão da refutação. Também achamos que a versã.o da refutação se encaixa bem melhor nos pareceres dos cinco juízes restantes.

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As duas versões baseiam-se em hipóteses completamente diferentes acerca do status constitucional das classificações raciais. Segundo a primeira versão, a da necessidade mais importante, qualquer classificação racial imposta por qualquer órgão do governo para qualquer finalidade transgride automaticamente o princípio da cláusula da igual proteção. A classificação racial só pode ser tolerada, portanto, se for absolutamente necessária tanto como o único meio disponível para tal órgão eliminar sua própria discriminação racial ada ou ainda existente quanto para evitar algum risco de urgência premente - nas palavras do juiz Scalia, "uma emergência social que se eleve ao nível de risco físico iminente"14 - que devamos fazer vista grossa para erros constitucionais graves a fhn de evitar tal perigo. Se o veredicto de Croson for corretamente e11tendido como uma aprovação dessa versão do crivo êlo escrutínio estrito, então os juízes do Quinto Tribunal Itinerante estavam certos. A diversidade racial no corpo discente pode ser uma importante meta acadêmica e social, mas tentar alcançar essa 111eta não justificaria desconsiderar uma violação grave da 14~ Emenda. A sub-representação de minorias nas salas de aula de uma faculdade de direito não apresenta "risco físico iminente". A segunda versão do exa1ne do escn1tínio estrito, a da refutação, fundamenta-se em outras premissas. Não pressupõe que toda classificação racial transgride a 14~ Emenda, mesmo em princípio, e não presume, portanto, gue nenhuma classificação racial seja tolerável, a não ser quando alguma emergência suficientemente grave justifique que se desco11sidere qualquer erro constitucional. Presume que as classificações raciais só transgridem a cláusula da igual proteção quando forem geradas por atitudes inaceitáveis de preco11ceito ou estereotipia que a cláusula considera ilícitas. 14. Id. e1n 521. Os juízes do Quinto Tribunal ItinC'rantc dtaram esse trcçho do parecer de Scalia; ver I-lop~vood, 78 F.3d 945, n. 26.

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Não obstante também supõe que, como se tem demonstrado com freqüência que a raça é assunto de preconceito e favoritismo, é uma sábia estratégia constítucional impor um rígido ânus da prova a qualquer instituição que pretenda essa classificação, exigindo que apresente provas de motivo apropriado prementes o bastante para refutar qualquer desconfiança realista de que não se recorreu a motivos reprováveis. A versão da refutação é muito mais exigente do que o teste da régua de cálculo que eu disse preferir, pois a versão da refutação eleva bastante o nível dos critérios de prova1s. Porém é muito mais flexível do que a versão da necessidade mais impórtante, porque a capacidade de a instituição refutar todas as suspeitas indicando alguma meta ou interesse legítimo a que sua classificação racial atenda não depende só da urgência intrínseca de tal meta, definida de maneira abstrata, mas de todas as circunstâncias concretas. Depende, entre outras coisas, de a meta fazer parte das responsabilidades tradicionais da instituição - por exemplo, diversidade no corpo discente-, de a classificação parecer minuciosamente elaborada para alcançar aquela finahdade, de a instituição ter outros motivos para o que fez, e de quaisquer 15. O'Connor deixot1 duro, em Croson, que parte dos motivos para se exigir a ponderação de interesses até para classificações raciais obviamente benignas era expressar, na doutrina constitucional, a grande suspe!ta e repulsa dos ameriçanos por todas ru; classificações raciais. A versão de refutação da ponderação d€ interesses expressa tal desconfiança e rdpulsa no pesado ónus da prova que atribui às instituições que se sentem obrigadas a usar tais classificações. Conforme sugeri, acredito que até a versão da refutação impõe um ónus pesado dernais aos órgãos e aos departamentos do governo, do Congresso às cfunaras rnunicipaís, que estão lutando com problemas insolúveis de segregação racial de facto na indústria e na política Minha intenção ao distinguir a versão da refutação da versão da neçessidade irresistível da ponderação de interesses nãc é endossar aquela, embora seja claramente preferível a esta, mas apenas esclarecer o que o Supremo realmii'nte decidiu, e o que seus veredictos anteriores impliçam para processos futuros.

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outros fatores que possam fazer SUíf:,TÍr ou eliminar a desconfiança, dados todos os fatos do caso. Assím, o veredicto da Suprema Corte de que Richmond não atenderia ao escrutínio estrito ao declarar que pretendia aumentar a diversidade racial na construção civil não implicaria, nem insinuaria, que a Faculdade de Direito do Texas não poderia atender a tal análise, indicando que suas políticas de issão aumentam a diversidade racial nas salas de aula. Os fundamentos e o caráter da .suspeita podem ser tão diversos nos dois casos que a meta que não conseguir refutar a desconfiança em um caso seria infalível no outro. A interpretação da refutação é muito mais fácil de justificar com base no princípio constitucional do que a inter·pretação da necessidade mais importante. Esta presume que a cláusula da igual proteção proíbe aut?maticamente todas as classificações raciais, sejam quais forem seus objetivos, e não há garantia para tal interpretação em nenhuma teoria plausível da interpretação constitucio11a1. A 14~ Emenda não menciona a raça, e não temos motivos para pensar que aqueles que redigiram e am tal emenda pretendiam proibir completamente todas as classificações raciais. Pelo contrário, muitos deles votaram a favor e aprovaram urna série de classificações raciai<;, entre elas figurava até a segregação.racial em escolas públicas. É verdade que a cláusula da igual proteção estabelece um princípio geral de moralidade política, e que seus intérpretes contemporâneos precisam formular juízos morais se qttlserem permanecer fiéis a esse princípio gera116• Se as classificações raciais fossem inerentes e morahnente h'1adequadas, então poderiam muito bem ser consideradas ir1constitucionais por tal motivo. No entanto (conforme argumentei no Capítulo 11) as classificações raciais não são inerentemente mais equivocadas do que quaisquer outras classifi-

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16. Ver a discussão da igual proteção em Ronald Dworkin, Freedunt's [.aw (Canlhridge, 1:tass.: Harvard University Press, 1996).

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cações fundamentadas em propriedades -físicas ou genéticas. A versão da refutação do escrutínio estrito é, por conseguinte, a versão mais forte sobre o que plattsivelmente o texto e a finalidade da Constituição podem autorizar: se as circunstâncias de algum outro ato lícito do governo que empregue critérios raciais forem tais que refutem todos os vestígios de desconfiança genuína da existência de motivos impróprios, a Suprema Corte não tem autoridade para interferir e impedir tal ação. Os três juízes que citei - Scalia, Rehnqutst e Thomas ~ indicaram, não obstante, que insistiriam em algo como a interpretação da necessidade mais importante. Em seu parecer favorável no processo Croson, Scalia, por exemplo, disse que o único interesse que reconheceria como mais importante, afora a emergência de "risco de morte", seria o interesse da comunidade em eliminar "sua própria manutenção de um sistema de classificação racial ilícita"17. Contudo há muitos indícios de que os outros seis juízes em exercício - na medida em que viessem a sujeitar a ação afirmativa ao escrutínio estrito-prefeririam uma interpretação muito mais próxima da refutação. O parecer de o:connor em Croson foi totahnente diferente do de Scalia. E verdade que ela disse que as "classificações raciais apresentam o ri~co da estigmatização. Se não ficarem reservadas somente para situações corretivas, podem, de fato, promover idéias de inferioridade racial e levar a llilla política de hostilidade racial"1 8• Todavia essa é uma linguagem bem catttelosa- "poder levar'' não é "levará", e o estudo de River indica que a preocupação de O'Connor não se justifica no caso da educação superior-, e é mais bem entendida como explicação do motivo por que as classificações raciais que não sejam corretivas no sentido mais estrito devem sujeitar-se a exame minuciosíssimo.

17. Croson, 488 U.S. enl 524. 18. Id. em 493.

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Seja como for, certamente seria equivocado concluir que O' Connor queria dizer que nenhuma ínstituição poderia jamais usar classificações raciais, a não ser dessa manei-

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ra estritamente corretiva19, pois ela deixou claro que o escrutínio estrito que propôs não se destinava a substituir um exame minucioso, caso a caso, elaborado para revelar os usos ilegítimos da raça com uma regra mecânica que anulasse todos os planos reprovados em um simples teste a priori. "Afora pesquisar as investigações judiciais sobre a justificação de tais medidas raciais", disse ela, "simplesmente não há como descobrir quais classificações são 'benignas' ou 'corretivas' e quais classificações são, de fato, motivadas por idéias ile-

gítimas de inferioridade racial ou simples política ra.cial."20 O'Connor empenhou-se especialmente em indicar as características do projeto de Richmond que, em sua opinião, despertavam suspeitas de que o projêto fora de fato motivado por "simples política racial". :1

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Neste caso, os negros constituem cerca de 50 por cento da população da cidade de Richmond. Cinco dos nove vereadores são negros. A preocupação de que uma maioria política agirá com mais facilidade para prejudicar urna minoria [com base eml hipóteses infundadas ou fatos incompletos pareceria militar a favor, e não contra, da aplicação de intensa investigação judicial nesse processo2i.

Isto é, ela rejeitou a pretensão mu.."'l.icipal, não por meio lte uma decisão global de que nenhum dos interesses citados poderiam ser considerados irresistíveis, em hipótese alguma, mas porque citar esses interesses não era suficien-

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19. De fato, O'Connor mencionou, como autoridade para a declaração citada, o parecer de Powell em Bakke, que adrrritiU ter a universidade o interesse irresistível de recrutar um corpo discente racialmente diverso, tenha sido ou não culpada de discriminação no ado. 20. Id. em 493. 21. Id. em 481. Os que se optmhan\ ao plano testemunharam que sua adoção levaria ao êxito súbito as poucas empresas minoritárias de Richn1ond.

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te para dissipar quaisquer vestígios da suspeita gerada pelas outras caracteristicas das circunstâncias reais. O projeto de Richmond dava preferência, por exemplo, não só às empresas locais pertencentes a minorias, por cujo destino seria plausível que assumissem certa respo11sab.ilidade cívica, mas às empresas controladas por ''negros, falantes de espanhol, orientais, indianos, esquimós ou aleútes" de qual,quer parte do país. Só isso já abriria espaço para a suspeita de que Richmond não pretendia atingir um objetivo cívico realista, suficientemente importante para justificar um desvio significativo da regra nor1nalmente sensata, destinada a proteger a cidade contra todos os tipos de favoritismos ilegítimos, de que os contratos seriam assinados com quem oferecesse o preço mais baixo. "A inclusão aleatória de grupos raciais que, 11a prática, talvez nunca tenham sofrido discriminação na construção civil em Richmond indica que talvez o objetivo da cidade não fosse, de fato, corrigir adiscriminação do ado", disse O'Connor22. Em seu parecer posterior sobre o processo Adarand (segundo o qual os regulamentos da Small Business istration - .istração de Pequenos Negócios - que proporcionavum vantagens especiais a empresas controladas por "negros, hispânicos, asiáticos do Pacífico, asiáticos subcontinentais e nativos americanos", entre outros, estão sujeitos ao escrutínio estrito), O'Connor foi ainda mais explícita ao rejeitar qualquer interpretação mecânica de tal exame. Ela respondeu com ênfase à insinuação de que seu método não conseguiria di.<Jtinguir a discriminação hostil da genuinamente benigna: o escrutínio estrito, afinnava ela com veemência, "considerar as 'diferenças relevantes' - na verdade, essa é sua finalidade fundamental" e não "trata decisões fundamentadas em raças distintas como se fossem igualmente censuráveis" ... Pelo contrário, avalia 22. ld. em 506.

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minuciosamente todas as decisões governamentais que recorram a critérios raciais para decidir se são anticonstitucionais e quais não são. Ao exigir o escrutínio estrito das classificações raciais, exigimos que os tribunais verifiquem se a classificação racial governamental ... é legítima.

"Por fim", acrescentou, "desejamos eliminar a idéia de que o escrutínio estrito é 'estrito na teoria, mas fatal na prática': a infeliz persistência das práticas e dos efeitos duradouros da discriminação racial contra grupos minoritários neste país é uma realidade desafortunada, e o governo não está desqualificado para agir em reação a ela"2J.

Cinco outros juízes da atual Suprema Corte foram mais explícitos do que O'Connor ao rejeitar qualquer versão mecânica do escrutínio estrito. Em Seu parecer favorável no processo Croson, o juiz Stevens disse que as classificações raciais devem ser julgadas com relação a sua repercussão sobre o futuro, e rejeitou expressamente qualquer insinuação de que "a decisão governamental que se ampare em uma classificação racial jamais será issível, a não ser como retificação de erro ado"24 • O juiz Kennedy, em seu parecer favorável, itiu que a postura de Scalia, que "anularia todas as preferências que não fossem reparos necessários para as vítimas da discriminação ilícita, serviria a metas estruturais importantes, pois eliminaria a necessidade dos tribunais de se pront1nciar a respeito de cada preferência racial promulgada". Não obstante, Kennedy disse que acreditava ser desnecessária uma política tâo rígida, e que preferia o que chamou de "regra menos absoluta" de O' Connor: que as preferências raciais devem enfrentar "a rr,ais rigorosa análise"25. Os juízes Souter, Ginsburg e Breyer discordaram no processo Adarand, juntamente com Stevens. Souter escre-

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2.1. Ada:mnd Cbnstruclors Inc. wn;rl> Pena, 515 U.S. 200 em 228, 237 (1995). 24. Croson. 488 U.S. en1 511. 25. Id. <'m 518-519.

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veu que "a Suprema Corte há muito tempo aceita a opinião de que a autoridade constitucional para reparar discriminações antigas não está limitada ao poder de proibir sua continuação, mas se desdobra na eliminação das conseqüências que, caso contrário, persistiriam26. Ginsburg, em um parecer endossado por Breyer, salientou sua opinião de que a Suprema Corte não deveria utilizar o escrutínio estrito mecanicamente, mas como auxilio para descobrir os verdadeiros motivos legislativos que sejam ilegítimos, por prejudicarem_a consideração igual exigida-peta cláusula da igual proteção. O escrutínio estrito, corúonne definido no parecer majoritário de O'Connor, segundo Ginsburg, é um recurso "para descobrir classificações na verdade malignas, contudo disfarçadas de benignas"27. III Não obstante, o parecer dos dois juízes em Hopwood estava errado ao presumir que a Suprema Corte já adotou um escrutínio eshito mecânico, que toma automaticamente inconstitucionais os planos de ação afirmativa das universidades nos moldes de Bakke2B. Disso não se infere, porém, que a Corte não anulará critérios de issão sensíveis à raça, no caso de teste que muitos comentadores agora predizem, mesmo que seja em uma interpretação ·menos mecânica, refutadora, do escrutínio estrito. Por conseguinte, devemos perguntar se e como os planos universitários de ação afir.mativa podem atender ao es26. Adarand, 515 U.S. em 269. 27. Id. en1 275. 28. Os juízes do Quinto Tribunal Itinerante itiram que os departamentos das universidades po
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crutínio estrito elaborado dessa forma. O estudo de Riverin~ dica duas finalidades principais que justificam os exames de issão sensíveis à raça: a necessidade da própria universidade de contar t::om a diversidade racial no corpo discente, e a necessidade da comunidade de uma presença maior dos membros das minorias em importantes papéis políticos, empresariais e profissionais. Será que uma dessas necessidades é suficientemente "mais importante" para justificar 0 uso da raça como um dos fatores dentre os muitos aplicados na avaliação dos candidatos? Haverá algum vestígio de suspeita razoável de que as escolas pesquisadas no estudo de River tenham utilizado a raça para finalidades ilegítimas? O próprio Powell afirmou com veemência, em Bakke, que os planos de ação afirmativa estavam sujeitos ao es.. ciutínio estrito, e sua decisão de que as universidades podem procurar diversidade racial foi, portant.o, o veredicto de que ã diversidade era um interesse suficientemente mais importante para resistir à análise. É verdade que O' Connor rejeitou a justificativa da diversidade em outros contextos, não só em Croson, mas em parecer contrário no processo Metro Broadcasting, no qual a Suprema Corte sancionou políticas da Federal Communications Cornrnission (Comissão Federal de Comunicações) que davam preferência a empresas pertencentes a minorias nos pedidos de concessão para novas estações de rádio e televisão - a FCC declarou que tais preferências eram necessárias para aumentar a diversidade do ponto de vista da progratnação29. Mas 11enhum desses pareceres de O'Connor impede que se permita às universidades utilizar classificações raciais para gerar a diversidade racial nas salas de aula. A questão prioritária, em uma interpretação refutadora do escrutínio estrito, é se a alegação de diversidade da instihtição será suficiente para eliminar qualquer vestígio genuíno de suspeita de que tenha agido per motivos proibidos pela Constituição. 29. Metro Broadcasting lnc, vers1m FCC, 497 lf.S. 547 (1990).

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A alegação de diversidade de Richmond foi prejudicada não só pelos fatores que mencionei anteriormente, mas porque a diversidade não tem sido uma meta tradicional das autoridades responsáveis pela aprovação dos contratos municipai<; de construçã9 civil. IJelo contrário, uma cidade que alegasse, digamos, a diversidade geográfica como motivo para rejeitar contratos de construção das empresas compreços mais baixos despertaria profunda desconfiança de corrupção. Os regulamentos-da FCC que O'Connor condenou em seu parecer contrário no processo Metro Broadcasting estavam abertos, conforme ela salientou, a um tipo grave, embora diferente, de desconfiança: o argumento de que é necessário que haja diversidade entre os proprietários para haver diversidade na programação, disse ela, amparava-se em estereótipos raciais, pois presumia que a "raça ou etnia decide o modo de pensar ou agir"3D. O'Connor argumentou que o fnteresse alegado na diversidade de programação é, certamente, "amorfo demais, inconsistente demais" para excluir qualquer possibilidade de preferências ou preconceitos raciais. A FCC, segundo ela, poderia, sob o manto desse suposto interesse, identificar uma perspectiva ".negra", "asiática" ou "árabe" e recusar concessões a raças ou grupos étnicos que julgasse ter menos probabilidade de apresentar uma opinião privilegiada. Ela temia especialmente que reconhecer um interesse geral na diversidade permitiria o emprego amplo e indiscriminado de classificações raciais não só para determinados fins e durante tempo limitado, mas para todas as finalidades e definitivamente. Já que é irnpossível definir determinados pontos de vista raciais, ou avaliar a diferença entre eles, ela disse que "os membros de qualquer grupo étnico 0u racial, sejam ou nã.o preferidos pelas normas da FCC, podem achar que estão fora de moda e sujeitos à discriminação desvantajosa porém benigna"31 . 30. Id. em 602. 31. ld. em 615.

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As universidades estão en1 condições muito melhores do que estavam Richmond ou a FCC para dissipar quaisquer suspeitas de que procurem a diversidade racial com segundas intenções, ou devido a pressupostos estereotipados. Os critérios de issão à universidade não são escolhidos por políticos, que talvez esperassem conquistar os votos de um grupo racial, mas pelos membros do corpo docente, que não são cai1didatos a cargos políticos. O interesse deles na diversidade não é novo nem incomum, como era o de Richmond, porém tradicional e reconhecido: ninguém duvida de que as grandes universidades, principalmente as de maioria branca, tenham a responsabilidade social e educacional de procurar um corpo discente diversificado de muitas maneiras, e quaisquer dessas universidades que abandonassem essa finalidade por completo estariam se comportando de maneira irresponsável. As universidades de elite acreditam que hoje em dia seria irracional proc'Urar a diversidade de origem geográfica, de classe social e de orientação cultural, e não procurar também a diversidade racial. De fato, não procurar esta última dimensão faria com que sua preocupação geral com a diversidade parecesse arbitrária. Decidiram, e o estudo de River o confirma amplamente, qt1e não podem alcançar a diversidade racial indiretamente, fundamentando-se na classe econômica como representante da raça, ou recorrendo a outros meios, menos eficientes, para o fim desejado. Qualquer norma assim não seria apenas dissimulada, mas prejudicial. E as universidades també1n não se fundamentrun, como O'Connor disse que a FCC fazia, em nenhuma ligação presumida entre raça e crença, convicção, gosto, culhtra ou atitudes. Elas procuram a diversidade racial, como eu disse no Capítulo 11, pela importância da própria raça, infeliz porém inevitavelmente, nos Estados Unidos de hoje: é essencial que os alunos de cada raça conheçam não só alunos com outras atitudes ou culturas, mas alunos que sejam, de fato, de outra raça. E vs tnbunais não se arriscariam a exercer preferências raciais irrestritas e indiscriminadas se contir1uassem a permitir a açã.o afirmativa no estilo de Bakke.

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AB universidades têm adotado esses programas com prudência há lUU terço de século, sem tendência à expansão para além de proporções sensatas. Ademais, essas instihlições põem em jogo seu renome acadêmico, tanto absoluta quanto relativamente a instituições comparáveis, e reshingiriam qualquer desejo de expandir de maneira significativa os critérios de issão ou o currículo que pudesse pôr sua reputação em risco. Também não existe nenhum risco genuíno de que os programas de issão sensíveis à raça venham a ser utilizados como pretext~ para desfavorecer qualquer outro grupo de candidatos. E possível examinar qualquer desconfiança disso, como já disse, por meios estatísticos como os utilizados no estudo de River, analisando os alunos retrospectivamente rejeitados para ver se eram membros desproporcionais de qualquer grupo suspeito. Além disso, há muitas provas de que O'Connor, bem como diversos outros membros da atual Suprema Corte, já itiu que a procura de diversidade racial entre os alunos é um interesse irresistível que sobrevive ao escrutínio estrito. Em 1986, no processo Wygant, a Suprema Corte anulou um acordo coletivo da diretoria de uma escola do :Michigan que dava estabilidade no emprego aos professores membros de minorias: rejeitou a alegação da diretoria de que seu interesse no reparo de antiga discriminação na comunidade, ou em oferecer "exemplos" do corpo docente negro com os quais os alunos negros pudessem se identificar, justificava essa classificação racial 32 • O'Connor redigiu um parecer separado, no qual comentava que a diretoria não alegou haver agido para proteger a diversidade racial no corpo docente, e que não era lícito entender que a Suprema Corte descartara a possibilidade de tal interesse ser irresistível33. "Embora seus contornos exatos 32. Wygant versus Jackson Board of Education, 476 U.S. 267 (1986). 33. Ela disse: "Não se deve confundir o objetivo de se oferecer 'exemplo' discutido pelos tribunais abaixo com a meta bem distinta de promover a diversidade racial ii.o corpo docente." Id. em 288.

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estejam imprecisos", disse ela, "julgou-se suficientemente 'irresi<:;tível' o interesse do estado na promoção da diversidade racial, pelo menos no contexto da educação superior, para amparar o emprego de critérios raciais a fim de promover tal interesse"34. Ademais, O'Connor citou várias vezes o parecer de Powell acerca de Bakke, que declarava ser a diversidade na educação superior um interesse irresistível, como endosso de sua opinião de que qualquer classificação racial deve sujeitar-se ao escruífuio estrito. Ela não confiaria nesse parecer com tamanha convicção se achasse que o próprio Powell não havia entendido as implicações de sua interpretação do escrutínio estrito, ou se ele pretendesse formular, com tal designação, uma doutrina diferente daquela para a qual ela citou a autoridade dele.

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l-br conseguinte, é forte o argumento de que o princípio de Bakke, em vigor há mais de 20 anos, continua sendo uma boa lei constitucional, e que as faculdades e universidades americanas possam continuar a confiar nesse princípio para justificar o uso dos critérios raciais de issão que garantam diversidade no corpo discente. Se eu estivesse defendendo tais planos nos tribunais, certamente saiientaria esse interesse na diversidade entre os alunos, que parece suficiente, sozinho, para garantir a sobrevivência desses pro-

34. ld. em 289. O parecer de dois juízes no processo Hop•Nood descarta essa afirrn;;ção por ser n1eramente ºdescritivaº. Isso é estranho, já que o n1esmo parecer cita outra das afírmaçõe.~ de O'Connor's (que "a igual proteção moderna só reconheceu um interesse [de situação irresistível]: ren1ediar as conseqüêndas da discriminação racial") como base para seu próprio parecer; tal afirmação é, pelo menos, idêntica e claramente "descritiva" à prhneira vista e, se pretendia ter o significado que o parecer dos dois juízes lhe atribuem, fala, já que Bakke reconheceu a diversidade como tal interes~e, como a própria O'Connor declarou várias vezes. Seja coroo for, O'Connot não poderia pretender que uma declaração que era parte importante de seu argumento, de qut> o Supremo não estava profundamente dividido com relaçào à ~ção afirm~tiva, não expressasse sua própria opinião acerca da lei.

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gramas ao escrutínio estrito. No entanto, devo acrescentar que sou de opinião que outro interesse institucional mencionado - ajudar a corrigir a ainda deplorável ausência de negros nos principais cargos do governo, da política, das empresas e das profissões-é, pelo menos, igualmente importante e também deveria ser reconhecido como suficientemente irresistível para a manutenção dos critérios de issão sensíveis à raça. Um dos problemas mais graves da sociedade_ americana é a estratificação racial de facto .que quase sempre exclui os negros e outras minorias dos escalões mais altos do poder, da riqueza e do prestígio; e a antiga discrimi11ação racial, bem como o círculo vicioso que rouba às crianças negras os líderes negros bem-sucedidos a quem seguir como exemplo, contribui substancialmente para essa estratificação. Não obstante,· muitas declarações espalhadas por diversos pareceres da Suprema Corte que venho discutindo podem muito bem ser interpretadas como hostis a essa outra e diferente - justificativa dos critérios de issão sensíveis à raça, inclusive a declaração de Po-well em Bakke, de que as faculdades de medicina não podem usar a ação afirmativa somente para aumentar o número de médicos negros. Vários juízes já declararam que não se podem utilizar as classificações raciais como justificativas para a cura das conseqüências duradouras da antiga "discriminação societal'', e o veredicto do processo VV!fgant rejeitou a afirmação de que possam.ser.j_ustificadas como algo que oferece 11 exemplos" para as crianças negras. Talvez, porém, essas declarações não tenham dado atenção suficiente à distinção que o juiz Stevens diversas vezes indicou - entre as justificativas retroativas das classificações raciais, como compensações, e as justificativas voltadas para o futuro, segundo as quais essas classificações podem, em algun1as circunstâncias, ser do interesse geral de toda a co1nunidade. As justificativas compensatórias presumem que a ação afirmativa é i1ecessária, conforme explicou Scalia, para 11 compensar" as minorias pelos danos a sua raça ou cL.1-sse no

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ado, e estava certo ao assinalar o erro de se supor que uma raça "deve" compensação a outra. Mas as universidades não aplicam os critérios de issão sensíveis à raça para compensar indivíduos nem grupos: a ação afirmativa é um empreendimento voltado para o futuro, e não retroativo, e os alunos minoritários a quem ela beneficia não foram, obrigatoriamente, vítimas, individuais, de nenhuma injustiça no ado. As grandes universidades esperam educar mais negros e outros alunos minoritários, não para compensá-los por injustiças adas, mas para·proporcionar um futuro que seja melhor para todos, ajudando-os a acabar com a maldição que o ado deixou sobre todos nós. O'Connor e outros juízes estavam apreensivos porque qualquer justificativa corretiva ampla e geral para a ação afirmativa é "amorfa" e "indefinida" demais, pois permitiria as preferências raciais até que toda indústria ou estrato social ou profissional tivessem a mesma composição racial e étnica de toda a nação. Contudo, por mais gentúna ou exagerada que possa ser essa preocupação com as conseqüências de leis impostas pelo governo para contratações ou empregos, está nitidamente equivocada como objeção aos planos w1iversitários de ação afirmativa. Se algum órgão do governo seja o Congresso ou uma Cârrtara municipal - exige que os patrões ou os empreiteiros contratem uma quota de trabalhadores negros ou reservem uma quota para contratos com empresas de proprietários negros, sua decisão garante determinada representação racial em algum setor do mercado de trabalho. Nenhum processo decisóriomaisnatural pode alterar ou dar forma a essa estrutura racial enquanto o programa do governo estiver em vigor. Nesses casos, o governo, e somente o governo, decide quantos membros de cada grupo étnico ou racial que designar ocupará as vagas de quais setores ou cargos. Os jtúzes relutarão, especialmente os sensíveis ao perigo de que algumas dessas decisões decorram de motivos impróprios, em aceitar uma jl1stificativa tão ampla quanto a declaração de que são necessárias para evitar a exclusão de uma ou outra raça do o ao-poder, à riqueza e ao prestígio.

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Contudo as faculdades, as universidades e as escolas profissionalizantes aplicam critérios sensíveis à raça, não para atender a algum mandado do governo central, mas por intermédio de decisões individuais de cada escola. Não agem assim para determinar quantos membros de quais raças ocuparão quais papéis na política e na econonúa em geral, o que, afinal, não está a seu alcance, mas só para aumentar o número de negros e de outras minorias que estejam na fonte na qual outros cidadãos - patrões, sócios, pacientes, clientes, eleitores e colegas, agindo em interesse próprio e para seus próprios fins - escolherão empregados, médicos, advogados e funcionários públicos da maneira normal. Isto é, a distribuição de cargos e poderes que a ação afirmativa ajuda a alcançar flui e se modifica espontaneamente, segundo milhões de escolhas que as pessoas fazem para si mesmas. Se a política funciona para melhorar a siruação geral de qualquer minoria - conforme o estudo de River indica que ajudou a melhorar a sihlação dos negros -, só o faz porque outras pessoas optaram por explorar os resultados de tal política: quanto mais amplo for o alcance e a variedade de formandos com motivação, auto-respeito e formação para oferecer contribuições eficientes. A ação afirmativa nas universidades, desse modo, não transforma em mais artificial a estrutura econômica e social da comunidade, porém em menos artificial; não produz a balcanização, mas ajuda a dissolver a balcanização que hoje, infelizmente, está em vigor. Se os juízes reconhecerem esse aspecto do que nossas mell1ores universidades pretendem fazer, bem como sua necessidade académica de diversidade educacional, eles nos terão servido especialmente bem. Terão agido, não só como juízes que pennitiram a continuidade de uma iniciativa educacional essencial, mas também como professores que ajudaram a explicar à nação o verdadeiro e duradouro preço, para todos, de nosso ado racista, e a promessa nítida de uma política educacional que possa nos ajudar a alcançar, caso realmente o queiramos, uma união mais perfeita.

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Capítulo 13

Brincar de Deus: genes, clones e sorte

1. Introdução

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Nenhuma disciplina científica, a cosmologia inclusive, foi mais empolgante nas décadas recentes do que a genética, e nenhuma chegou a ser tão portentosa para as características da Vlâa que nossos descendentes viverão. Precisamos compreender melhor essas mudanças rápidas na ciência básica da genética e também das técnicas e1n desenvolvimento para aplicar essa ciência básica nos diagnósticos, prognósticos e terapias médicas. Precisamos examinar melhor o modo como o governo e o comércio - interagindo de maneiras que vão da concessão de bolsas de estudo, ando pelas políticas para o registro de patentes às proibições estatutárias e às regulamentações-incentivam, rcstrigem e dão forma a esses empreendimentos. Precisamos, acima de tudo, tentar identificar e avaliar o grande número de problemas morais, sociais e políticos qtte a nova tecnologia apresentará ao novo século. Até certo ponto, esses problemas já são evidentes e prementes. Há exames que identificam antecipadamente as doenças genéticas ou a predisposição a doenças, e estão surgindo novos exames desse tipo em velocidade cada vez maior. Portanto, já enfrentamos problemas dificilimos sobre até que ponto e quando esses exames devem ser permitidos, ou exigidos, ou proibidos, e até que ponto se deve permitir que patrões

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e companhias de seguros exijam ou peçam seus resultados. Alguns problemas são mais especulativos, pois só os enfrentaremos se a ciência evoluir de determinada maneira. Caso se tome possível clonar seres humanos, por exemplo, ou alterar de maneira radical os cromossomas de um feto bem jovem para que a criança seja, mais tarde, mais inteligente ou menos agressiva, então será preciso decidir se, em algumas ou todas as circunstâncias, essas intervenções são indesejáveis e, nesse caso, se devem ser proibidas por lei. Concentrar-me-ei em alguns dos-problemas morais e políticos, ambos evidentes e especulativos, que a nova genética pode gerar no século XXI. Não discutirei todos esses problemas: não falarei muito sobre a viabilidade, propriedade ou caráter da regulamentação governamental das pesquisas e do comércio. Pelo contrário, discorrerei sobre as questões que me pareçam fundamentais e profundas. Utilizarei uma distinção importante que não tem sido muito explorada na literatura moral ou filosófica, pelo menos nos termos que a definirei, e que devo, portanto, apresentar agora. É a diferença entre dois tipos de valores aos quais podemos recorrer na avaliação das conseqüências da nova tecnologial. O primeiro conjunto de valores, que chamarei de valores derivados, são parasitários dos interesses de determinadas pessoas. Devemos pergun.tar, ao considerar se qualquer técnica nova deve ser permitida, regulamentada ou proibida, sobre a provável repercussão de mna decisão dessas sobre- os interesses individuais. Quem ará a uma situação melhor e quem ará a uma situação pior devido a essa decisão? Depois, precisamos avaliar as conseqüências dessa técnica nessa dimensão: devemos perguntar se determinada decisão ou método proporciona bom equilíbrio entre custos e benefícios. As vantagens de alguns exceden1, em algun1 método de comparação interpessoal, as 1. Essa diferença é elaborada em meu livro Life's Domi11ion (Nova York: Alfred A. Knopf, 1993).

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perdas de outros? Devemos também perguntar, nessa dimensão, se o resultado é "razoável" ou "justo" - será certo alguns perderem e outros ganharem dessa maneira? O segundo conjunto de valores que participarão de nosso argum.ento constitui o que em outra parte chamei de valores "independentes": são os valores que não provêm dos interesses de determinadas pessoas, mas, pelo contrário, são intrínsecos aos objetos ou aos acontecimentos de alguma outra forma. Muita gente acha que as grandes obras de arte têm valor próprio, que seu valor não ·depende de darem prazer ou alegria. Muita gente acha que as espécies animais têm valor independente: acha que é intrinsecamente equivocada a extinção de espécies, que é um fato ruim independentemente das repercussões sobre os interesses de seres humanos. A controvérsia acerca do aborto revela a importância da diferença. Se, conforme já argumentei em outra parte, o feto bem jovem não pode ter interesses próprios, então é indefensável o argumento de que o aborto é equivocado porque vai de encontro aos interesses de alguém. Não obstante, faz sentido acreditar, como muita gente crê, que o aborto é sempre moralmente problemático, e pelo menos em alguns casos, moralmente errado, pois agride um valor intrínseco ou independente- a ''santidade" da vida humana, em qualquer forma. Os progressos da ciência genética geram muitos problemas, como veremos, sobre os interesses derivados: são os problemas da eficácia e da justiça. Mas direi que as reações nitidamente negativas que os povos e os governos têm demonstrado com relação a algumas técnicas genéticas mais especulativas, em especial a clonagem e a engenharia genética radical, não são mais bem entendidas quando apelam para valores derivados desse tipo, embora quase sempre sejam apresentadas, pouco convincentemente, sob tal embuste. São mais bem entendidas como apelos profundos e instrutivos ao valor intrínseco, independente .

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II. Diagnóstico e prognóstico

A. Esses exarnes devem ser oferecidos? É uma questão de grandes proporções (tratada, em parte, no Capítulo 8) quanto de sua riqueza qualquer sociedade deve dedicar, por meios públicos ou privados, à saúde, e quanto dedicar à pesquisa, em vez de atendimento 011 sal1de pública, e quanto dessa parcela à pesquisa de qualquer doença ou afecção. Não há dúvidas de que ml.lita gente se opõe a grandes programas de pesquisa genética, como o projeto genoma, devido aos custos: acham que o d.inheiro seria mais bem empregado de outras maneiras. Todavia, limitar-·me-ei aos motivo? não orçame_ntários que as pessoas têm dado para que não se criem exames genéticos que revelem doenças ou predisposição·a doenças, oLt que n.ão se tornem esses exames amplamente disponíveis, caso sejam criados. Algumas das doenças que se podem prever com exames genéticos, com certeza ou com alto grau de probabilidade, são tratáveis de diversas maneiras: terapia, controle ou mudanças na alimentação ou no estilo de vida podem reduzir a probabilidade ou a gravidade da doença. Entre elas figuram certos tipos de câncer no intestino e doenças mais raras, como a fenilcetonúria. É difícil imaginar bons argumentos contra fazer esses exames, disponíveis legal e imediatamente. É verdade que a disponibilidade de tais exames pode aumentar ainda mais as vantagens dos ricos sobre os pobres, tanto porque somente os ricos poderiam pagá-los quanto porque o próprio tratan1ento, que precisa dessas informações - colonoscopias freqüentes ou uma dieta especial caríssima -, já é caro demais para alguns. Também é verdade que os resultados dos exames podem cair nas mãos de outrem -funcionários ou seguradoras -para prejuízo do paciente. 11as essas desvantagens não podem sobrepujar o valor da maior expectativa de vida. Os exames genéticos, porém, identificam a certeza ou a probabilidade de outras

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enfermidades - como a doença de Huntington* e, parece, certos cânceres de mama - que não podem ser curados ne.m aliviados, pelo menos no estágio atual da medicina. Devemos considerar o argumento, acerca dessas doenças, de que os exames genéticos não ajudam, e podem até mesmo prejudicar, pois o diagnóstico de morte certa provavelmente será desanimador, e porque quase sempre será catastrófico se as informações caírem nas mãos de funcionários, seguradoras ou outras pessoas das quais o paciente queira ocultar tais·infbrmações. :Minha opinião, contudo, é de que os adultos que desejarem os exames, e tiverem recebido explicações claras relativas a suas conseqüências, e dos riscos de tais informações estarem íveis a outrem, devem ter permissão para fazê-los. Algumas dessas pessoas- em cuja farrúlia, por exemplo, haja ocorrências da doença de Huntington - já estarão apavo·radas por pensar que serão vítimas dessa enfermidade também, e deve-se permitir que julguem se o possível alívio de um resultado negativo vale o risco de um resultado positivo e arrasador. Nluita gente também gostaria de saber se está condenada a ter uma vida curta para aproveitá-la com mais eficiência, e deve-se permitir que tenham tal oportunidade. Temos motivos mais gerais, como veremos, para restringir o o de terceiros aos exames genéticos. Porém, quaisquer que sejmn as limitações ao o de terceiros que a comunidade decidir que são viáveis e desejáveis, os pacientes adultos devem ter permissão para avaliar por si mesmos o risco de qualquer perigo que permaneça. E as crianças? Devem-se permitir exames genéticos gerais logo após o nascimento, se não antes, que revelem qualquer anormalidade genética? Poderia parecer injusto a criança crescer em um mundo no qual os outros sabem que ela

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~A doença de Huntington (DH) é causada pela alteração do Crornossoma-4. É hereditária e decorre de uma mutação em um gene e pode afetar tanto homens como mulheres. Afuta as capacidades motoras individuais e também as capacidades intelectu..1.is e emocionais. Tem·essa designação em homenage1n ao médico que primeiro a descreveu: dr. George fluntington.

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está condenada, mesmo que essas informações estejam limitadas à própria família, que inevitavelmente a trataria de outra maneira. Mas seria justo negar à família tais informações, que ela poderia usar, não só para ajudá-la a prepararse para a vida, mas para evitar conseqüências piores para outros membros da farru1ia? Ademais, a proibição legal de exames gerais poderia gerar conseqüências deletérias para as pesquisas e impedir a procura de tratamentos para doenças hoje incuráveis. No fim das contas, acho que se deveria permitir que as famílias fizessem os exames gerais nos filhos, mas tal prática ressalta a necessidade de limites à disseminação de informações genéticas.

B, Exame pré-natal A maior objeção ao exame pré-natal é o medo de aborto, ou de aborto pelas razões erradas. Certamente, os pais querem conhecer o perfil genético mais co.mpleto possível do feto, assim como muitos anseiam saber o sexo por motivos menos sombrios. Todavia o aborto é a principal preocupação e deveremos, portanto, enfrentar uma questão especialmente difícil e assustadora. Na legislação ora em vigor nos Estados Unidos e, pelo menos na prática, e1n outras sociedades democráticas, não há lei que proíba o aborto no início da gravidez por motivo nenhum, e é improvável que se venham a adotar restrições legais mais rígidas a curto prazo. Nessas circunstâncias, é importantíssimo para os mais ferozes adversários do aborto que se tomem íveis informações que gerem a probabilidade de aumento do n{unero de abortos. Eles- sensatamente, dadas suas convicções - acham que qualquer meio, inclusive proibições de descobertas, é justificado se reduzirem o número do que acreditam ser homicídios. Mas aqueles dentre nós que rejeitam essa postura geral, por não acreditar que faça sentido supor que o feto tenha interesses próprios antes do desenvolvímento da sensibilidade, têm escolhas mais difíceis

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a fazer. Enfrentamos uma série de questões. Seria o aborto um erro moral? Se for, o erro depende do motivo do aborto? Se for, será apropriado para nós, se formos a maioria, impor nossa convicção de que o aborto é impróprio por intermédio do direito penal? Se for, os meios agora em discussão- restringir a descobe1ta d.e fatos acerca do feto que a mulher está gerando - são apropriados para impor tal convicção? Devemos lembrar que, na hipótese de um feto no início da gravidez não_ ter interesses, estamos analisando uma questão moral na segunda dimer1são que enumerei: uma questão de valor independente, e não derivado. As opiniões sobre esses valores são muito variadas, mesmo dentro de determinadas culturas democráticas, em grande parte porque são sensíveis às convicções religiosas bem distintas que coexistem nessas culturas. Eu mesmo acredito que o aborto é moralmente errado quando não demonstra respeito pelo valor intrínseco de toda vida humana, em qualquer estágio ou forma, e que a justiça ou a injustiça do aborto, portanto, depende essenclahnente de seu motivo 2. O aborto demonstra o devido respeito pela vida humana, em princípio, em duas circunstâncias: em primeiro lugar, quando a vida da criança, se levada a cabo a gravidez, seria uma vida frustrante, na qual as aspirações comuns a todas as vidas normais, entre as quais ausência de dor, ampla mobilidade física, capacidade para ter uma vida intelechtal e emocional e capacidade para planejar e executar projetos, só se pu.dessem realizar, caso se realizassem, em grau reduzidíssimo; em segundo lugar, quando ter um filho gere a probabilidade, de maneira previsível de conseqüências tão catastróficas sobre o êxito da vida de outrem - da mãe e de outros filhos da farru1ia, por exemplo - que se possa crer que a preocupação com o valor intrfuseco da vida destes possam exceder em peso a preocupação com a vida do feto, no qual ainda não se fez nenhum investimento além do biológico. 2. A discussão do aborto a seguir resume certas conclusões de Life's Don1inion e deve ser interpretada naquele cenário.

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A segunda dessas circunstâncias, embora de enorme importância moral e política, não está em questão aqui. A primeira distingue entre situações tão ameaçadoras para a futu-

ra vida que justificam o aborto por preocupação com ovalor daquela vida, e situações que não são tão ameaçadoras. Como fazer tal distinção? Não me parece que apresentem problemas os defeitos genéticos arrasadores que assumem o controle de imediato, ou na infância, e garantem morte prematura. Eu mesmo incluiria enfennidades cujo ataque deformador ou fatal ocorre em idade mais avançada, como

a doença de Huntington, mas não uma predisposição para doenças que ocorrem principalmente em uma idade que muita gente não alcançaria, como muitos cânceres e cardiopatias. Eu incluiria doenças que impõem graves barreiras ao desenvolvimento intelectual como a sú1drome de Down; e essa doença, que suscita divergências ionais de opiniões, toma importante lembrar que nossa discussão é sobre quando o aborto é moralmente errado, e não quando é moralmente errado não abortar, o que é, obviamente, outra questão. Não incluiria características, como altura abaixo da média, que às vezes são odiadas por quem as tem, mas que claran1ente não pertencem ao perfil que tracei. É claro que eu não incluiria o sexo. Por mais que se queira um filho de determinado sexo, demonstra falta de respeito pela vida em _gestação exterminá-la por pertencer ao outro sexo. Separei a questão de o aborto ser errado por alguns motivos da questão de ser, caso o seja, justo o Estado proibi-lo. Minha opinião é que, quando a única justificativa do Estado para proibir o exercício de uma liberdade importante for a proteção de um valor indepe11dente com dhne11são religiosa, então o Estado não tem o direito de proibir, seja qual for o motivo em questão. Nesse caso, então, o Estado não tem o direito de proibir de maneira indireta, negando informações às pessoas, o que não pode proibir diretamente. Devo salientar que a.credito que o Estado tem o dire.lto e, de fato, a responsabilidade de educar e incentívar seus membros a toma.r decisões relativas a importa11tes valores in-

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dependentes, e que as a11toridades podem, por conseguinte, expressar com vigor sua opinião de que o aborto que discrimina contra um dos sexos, ou é motivado por outras ponderações injustas, é repugnante, embora não seja ilícito. C. Seleção embrionária

A fertilização in vitro requer a seleção de alguns zigotos para implante, permitindo que os outros pereçam. Por esse motivo, alguns dos que se opõem ao aborto, q11e considerem qualquer zigoto uma pessoa, condenam esse método. Quem não tem tal convicção, porém, precisa novamente ser criterioso. Se - há quem diga quando - formos capazes de preparar um abrangente perfil genético do zigoto somer1te depois de alguma$ divisões celulares, temos justificativa para utilizar tal informação na escolha de qual implantar? Parece óbvio que se identificannos em um candidato a embrião um defeito genético tão grave que seria moralmente permissível abortar um feto com esse defeito, então é moralmente permissível, e talvez obrigatório, não escolher tal embrião. Todavia será que o contrário é verdade? Se for errado abortar um feto porque é possível prever se não atingirá a altura normal ou porque não é do sexo desejado, será, portanto, errado descartar embriões com tais qualidades? Não se infere que seja. Aceitamos a fertilização in vitro como técnica de reprodução porque não acreditamos que demonstre desrespeito pela vida humana contida em um zigoto permitir que ele pereça quando o processo que tanto o criou qua11to o condenou. também produz uma vida humana que de outra forma não teria existido. Quando um zigoto já está implantado, a decisão de exterminar sua vida por ser do sexo feminino demonstra desdém pela vida dele, pois a questão a a ser se uma única vida humana, isolada, continuará ou será interrompida. Mas, antes do implante, alguns zigotos devem, inevitavelmente, perecer, e usar o sexo como condição para tal não parece desrespei-

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to maior do que jogar com a sorte. Não estou dizendo que não haja outros motivos para não permitir que o sexo, ou algum outro atributo, seja usado como condição para a escolha. Trataremos desses outros motivos adiante, quando analisarmos a engenharia genética.

D. Quem pode saber? Agora preciso tratar de outro grupo de problemas. Quais restrições se devem impor ao uso das informações genéticas por pessoas que não sejam seu proprietário? Os críticos dos exames genéticos já citaram diversos tipos de danos que podem resultar da divulgação dos resultados. Se foramplamente divulgado que alguém terá morte prematura ou está especialmente vulnerável a determinada doença, as outras pessoas o tratarão de maneira diferente em conseqüência disso. Elas considerarão o casamento, e até mesmo a amizade, dessa pessoa muito menos atraente, por exemplo. No extremo oposto, as pessoas podem ser solícitas ou atenciosas demais, e esse comportamento também pode ser indesejáveL Em alguns casos, em especial no de patrões e seguradoras, as conseqüências podem ser financeiras e arrasadoras: a pessoa pode não conseguir emprego, pelo menos na ocupação que prefere, ou não conseguir fazer seguro, a não ser pagando preços proibitivas, em conseqüência do que os outros sabem sobre seus genes. Até que ponto são justas essas conseqüências? Devemos começar reconhecendo que a injustiça, caso exista, já faz parte da nossa vida. As pessoas que são visivelmente deficientes sofrem danos sociais e emocionais, e os patrões e as con1panhias de seguro têm o direito de pedir muitas informações sobre a ficha médica dessas pessoas e agir de acord9 com elas. Não obstante, o o a um perfil genético abrangente, ou mesmo a informações rigorosas sol?re a predisposição genética para o câncer, cardiopatias, comportamento agressivo ou, enquanto perdurar a epide-

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mia de aids, orientação sexual aumentariam sensivelmente a vulnerabilidade de muitas pessoas a diversos tipos de discriminação. A reação inicial e instintiva de algumas pessoas diante desse risco é supor que a divulgação de informações genéticas deve ocorrer somente sob o controle de seu proprietário. Contudo essa exigência parece forte demais, mesmo em princípio, e dificílima, se não impossível, de se atender na prática. Nun.ca se deveria usar o DNA como prova em investigações e processos criminais? O deplorável caso de O. J. Simpson pelo menos informou o público sobre o poder e a fragilidade de tais provas. Mas devemos relutar antes de renunciar totalmente a seu uso, principalmente qttando as técnicas de armazenagem e exames se tomarem mais confiáveis. E as ocupações nas quais a propensão a doenças representa uma améaça genuína - a predisposição a enfartes em um piloto, por exemplo, ou qualquer doença grave em um presidente? E seria justo que as pessoas com propensão a diversos riscos paguem às seguradoras os mesmos prêmios que as outras? Isso não significa subsidiar os outros? Achamos certo que os fumantes devam pagar seguro de vida mais caro. Suponhamos que descobrimos uma série de alelos que predispõem alguém a viciar-se em nicotina. Seria injustificado continuar a pedir aos fumantes que pagassem preços mais altos? Caso contrário, por que o fato de o perigo representar um perfil genético expresso no comportamento visível, em vez de estar latente nos cromossomos, requer tratamento diferente? Como discriminar, 11a prática, entre o uso apropriado e o uso impiópri.o das informações genéticas? Imaginemos que as companhias de seguro de vida 011 seguro-saúde estejam proibidas de exigir exames genéticos como condição para o seguro ou de perguntar se os candidatos fizeram tais exames. As seguradoras serão, então, destruídas pela "seleção adversa": as pessoas que fizeram exames ge11éticos fariam seguros em massa se a maioria corresse riscos, e não faria seguro nerlhum se corresse riscos bem menores, e a

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conseqiiência seria a falência dos seguros. As companhias de

seguro devem ter o direito de pedir informações aos candidatos a seguro que tenham feito seus próprios exames? As pessoas perderiam o incentivo, devido a esse fato, de fazer tais exames, portanto, e sua própria saúde, bem como a saúde pública, sofreriam com isso. (Poderíamos chamar isso de "dilema do seguro".)

Essas questões e comentários são apenas indicio da complexidade dos problemas, que apresentam, de forma bem mais impressionante, enigmas-relativos à justiça social que rios acompanham há muito tempo, e que não compreendemos bem nem enfrentamos antes. IJrecisamos ata-

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car os problemas, pelo menos no contexto genético, em duas

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·frentes. Em primeiro lugar, precisamos continuar a elaborar critérios justos para a contratação no trabalho, istrados por órgãos competentes que adjudiquem entre os interesses públicos e os comerciais. As companhias aéreas devem ter o direito de exigir dos pilotos os exames apropriados, porque o balanço dos interesses públicos favorece tais exames. Mas, embora poucas empresas queiram contratar e treinar pessoas que sabem que morrerão da doença de Huntington por volta dos 40 anos de idade, devemos impedir a maioria dos empregadores de pedir infon.nações que revelem a predisposição para tal doença. As conseqüências do desemprego permanente sobre a curta vida de alguém já condenado são grandes demais para que não se exija que os empregadores continuem correndo os tipos de risco que sempre correram, apesar do fato de o progresso da genética hoje em dia fazer com que seja tecnicamente impossível para eles reduzir tais riscos. E preciso atacar de maneira mais direta o problema dos seguros. O dilema do seguro proporciona, creio, o argumento finalmente irresistível de que os seguros básicos de vida e de saúde não devem mais permanecer nas mãos da iniciativa privada. Os Estados Unidos são os 1Jnicos entre as democracias prósperas que ainda não aprenderam essa lição com relação ao seguro-saúde. (O seguro de v:ida é menos in1portante, mas ainda tem conseqüências e pennane-

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ce privado na maioria dos países.) Se eu estiver certo ao afirmar que o dilema do seguro parecerá cada vez mais problemático quanto maior o número de informações genéticas disporúveis, então a pesquisa genética pode ter o efeito, inesperado mas bem-vindo, de aplicar um golpe mais geral a favor da justiça dessa maneira. É preciso que se ofereça seguro-saúde básico a todos, e ele deve ser financiado pela tributação computada por meio da criação de um mercado hipotético de seguros, no qual este é oferecido a todos por preços comunitários, ü;to é, preços que presumem que todos os candidatos apresentaram o risco médio. (Esse esquema de modelar a área de saúde foi o assunto do Capítulo 8.) As informações genéticas serão inestimáveis para calcular os preços comunitários, mas não devem ser utilizadas para estabelecer discriminação entre as pessoas. Deve-se permitir que as seguradoras. privadas ofereçam seguros de vida ou saúde extras, a preços de mercado, além dos pacotes básicos? Creio que sim, e essa possibilidade demonstra a importância da questão, discutida a seguir, de definir um pacote básico justo e adequado. As seguradoras devem ter o direito de exigir exames genéticos, de acordo com a eficiência estatística e comercial, ao impor preços discriminatórios por tal seguro adicional? Creio que sim .

E. Justiça e medicina genética

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As nações que oferecem a todos o seguro-saúde pago individualmente, financiado pelos impostos, não devem discriminar os geneticamente desafortunados simplesmente porque elas têm poder de fazê-lo por intermédio de exames genéticos. (Surgem boas questões sobre como traçar o limite entre comportamentos que geram risco maior, como fumar, e as predisposições genéticas que geram tal risco. Mas vou deixá-las de lado por ora.) Assim, torna-se imperativa outra questão: até que ponto o seguro-saúde nacional deveria não só oferecer tratamentos normals para doenças cujo risco se possa prever por meio de exames genéticos, sem discrimina-

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ção contra quem possa ter predisposição para tais doenças, mas também oferecer as novas, e indubitavelmente caras, técnicas de diagnóstico e terapias que as pesquisas genéticas e as descobertas comerciais tomarão disponíveis? A medicina genética disponível conta com novas técnicas de diagnóstico que ajudam os médicos a decidir, por exemplo, qual forma de câncer o paciente tem, e como os genes produtores de câncer interagem com outras partes de seu perfil genético, para programar e istrar a quimioterapia e a terapia genética. Os cientistas estão descobrindo técnicas revolucionárias, algumas das quais podem ter conseqüências médicas impressionantes, para alterar a química protéica dos pacientes inserindo células extraídas do corpo do próprio paciente e controlando-as para produzir 11m perfil genético aprimorado. Essas novas e impressionantes técnicas de diagnóstico e terapia devem tornar-se íveis a todos? Tulvez seja tentador dizer que tudo o que salva vidas deve ser ível a todos o mais depressa possível, e que é ·uma vergonha quando se perdem vidas porque a comunidade não está disposta a gastar o dinheiro necessário para salvá-las. Nã'o obstante, como disse no Capítulo 8, à comtmidade que tentasse seguir à risca o "princípio do resgate" (em vez de apenas aprová-lo na retórica e ignorá-lo na prática) não restariam recursos para gastar em nada além da assistência médica, não teria como gastar em educação, formação profissional e cultura, e acabaria apenas capacitando os cidadãos a viver uma vida un1 pouco mais longa na miséria. Se aceitrumos esse triste fato, e i1egannos algum tratamento que salvaria vidas porque seria oneroso demais, os que podem pagar esse tratamento deveriam ter permissão para pagá-lo para si? Ou deve-se negar tal oportunidade a essas pessoas para impedir que as injustiças decorrentes da riqueza assimétrica aume11tassem ainda mais? Para analisar essas questões de maneira adequada, precisamos rever algumds das questões que deixei de lado no início. Qltanto a nação deve gastar, com toda justiça, na assistência i11édica, e como se devem distribuir essas despesas?

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Resumirei aqui a resposta que ofereci no Capítulo 8. Analisemos esta experiência de pensamento. itamos que todos os cidadãos de determinada sociedade política, com seus atuais gostos e aspirações, possuíssem as riquezas médias que atualmente se encontram em tal sociedade, bem como informações atualizadíssimas sobre quais benefícios a engenharia genética poderia trazer-lhes, em circunstâncias iinaginárias, e qual seria o preço do seguro para oferecê-las nessas circunstâncias. Se achamos que os cidadãos em geral comprariam seguros que oferecessem determinado tipo de terapia - digamos, exames genéticos para aumentar a eficácia da quimioterapia, caso deles precisassem-, então devemos insistir para que o serviço nacional de saúde ofereça tal tratamento. Se, do contrário, achamos que os cidadãos não comprarian1 seguros que oferecessem determinada terapia digamos, tratamento de crescimento para uma criança marginalmente baixa que um casal viesse a conceber - por achar que há usos melhores para o dinheiro que o prêmio custaria, dada a baixa probabilidade de precisarem de tal tratamento, então o serviço nacional de saúde não deve oferecer tal tratamento, para que se possa usar em outras coisas a riqueza coletiva economizada. Minha opinião, porém, mais uma vez, é de que os ricos devem poder pagar terapia, a preços de mercado, superiores aos que esse cálculo pretendesse oferecer a todos. Em geral, não se nivela a igualdade por baixo, e até uma baixa procura de determinada terapia estimula a pesquisa, com benefícios gerais imprevistos, que do contrário não aconteceriam.

III. Clonagem e engenharia

A. Por que não? Até aqui nos ocupamos com os problemas comuns de justiça social e pessoal em um novo contexto: esses problemas estão exacerbados, mas seu caráter não foi fundamen-

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talmente alterado pelas descobertas e invenções genéticas. Também nos preocupamos, a não ser na breve discussão do aborto, com o que chamei de valores derivados em vez de valores independentes. 'lemos nos preocupado em como se deve usar e regulamentar as novas tecnologias para proteger os interesses das pessoas. Nossa próxima discussão inverterá essa ênfase: doravante nos preocuparemos principalmente com questões novíssimas e valores de caráter diferente e independente. As mais impressionantes possibilidades que os geneticistas estão atualmente explorando dariam aos cientistas e aos médicos o poder de escolher quais seres humanos existirão. Esse poder foi conquistado há muito tempo, de ma11eira ampla e desajeitada, quando se descobriu que permitir o acasalamento de certas pessoas, e não de outras, teria consegüências nos filhos que produziriam. A eugenia, que tinha o apoio de George Bernard Shaw e Oliver Wendell Holmes, bem como de Adolf Hitler, fundamentava-se nessa descoberta simples. Mas a ciência ge11ética agora acena com a possibilidade, pelo menos na forma de fantasia inteligível, de criar determinados seres humanos projetados, um por um, segundo uma planta minuciosa, ou de alterar os seres humanos existentes, ainda enquanto fetos ou mais tarde, para criar pessoas com as propriedades genéticas escolhidas. Até a fantasia contida nisso, quando a tecnologia foi descrita pela primeira vez, foi recebida com choque e indignação, e esse choque se cristalizou quando os cientistas clonaram na Escócia uma ovelha adulta, e outros cientistas e jornalistas especularam que a técnica poderia ser usada para clonar seres humanos. Comissões nomeadas às pressas pelos governos e pelos órgãos internacionais denunciaram a idéia imediatamente. O presidente Clinton decretou que não se poderiam empregar verbas federais para financiar a pesquisa da clonagem humana, e o Senado dos Estados Unidos considerou proibir, por meio de leis tolamente abrangentes e impacientes, toda e qualquer pesquisa nesse sen-

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tido. A possibilidade da engenharia genética total-que promete alterar a composição genética do zigoto para produzir uma bateria de propensões físicas, mentais e emocionais desejadas - também despertou grande temor e repulsa, e qualquer êxito na engenharia de manúferos, comparáveis à criação da ovelha l)olly, sem dúvida provocaria reação oficial semelhante. (Nesta discussão, usarei com freqüêncla a palavra" engenharia" abrangendo tanto a alteração genética total qttanto a clonagem humana, esta sendo tratada corno caso especial daquela. Obviamente, engenharia e clonagem são técnicas distintas, mas mu.itas das questões sociais e morais que geram são idênticas.) A retórica do Parlamento Europeu não difere da reação que as perspectivas da engenharia.genética produziram. Em sua "resolução acerca da clonagem do embrião humano", essa instituição déclarou sua "firme convicção de que a clonagem de seres humanos, tanto experimental, no contexto dos tratamentos de fertilidade, diagnósticos pré-implantes, para transplante de tecidos, quanto para qualquer outra finalidade, é antiético, moralmente repugnante, contrário ao respeito pela pessoa e grave violação dos direitos humanos fundamentais, o que não pode, em hipótese algmna, ser justificado ou aceito". Como poderíamos justificar, ou mesmo explicar, essa patética reação? Poderíamos explorar três fundamentos para uma objeção, freqüen.temente mencionados. Em primeiro lugar, diz-se que a pesquisa genética representa grande perigo e, por conseguinte, há necessidade de extrema cautela. Se a clonagem humana, ou qualquer outra engenharia genética total, for possível, a sua pesquisa ou as tentativas de concretizá-la podem resultar em um número inaceitável de abortos ou no nascimento de um número inissível de crianças defonnadas, por exemplo. Em segundo lugar, algumas pessoas resistem à pesquisa em engenharia genética com base na justiça social. A clonagem, caso esteja disporúvel, será caríssima durante muito tempo e, por conseguinte, só seria ível para os ricos que qttisessem, por vaidade, clonar a si mesmos, aumentando as

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vantagens injustas da riqueza. {Oponentes horrorizados pela idéia da clonagem citaram o espectro de milhares de Rupert Murdochs ou Donald Trumps.) Em terceiro lugar, muitas das reações hostis foram geradas por um valor estético independente e razoavelmente conhecido. A engenharia, se disponível, pode muito bem ser usada para perpetuar as atualmente desejadas caracteósticas de altura, inteligência, cor e personalidade, e isso impediria que o mundo ti\resse a variedade que parece essencial à novidade, à. originalidade e à fascinação. Precisamos debater cada uma dessas supostas justificativas para a proibição da pesquisa e de seu desenvolvimento, mas em minha opinião elas não explicam, juntas ou separadas, a força dogmática das reações que descrc'Vi.

Segurança. Não está claro até que ponto se· pode confiar no precedente de Dolly para prever os prováveis resultados das experiências com a clonagem humana. Os conhecimentos técnicos provavelmente aumentarão; por outro lado, a clonagem humana pode tornar-se exponencialmente mais difícil do que a clonagen1 de ovelhas. Foram necessárias centenas de tentativas para produzir urna ovelha, mas, pelo que entendi, as outras se perderan1 devido a abortos, e não foi produzida nenhuma ovelha deformada porém viável. Também não há muitos motivos para se pensar que a clonagem ou a engenharia produziria uma linhagem biológica de defeitos que ameaçasse gerações com umo. deformidade, ou com uma deformidade que não viesse a aparecer antes de decorridas várias gerações. De qualquer forma, poré1n, esses riscos não são suficientes, sozinhos, para justificar a proibição de pesquisas futuras que poderiam aprimorar nossa opinião sobre elas, e talvez a nossa capacidade de impedir ou reduzir quaisquer ameaças que sejam de fato genuínas. É verdade que o súbito aparecimento do doutor Seed, nas n1anchetes ou na tela, prometendo clonar qualquer pessoa por um preço alto, foi o bastante para aterrorizar a todos. Mas a regulamentação pode contê-lo, junta-

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mente com os milhares de outros aventureiros da clonagem que certamente aparecerão, sem extinguir totalmente a pesquisa. Ademais, se estamos avaliando os riscos de danos que as experiências ou os exames podem produzir, também precisamos contemplar a esperança de que a evolução e o aprimoramento das técnicas da engenharia genética venham a diminuir muito o número de defeitos e deformidades com que nascem as pessoas hoje em dia ou com os quais crescem inexoravelmente. O balanço dos riscos pode muito bem pender para o lado favorável às experiências.

Justiça. É fácil ímaginar a engenharia genética tornando-se um pré-requisito dos ricos e, portanto, exacerbando a injustiça, que já é ímensa, tanto das sociedades prósperas quanto das empobrecidas. Todavia essas técnicas têm usos que vão além da vaidádc, e esses podem vir a justificar a pesquisa e as expedências, inesmo que julguemos ser a vaidade um motivo inadequado e proibido. Percebemos, anteriormente, as importantes conquistas médicas que já foram alcançadas por intermédio da engenharia seletiva, e pode-se esperar com confiança que mais pesquisas na engenharia genética ampliarão as descobertas anteriores. A clonagem pode acabar oferecendo benefícios médicos ímpressionantes. Os pais de uma criança muito doente podem qtterer outro filho, ao qual amariam tanto quanto a qualquer outro, mas cujo sangue ou medula poderia salvar a vida do filho doe11tc do qual foi clonado. Clonar determinadas célulastronco humanas para produzir um órgão para transplante, em vez de um organismo inteiro, pode resultar em benefícios ainda maiores. Uma célula que ou por reengenharia e foi clonada, extraída de um paciente canceroso, pode tomar-se a cura daquele câncer quando do transplante dos clones. Também devemos considerar as vantagens além das estritamente médicas. Os casais sem filhos, por exemplo, ou mulheres ou homens solteiros poderiam desejar procriar por meio de clonagem,. que podem ·considerar melhor que as outras opções disponíveis. Ou não ter opção nenhuma.

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Talvez possamos legislar para que a engenharia elimine todos os motivos que não sejam aprovados. Se isso for possível, a justiça o exige, mesmo que presumamos que não há outras objeções? Creio que não. Não devemos, como já disse, procurar aumentar a igualdade nivelando por baixo e, como no caso da medicina genética mais ortodoxa, técnicas disponíveis durante algum tempo somente para os muito ricos quase sempre geram descobertas de valor muito mais geral para todos. O remédio para a injustiça é a redistribúição, e não a recusa dos benefícios para alguns sem ganhos correspondentes para outros.

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Estética. Já temos clones - nascimentos múltiplos geneticamente idênticos (que aumentaram em conseqüência do tratamento de infertilidade) produzem clones-, e o histórico das crianças geneticamente idênticas demonstra que genes idênticos não produzem fenótipos idênticos. Talvez tenhan1os subestimado a natureza no ado, mas a nutrição também continua sendo importante, e a reação às perspectivas da engenharia, por sua vez, também subestimou sua importância. Contudo, as pessoas receiam que, se trocar a "loteria" genética pela reprodução tratada pela engenharia, a desejada diversidade de tipos humanos venha a ser substituída pela uniformidade ditada pela moda. r\.té certo ponto, é claro, é nítido o desejo de maior uniformidade: não há valor, estético ou não, no fato de algumas pessoas estarem condenadas a uma vida desfigurada e curta. Mas acredita-se mais que, dentro de certos limites, as pessoas tenham aparência e comportamento distintos de maneira que possam ser conseqüência de diversos alelos. Essa idéia parece provir de tlm valor derivado: que é melhor para todos viver em um mundo de diferenças. Contudo também pode ser vista como menção a um valor independente: muita gente acha que a diversidade é tun valor em si, de modo que permaneceria valiosa, mesmo que, por algum motivo, as pessoas viessem a preferir a uniformidade. O que não está claro, porém, é até que ponto a engenharia, mesmo que estivesse disponível a preços baixos, real-

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mente ameaçaria a desejada diversidade. Talvez todos os pais, se pudessem escolher, desejariam que os filhos tivesse1n o nível de inteligência e de outras habilidades que hoje consideramos normal, ou mesmo que acreditemos superior. No entanto, não podemos considerá-lo indesejável: afinal, a finalidade da educação, tanto comum quanto reparadora, é aumentar a inteligência e os níveis de capacidade de maneira abrangente. É lícito concluir que, se os pais pudessem optar, quase sempre prefeririam obter clones de um deles - ou clonar uma terceira pessoa - à reprodução tradicional que gere um filho com os seus genes? Ou escolheriam a clonagem por motivos alheios à exclusão de alelos prejudiciais, ou porque estão incapacitados para a reprodução sexual? Isso parece improvável. Temos motivos para recear (como muita gente receia) que os pais criem um zigoto reprodutivo·para que seja macho, e não fêmea, por exemplo? É verdade que em certas comunidades no norte da Índia, por exemplo, preferem-se filhos às filhas. Mas tal preferência parece tão sensível às circunstfu:1cias económicas, bem como a preconceitos culturais que mudam, que não oferece motivo para pensar que o mnndo será, de repente, inundado por uma geração dominada por homens. O aborto seletivo pelo sexo já existe há algum tempo, resultante da amniocentese e de leis liberais relativas ao aborto, e parece que não se estabeleceu como tendência geral. Em todo caso, não se justificaria a interrupção das experiências com base em especulação tão fraca. O temor, porém, vai além do medo de assimetria sexual: é o medo de que um fe11ótipo - digamos, louro, convencionalmentc bonito, não agressivo, alto, com dotes musicais e engenhosidade - venha a do1ninar uma cultura na qual o fenótipo seja especiahnente valorizado. Devemos fazer uma pausa para anotar as hipóteses científicas contidas nesse temor: ele presume não só que é possível um planejamento genético total, mas que as diversas propriedades do fenótipo preferido podem ser reunidas na mesma pessoa, por n1eio desse projeto, como se cada uma dessas propriedades

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fosse produto de um só alelo, cuja posse tomasse tal propriedade pelo menos muito provável, e isso pudesse serespecificado e tivesse tal conseqüência, independentemente da especificação ou da expressão fenotípi~a dos outros alelos. Todas essas hipóteses parecem improváveis, e sua combinação ainda mais. Parece b0m mais provável que mesmo os pais com o à mais avançada engenharia tivessem menos combinações a escolher e mais riscos a correr com relação às conseqüê11cias da educação e da vivência, e que fariam essas escolhas de maneira diferente em reação às próprias diferenças entre eles do que agora festejamos. O impacto posterior das opções pessoais divergentes de seus próprios filhos, talvez na procura da individualidade, ampliaria essas diferenças. Ademais, as assunções motivacionais básicas que sustentam o medo parecem tão duvidosas quan~o as assunções científicas. A maioria das pessoas deleita-se com os mistérios da reprodução ~ esse valor está, afinal, no cerne de todas as objeções que estamos analisando - e muitas, talvez a maioria, renunciariam à engenharia que fosse além de tentar eliminar defeitos e deficiências óbvias, por considerá-la de mau gosto. Se tudo isso estiver certo, a objeção estética é exagerada ou, pelo menos, prematura. Precisaríamos de muito mais informações, de um tipo que só se produziria por meio de pesquisas e experiências, para poder ao menos julgar as hipóteses sobre as quais se fundamentam as oposições, e pareceria in·acional, portanto, confiar nessas objeções para impedir a pesquisa.

B. Brincar de Deus -,;

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Os argumentos e as objeções que analisamos até agora não oferecem o qt1e T. S. Eliot chamava de "correlato objetivo'' para a repulsa imediata, e por tantos endossada, que descrevi. AB pessoas pressentem uma base mais profunda, menos articulada, para essa repulsa, mesmo que não tenham ou não possam articular completamente essa base,

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PR!ÍTICA

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mas apenas a expressar em uma linguagem acalorada e logicamente inadequada, como a estranha menção aos "direitos humanos fundamentais" contida na resolução do Parlamento Europeu que mencionei anteriormente. Só avaliaremos de maneira adequada o verdadeiro poder da resistência social e política às pesquisas futuras em engenharia genética, ou as genuínas questões morais e éticas que tais pesquisas apresentam, quando tivermos entendido melhor essa base mais profunda, e poderíamos iniciar com outra conhecida peça de retórica. E inaceitável, dizem, principalmente depois que se descobriu que as objeções mais conhecidas deixam a desejar, brincar de Deus. Essa objeção apela ao que chamei de valor independente, em vez de derivado. Considera-se que brincar de Deus é errado em si, sem se contemplar nenhuma conseqüência ruim que possa vir a ter para qualquer ser humano identificável. Não obstante, não está nem um pouco claro o significado dessa proibição - não está claro o que significa brincar de Deus, e o que, exatamente, há de errado nisso. Não posso dizer que é sempre errado que os seres humanos tentem resistir às catástrofes naturais, ou aprimorar o que a natureza lhes deu. As pessoas fazem isso - sempre fizeram - o tempo todo. Qual é a diferença, afinal, entre inventar a penicilina e usar genes alterados pela engenharia e clonados para curar doenças ainda mais pavorosas do que aquelas curadas pela peniclHna? Qt1al é a diferença entre obrigar seu filho a fazer exercícios extenuantes para ganhar ou per·· der peso e alterar os genes, ainda em embrião, com amesma finalidade? Não são perguntas retóricas. Devemos tentar respondê-las, mas precisamos começar a alguma distância delas, na estrutura geral de nossa experiência moral e ética, pois essa estrutura depende, em essência, de uma diferença fundamental entre o que somos responsáveis em nossas ações ou decisões, individual ou coletivamente, e o que nos é dado como pano de fundo para decidir ou agir, mas que não temos poder para modificar. Para os gregos, essa era a dife-

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rença entre eles mesmos e sua sina ou destino, que estava nas mãos dos deuses. !:>ara pessoas religiosas da maneira convencional, mesmo hoje em dia, é a diferença entre como Deus criou o mundo, inclusive nossa situação natural dentro dele, e o âmbito do livre-arbítrio que Ele também criou. Pessoas mais eruditas empregam a linguagem da ciência com o mesmo resultado: para elas, a diferença fundamental está entre o que a natureza, incluindo-se nela a evolução, criou, por intermédio de partículas, energia e genes, e o que fazemos nesse mundo e com esses genes. Para todos, seja como for que a descrevam, a diferença traça uma liriha entre qttem e o que somos, pela qual se responsabiliza a vontade de Deus ou ninguém além de um processo cego, e o que fazemos com tal património, pelo qual somos, de fato, responsáveis, em separado ou e1n conjunto. Esse limite fundamental entre acaso e escolha é a espinha dorsal da nossa ética e da nossa moralidade, e qualquer alteração profunda nessa fronteira é um deslocamento grave. Nossa percepção de vida bem-vivida, por exemplo, é fundamentalmente formada por supostos dados sobre os limites superiores da abrangência da vida humana. Se, repentina1nente, fosse possível esperar que as pessoas vivessem dez vezes mais tempo do que vivemos hoje, teriamos de recriar todas as nossas opiniões sobre o que seria um tipo atraente de vida, e também sobre quais das atividades que representam risco de morte acidental para outras pessoas, tais como dirigir, são moralmente permissíveis. A história já oferece, em nosso próprio tempo, exemplos menos impressionantes, mesmo assim profundos, de como as mudanças científicas deslocam os valores de maneira radical. As convicções arraigadas sobre as responsabilidades que os líderes têm de proteger os próprios soldados na guerra, custe o que custar, mt1daram quando os cientistas dividiram o átomo e aumentaram muito a carnificina que tais convicções poderiam justificar. As convicções arraigadas relativas à eutanásia e ao suicídio mudaram, quando o tratamento das doenças terminais aumentou muitíssimo o poder que o mé-

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dico tem de prolongar a vida para além do limite em que essa vida teria qualquer significado para o paciente. Em todos os casos, um período de estabilidade moral foi substituído pela insegurança moral, e é revelador o fato de que, em ambos os episódios, .as pessoas recorreram à expressão "brincar de Deus", em um caso para acusar os cientistas que haviam aumentado muitíssimo nosso poder sobre a natureza, ao invadir um espaço que se pensava fundamental do desígnio divino, e no outro para criticar os pacientes moribundos por assumirem para si a decisão que os limites da medicina no ado tornavam fácil tratar como decisão qt1e só competia a Deus. Minha hipótese é que a ciência genética nos mostrou a possibilidade de um deslocamento moral semelhante e iminente, embora maior. ·rememos a possibilidade de pessoas criarem outras pessoas porque tal possibilidade em si altera - de maneira muito mais marcante do que nesses outros exemplos - o limite entre a sorte e a escolha que estrutura todos os nossos valores, e tal deslocamento ameaça, não agredir nenhum dos nossos atuais valores, derivados ou independentes, mas, pelo contrário, tornar obsoleta uma grande parte deles. Nosso ser físico - o cérebro e o corpo que oferecem a cada um de nós o substrato material - há muito é o paradigma absoluto do que é importantíssimo para nós e, em sua condição inicial, está além de nosso poder de alterar e, por conseguinte, fora do âmbito de nossa responsabilidade, tanto individual quanto coletiva. A popularidade do termo "loteria genética" já demonstra a centralidade em nossa convicção de que, essencialmente, o que somos é uma qilestão de sorte, e não de escolha. Não estou dizendo que a continuidade genética é o segredo do.problema técnico e filosófico da identidade pessoal, embora alguns filósofos realmente pensem assim. O que pretendo é expor uma idéia psicológica: as pessoas pensam que a própria essência da diferença entre o que Deus ou a natureza oferecem e o que têm responsabilidade por fazer, ou sob quais condições, deve ser fisicamente definida, com re-

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lação ao que existe dentro "dos _genes" ou, em un1a metáfora que expressa a velha ciência, "no sangue". Para levar a sério a possibilidade que estamos agora explorando - de que os cientistas conquistaram a capacidade de criar um ser humano com qualquer fenótipo escolhido por eles ou pelos pais da criança-, poderíamos, então, mapear a destruição das atitudes morais e éticas estabelecidas a partir de praticamente qualquer ponto. Não empregamos a diferença entre .sorte e escolha somente em nossas atribuições de responsabilidade por situações ou acontecimentos, por exemplo, mas também em nossas avaliações do or~lho, inclusive do orgulho daquilo que a natureza nos legou. E um fenómeno impressionante, então, que as pessoas se orgulhem de atributos físicos ou habilidades que não escolheram nem criaram, como a aparência física ou a força, mas não quando esses atributos podem ser vistos como resultados do trabalho de outras pessoas, do qual não participaram. A mulher que se entrega a um cirurgião plástico pode alegrar-se com o resultado, mas não pode orgulhar-se dele; certamente não o mesmo orgulho que teria se tivesse nascido com essa beleza. O que aconteceria com o orgulho de nossos atributos físicos, ou mesmo do que fizemos deles, se eles fossem os resultados inexoráveis, não da natureza, cujo orgulho temos permissão, por assim dizer, de compartilhar, contudo da decisão de nossos pais e dos geneticistas que contrataram? Porém, o uso 1nais dramático da diferença fundamental entre a sorte e a escolha está na atribuição de responsabilidade pessoal e coletiva, e é nisso que parece maior o risco de insegurança moral. Agora aceitamos nossa condição ao nascer por u1n parâmetro de nossa responsabilidade temos de aproveitá-la da melhor forma possível-, mas não como uma possível área de culpa, a não ser naqueles casos especiais, de descoberta relativamente recente, nos· quais o comportamento de alguém alterou seu desenvolvimento embriológico, por meio do tabagismo, por exemplo, ou das drogas. Caso contrário, embora possamos culpar o destino

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pelo que somos, como o fez Richard Crookback, não podemos culpar ninguém mais. AB mesmas diferenças se aplicam, pelo menos para a maioria das pessoas, e para muitos filósofos da. moral, também à responsabilidade social. Sentimo-nos mais responsáveis pela compensação das vítimas de acidentes industriais e de preconceitos raciais, como vítimas em ambos os casos, embora de maneiras diferentes, da sociedade geral, do que pela compensação daqueles que nascem com defeitos genéticos, dos atingidos por um raio ou outros acidentes que os advogados e as companhias de seguro chamam de "caso fortuito". Como tudo isso mudaria se todos se tomassem iguais a essas pessoas devido a decisões de outrem, entre elas a decisão de alguns pais de não interferir, mas deixar a natureza seguir seu rumo? Certamente deve mudar. Mas como e por quê? Novamente, essas questões não são retóricas. Não sei respondêlas, e mal posso dar palpites. Mas essa é a questão. O terror que muitos de nós sentimos ao pensar na engenharia genética não é um medo do que está errado; pelo contrário, é o medo de perder o pulso sobre o que está errado. Não temos o direito - seria uma grave confusão - de pensar que até as mudanças mai.s avassaladoras na fronteira entre a sorte e a opção de algum modo desafiem a própria moralidade, de forma que u1n dia não haverá mais certo ou errado. Todavia temos o direito de estar apreensivos que nossas copvicções arraigadas, muitas delas, venham a ser solapadas, que venhamos a sofrer uma espécie de queda-livre moral, que tenhamos de pensar novamente contra um novo pano de fundo e com resultados incertos. Brincar de Deus é brincar com fogo. Suponhamos que esta hipótese, pelo menos depois de corrigida e aprimorada, faça sentido e seja responsável pela poderosa vertigem emocional das pessoas à engenharia genética, que não é explicada pelos fu11damentos mais discretos que examinamos primeiro. Teremos descoberto, então, não só uma explicação, mas uma justificativa da objeção, uma interpretação do "não brinque de Deus" que demonstra por que, pelo menos neste caso, não deveríamos fazê-

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lo? :Penso que não. Teríamos descoberto um desafio que de-

vemos enfrentar, em vez de um motivo para voltar atrás, pois nossa hipótese não infere nenhum valor, derivado ou

independente. Só revela motivos por que nossos valores contemporâneos, de ambos os tipos, podem estar errados ou, pelo menos, mal analisados. Para sermos moral e eticamente responsáveis, não pode haver retomo depois qt.1e descobrirmos, como descobrimos, que alguns dos pressupostos mais fundamentais desses valores estão equivocados. Brincar de Deus é, de fato, brincar com fogo. Mas é isso que nós, os mortais, temos feito desde os tempos de Prometeu, o deus

padroeiro da perigosa descoberta. Brincamos com fogo e assumimos as conseqüências, pois a alternativa é a covardia

perante o desconhecido.

IV. Pós·escrito: o impacto do individualismo ético Se as técnicas dramáticas de clonagem e engenharia genética sobre as quais discorri forem, como pensam muitos biólogos, somente uma ficção científica, inesmo assim já são ficções populares, e a reação hostil do público, que é apresentada como fundame11tada na convicção moral e ética, pode atrapalhar o p_rogresso científico independente e genuíno. Mesmo que jamais seja possível clonar seres humanos integralmente, as pesquisas das técnicas de clonagem ainda podem produzir enormes benefícios médicos - na geração de órgãos à prova de reações imunológicas, para transplante em pacientes cujas células son1áticas produziram tal órgão, por exemplo. A reação popular hostil tem sido indiscriminada, porém, e ameaça gerar proibições generalizadas com relação a essas pesquisas; portanto poderia ser útil debater se as objeções morais e éticas ofereceriam motivos concretos para impedir as pesquisas, mesmo que, segundo os temores da imaginação popular, as piores conseqüências de fato se concretizassem. Ademais, as questões levantadas pelo espectro da clonagem e da engenharia genética radical

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são moralmente instrutivas, mesmo que essas técnicas não sejam possibilidades genuínas. Uma vez que as técnicas ainda são incertas, oferecem testes novos e valiosos da coerência e da propriedade dos pressupostos estabelecidos e convencionais. Muitos de nós consideramos um direito humano fundamental a liberdade de reprodução, por exemplo. Podemos continuar com essa convicção depois de reconhecer até mesmo a mais remota possibilidade de que tal direito, uma vez concedido, estender-se-ia à Uberdade de se clonar a si mesmo ou projetar uma criança segundo algum suposto padrão de perfeição? Se tais questões são importantes ou não, pode muito bem depender de visões sobre o caráter da moralidade. Algumas pessoas têm uma poshrra pragmática com relação à convicção moral: a moralidade, pensam elas, é um dispositivo para coordenar nosso comportamento de maneiras úteis e pacíficas perante possíveis conflitos. Tais pessoas não verão motivo para preocupação com os ajustes em nosso comportamento coordenado que podem ser necessários algum dia, porém não em muitos anos, se é que algum dia serão. Outras acham que a moralidade tem um status e autoridade mais independentes: relutariam em basear qualquer argumento, mesmo um argumento de conseqüências práticas imediatas, na afirmação de que um princípio como o da autonomia reprodutiva teria ·uma autoridade prevalecente, se tivessem de conceder qtte não e11dossariam tal princípio em circunstâncias imaginárias, mesmo que improváveis. Creio que a maioria das pessoas adota esta última postura~ que os filósofos chamam de "realista" - em seus princípios e convicções morais, e não a primeira, mais instnunental, e a explicação que ofereci do fundamento da arraigada hostilidade com relação à tecnologia genética mais radical pressupõe a segunda postura. Sugeri que até a mera possibilidade de alcançar um imenso controle sobre a estrutura genética de nossos fil11os solapa nossos pressupostos mais fundamentais sobre o limite e.ntre o que temos a responsabilidade de escolher e o

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que, seja melhor ou pior, está além de nosso controle por ser determinado pelo acaso, pela natureza ou pelos deuses. Nossa identidade genética-quem nós e nossos filhos somos - tem sido um paradigm.a da responsabilidade da natureza, e não nossa, e qualquer deslocamento substancial dessa decisão para a esfera de nossa própria responsabilidade desestabilizaria grande parte da nossa moralidade convencional. Quando compreendermos que está em nossas mãos, pelo menos coletivamente, permitir e incentivar, ou não, nossos cientistas a almejar essas possibilidades técnicas e explorar, ou não, qualquer que seja a tecnologia que criarem, então já será tarde demais para desejar o retomo da velha fronteira, pois a decisão de afastar-se do que a ciência pode oferecer é, em si, uma escolha que poderia ter sido diferente. Para o bem ou para o-mal, quando·mesmo a possibilidade da engenharia genética nos foi impingid~, um pressuposto fundamental de grande parte de nossa moralidade e postura convencionais foi desafiado, e corremos o risco do qJ.te chamei de situação de queda livre moral. Para reagir a tal perigo, precisamos confiar em uma parte mais crítica e abstrata de nossa moralidade. Temos de tentar identificar o que poderíamos chamar de fundo moral crítico: um conjunto fundamental de convicções que esperamos possam nos orientar quando as práticas e os pressupostos morais que considerávamos inabaláveis forem desafiados. Você tem um conjunto de convicções fundamentais que enfatiza a hberdade individual? Precisaria da demonstração concreta de um grave risco à saúde ou à segurança para sentir-se disposto a aprovar limites judiciais aos exames genéticos, às pesquisas ou às experiências? Ou será que seu instinto é mais conservador: você exigiria urna demonstração concreta de que algum programa de exames ou linha de pesquisa seja seguro e útil antes de autorizá-lo? Evidentemente, essas duas posturas fundamentais são apenas paradigmas brutos; é provável que qualquer moralidade fundamental real seja mais complexa, mais profundamente ei1raizada e mais difícil de articular. Mas esse tipo de fundo moral crítico é indispensável.

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Minha própria moralidade crítica fundamenta-se em alguns ideais humanistas éticos que chamo de individualismo ético e que definem· o valor associado à vida humana. -O primeiro princípio afirma que é objetivamente importante que qualquer vida humana, depois de iniciada, tenha êxito, em vez de fracassar- que o potencial dessa vida se realize, em vez de desperdiçar-se-, e que isso é-igual e objetivamente importante no caso de cada vida humana. Digo "objetivamente" impmtante para salientar que o êxito da vida humana não é importante só para a própria pessoa ou para os que lhe são próximos. Todos temos motivo para nos preocupar com o destino de qualquer vida humana, mesmo que seja de um estranho, e de esperar que seja uma vida bem-sucedida. O segundo princípio reconhece essa importância objetiva, n~o obstante, insiste que essa pessoa - a pessoa em foco - tem urna responsabilidade especial por todas as vidas, e que, devido á essa'responsabilidade especial, ela tem o direito de tomar decisões fundamentais que definam, para ela, o que seria uma vida bem-sucedida. Se adotarmos esses dois princípios do individualismo ético como guias fundamentais na construção de uma teoria da moralidade política, esta será uma teoria igualitária, pois insistirá que o governo deve tratar a vida de cada pessoa que governa como tendo grande e igual importância, e construir suas estruturas econômicas e outras estruturas e políticas com esse princípio igualitário em mente. E também será uma teoria liberal, pois insistirá que o governo deve finalmente deixar as pessoas livres para tomar decisões que definam os parâmetros do êxito de suas próprias vidas. Este livro é uma te11tativa de descrever as conseqüências gerais desses dois princípios para a moralidade política. Neste pós-escrito tentarei indicar suas implicações mais específicas para este capítulo. Voltarei a utilizar a diferença entre dois tipos de problemas - "derivados" e "independentes". Surgem problemas derivados quando o governo precisa decidir como melhor proteger os interesses de pessoas determinadas e como resolver com justiça conflitos en-

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tre tais interesses. Os exames que poderiam revelar propensão genética à doença devem estar à disposição do público? Há motivos para preocupação. Os exames podem ser oferecidos pelo correio por empresas "aventureiras", por exemplo, e essas empresas não dariam informações muito precisas sobre a fidedignidade ou as conseqüências dos exames que oferecem, e aconselhamento nenhum para ajudar as mulheres a decidir se devem fazer um exame para detectar gene.s que as predisponham._ao .câncer de mama o.u como reagir a um resultado positivo. Algumas doenças que podem ser previstas por exames precisos não têm cura. Devese incentivar alguém a se submeter a um exame que talvez lhe mostre ser quase certo que venha a ter a doença de Huntington? Em outros casos, os dados experimentais justificam muito menos confiança no resultado: as pesquisas até o presente podem apontar probabilidades, por exemplo, com base em classificações populacionais, que venham a ser superadas por classificações mais precisas e amplas possibilidades de diferenças. Podemos escolher diversas políticas diante dessas dificuldades, da proibição total dos exames genéticos, pelo me~ nos até as pesquisas terem progredido muito mais, à liberdade comercial que permitiria a qualquer fornecedor oferecer exames em uni mercado desregulamentado. Se nenhum extre1no se justifica, qual estratégia, em algum ponto entre as duas, devemos escolher? Nossa resposta muito provavelmente dependerá de nossa moralidade crítica de fundo. O princípio da responsabilidade especial que endossei se posiciona contra qualquer forma profunda de paternalismo. Argumenta, portanto, a favor da regulamentação, e1n vez da proibição pura e simples, e uma regulamentação que procure a divulgação precisa e o licenciamento, e não a proibição, nem mesmo a limitada. Só itiria exames recomendados por médicos com formação e experiência suficientes para oferecer dconselhamento profissional e interpretação competentes. Mas não aceitarta a extinção de um exame, por pessoas conlpetentes, só porque sua precisão é

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especulativa, contanto que seu caráter especulativo seja totalmente revelado. Os exames deveriam ser exibr:idos? Talvez pareça que o princípio da responsabilidade especial exclua essa possibilidade. Contudo, às vezes, os exames protegem os interesses de outras pessoas, e não da pessoa cujo consentimento normalmente seria necessário. Suponhamos que fosse possível corrigir diversos tipos de defeitos genéticos graves em embriões, por exemplo, por meio da engenharia genética ou por formas mais convencionais de terapia. Então o princípio da responsabilidade especial não mais justificaria que se permitisse a uma mulher grávida recusar-se a fazer exames para descobrir tais defeitos no embrião, e o primeiro princípio do humanismo ético - a preocupação objetiva de que qualquer vida, uma vez iniciada, seja bem-sucedida aconselharia a obrigatoriedade do exame. É verdade que as democracias modernas sentem repulsa visceral com relação a obrigar qualquer pessoa a submeter-se a tratamento médico ao qual se oponha, principalmente quando a objeção está fundamentada em convicções religiosas. Esse princípio claro da integridade do corpo pode, todavia, ser um dos artifícios da moralidade convencional que parecia bem-justificado antes que as possibilidades indicadas pela moderna medicina genética fossem plausivelmente imaginadas, mas não depois. Para aceitarmos um princípio mais fundamental de consideração pela vida de todos, esse princípio da integridade do corpo talvez um dia precise ser qualificado. Como nossas atitudes sobre um mercado de seguros justo teriam de ser revisadas se os exames genéticos setornasse1n comuns o bastante para afetar a economia desse mercado? Deve-se permitir que as companhias que vendem seguro de vida exijam exames genéticos que considerem bons prognósticos de expectativa de vida? Ou cobrar caro daqueles que se recusarem a fazer tais exames? Caso contrário, deve-se permitir que perguntem se os candidatos ao seguro já fizeram tais exames e exigir os resultados, caso os tenhatn.? A Association of British Insurers (Associa -- ~

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ção de Seguradoras Britânicas) decidiu não exigir exames, nem mesmo perguntar se o candidato os fez, para seguros de vida de menos de f:100.000 quando a apólice é vinculada a uma hipoteca. Mas é apenas uma restrição voluntária e temporária. Deveria tornar-se obrigatória e permanente? Deveria aplicar-se a todas as apólices? Essa é uma questão derivada, pois pergunta pela resolução apropriada de um conflito de interesses entre os geneticamente afortunados, que pagariam menos pelo seguro se os prémios expressassem a propensão genética a doenças, e os geneticamente desafortunados, que pagariam mais. Há alguns candidatos a princípio para resolver esse conflito. ·um deles, que se poderia chamar de princípio da precisão estatística, opõe-se ao uso dos exames genéticos nas decisões de seguros, argumentando que as companhias de seguros se fundamentariam em classificações-toscas para a previsão genética, porque pormenorizar essas categorias para definir uma estrutura de prêmios mais categorizada seria caro demais em custos istrativos. Muita gente pagaria preços mais altos do que sua real predisposição a doenças justificasse. Isso só é injusto, porém, se a eqüidade exigir que as pessoas paguem proporcionalmente ao risco que impõem, por mais caro que seja descobrir tal iisco. Essa parece uma definição irracional de eqüidade, pois um sistema eqüitativo, nesse caso, seria um economicamente perdulário. Se a eqüidade significa realmente que cada candidato deva pagar proporcionalmente ao custo antecedente, então o custo deve incluir as despesas istrativas e outras despesas secundárias, para que seja, afinal, iníquo agrupar pessoas que pertençam a categorias diversas de riscos genéticos prognosticados. Se essa prática lhe parecer injusta, então talvez possa realmente rejeitar a idéia de que a eqüidade exige que as pessoas que apresentem riscos maiores, embora não tenham culpa, devam pagar uma parcela maior do prêmio geral do seguro. O padrão do individualismo ético, que exige igual consideração pela situação de todos, recomenda outra teoria da

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PRÁTICA

eqiiidade. Insiste que a distribuição justa de riscos e benefícios é aquela sensível às escolhas de cada pessoa, mas insensível à má sorte delas, inclusive com relação ao que ainda é, no estágio atual da tecnologia, uma loteria genética. (É preciso revisar esta análise do seguro justo, evidentemente, com quase todos os outros juízos relativamente concretos de eqilidade, se as promessas mais extravagantes da engenharia genética se realizar. Teríamos, então, de considerar, em nossa situação.de "queda livre moral", até que ponto responsabilizar os filhos pelas escolhas feitas pelos pais.) Assim, embora possa ser justo cobrar mais aos fumantes pelo seguro-saúde ou pelo seguro de vida - deixo de lado os problemas que podem surgir se descobrirmos que certos genes obrigam" a fumar do modo como outros genes obrigam" à doença-, não seria justo cobrar mais das pessoas porque seus cromossomas contêm um alelo que as ameace de câncer de mama ou de próstata. A eqüidade, compreendida à luz do individualismo ético, exigiria, portanto, uma "classificação comunitária" face às descobertas sobre a base genética de suscetibilidade a doenças: os prémios deveriam basear-se no risco médio dentro da comunidade em questão, e dever-se-ia oferecer o mesmo prémio (ajustado somente para riscos consciente e voluntariamente assumidos) a todos os candidatos. Mas se as seguradoras oferecessem preços comunitários, e permitissem que os candidatos descobdssem sua própria situação genética por meio de exames devidamente regulamentados, então os candidatos fariam o que as seguradoras chamam de "seleção adversa". Os que corressem mais riscos fariam seguros altos, os que corressem menos riscos não fariam seguro nenhum, e as seguradoras teriam de aumentar muito os preços (o que, na prática, traria de volta a discriminação) ou faliriam. Se, por outro lado, as seguradoras tivessem permissão para cobrar preços mais altos aos candidatos que optassem por fazer os exames antes de fazer o seguro e então descobrissem que são geneticamente desafortunados, isso os desestimularia de fazer os exames e condenaria as pessoas cuja vida poderia ser salva 11

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ou reparada por tais exames. Disse anteriormente que a única solução para esse "dilema do seguro" está na n.acionalização dos seguros- tanto de vida quanto de saúde- nas sociedades que ainda não deram esse o.

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Surgem divisões ainda mais profundas ao redor das questões independentes provocadas pela possibilidade de clonagem e de outros empreendimentos radicais da enge-

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seu tema principal não são os interesses de determinadas

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nharia genética. Essas questões são independentes porque pessoas, mas qual tipo de pessoa, produzido de qual forma, deve existir. Até que ponto e com que rapidez deven1 prosseguir as pesquisas científicas nessas áreas? Nisso, também, o

individualismo ético oferece orientação. Não há nada de errado na aspiração independente de tornar as vidas das gerações futuras mais longas e mais repletas de talento e, por conseguinte, realizações. Pelo contrário, se brincar de Deus significa lutar por aprimorar nossa espécie, trazer aos nossos projetos conscientes a resolução de aperfeiçoar o que Deus, de maneira deliberada, ou a natureza, às cegas, fez evoluir no decorrer dos tempos, então o primeiro princípio do individualismo ético rege tal luta, e seu segundo princípio proíbe, na ausência de provas concretas de perigo, que se impeçam os cientistas e os médicos de travá-la.

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Capítulo 14

O sexo, a morte e os tribunais

I Será que uma "maioria moral" pode limitar a liberdade de cidadãos individuais sem uma justificativa melhor 'do que a de desaprovar suas escolhas pessoais? Embora quase todos os americanos concordem que a vida humana tem algum aspecto sagrado, discordam se isso implica que ninguém deve se matar, mesmo que seja para evitar dores terríveis ou a indignidade de uma deficiência extrema, e mesmo quando morrerão em breve de qualquer maneira. Alguns acham que degrada a vida encerrá-la premah1ramente, mesmo nessas circunstâncias; outros pensa1n que é degradante não morrer com dignidade quando continuar vivendo seria consternador. 'fal decisão deveria ser individual, cada pessoa decidindo a própria vida com base em suas próprias convicções? Ou coletiva, para que as convicções da maioria sejam impostas, mesmo àqueles cujas convicções mais fundamentais sejam com isso prejudicadas1? A moralidade sexual também é essencial à vida e à p~rsonalidade. Os adultos devem ter a liberdade de tomar suas próprias decisões sobre sexo, quando tais decisões não atingirem outras pessoas diretamente? Nesse caso, até que 1. Discuto essas questões pormenorizadamente em Life's Dorninion (Nova York: Alfred A. Knopf, 1993).

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ponto os outros devem estar livres, individualmente, para expressar sua desaprovação dessas decisões em sua própria escolha de funcionários, sócios ou professores para os filhos? Os americanos itiram que algumas formas de discriminação privada são assuntos públicos, e que a lei deve garantir igualdade de tratamento para negros, mulheres e deficientes em muitas esferas. Por que não para os homossexuais também? Importa que o comportamento sexual, ao contrário de raça, sexo ou deficiência, seja questão de escoll1a? Os cientistas discordam no tocante a até que ponto os fatores genéticos definem a sexualidade, embora pareça incontestável que têm pelo menos um papel importante. De qualquer forma, abster-se do homossexualismo significaria abstinência sexual total para muitas pessoas, ou viver uma mentira. A sociedade déve permitir a discriminação contra pessoas que se recusem a fazer uma escolha a esse prL"ÇO? Nos Estados Unidos - e em muitas outras nações ecomunidades internacionais que nos acompanharam na instituição dos direitos constitucionais - essas questões também são questões jurídlcas, pois a Constituição dos Estados Unidos estipula que cada cidadão tem certos direitos que a maioria não pode atacar. A fonte mais abstrata desses direítos é a 14~ Emenda, segundo a qual nenhum estado pode restringir a liberdade de ninguém sem "o devido processo legal", e que nenhum estado pode negar a ninguém "a igual proteção das leis". A cláusula do devido processo legal proíbe completamente que se prejudiquem certos direitos essenciais, a não ser por uma razão especialmente irresistível. A cláusula da igual proteção exige somente que os estados não discriminem com injustiça as liberdades e outros privilégios que resolva permitir. Ambas as cláusulas são interpretadas para dar aos cidadãos pelo menos alguns direitos para ton1ar decisões morais para si mesmos. E1n 1963, por exemplo, em Roe versus Wade2, a Suprema Corte afirmou que a cláusula do devido processo dá às 1nulheres o direito 2. Roevcrsus V\'ade, 410 U.S. 113 (1973).

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ao aborto no princípio da gravidez; e em 1996, apelou à cláusula da igual proteção para derrubar uma emenda à Constituição do Colorado que tornava ilegal às cidades e aos municípios daquele estado oferecer proteção aos homossexuais contra discriminação. Em 1997, contudo, recusou-se a declarar inconstitucional estatutos estaduais que proibiam os médicos de assistir no suicídio dos pacientes com doenças terminais: recusou-se a concordar que tanto a cláusula do devido processo legal quanto a da igual proteção dão aos cidadãos o direito constitucional de controlar seu próprio modo de morrer3. Como deveriam os juízes decidir quais liberdades a cláusula do devido processo trata como fundamentais, e quais tipos de discriminação a cláusula da igual proteção trata como injustos? f-Iá mais de um século debatem-se duas opiniões totalmente opostas em uma Guerra das Rosas constitucional, com o predomínio temporário de um lado ou de outro. Um partido, ansioso por restringir o poder dos juízes de adjudicar questões morais, insiste que as. cláusulas do devido processo e da igual proteção só oferecem proteção legal a uma lista limitada de direitos que foram reconhecidos e aplicados durante toda a história dos Estados Unidos pósGuerra Civil. No veredicto de 1986 da Suprema Corte no processo Bowers versus Hardwíck4, no qual a Suprema Corte se recusou a derrubar a lei da Georgia que criminalizava a sodomia consentida entre adultos, o juiz Byron White declarou esta interpretação da cláusula do devido processo legal em um trecho que se tomou simbólico para esse partido. Ele adotou a opinião de que a cláusula protege apenas os direitos que estão "profundamente arraigados na história e na tradição do país" e disse que era, portanto, decisiva contra o suposto direito dos homossexuais de praticarem a sodomia,

3. O veredicto da Suprema Corte sobre o suicídio assistido se repetiu em dois processos complementares: Washingtm1 ef ai. versus Glucksberg, 521 U.S. 702 (1997) e Vacco '/Jersus Quill, 521 U.S. 793 (1997). 4. Bowe15 ve15us f[ardwick, 478 U.S. 186 (1986).

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que até 1961 os cinqücnta estados americanos consideravam criminosa; a afirmação de que "o direito de adotar tal conduta" a em qualquer dos dois testes é, disse ele, na melhor das hipóteses, "uma piada"5 . Nessa perspectiva, a lógica e a coerência de princípio têm papel insigrüficante na identificação dos direitos constitucionais. O fato de que a Corte reconheceu um direito o direito ao aborto, por exemplo - não oferece argumento para que deva também reconhecer qualquer outro direito o direito dos homossexuais à liberdade sexual ou dos pacientes moribundos de ter controle sobre a própria morte, por exemplo-, mesmo que não se possa dar motivo justo para que as pessoas tenham aquele direito, mas não estes. A única questão é se o direito em questão foi 1-Ustoricamente reconhecido, e é preciso aplicar esse teste de maneira independente a cada direito sugerido, um por :um. Só dessa maneira, como White deixou claro, pode-se limitar o poder dos juízes de expandir direitos constitucionais em nome da coerência. "Também não estamos inclinados", disse ele, "a adotar a opinião mais expansiva de nossa autoridade de descobrir novos direitos fundamentais contidos na cláusula do dev:ido processo legal. Caso contrário, o Judiciário obrigatoriamente assume uma autoridade extraordinária para governar o país sem autori.7.ação constihlcional expressa6." É melhor, nesse caso, tolerar a inccierência nos direitos que a Corte reconhece do que ampliar a lista desses direitos. O partido oposto na gi.1erra constitucional - o partido da integridade - rejeita essa ordem de prioridade. Afirma que se os direitos constitucionais reconhecidos para um grupo pressupõem mais princípios gerais que dariam apoio a outros direitos constitucionais de outros grupos, estes devem ser reconhecidos e garantidos também 7 • Em 1961, um 5. Id. em 191, 194. 6. ld. em 1QS, 7. Em Freedom's Law (Cambridge, Mass.: Harv.nd UniwrsltyPress, "1996), descrevi essa abordagem co1no a insistência em uma "interpretação moral" da Constituição, e tentei defendê-la contra a objeçíio do grupo da história de qui.' é antidemocrático.

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juiz conservador ~ John Harlan ~ ofereceu uma das mais fortes declarações jurídicas dessa tese, e, assim como a formulação cte "White, em Bowers, tornou-se o refrão do partido que defende a história, a de Harlan tomou-se refrão do partido da integridade. A liberdade protegida pela cláusula do devido processo, segundo Harlan, "não é uma série de pontos isolados ... é t1m continuum racional no qual, em um sentido amplo, figura a liberdade de todas as imposições substanciais arbitrárias e restrições sem sentido" 8 • Embora Harlan tenha feito essa declaração em um parecer contrário, ela ou a ser quase sempre citada em decisões posteriores da Suprema Corte. Os juízes Kennedy, O' Connor e Souter fundamentaram-se nela, por exemplo, em seu importantíssimo parecer cortjunto de 1993, em Casey versus Planned Parenthood of Pennsylvania (Paternidade planejada da Pensilvânia)9, ao explicar por que a Suprema Corte estava certa ao reconhecer o direito ao aborto em Roe versus Wade, embora a maioria dos estados tivessem proibido o aborto décadas antes de tal veredicto. Devemos examinar os dois últimos veredictos da Suprema Corte que mencionei, sobre o homossexualismo e o suicídio assistido, com esse grande litígio doutrinário em mente. ll

Muitos americanos sentem-se envergonhados e constrangidos perante as desvar1tagens jurídicas, económicas e sociais que os homossexuais ainda sofrem no país, e nas décadas mais recentes têm apoiado leis e regula1nentos industriais e acadêmicos qt1e proíbam Otl limitem tal discriminação. As cidades de Aspen, Boulder e Denver, do Colorado, por exemplo, promulgaram leis que protegiam os homossexuais, juntamente com as raças minoritárias e as 8. Poe1.>ersus Ul/n1a11, 367 U.S. 497, 543 (1961). 9. 505 U.S. 833 (1992).

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mulheres, contra a discriminação em moradia, educação, em-

prego, saúde e serviços da previdência social Outros eleitores do Colorado sentiram-se indignados, conhtdo, com a sugestão, implícita em tais leis, de que o homossexualismo é um modo de vida legítimo. Em um referendo estadual de 1992, incluíram a "Emenda 2" na constituição estadual, que se intitulava "No Protected Status Based on Homossexual, Lesbian, or Bisexual Orientation" (Nenhum Status Protegido para a Orientação Homossexual, Lésbica ou Bissexual). Declarava:

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Nem o Estado do Colorado, por meio de suas repartições ou secretarias, nem nenhum de seus órgãos, subdivisões políticas, munícipalidades ou distritos escolares, promulgarão, adotarão ou praticarão nenhum estatuto, leL regulamento ou política pelo qual a orientação, conduta, práticas ou relacionamentos homossexuais, lésbicôs ou bissexuais constituam ou sirvam de base, ou dêem a qualquer pessoa ou classe de pessoas o direito de ter ou reivindicar status minoritário, quota, preferências, stutus protegido ou queixa de discriminação. Essa cláusula, se válida, teria conseqüências catastróficas para a situação política dos homossexuais no Colorado. Aniquilaria a proteção que algumas cidades já haviam dado, e proibiria qualquer subdivisão política do estado e, na ver-

dade, o próprio estado de promulgar qualquer lei de proteção no futuro. Os homossexuais, a partir de então, só conseguiriam alguma lei antidiscriminatória com mai.s uma emenda à constituição do estado que anulasse ou emendasse a Emenda 2. Para muitas pessoas, dentro ou fora do Estado, isso pareceu monstruosamente injusto. Presumiram que discriminação tão flagrante deve violar a Constituição dos EUA, e um grupo de homossexuais do Colorado abriu processo em um tribnnal de Denver, o processo Evans versus Romer; pedindo um veredicto nesse sentido. Muitos constitucionalistas duvidavam, porém, que conseguissem vencer. A jurisprudência da Suprema Corte, durante muitos

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anos, parecia indicar que a Emenda 2 não violava a cláusula do devido processo nem a da igual proteção. Precisamos da história doutrinária para compreender por que os advogados duvidavam que a Suprema Corte afirmaria que a Emenda 2 violava a cláusula do devido processo. Quando os litigantes refutam alguma lei com base na cláusula do devido processo, os juízes costumam decidir-se com relação à refutação formulando duas perguntas. A primeira: tal lei prejudica algum "interesse da liberdade" - isto é, um direito que a Constihtição, em princípio, protege contra ações estatais? A segunda: caso afirmativo, as finalidades e as conseqüências do estatuto são tão importantes que, não obstante, justifiquem que um estado invada esse interesse da liberdade? A primeira pergunta divide os partidários da história e os da integrid:;i_de da maneira que descrevi: aqueles afirmam com veem.ência que os direitos constitucionais são limitados, mesmo em princípio, aos direitos concretos estabelecidos na história, ao o que estes afirmam que nesses direitos estão incluídos os direitos ainda não reconhecidos que se poderiam inferir dos princípios que justificam os historicamente reconhecidos. A segunda pergunta, que só surge se ficar decidido que a lei não prejudica um direito constitucional, exige um balanço. O tribunal deve avaliar a força desse direito e ponderar se os interesses que o Estado alega são suficientemente fortes para justificar o dano a um direito com aquela força. Assim, o veredicto de Bowers, q11e mencionei, pareceu decisivo contra a afirmação de que a Emenda 2 transgredia a cláusuJa do devido processo legal. VVhite declarou explicitamente que os homossexuais não têm, nem em princípio, mn direito constitucional que os Estados desrespeitam quando proíbem por lei as atividades homossexuais. Parecia, portanto, impossível argumentar que eles têm um direito constitucional que exclui a vantagem menos grave da Emenda 2, que só os im.pede de ter leis especiais a seu favor 10 • Como o Tri10. O grupo que refutou a Segunda Entenda argumentou que poderia ser derrubada çom coerência no processo Bowers porque, embora tal veredic-

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A VIRTUDE SOBERA.NA

bunal Itinerante do Distrito de Columbia observara em 1987, ''se o Supremo ... não estava disposto a opor-se às leis estaduais que criminalizam o comportamento que define a classe, não se pode ... concluir que a discriminação patrocinada pelo estado contra tal classe seja ofensiva. Afinal, não pode haver discriminação mais palpável contra uma classe do que criminalizar a conduta q11e define tal classe"tt. A cláusula da igual proteção pode parecer uma base mais promissora para a refutação da Emenda 2, porque esta lei negava aos homossexuais uma oportunidade política tentar garantir uma legislação local que protegesse seus interesses fundame11tais - aberta a todos os outros grupos. Novamente, porém, a jurisprudêncía impediu o uso da cláusula da igual proteção para invalidar tal discriminação; mais uma vez precisamos de um pouco da história para entender por quê. A estipulação de que os estadas não podem negar a ninguém "a igual proteção das lei.s" talvez tenha sido entendida como a imposição de un1a exigência bem fraca aos estados: que poderiam só discriminar entre seu.s cidadãos se antes promulgassem leis que descrevessem e autorizassem a discriminação. Mas essa interpretação banal daria liberdade ao estado para criar um sistema de castas no qual se negasse aos negros (por exemplo) quaisquer direitos fundamentais, contanto que o fizesse por interméto permitisse aos estados proibir os ato" homossexuais de sodon1ia, a Segunda Emenda não se aplicava apenas a homosse:>.1.1ais ativos, mas a iodas a5 pessoas de orientação homoSSE'xua\ e, assim, desfavorecia as pessoas com base en1 seu ~stado ou disposição psicológicól, e não em sua conduta. O Colorado respondeu que as diversas partes da emenda poderlain ser separadas e afirmou que a Suprema Corte do Colorado só poderia declarar inconstitucionais as partes que proibian1 ]eis antidisçriminatórias a favor de homossexuais nãopraticantes, dt•ixando a proibição em vlgor para leis que favorecessem "conduta, práticas ou reladonamentos homossexuais, lésbiços ou bissexuais". O tribúnal do Colorado deixou claro, porém, que seu veredicto de que a emenda era inconstitucional se aplicava a todas as suas partGs, inclusive sua proibição de leis nntidisLTiminação de homossexuais praticantes, e a Suprerna Corte considerou a apelação nessa base. 11. !'adula ver-,;11s Webster, 822 R2d 97, 103 (1987).

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dio de leis explícitas. Já que a 14~ Emenda foi promulgada depois da Guerra Civil, com a expectativa de evitar futuras castas sociais, a interpretação é inaceitável. Porém, isso também se aplica à interpretação oposta, que declararia que os estados jamais podem promulgar leis que discriminem de algum modo grupos de cidadãos, proporcionando vantagens a alguns à custa de outros. Quase todas as leis estaduais ou nacionais têm precisamente esse efeito - o Acordo Norte-Americano de Livre Comércio era contra os interesses de alguns trabalhadores e a favor de outros; as leis ambientais prejudicam alguns ramos de atividade, mas não outros; e as legislações estaduais que regulamentam bancos, valores mobiliários e profissões ajudam alguns, mas prejudicam outros. Assim, a Suprema Corte elaborou uma interpretação mais minuciosa da cláusula da igual proteção que evita essas interpretações extremas e inaceitáveis. Para isso, criou um conjunto de regras e méritos que, reunidos, resulta em uma concepção atraente de igualdade política12. O fundamento lógico dessas regras e méritos é uma teoria relativa a quando a democracia está funcionando bem, para que os que perderem em uma competição política não possam reclamar de desigualdade processual ou injustiça, e yuando não funciona bem para que as perdas de alguns grupos não possam ser aceitas como justas. Nas circunstâncias normais da política comum, os grupos que perdem - a indústria madeireira, por exemplo, pode perder com as leis ambientais - tiveram uma oportunidade justa de apresentar sua causa e exercer uma influência sobre o resultado en1 proporção aproximada a seu número e à força de seus interesses. O Supremo só examinará as leis ordinárias refutadas com base na igual proteção de maneira "frouxa": só de·· clarará tais leis inconstitucionais se descobrir que as diferenças traçadas, entre aqueles que delas se beneficiam e 12. As sutilezas da intl'rpretação da cláusula da igual proteção feita pela Suprema Corte ~o discutk!as no Capítulo 12.

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aqueles que elas prejudicam, são claramente irracionais, pois não servem, nem de maneira espectLlativa ou problemática, a qualquer propósito legítimo do governo. Assim, a Suprema Corte aprovou, por exemplo, uma lei que sujeitava os oculistas e os optometristas a diversas regulamentações, embora não se pudesse dar nenhum motivo notável para que fossem tratados diferenciadamente. Só raramente, de fato, julgou-se que algum estatuto violava esse teste "frouxo" de racionalidade. Em algumas circunstâncias, porém, é duvidosa a hipótese geral de que o processo político foi justo. Essa hipótese não ajuda as leis que privam algum grupo dos próprios direitos políticos de que precisa para participar do processo em termos justos - quando a lei reduz o poder de voto de algum grupo, por exemplo, para que seu impacto político se tome inferior ao que seu número justificariâ. A Suprema Corte criou, portanto, um outro rúvel, "estrito" ou "elevado" de escrutffiio para as leis que tenham tal efeito. Declara essas leis inconstitucionais, mesmo que tenham relação racional com algum propósito estatal legítimo, a não ser que se possa provar que são necessárias para evitar algum resultado lastimável que não se possa evitar de nenhuma outra maneira razoável. A Suprema Corte amparou-se no exame estrito, por exemplo, ein sua série de decisões de "redistribuição" na qual derrubou planos estaduais de traçar fronteiras de distritos eleitorais cujo efeito fosse negar um impacto igual para todos os cidadãos, com base err~ um voto por pessoa13. Ass'im como raramente é possível perder no exame "frouxo", é raro ar no exame "estrito". A hipótese do processo político justo também é duvidosa quando o grupo que perde foi vítima histórica de um preconceito ou estereótipo que toma provável que seus interesses sejam desprezados pelos eleitores. Os negros sempre foram derrotados na política, por exernplo, não porque

13. Ver, p. ex., Reynold~ versus Sims, 377 U.S. 533 (1964).

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seus interesses fossem sobrepujados pelos de outros em competição justa, mas devido a uma combinação de dois

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outros motivos: porque eram económica e socialmente mar-

ginalizados e faltavam-lhes a formação e os meios necessários para chamar a atenção dos políticos e dos eleitores, e porque muitos cidadãos brancos votavam em lels discriminadoras, não só para proteger seus próprios interesses rivais, mas porque desprezava1n os negros e queriam subjugá-los. Assi.m, a Suprema Corte criou outra categoria es-

pecial que atrai o escrutínio "elevado": declarou que os negros configuram uma classe "suspeita", e que se deve derru.bar qualquer lei que lhes proporcione especial desvantagem, a não ser que possa ser defendida por servir a alguma finalidade absolutamente irresistível. Raramente se consegue ar também nesse exame estrito. A S·uprema Corte acrescentou outros grupos à lista de classes "suspeitas" que merecem essa proteção especial: minorias étnicas e imigrantes. Ademais, criou mais uma categoria de classes "quase suspeitas" - entre elas figuram agora as mulheres e os filhos ilegítimos - e declarou que as leis que funcionem contra elas também receberão escrutínio elevado" (mas não tão "estrito" quanto no caso das classes totalmente "suspeitas"). Assim, o desafio à igual proteção de qualquer lei deve demonstrar algum motivo por que o "escrutínio elevado" de tal lei é apropriado, ou que a lei é irracional porque não tem relação, nem especulativa, com algum propósito legítimo do governo. O escrutínio elevado é apropriado se o grupo prejudicado pertencer à classe "suspeita" ou "quase suspeita", e os homossexuais decerto são alvos de precon·· ceita e ódio irracional. Nos anos subseqüentes ao veredicto de Bowers, porém, vários tribunais federais afirmaram que os homossexuais, todavia, não configura1n classe suspeita ou quase suspeita. Os grupos suspeitos, segundo eles, são os que não têm o poder político necessário para tomar o processo político justo e democrático para eles. Mas o grupo pode não ter esse poder por um dos dois motivos que enumerei anteriormente, ao discutir o caso dos negros. 11

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Em primeiro lugar, o grupo pode ser tão marginalizado financeira, social e politicamente, que lhe faltem meios para chamar a atenção dos políticos e dos outros eleitores para seus

interesses e, assim, não exercer o poder nas umas, ou em alianças ou barganhas com outros grupos, que se esperaria que o número de componentes do grupo fosse capaz de produzir. Em segundo lugar, pode ser vítima de vieses, preconceitos, ódios ou estereótipos tão graves que a maioria queira reprimi-lo 011 puni-lo por tal motivo, mesmo quan-

do as punições não sirvam a nenhum outro interesse, mais respeitável ou legítimo, de outros grupost4. Os negros e as outras classes q11e a Suprema Corte vem tratando como sus.· peitas ou quase suspeitas sofrem dessas deficiências sistemáticas, e não tem sido necessário, portanto, decidir se uma das duas deficiências basta, sozinha, para justificar a classificação de "suspeita". Porém (pelo menos na opinião dos juízes que se pronunciaran1 a respeito) os homossexuais sofrem somente da segunda1s. O juiz Scalia afirma com .freqüência que os homossexuais têm pelo menos o poder político garantido pelo número: "os que praticam a conduta ho.mossexual", disse ele, "costumam residir em número pesproporcional em certas comunidades ... dispor de alta renda ... e, certamente, preocupar-se com as questões dos direitos dos homossexuais de maneira mais fervorosa do que o público em geral, possuem poder político 1nuito maior do 14. Em outro lugar distingui entre dois tipos de preferências que podem orientar os eleitores em uma democracia: preferência~ "pessoaisp, relativas às aspiraçcle~ do eleitor para sua própria vida; e preferências "externa~·", que são suas preferências relativas a como ás outras pessoas devem viver ou o qu~ deve acontecer a elas. Ver Takú1g Rigl1ts Seriously (Cambridge, MCJ.ss.: Harvard University Pre:is, 1977) e A Matlerof Principie (Cambridge, tvfass.: Harvard Univcrsity Press, 1985). Argumento que é injusto e antidemocrátko quandn as pessoas perdem na política porque se arrolam as preferências externas contra el<1s, e que a cláusula da igual proteção deve ser ir1terpret<J.da de maneira que proteja os cidadãos contra tal circnnstância. HoW('l'S, confom1e o texto deixa claro, !Em opinião contraria. 15. Ver, p. ex., High Tech Gays versus Defense Indus. Sec. C/earm1cf Office, 895 E2d 563 (1990).

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que o número de indl.víduos do grupo, tanto localmente quanto em todo o estado" 16 . Se um estado como o Colorado rejeita a causa dos homossexuais, disse ele, não é por-que eles não tiveram a oportunidade de organizar seus empenhos políticos ou falar aos concidadãos, mas porque, apesar do fato de terem tido tais oportunidades, a maioria está contra eles. Portanto, é essencial decidir se a segunda desvantagem - o preconceito e o desprezo de uma possível maioria - é urna falta independente no devido funcionamento da democracia, que seja suficientemente grave para justificar o escrutínio elevado das leis que prejudicam aos que sofrem com tal preconceito. Bowers respondeu negativamente a essa questão. Os grupos que refutaram a lei anti-sodomia da Georgia naq1,1ele processo argumentaram que o estado não tem o direito de promulgar leis criminais quando seu úni.co motivo é a maioria desaprovar moralmente aqueles que transforma em criminosos. White respondeu: "A lei, porém, constantemente se fundamenta em noções de moralídade, e se for para invalidar com base na cláusula do devido processo legal todas as leis que representem opções essencialmente incrais, os tribunais terão muito trabalho.'' A resposta de VVhite interpretou mal o problema. É claro que a maioria das leis penais que a comt1nidade promulga expressa uma opção moral: as leis contra o homicídio expressam uma condenação moral daquela atividade. Os adversários só argumentaram a favor do princípio mais de que a lei penal é inconstitucional se for promulgada somente para condenar moralmente algumas pessoas, e não para proteger os interesses diretos de ninguém mais . •~s leis contra o homicídio fazem mais do que denunciar assassinos: protegem os interesses mais fundamentais dos inocentes. Crin1inalizar a sodomia conser1tida entre adultos, por outro lado, não serve a nenhum interesse independen16. Ra111er vrr~us Evans, 517 U.S. 620, 645 {1996).

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te da condenação moral, e quem refutou a leí anti-sodomia da Georgia argumentou que essa não é uma justificativa legítima para a penalidade criminal. White deixou claro que também pretendia rejeitar esse princípio mais , porém, e Bowers, por conseguinte, representa o princípio de que é pennissível que o governo proíba a liberdade de escolha no comportamento sexual privado, mesmo que tal comportamento não prejudique ninguém de maneira direta, contanto que a condenação expresse a moralidade popular. Depois de Bowers, os juízes vêm rejeitando a afirmação de que os homossexuais configuram um.a classe suspeita ou quase suspeita para fins de ,- igual proteção, e todos os juízes que opinaram a esse respeito no decorrer do processo Evans versus Rnmer concordaram. Existe outro tipo de lei que também atrai o exame do "escrutínio elevado", porém, como observamOs no início desta história: leis que prejudiquem um direito político fundamental A afirmação de que a Emenda 2 violava um direito político fundamental não depende de se supor que os homossexuais sejam uma classe suspeita ou quase suspeita. Pelo contrário, essa afirmação só poderia ser mantida: demonstrru1do-se que seria inconstitucional tratar qualquer grupo de cidadãos - pessoas que alugam casas, por exemplo, como oposto aos que são donos delas- como a Emenda 2 tratava os homossexuais. Mas, exatamente por esse motivo, é dificílimo definir qual é o direito em questão. O juiz de Denver que primeiro analisou o caso, fI. Jeffrey Bayless, decidiu que a emenda violava um direito fundamental: o direito de "não permitir _que o estado endosse e ponha em vigor preconceitos particulares". Todavia esse é exatamente o direito que White, em Bowers, disse que ninguém tem. Assim, quando o estado do Colorado apelou à Suprema Corte do Colorado, esta corte manteve o veredicto, mas citou outro direito fundamental - o direito de todos os grupos de ''terem igu.al participação i10 processo político". Conhtdo, há uma dificuldade evidente também nessa afirmação. A Emenda 2 não diminuía nem diluía o poder

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de voto de ninguém. Ela de fato colocava um grupo - o dos homossexuais - em desvantagem legislativa especial: necessitaria emendar a constituição estadual novamente para garantir uma legislação de atenção especial a esse respeito. Mas ninguém tem direito de não precisar emendar a constituição para obter as leis qi_te apóia ou acredita precisar. Não seria inconstitucional, em princípio, que a constituição do Colorado proibisse os municípios de adotar leis de controle de aluguéis, por exemplo, embora isso representasse problemas especiais para os locatários. De fato, a constituição nacional tem desabilitações semelhantes: os grupos que desejam fervorosamente a volta das orações às escolas precisariam.anular a Primeira Emenda antes de fazer uma queixa à secretaria de educação local. Assim, muitos advogados estavam temerosos quando o Colorado apelou de sua própria Suprema Corte à nacional, e mesmo que a maioria dos juízes federais quisesse derrubar a Emenda 2, não encontraria espaço para fazê-lo dentro da rede doutrinária e da jurisprudência que haviam, eles mesmos, firmado.1'1as o grupo de elite de um dos mais respeitados estudiosos americanos de direito constitucional apresentou um texto engenhoso, amici curiae, ou amigos da corte, que indicava uma saída dessas dificuldades doutrinárias17. O texto acadêmico desvia-se da estrutura elaborada das categorias e dos méritos que descrevi, sobre classes suspeitas, direitos fundamentais e níveis diversos de escrutínio, afirmando que é violação automática (ou per se) da igual proteção o estado declarar que qualquer grupo de cidadãos simplesmente não tem direito a proteção nenhuma contra qualquer forma do terrível mal da discriminação. Tal declaração, dizia o texto, de fato criminaliza o grupo, e a .finalidade principal da cláusula da igual proteção era evitar esse tipo de discriminação de castas. 17. O professor Laurence Tribe, da Faculdade de Direito de f-Iarvard, foi relator, e a ele juntaram-se os professores John Hart Ely, Gerald Gunther e Kath\een Sullivan, da Faculdade de "Direito de Stanford, e o falecido Philip 13. Kurland, da Faculdade de Direito da Universidade de Chicago.

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Esse argumento, insistia o texto, não presume nada com relação a serem os homossexuais uma classe suspeita. Uma

cláusula constitucional estadual violaria a igual proteção, dizia o texto, se proibisse qualquer lei de proteção a qualquer grupo de cidadãos contra qualquer forma de discrimi-

nação. Dava este exemplo: a Constituição do estado não ofereceria .igual proteção para quem aluga casas {que claramente não é uma classe suspeita) se estipulasse que é inválida q11alquer.legislação_local ou estadual que protegesse os locatários contra qualquer dano ou perda imagináveis. Mas essa comparação revela como era limitado o argumento do

texto, e como havia adaptado o argumento aos fatos desse 'caso em especial. Fazia co·m que a inconstitucionalidade da Emenda 2 dependesse de sua grande amplitude e, como demonstra o exemplo dos locatários, seu argumento não invalidaria uma cláusula constitucional estadual mais restrita, porém ainda destrutiva, cuja finalidade fosse permitir o homossexualismo, pois o texto itia que não seria violação per se da igual proteção a Constituição estadual proibir uma forma específica de proteção aos locatários - proibir a legislação de controle dos aluguéis, por exemplo. Assim, por paridade de raciocínio, não seria violação per se a Constituição proibir uma só forma de leis antidiscritnlnação leis locais que proibissem a discriminação contra os homossexuais no mercado de trabalho, por exemplo, ou na internação em hospitais. 1hlvez seja tentador dizer que são assuntos bem diferentes: uma cláusula que proibisse o cor, trole dos aluguéis poderia expressar uma teoria económica, ao o que proibir até uma forma específica e limitada de ajuda aos homossexuais só expressaria preconceito. Mas o argumento do texto académico foi cauteloso, por motivos que tentei. deixar claros, e não se amparou nesse mérito, porque se1ia o equivalente a declarar que os hon1ossexuais são uma classe suspeita, ou afinnar o direito que BaylesS citara, mas a Suprema Corte do Estado receava endossar- o direito de êstar livre de leis motivadas por preconceitos contra um grupo.

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Quando a Suprema Corte emitiu seu tão esperado verecücto, em maio de 1996, o parecer do juiz Anthony Kennedy pela maioria de seis juízes foi surpreendentemente ousado - mais ousado do que os pareceres dos tribunais inferiores e ainda mais ousado do que o texto académico. (Como o juiz Scalia observou em tom sardônico, a Suprema Corte tem o luxo, que outros juízes e advogados não têm, de anular sua própria jurisprudência.) Kennedy aceitou, em termos gerais, o argumento do texto acadêmico. Salientou, conforme o texto, que a EP1enda 2 era totalmente original na amplitude dos possíveis danos aos hon1ossexuais, privando-os de q11alquer oportunidade de obter proteção, a não ser por emenda constitucional, contra qualquer forma de discriminação, por mais prejudicial ou equivocada. Por conset,ruinte, talvez compreendendo as limitações desse argumento, ele também fez uma declaração muito mais ampla e possivelmente mais reformadora. Ele disse que a Emenda 2 transgride até a forma mais frouxa de escrutínio relativo à doutrina da igual proteção, porque ela não é nem racional. "Em casos normais", disse Kennedy, "a lei será mantida se for possível afirmar que defende um interesse legítimo do governo, mesmo que a lei pareça insensata ou crie desvantagens para determina.do grupo, ou o argumento em seu favor pareça frágil." Todavia, disse ele, "a amplitude [da Emenda 2] é tão intermitente com relação aos motivos por ela oferecidos que parece iJ1explicável, a não ser pela animosidade pela classe que afeta; falta-lhe uma relação racior1al com interesses legítimos do estado"l8. Essa declaração é de importância fundamental, pois nitidamente contradiz a hipótese central de White em Bowers. White, lembremos, declarou que era legítimo um estado impor uma desvantagem a determinado grupo só para expressar o desprezo moral da maioria pelas práticas desse grupo, mesmo quando não serve a nenhuma outra finali-

18. 517U.S. em632.

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dade adequada, como proteger os interesses econômicos ou a segurar1ça de alguém. Kennedy, no trecho que acabo de citar, disse que isso não é legítimo. É verdade que White falou em desaprovação moral e Kennedy em "animosidade". Mas não pode haver diferença no significado dessas palavras neste contexto19, pois o Colorado poderia decerto declarar, em perfeita boa-fé, que a "mera amplitude" da emenda era justificada pela extensão da desaprovação dos cidadãos ao homossexualismo. Nada menos que a proibição total de qualquer lei que afume ser-o homossexualismo uma forma aceitável de união sexual, o estado poderta dizer, seria suficiente para expressar a amplitude da rejeição da maioria a essa opinião moral. Ao afirmar que essa justificativa apela à "animosidade", e declará-la ilegítima, Kennedy retornou ao parecer original do juiz Bayless no tribunal de primeira instância, e desviou a atenção de Bowers; sem ao menos mencioná-lo. Kennedy não pôs os homossexuais em uma posiçã.o tão segura q·uanto a que desfrutariam se lhes fosse designada uma cláusula de classe suspeita ou quase suspeita. Eles carregam o ônus da prova de demonstrar que determinada lei que os prejudica não serve a finalidade legítima, mas somente à finalidade ilegítima que expressa ttma "animosidade", e pode1n achar difícil sustentar esse ônus em muitos casos - ao desafiar a oposição militar de manter soldados· abertamente homossexuais, por exemplo .. Mas talvez não achassem difícil demonstrar que a criminalização total de todo's os homossexuais não serve a finalidade nenhuma além dessa ilegítima. Scalia estava certo, em sua oposição mordaz, de que a combinação dos resultados de Romer e Bvwers não é séria: os homossexuais assumidos podem ser presos, mas não postos na desvantagem eleitoral que so19. Scalia, em seu dissenso, concordou. "Decerto este é o único tipo de animosidade em questào: desaprovaçào moral da conduta h0n1ossexuaL o mesmo tipo de condenação moral que produziu direitos criminais com séculos de idade qtte foram tidos como constitucionais em Bowers." ld. em 644.

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frem muitos outros grupos, inclusive fundamentalistas religiosos. Mas a resolução inevitável desse conflito pode não ser a que ele preferiria. A maioria em Romer versus Evans pode ter feito mais do que simplesmente ignorar Bawers: podem ter iniciado o processo de isolá-lo e, por fim, anulálo totalmente, acontecimento que teria repercussões enormes não só sobre as liberdades políticas dos homossexuais, mas sobre a teoria constitucional geral. Em seus dez anos de vida, Bowers, o estandarte dos defensores da história, era freqüentemente condenado por acadêmicos e comentadores por sua visão estreita do que é e faz uma sociedade livre. Foi uma decisão de 5 a 4, e o juiz Powell, que deu o voto decisivo, disse após a aposentadoria que esse voto foi o pior erro de sua carreira. A juíza O' Connor, outro membro daquela pequena maioria, aderiu ao parecer de Kennedy em Romer, o que pode indicar que ela, também, mudou de idéia. Talvez Bowers tivesse ganho somente três votos se fosse diretamente refutado agora: os juízes Scalia e Rehnquist, que também eram membros daquela maioria, e Thomas, que aderiu à discordância de Se alia em Romer versus Evans. Seja como for, tal veredicto foi uma vitória para o grupo da integridade e para a convicção de que a igualdade é tun princípio não só de justiça, mas também de direito constitucional.

II! O veredicto posterior da Suprema Corte sobre o suicídio assistido é uma vitória compensatória para o grupo da história? A Suprema Corte, nesse veredicto, anulou os veredictos de dois tribunais itinerantes de apelação que tinham declarado que as leis que criminalizavam o suicídio assistido eram inconstitucionais: o Nono Tribunal Itinerante dissera que tais estatutos violam a clát1su1a do devido processo legal, p_orque os pacientes moribundos têm interesse na liberdade de controlar o momento de sua morte e

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como ela ocorrerá; e o Segundo Tribunal Itinerante dissera que os estatutos transgridem a cláusula da igual proteção porque a Suprema Corte afirmara, no veredicto de Crnzan em 19902º, que os pacientes que estão em um sistema de e à vida têm o direito constitucional de desligar tais aparelhos, e proibir os moribundos que não estão ligados a esses aparelhos de recorrer a meios alternativos de acelerar a morte é recusar-lhes um tratamento igual. Em Cornion, a Suprema Corte anulou ambas as decisões desses tribunais itinerantes com uma votação esmagadora de nove a zero. Mas a unanimidade dos votos era enganadora. Cinco dos seis juízes que redigiram pareceres deixaram claro que não rejeitavam completamente a afirmação de que os pacientes moribundos têm o direito constitucional à ajuda de um médico disposto a acelerar sua morte, indicando que a Su.prema Corte poderia muito bem mudar de idéia em processo futuro, quando houvesse mais provas das implicações práticas de tal direito. Os pareceres dos seis juízes compõem o mais completo e sincero debate entre as interpretações historicista e da integridade da cláusttla do devido processo em muit.:i.s décadas. Em seu parecer majoritário, em seu próprio nome e no de quatro outros jWes, o presidente do Swpremo William Rehnquist defendeu a opinião historicista 21 • Afirmou com vigor que a cláusula do devido processo legal protege apenas as liberdades específicas historicamente respeitadas pelos estados americanos. A cláusula protege os cidadãos contra o tratamento médico indesejável e intrusivo, disse ele, por20. Cn1zan versus Direc/01, Míssouri Oept. ofHealth, 497 U.S. 261 (1990). 21. Vale notar que Rehnquist nãu defendeu a tese hlstorici.~ta, como outros advogados conservadores timtaram, apelando à li intenção original" da·

quel0s que redigiram e promulgaram a 14~ Emenda. Ele a defendeu com outra justificativa, que acredito agora ser muito mais popular, de qu"' enfraquecer a cláusula do devido processo dessa maneira (ou, de Íato, qualquer outra maneira disponível) reduz os poderes dos juízes de contradizer as :.'lspirações e as convicções da maioria do8 cidadãos de' um est~do. Ver avaliação desse argurncnto em Dworkin, Freedon/'s Ltiw.

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que o direito consuehldirtário da maioria dos estados há muito tempo garante tal proteção, mas não condena as leis que proíbem o médico de ajudar moribundos que estejam sofrendo muito a morrer logo, porque quase todos os estados há muito proíbem essa ajuda. JZehnquist reconhece que sua teoria historicista poderia muito bem produzir anomalias de princípio, pois talvez não fosse possível definir méritos de princípio entre liberdades qu.e os estados americanos tenham protegido historicamente e aqueles que negaram. Ele disse que a afirmação da Suprema Corte, em seu veredicto anterior no processo Cruzan, de que a cláusula do devido processo legal que confere às pessoas o direito de mandar retirar do corpo os aparelhos de e à vida teve origem somente nas práticas do direito consuehldinário, e "não era simplesmente deduzido dos conceitos abstratos da autonomia pessoal. .. A decisão de cometer suicídio com a ajuda de outrem pode ser simplesmente tão pessoal e profunda quanto a decisão de recusar um tratamento médico indesejável, mas jamais gozou de proteção jurídica semelhante". O juiz David Souter, por outro lado, e seu parecer independente de acordo, mas não aderindo ao parecer majo·· ritário de Rehnquist, oferecia uma definição clássica da tese da integr.idade. Ele disse que a história e as tradições da nação não contêm somente os direitos específicos que foram reconhecidos no ado, mas os "valores essenciais" que se revelam quando interpretamos esses direitos para saber quais princípios mais gerais de moralidade eles representam. Talvez, disse ele, esses estados não tenham sido sempre completamente fiéis a esses valores fundamentais, e até alguns dos costumes jurídicos mais antigos, como a longa proibição do aborto, podcn1 agora ser interpretados como agressão a eles e, assim, violações à cláusula do devido processo legal. Os juízes, disse ele, devem tomar cuidado ao decidir quais princípios de moralidade política são subjacentes à história da nação, pois esses princípios podem ser identificados em diversos níveis de generalidade, e os juízes não deve1n ei1tmciá-los de maneira mais ampla do que uma in-

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terpretação sensata justificasse. Ele itiu que identificar princípios no nível certo de generalidade "não é uma questão mecânica". Escolher entre essas caracterizações adversárias exige "discernimento sensato sobre qual princípio mais amplo, conforme exemplificado nos privilégios e proibições concretas contidos em nossa tradição jurídica, melhor se encaixam na declaração enunciada em determinado caso". Ele chegou, de st1a interpretação da cláusula do devido processo, a conclusões bem diferentes das de Rehnqui<;t sobre o suicídio assistido. Se aplicarmos o discernimento à questão do suicídio assistido, alego11 Souter, podemos identificar argumentos do que ele chamou de "poder cada vez maior para reconhecer algum direito ao auxílio de um médico no stücidio". O mais forte desses argumentos, disse ele, ampara-se em um princípio geral, contido em tradições antigas, que garante o "direito a atendimento e aconselhamento médico, sujeitos às condições limitadoras da escoll1a informada e responsável quando a morte é iminente ... Não pode haver apelo mais forte à assistência de um médico do que no momento da morte iminente, juízo moral implícito no próprio reconhecimento estatal da legitimidade da ah1ação médica obrigatoriamente apressando o momento da morte prestes a ocorrer [p. ex.: desligar o equipamento de e à vida e permitir o alívio da dor que precede a morte]". Assim, as opiniões de Rehnquist e Souter sobre a cláusula do devido processo legal são completamente diferentes: aquele só protege os indivíduos contra as leis que poucos estados viram algum motivo para promulgar, e não oferece proteção nenhuma contra as invasões historicamente bemrecebidas da liberdade individual. O segundo mantém a possibilidade de que até leis antigas e benquistas, como a proibição do suicídio assistido, podem ser julgadas inconstihlcionais quando puderem ser interpretadas como violação de princípios mais gerais e consagrados da liberdade. l:Ur conseguinte, é hnportante tentar avaliar a popularidade de cada mna dessas opiniões na atual Suprema Corte. Relm-

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quist, como já disse, não teve dificuldade no uso de sua tese historicista para rejeitar de imediato qualquer direito ao suicídio assistido. Qu.atro outros juízes - Anthony Kennedy, Sandra Day O'Connor, Antonin Scalia e Clarence Thomas - concordaram com Rehnquist, e podemos supor com segurança que Scalia e Thomas de fato adotam os pressupostos historicistas de tal parecer. O'Connor e Kennedy, porém, foram dois dos três juízes- o terceiro foi Souter-·que escreveram um_parecer conjunto no veredicto do processo de aborto Casey de 1992, endossando a tese interpretativa do devido processo que Souter defendeu nesse caso, e é, portanto, difícil entender por que co.ncordaram com o parecer de Rehnquist. Talvez eles o tenham feito por cortesia institucional, para que o parecer - de l~ehnquist - consegWsse atrair cinco votos e, assim, ser considérado o parecer do Supremo, evitando o resultado deselegante de um parecer unânime com opinião minoritária. Seja como for, contudo, O'Connor redigiu um parecer à parle que deixa claro que ela não aceita a interpretação historicista de Rehnquist da cláusula do devido processo. Ela identificou a questão apresentada pelos processos como "se uma pessoa em pleno gozo de suas faculdades mentais que a por gran.de sofrimento tem interesse constitucionalmente perceptível de controlar as circunstâncias de sua morte iminente". Ela disse que não via necessidade de decidir essa questão porque, mesmo se tal paciente tivesse um direito, as leis estaduais refutadas no processo não o violavam porque permitiam ao médico istrar drogas analgésicas, mesmo quando acelerassem a morte. Isto é, deixou em aberto a questão fundamental se os pacientes têm algum direito de controlar como morre1n -, o que a interpretação historicista teria respondido negativa e imediatamente. Kennedy não redigiu parecer à parte. Mas é improvável que aceite a tese historicista, não só devido a seu parecer em Casey, mas também por sua interpretação explícita da cláusula da igual proteção em Romer. Ginsburg disse simplesmente que concordava com O'Connor. Breyer disse precisamente que era favorável à

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opinião de O'Connor, "a não· ser na tnedida em que contrariava a maioria". Ele acrescentou que formularia a reivindi-

cação do paciente nesses casos, não como o fizera Rehnguist, mas, pelo contrário, em "palavras mais ou menos como

o 'direito de morrer com dignidade'", e acrescentoLt qtte "nossa tradição jurídica pode oferecer maior apoio" a esse direito. 'fambém disse que não precisava decidir se a cláusula do devido processo realmente exige que os juízes reconheçam tal direito, pois "evitar_graves dores físicas (vinculadas à morte) deveria compreender uma parte essencial de

qualquer reivindicação bem-sucedida", e concordou com O'Connor em que se pode evitar a dor sob os estatutos que a Suprema Corte estava analisando, pois esses estatutos não proíbem tratamento para o alívio d.a dor que precede a morte. Conclui com a importante observação de que se os estados interferissem na "istração das drogas necessárias para evitar a dor no fim da vida", então, "como conclui a juíza O' Connor, a Supren1a Corte talvez tivesse de rever suas conclusões nesses processos". O último juiz - Stevens - redigiu um eloqüente parecer à parte para explicar que seu voto para anular os veredictos do tribunal de prini.eira instância se baseou em fundamentos processuais, e não substantivos. Disse que, já que os pacientes querelantes nos processos em questão haviam morrido todos antes da decisão da Suprema Corte, a questão perante a Suprerr1a Corte não era se as leis contra o suicídio assistido poderiam ser constitucionalmente aplicadas aos pacientes que estavam morrendo quan(lü pediram o alfvio. Pelo contrário, disse ele, já que os pacientes l:il.i.ham morrido, o processo exigia que a Suprema Corte decidisse se as leis contra o suicídio poderiam ser constitucionalmente aplicadas a qualql1er pessoa, inclusive, por exemplo, a uma pessoa deprllnida, mas fi.sicamente saudável, que expressasse o desejo de morrer. Já que ele achava que um estado poderia impedir que os médicos ajudassem algumas pessoas que quisessem morrer, ele optou por manter os estatutos co1no não "prontani.ente" 'inválidos. Sua opinião

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deixou poucas dúvidas, porém, de que no que julgasse um caso apropriado votaria para anular o estatuto que impedia os médicos de ajudar pacientes moribundos compete11tes e informados- não só aqueles cuja dor não se pudesse aliviar - a morrer mais depressa. Salientou que cada pessoa tem suas convicções éticas e religiosas sobre qual tipo de morte mais respeita o valor de sua vida e que a liberdade individual exige que se permita aos pacientes moribundos morrer segundo suas próprias ·convicções. 'Encerrou com a declaração intransigente: "Na minha opinião ... está claro que o dito 'interesse desqualificado [dos estados] na preservação da vida humana' ... não é, em si, suficiente para sobrepujar o interesse na liberdade que possa justificar o único meio possível de preservar a dignidade de um moribundo e aliviar seu sofrimento intolerável". O parecer de Stevens, embora tecnicamente fosse um voto contra os que refutaram os estatutos de proibição, era, de fato, un1 voto a favor de tudo o que pediam. Assim, a interpretação histuricista restrita da cláusula do devido processo talvez esteja agora confinada a um grupo central dos três membros mais conservadores da atual Suprema Corte -Rehnquist, Scalia e Thomas-, e isso é uma boa notícia para quem é a favor da construção ética dos direitos individuais que os cidadãos americanos desfrutam contra seu governo. Também é uma boa notícia que, embora a Suprema Corte tenha se recusado a reconhecer o direito ao suicídio assistido nesses casos, cinco juízes tomaram o cuidado de não encerrar o debate constitucional sobre tal direito no futuro.

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Assim, não se podem considerar os veredictos relativos ao suicídio assistido uma vitória para os partidários da história. Stevens declarou sua disposição para reconhecer o direito ao suicídio assistido, que não fora antes reconhecido, quando sur[;>isse um caso adequado. O parecer de Sou-

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ter afirmou três vezes que seu voto era apenas "neste momento". O'Connor e Breyer disseram que outras circunstâncias poderiam fazê-los reconsiderar. E Ginsburg, concordando mais com o parecer de O'Cormor do que com o da Suprema Corte, deixou claro que era favorável. É, por conseguinte,

importante analisar por que esses juízes, com exceção de Stevens, recusaram-se a reconhecer o direito "nesta ocasião".

O'Connor, Ginsburg e Breyer argumentaram, como já dlsse, que qualquer direito constitucional se limitaria ao alí-

vio da dor. Mas tal limitação parece arbitrária por vários motivos. Esses juízes não explicaram por que o que Breyer chamou de direito de morrer "com dignidade" significa so-

mente morrer sem dor, quando, conforme Souter assinalou, muita gente também teme o estupor induzido por drogas e, compreensivelmente, acha que é igual agressão a sua dignidade 22• Embora esses juízes tenham se.declarado satisfeitos com o fato de ser possível evitar a dor em todos, com exceção de pouquíssimos, casos, não tentaram contestar as provas s·ubstanciais do contrário citadas por Stevens. E parece estranho que devam estar dispostos a anular decisões criteriosamente ponderadas dos tribunais federais de instâncias inferiores que reconheçam um direito limitado ao suicídio assistido, apelando à declaração real vigorosamente contestada nos autos sem apresentar nenhum argumento a favor de tal declaração. Esses juízes também não explicaram por que as pessóas cuja dor não se possa aliviar, a não ser deixando-as inconscientes, não importando se poucas ou muitas, não têm direito à assistência para morrer. Breyer reconheceu que muitos pacientes, em especial os pobres, não recebem o tratamento palíativo, que é quase sempre caro, que lhes faria

22. Evidentemente, a dor pode ser totalmente eliminada com a anestesia total. Mas presumo que os juízes queriam dizer que em quase todos os casos a dor pode ser aliviada deixando-se o paciente consciente, embora de maneira talvez reduzida. Muita gente consideraria pior que a 1norte ar o resto da vida sob anestesia total.

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bem. Porém, disse ele, isso por "motivos, falhas ou obstáculos institucionais, que pareceriam impossíveis de se superar". Contudo, é insatisfatório argumentar que os pacientes pobres não têm direito ao suicídio assistido nem quando estão morrendo com muitas dores, porque seu estado poderia oferecer o alívio caro para a dor que de fato não oferece. Souter apresentou um conjunto de motivos mais minucioso para não reconhecer nenhum direito constitucional neste momento. Mencionou o argumento, imposto pelos adversários do suicídio assistido, que seria impossível criar qualquer sistema de controle regulador que protegesse as pessoas cuja morte não fosse de fato iminente, ou que não desejassem morrer, de serem induzidas ao suiádio por parentes ou hospitais que não quisessem arcar com as despesas de mantê-las vivas, ou por médicos piedosos que achassem que a morte seria melhor para essas pessoas. Gtou, em especial, livros e artigos que pretendiam demonstrar que o único programa documentado de suicídio assistido e eutanásia - o holandês ~não conseguira evitar muitos desses erros. Observou que essas análises do caso holandês eram contrariadas por outros relatos, e que muitos autores achavam que os estados podiam elaborar um plano eficaz de regulamentação que reduziriam os erros ao nível que fosse inevitável em qualquer tratamento médico grave. Mas, segundo ele, os juízes não devem declarar inconstitucionais as leis promulgadas por quase todos os estados fundamentando-se em juízos de fato discutíveis e controversos, principalmente em circunstâncias em que os legislativos, que podem convocar comissões de ir1vestigação, estão em melhor posição do que os juízes para avaliar os fatos. Portanto, concluiu que a Suprema Corte não deve tteclarar inconstitucionais as leis contra o suicídio assistido "neste momento", embora possa ser certo fazê-lo mais tarde, se e quando houver provas tnelhores ou quando houver · estudos mais convincentes. Isso parece razoável em princípio. Mas, como Souter reconheceu com franqueza, a Suprema Corte presumiu que os moribundos têm o direito constitucional de desligar os

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equipamentos de e à vida, 1nesmo quando isso signifique que morrerão imediatamente, e existe o grande risco de tais pacientes serem persuadidos a pedir para morrer dessa forma solicitando pílulas letais, principalmente por serem n1uito caros os equipamentos de e à vi.da 23 . Seja como for, a questão de ser o problema factual difícil ou incerto demais para que os juízes decidam, tanto que devam aceitar as decisões do legislativo por esse motivo, é complexa e difícil, e os tribunais só devem respondê-la após exame muito criterioso das provas, em especial quando estiverem em jogo os direitos supostamente fundamentais dos cidadãos. Ademais, um exaine minucioso pareceria especialmente essencial no debate do suicídio assistido, porque muitos dos sociólogos que compilaram as provas importantes têm opiniões éticas fortes, inclusive convicções religiosas ou convicções sobre a ética médica aproprià.da, que podem prejudicar sua independência científica. Muitos adversários do suicídio assistido argumentam que na Holanda - onde os médicos não são processados quando ajudam os pacientes a morrer, contanto que sigam norm.a5 aprovadas pelos tribunais - as pessoas são, nas palavras do psiquiatra I-Ierbert Hendin, "seduzidas" a morrcr24 • (Hendin é o diretor executivo de uma organização cb.amada Suicide 23. Souter afirmou, em nota de rodapé, que o Estado tem um interesse à retirada do equipan1ento de e à vida, porque a "natureza" causa a morte. Glucksberg, em 785. Essa diferença não é pertinente quando a questão é apenas se o pedido do padente é genLÚno ou forçado. Ele ta1nbém disse, no rnes1no rodapé, que, por sera equipamento urna invasão do corpo, há menos motivos para temer que alguém que peça sua retirada, quando o resultado é a morte, não seja totahnente responsável do que no Ca!;O de alguém que peça pílulas letrus. Isso parece incongruência: as pessoas sempre pedem a retirada do equiparnentv de e à vida, n~o porque acham que sua presença seja especialmente incômoda, mas porque querem rnorrer, e os riscos de se coagir alguém a tomar tal decisão parecem igualmente grandes em ambos os casos. 24. Herbert Hendin, SPduced by Dcalh: Doctors, Pab".onfs, and lhe Dutch Cure (Nova York: "\-V. W. Norton, 1997). O livro discorda dos meus próprios textos sobre o assW1to. mais fraço em evitar a morte em seguida

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Foundation [Fundação Suicídio], que descreve em seu livro como uma instituição que "trabalha para evitar o suicídio"25.) Souter citou o livro de Hendin, entre outros, em apoio ao seu próprio argumento de que os tribunais ameri-canos não estão atualmente em posição de dispensar a opinião que os livros defendem. Não está claro, contudo, por que, mesmo se Hendin e outros críticos estiverem certos acerca da "experiência holandesa", infere-se que os estados americanos, que estariam livres para impor Ieis muito mais rígidas do que os tribunais holandeses, não seriam capazes de oferecer proteção muito maior aos pacientes que pudessem ser pressionados a morrer. Também não está claro, sobretudo, se um exame mais detido dos livros que criticam a medicina holandesa n.ão teria revelado sérias falhas metodológicas. Três acadêmicos da Universidade Çroningen da I-Iolanda - John Griffiths, Alex Bood e Heleen Weyers - ofereceram um relato equilibrado e, até certo ponto, crítico da prática holandesa, sugerindo maneiras de aperfeiçoar as normas de aplicação da eutanásia aprovadas pelos tribnnais26. Mas criticam bastante a metodologia de Hendin. Alegam que o livro dele contém muitos erros, e que vários de seus relatos de conversas com médicos holandeses, nas quais baseia muitos de seus argumentos, interpretaram mal essas convcrsas27. 25. Ibid_, p. 223. 26. John Griffiths, Alex Bood e Heleen Weyers, Euthanasía and l.aw in lhe Netherlands (Ani.sterdam: Amsterdam University Press, 1997). 27. Gni:o médicos, quatro dos quais Flendin descreve con10 ºfontes important€'s" e1n sua pesquisa, es(Tf.:VPram uma carta conjunta ao periódico que publicou seu artigo inidal, com o n1esmo título do livro publicado posteriormente. A carta dizia, em part..-, "as seguintes pessoas entrevistadas pelo dr. [sk] Herbert 1-Iendin ... desejam declarar que os textos das entrevistas ... não contêm uma descrição veriJica das <:'ntrevistas. O texto possui diversos erros ~interpretações equivocadasº. Pediram que a carta fosse publicada com o artigo. Nâo foi e, embora Hendin tenha feito algun1as modificações no artigo antes da publicação, essao modificações, segundo os académicos de Groningen e três dos médicos, com quen1 conversei ao telefone, não corrigiam as interpretações equivocadas, que, na opinião deles, foram perpetuadas nos textos posteriores dr.> Hendin,

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A VIRTUDE SOBERANA

Souter referiu ~se, em especial, à declaração de Hendin de que os médicos holandeses encerraram a vida de pacientes completamente competentes sem o pedido deles e sem os consultar. Rehnquist também ofereceu o fato obviamente chocante de que ,, o estudo do próprio governo holandês revelou que em 1990 houve ... mais de 1.000 casos de eutanásia sem pedido explícito". De fato, um relato oficial sobre esse estudo publicado em inglês em 1992, que nem Souter nem Rehnquist citaram, demonstra que os casos descritos como eutanásia" sem pedido do paciente" foram de mui.tos tipos distintos. Entre eles havia, por exemplo, casos de pacientes que não poderiam consentir porque estavam nos estertores da morte, e cuja morte os médicos facilitaram com drogas que a apressaram em minutos, casos de pessoas que anteriormente haviam expressado o desejo de morrer, mas não em termos de acordo com o exame holandês rigoroso de pedido tecnicamente explícito, e casos de bebês prematuros que teriam morrido em poucos dias, e cuja morte imediata, a pedido dos pais, poupou-os da agonia28• Se os estados americanos acreditam que sejam atos criminosos ou indesejáveis, poderiam proibi-los com simples cláusulas legislativas, e é difícil entender como permitir o suicídio assistido para aqueles que o podem, sujeito a leis rigorosas e à elaboração de relatórios, torna1ia mais prováveis tais atos. Não pretendo insinuar que a crítica dos académicos de Groningen a Hendin seja justificada. Mas é lamentável que Souter e os outros juízes não conseguissem inspecionar as técnicas de pesquisa de Hendin, e as de outros críticos da prática holandesa que citaram, com n1ais profundidade an tes de decidir que seus livros levantavam questões que os juízes não são atualmente capazes de resolver. Talvez não exista realmente nenhuma pesquisa concreta qu·e prove que a experiência holandesa demonstra o perigo que esses autores denunciaram. 28. Ver P. J. van der Man5, J. J. M. van Delden e L. Fijnenborg, "Euthanasia and Other Medical Decisions Concerning the End of'Life", traduzido e impresso como ~uplemento especial 1 e 2 de Health Policy 22 (1992).

PRÁTICA

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Seja como for, essas questões factuais excepcionais tornam ainda mais provável que o debate constitucional vá continuar. Quais conseqüências terão as decisões da Suprema Corte enquanto isso? A Suprema Corte deixou claro que os cidadãos têm liberdade de exigir reformas permissi-

vas nas leis atuais da maneira comum, por meio de legislação ou referendos, e, já que continua alta_a popularidade da idéia de que os moribundos devem ter a oportunidade de contar com a ajuda de um médico para aliviar sua morte, tais empenhos podem muito bem ter êxito-em alguns outros estados. Todavia as conseqüências mais imediatas da decisão da Suprema Corte podem ser médicas, e não políticas: a combinação das opiniões que expus é forte indicação

de que a Suprema Corte, embora talvez em votação dividida, estaria disposta a reconhecer que os moribundos têm direito ao alívio da dor, mesmo que seja em doses, se necessárias para conter a dor, que lhe tragam a morte. É, evidentemente, dificílimo julgar se o médico e o paciente que concordam na istração de dosagcns tão altas de analgésicos têm como objetivo a morte subseqüente ou somente o alivio da dor. Mas milhares de médicos já istraram tais droga.:s em doses letais, para moribundos cuja família conhecem bem e em quem confiam, para apressar a morte 29• A conseqüência das atuais decisões pode muito bem não ser apenas confirmar, mas ampliar tal prática. Isso é paradoxal, pois a istração de doses muito altas de morfina e- de outras drogas não é regulamentada

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29. Um artigo de 1997 do New York Times descrevia essa prática e citava um professor de medicina e anestesiologia da Universidade da Califórnia dizendo: "Isso acontece se1npre"; GinaKolata, ''When Morplúne Fails to Kill"; New York Ti1nes, July 23, 1997. Esse artigo relata a opinião de diversos médicos de que os pacieritcs cuja dose de morfina vai aumentando lentamente toleram, no fim, doses altíssimas. Mas n5.o se provou que isso seja verdadeiro para todos os pacientes, e seria difícil refutnr n decisão de um médico de que não se poderia controlar a dor a não ser por meio de doses que, de fato, provocassem a morte. Ver um exemplo da grand~ variedade de opiniões entre os médicos Dessas questões na série de artigos emfournal of PalliatWe Care 12, n? 4 (l996).

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A VIRTUDE SOBERANA

da maneira como qual.quer estado que pennitisse o suicídio assistido decerto exigiria. Qualquer lei de regulamentação do suicídio assistido que se promulgasse nos Estados U11i-

dos exigiria informações completas para os pacientes e o consentimento informado dos pacientes que pretendem tal assistência. Também exigiria que os hospitais oferecessem explicações satisfatórias às autoridades de que o paciente já recebeu explicações e lhe foram ofereci
Fontes

Os Capíhllos 1 e 2 foram publicados em Philosophy and Public Affairs em 1981. O Capítulo 3 foi publicado em Iowa Law Revíerv em 1987, o Capítulo 4 na University ofSan Francisco Law Review no mesmo ano e o Capítulo 5 na Llniversity of California Lazv Review em 1991. O Capítulo 6 é uma

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versão revista e abreviada de "Foundations of Liberal Equality", apresentado como Tanner Lectures na Universidade de Stanford e publicado no volume XI de The Tanner Lectures on Human Va/ues (University of Utah IJress, 1990). Os Capítulos 8, 11 e 12 foram publicados, com outros títulos, em New York Review ofBooks, em 13 de janeiro de 1994, 22 de outubro de 1998 e 5 de novcrnbro de 1998, respectivamente. O Capítulo 10 foi publicado emlfBuckley Fell, editado por E. Joshua Rosencrantz (Nova York: Century Foundation, 1999). O Capítulo 13 foi originalmente preparado para uma reunião em 1998 da ·rwenty-first Century Foundation e foi distribuído para todos os participantes. O Capítulo 14 combina dois artigos originalmente publicados na New York R.evieiv of Books, um deles com outro título, em. 8 de agosto de 1996 e 25 de setembro de 1997.

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Índice remissivo

Aborto, 611, 614-7, 629, 647 Abstração, princípio da, 199-215 Ação afirmativa: efiCácia da, 543-81; justiça da, 581-607

Austin v. Michigan Chamber of

Commerce, 532 Autenticidade, princípio da, 215-9, 217n27

Adarand Constrnctors v. Pena, 597-9 Ambíente econôrnico, 295-8 Ambiente ético, 295-8 Apólice generosa, 475-6 Apólice intervencionista obrigatória, 474, 476. Apólice intenrencionista optativa, 474-6 Aposta democrática, 496-7, 515-23 Apostas, 92-5, 123 Aprimoramento, teoria do, 221-4 Arrow, Kenneth, 56, 123 Aspirações, 29, 48, 102-3, 116, 120, 137-8, 141, 411n5; dispendiosas, 55-6, 60, 66; e capacidade, 410, 416 Assistência médicafsegurOsaúde, 162-3, 167, 171, 234-5, 242, 421, 431-49, 619-23, 641-4; racionamento da assistência médica, 431-6

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Bakke, vereclicto, 544-5, 544n4, 579, 581, 591, 599-602 Bayless, H. Jeffrey, 658, 660 Bellotti, veredicto, 533 Bem-estar (well-being), 338-55, 338n3 Bem-estar: planos, IX-XI, 451-4; igualdade de, 3-77; concepções de, 11-7; economia, 33; teorias objetivas de, 50-3; igualitário, 174-5; e justiça, 451-4; reforma, 451-3, 462, 477-8; níveis de, 453; e mérito,453, 458-61; istração do, 453; e dependência, 454, 477-9; estratégias, 454-7; argwnento psicológico, 461-8; e utilidade, 463-5; diferença, princípio da, 465- 7; abordagem do seguro hipotético, 467-79; e sorte, 480-92

680 Berlin, Isaiah, XlV Boa vida, no liberalismo, 331-8 Bok, Dcrek, The Shape of the River, 546-59, 564-5, 571-2, 579, 582, 588, 595, 600-3, 607

Bood, Alex, 673 Bowen, William G., The Shape of the River, 546-59, 564-5, 571-2, 579, 582, 588, 595,

600--3, 607 Bawers v. Hardwick, 291-2, 298, 647, 651, 658-63 Brandeis, Louis, 523, 530 Breyer, Stephen, 529-30, 599, '667-8 Buckley v. Valeo, 241, 245, 494-501, 509, 520, 522-6, 532-3, 538, 541 Burson v. Freeman, 530-2 Campanhas corporativas, 532-4

Caseyv. Planned Parenthood of Pennsylvania, 649, 667 Catástrofes, 97, 118, 149-51

Censura, 514-5 Center for Individual Rights, 345, 582 Cidade de Richmond v. f. A.

Croson Co., 589-600 Classe suspeita, 586-90, 654-9 Oáusula do processo jurídico, 647-8, 651, 657, 663-8 Clinton, Bill, 432, 449, 451, 494, 537, 624 \Clonagem, 624-30, ~36-7 Cohen, G. A., 401-6, 405n3, 408, 410-20, 411n5 College and Bcyond, 546-8, 547n8, 555-9, 565-7, 566n28 Colorado, 585, 647, 650, 651n10,657, 659,662

A VIRTUDE SOBERANA

Colorado Republican Federal Campaign Committee v. FEC, 525 Compensação, 63-6, 99, 418 Comunidade, 222n28, 291-2, 331; liberal, 291-2, 321-9; e democracia, 293-9; e consideração, 299-302; e interesse próprio, 303-9; integração com, 309-21; e ética, 348-50, 383-6 Comunitarismo, 337, 375 Congresso, EUA, 317; e gastos em campanha, 162, 493-5, 498, 525; impacto desigual do Senado, 266, 278~9; e atendimento médico, 431, 440; e previdência sOcial, 451-2, 463, 479; e liberdade de expressão, 495, 517, 521; e ação afrrmativa, 607; e pesquisa de clonagem humana, 624 Consciência, liberdade de, 158, 167 Conservadorismo, XV1Il, 332, 337, 452, 458, 463 Constitucionalismo, 254, 287-9 Constituição dos Estados Unidos, 183, 246, 287, 497-8, 508, 517, 521, 528, 534, 544, 546n6, 578, 579n3, 583, 595, 646, 650-1. Ver também Primeira Emenda; 14~Emenda

Contratuali<;mo, 146-55, 179-85, 388 Convicção, liberdade de, 158-67 Correção, princípio da, 211-5 Crookbach, Richard, 635

Cruzan v. Director, Missauri Dep'I. ofHealth, 663-5

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ÍNDICE REMISSlVO Davidson, Donald, 314 Debate público, 537-8 14~ Emenda, 544, 546n6, 584, 592-3, 646, 653

Decisão. de Cmnion, 664 Defesa de causa, 493-5, 499 Deficiências: e bem-estar, 70-4; e recursos, 96-103, 118-20, 123, 151; e capacidade, 413~15 Deficit de eqüidade,-223-4, 227-8,240-1 Deficits, 224-30, 233-4, 240

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Democracia, X-XIIl, 181, 201, 335, 401, 414, 652-3, 658; e igualdade, 253-5; concepções dependentes e separadas de, 255-61, 262; poder na, 266-75; valores participativos/ distnbutivos na, 275, 281, 286-7; constitucional, 2B7-9; e comunidade, 293-8, 316; e hberdade de expressão, 492-542; definição de, 501-3; majoritária, 502-9, 520-2, 534; co-participati:va, 502, 509-20, 534, 542 Desejos, 60, 407, 409-10 'Desemprego, 473-4, 490, 620; seguro, 152 Desigualdade, graus de, 224-8 "Devem carregar", leis, 529-30 Devlin, Patrick, 303, 303-4n16 Diferenças de idade, 487-92 Direitos, 4, 166-8, 184 Direitos individuais, 4, 166-8 Discriminação, 543-4, 577-93, 597-9, 605, 618-21, 643-55 Discurso democrático, 512-3, 515, 523, 526, 536-7 Discursos de ódio, 514

681 Distinções de classe, 487-92 Distribuição: das riquezas, I.X-X, 233-7, 455, 470, 512n5; do poder, 4, 79; teorias da, 13; e preferências políticas, 18-23; e preferências impessoais, 23-6; e preferências pessoais, 26-9, 39, 42-5; justiça da, 74; de recursos, 79-85, 113, 141, 147; ideal, 179, 189-90, 200, 217-8, 235; igualitária, 230-5, 240-3. Ver também Redistribuição Distribuição ideal,.179, 189-90, 200, 217-8, 235 Distritos, 258, 276-82, 288 doença de Huntington, 613, 616, 620 Dole, Robert, 494, 537 Dred Scott, veredicto, 163 Dummett, :Michael, 314 Dworkin, Ronald, 421; Freedom's Law, 289; A Matter of Prindple, 382, 382n9; Taking Rights Seriou.sly, 178n9; Law's Empíre, 222n28 Economia, bem-estar social, 33 Educação, 158, 161, 543-85, 587, 594, 599-607 Eficiência, 25, 64, 80, 105, 116 Eleições, 276-9, 283, 493-4, 499-501, 504, 518 Emenda 2, 650-1, 658 Emprego, 163, 167, 244-5, 472-3, 478, 618, 620 Endosso, 301-2, 376 Engenharia genética, 623-38 Escolha, 26-30, 105, 157-8, 167; sensíveis à escolha, 282-6, 289; insensíveis à escolha,

682 282-6, 289; e acaso, 401-8, 634-5, 638; e circunstância, 454-7 Escrutínio: níveis de, 586-99, 593n15, 603, 652-8; relaxado, 586-7, 652-6; estrito, 586-99, 593n15, 603, 655-6; versões da necessidade prevalecente/ da refutação, 591-6 Espécies, preservação das, 25 Estado vegetativo, 441-3 Esteticismo, 355-6, 361-2 Estratégia constitutiva, 178-80, 200, 239, 250 Esfratégia da ponte, 199-202, 250 Estratégia do equihbrio, 515-9 'Ética,291n1,338-86. "Ver também Moralidade ~tica; integração, 222n24, 383-6 Etica, integridade, 378-83 , Éticas, prioridades, 326-9 Ético, individualismo, )0/-XVII, 636-44 Éticos, valores: críticos, 338-55; volitivos, 338-55; e justiça, 340, 367-72; e importância, 344, 355-9; indexados, 344-5, 359-63; transcendentes, 347-8, 373-83; cumulativo, 346-7, 373-83; constitutivos, 346-7, 373-83; e comunidade, 348-50, 383-6; limitações/ parâmetros de, 363-72 ftnia, 543-8, 597, 607 Eutanásia, 672-4 Evans v. Romer, 650, 658, 662-3, 667 Exame de DNA, 619 Exame pré-natal, 614-7 Exames genéticos, 612-23, 639-44

A VIRTIIDE SOBERANA

Ílxito, 11, 14; igualdade de, 12-7; relativo, 26-32; total, 32-45 Expressão, liberdade de, 158,

163-4,. 167, 240, 288, 494-509, 513-42. VertambémPrimeira

Emenda Federal Communications Commission, 526, 600-1 (Comissão Federal de Comunicações) Federal Election Commission, 494 (Comissão Federal Eleitoral)

Felicidade, 425-7 Filosofia política, XIII, 156, 401

1

First National Bank ofBoston v. Bellottí, 533

1

Fleming, Ale.xander, 352 Fonte, questões de, 332-5

Gaffney v. Cummings, 278n5 Gastos em campanha, 162, 241, 493-501, 505-9, 515, 518, 524-7, 537-42 Gates, Bill, 460 Gates, H_eruy Louis, 559 Genética, 609-44 Genética, sorte, 116-7, 482-5, 489,_634 Genética, terapia, 621-3 Geórgia, 291, 647, 658 Ginsburg Ruth Bader, 598-9, 670 Gostos, 512n5; dispendiosos, 55-70, 101; e.recursos, 84-5, 101, 120, 136-8, 141; e capacidade, 407-8, 411-2, 419-20 Governo: legitimidade do, IX-X; papel do, XVI-XVIII, 1.48-9, 158-9, 167-72

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ÍNDICE REMfSSIVO

Grã-Bretanha, 162; salário mínimo em 126; assistência médica em, 162, 242, 431, 447; esquemas de distribuição em, 231, 236; democracia em, 255, 267, 510, 537; eleições em, 276; leis acerca do homossexualismo em, 303-4 Griffiths, John, 673

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Hand, Leamed, 496 Harlan, John, 649 Harris, Louis, 563 .f{art, I-I. L. A., 1&3; Law, Liberty, and Morality, 293 Hendin, Herbert, 672-4, 673n27 Hispânicos, 543, 547,.559, 375, 597 Homossexualismo, 247, 293-4, 302n13, 303, 310-1, 379, 585, 645-52, 652n10, 658-63 HOJRVOOd v. Texas, 544, 545n5, 578-82, 590-1, 599, 604n34 Horas de trabalho, 163-4, 245-6 Ideal humanista, 178, 239, 639 Igual proteção, cláusula da, 545, 577-82, 593-4, 647, 652-4, 658-61, 668 Igualdade, 331; de consideração, IX-XIII, XVII.XVIII; importância da, IX-XVIIl; distributiva, 3-7, 54, 157-61, 177-8, 201; teorias da, 3-7; de oportunidades, 6, 109, 400, 405, 422; concepções de, 11-7, 173-7, 173n7; de êxito, 11-7, 26-45; de prazer, 46-50; cidadão, 150-1, 168-70, 253, 512-5, 519-20, 523-4, 535, 541; e liberdade, 157-78;

683 ganhos totais na, 228-30; e democracia, 253-5; política, 254-90; de poder, 261; de impacto, 263-7; de influência, 263-73; como valor político, 386-91; de capacidade, 399-427; de liberdade, 420-2 Igualdade de bem-estar, 79, 85, 100, 160, 187-91; e teorias da igualdade, 3- 7; ideal da, 4-10; concepções de igualdade/bem-estar, 11-7; estratégias, 16-7; e teorias do êxito, 17-45; e igualdade de satisfação, 46-50; teorias objetivas do bem-estar, 50-3; sugestão ecumênica, 53-5; e gostos dispendiosos, 55-70; deficiências, 70-4; wclfcrism.o, 74-7; e capacidade, 399-400, 413, 420-4 Igualdade de recursos, 4-7, 160-1, 187-90; leilões, 79-87; ideal de, 88-90; sorte/seguro, 90-104; trabalho/salários, 104-17; seguro-desemprego, 118-29; impostos como prên1io, 129-42; e outra~ teorias da justiça, 142-56; e capacidade, 399-400, 404, 413, 417-8, 420, 424, 427 Importância, 344, 355-9 Imposto(s): renda, 115n8, 116, ,120, 124; índices, 117, 129; e redistribuição, 116, 119, 129, 134, 146, 236; como prémio, 129-42; cobertura para deficientes, 151; transferência de capital, 487-8; herança, 488·-90 lndependência, princípio da, 219-21

A VIRTUDE SOBERANA

684 Individualismo, X\1-XVII, 154, 636-44 Influência política, 263-6, 283-7 Iniciativa moral, em política, 278-82, 288 Injustiça e liberdade, 235-47 Tnsastisfação, 13, 24-5, 46-50

Integração, 292, 309-21, 321n24, 384-6 Integridade, 377-85 Interesse, estratégia do, 178-86, 190, 238, 251 Interesse próprio, 291-2, 303-9 Interesses volitivos/criticos,

"'2.99n11, 300nl2, 338-55 Interpretação discriminatória, 516, 519-20, 526-40 Interpretação profilática, 517-8, 521, 523-36

Juízos contrafactuais, 98, 117, 120 Julgamentos, 32-40, 57, 98, 117 Justiça, 15; distributiva, 74, 158; e recursos, 88, 110-3, 139; outras teorias, 142-56; teorias contratualistas, 146-55, 179-85; e valores éticos, 340, 355-9; e valores políticos,

386-7, 391-3; e medicina, 432-40, 443; e bem-estar, 451-4; e genética, 621~3, 627-8 Justiça (eqüidade), 105, 117, 296, 642-3, 653-4; linha de largada, teoria da, 110-3, 137; 1 doutrina, 526-9 Kennedy, Anthony, 585, 598, 649, 661-3, 667 King, Martin Luther, ]r., 352

Laissez-faire: produção, 110-5, 137; igualitários, 174-5

Lei da Reforma da Previdência Social, 451, 462, 479 Leilão walrasiano, 84n2 Leilões, 194n19, 197n20, 216n26; de recursos, 79-87, 90, 104-8, 111-4, 120, 142; de liberdade, 187-99, 211-5 Liberal, comunidade, 291-2, 321-9 Liberalismo, IX, XIV, XVII, 157-61, 171, 207, 249-50, 294, 309-10, 321-6, 331-8, 453 Liberdade, XIV-XV, 80, 170n6, 178n9, 246, 331, 651; e igualdade, 157-78; negativa, 157; liberdades básicas, 158, 166, 246-7; estratégi.ãs, 178-86; leilão de, 187-99; princípio da abstração, 199-215; principio da correção, 211-5; princípio da autenticidade, 215-9; princípio da independência, 219-21; ponderações sobre o mundo real, 221-35; deficit, 224-30, 233-4; e injustiça, 235-47 Liberdades fundamentais, 159, 166, 247. Ver também Liberdade Limites para contribuições, 493-5, 497, 504-9, 515, 524-6, 538,541 Lochnerv. Nova York, 163, 244-5, 520 Locke,John, 110-11, 145

'

1

i !

l 1 1

Mamogramas, 432-4, 437 Margem de direitos, 183 Marshall, Thurgood, 588-9 Medicaid, 447-8

1

1,

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j,

'

..

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··~"""'""

(NDICE REMISSNO Medicina. Ver assistência médica/seguro-saúde Medicina preventiva, 432, 444

Mercados: econômicos, 80, 83-4, 86-7, 296; de seguros, 97-101, 103, 118-20, 121n9, 123, 129-36, 138, 141-2,

146-7, 150, 155, 472-6, 490-2; trabalho, 114 Mérito, e bem-estar social, 453, 458-61 Meritocráticas, teorias, 5-6, 19 Metas simbólicas, 275-7

Metro Broadcasting v. FCC, 600-1 Míami Herald Publishing Co. v. Tamillo, 528

Michigan, 545, 582,' 603 Mill, John Stuart, 293, 313, 498,

534

'

1

i !

l 1 1

Mi/Is v. Alabama, 532 Minoria, direitos da, 294-6

Modelo de impacto, para o valor crítico, 351-86 Modelo do desafio, pata o valor crítico, 351, 353-86 Moralidade, 157-61, 185-6; política, 6, 162, 332-3, 594;

aplicação, 207-211; na comunidade liberal, 291-310, 321-9; e padrões de vida, 3328; e ética, 291n1, 338-86; e capacidade, 413-6; e genética, 611, 630-40; e aborto, 614-7; e homossexualismo, 645-7, 658, 661; e suicídio assistido, 663, 671 Morgenstem, Oskar, 143 Morte, 644-5, 663-76 Mundo real/ponderações sobre o mundo real, 221-39

685 National Collegiate Athletic Association (Associação Atlética Nacional das Faculdades), 554-5, 554n16 Necessidade(s): materiais, 303-4; intelectuais, 304-7; de objetividade, 307-9 Neutralidade: risco, 122; moral, 210-1; de apelação, 393-4 Neutralidade-moral, 210-1 New York Times v. Sullivan, 524 North American Free Trade Agreement (Acordo NorteAmericano do Livre Comércio), 653 Nova York, 163-4, 245-6 Nozick, Robert, 112, 145-7 O'Connor, Sandra Day, 531, 589-90, 595-9, 649, 663, 667-70 Oportunidade, XI, 38; igualdade de, 6, 109, 400, 405, 422; custos, 202-7 Padrões de vida: no liberalismo, 331-8, 396; e valores éticos, 338-86; e valores políticos, 386-97 Padrões·mínimos, XI-XII Pagamento de transferência, 134-5, 151 Parcelas justas, 67-8, 295n7 Parcialidade, 391-3 Paretianos, aprimoramentos, 229 Parlamento Europeu, 625, 631 Paternalismo, 292, 312-3, 508; critico, 299-302, 3021113, 374-5; volitivo,299-300;substituto, 376-80, 383;

'' 686 cultural, 378-83; conceitua!,

303nl3 Patterson, Orlando, 559 Pentágono, documentos do, 523-4 Perfeccionismo, 337, 375 Platão, 345, 371; República, 326-7

Pobreza, 20, 141, 431, 438, 452, 473, 478 Poder: distribuição do, 4, 79; igualdade de, 261 Poder de voto, igual, 260-3, 275-7, 283

Powe!I, Lewis, 544n4, 573, 581, 5'91,- 605, 663 Prazer, 12, 46-8, 55-9, 75 Prazer, 12, 48; igualdade de, 46-50; de preferências dispendiosas, 56-60, 66-9 l)recisão, 283-7 , Preferências, 58, 85, 102, 339-n3; política, 11, 18-23; impessoais, 11, 23-6; pessoais, 12, 26-45; e capacidade, 406-8, 418-9 Prémios; seguro, 101, 103, 120-36, 436-42, 490-2, 642-3; impostos como, 129-42 Primeira Emenda, 162, 495-7, 501, 513, 517, 520-38, 659. Ver também Expressão,

liberdade de Princípio da diferença, 148-55, 465-7 fÍrincípio do resgate, 434-6, 448, 448n10, 622 Princípio do seguro prudente, 440-8 Processo decisório, 26-9, 60, 121, 281-2, 432-3, 640 Produção, 104, 110-5, 120

A VIR1UDE SOBERANA

Projeto, 209, 543, 543n2, 565, 567 Propriedade, 144-6, 223, 250, 256 Questões de métrica, 334-7 Raça, 543-607, 652-5 Racionamento da assistência médica, 431-6 Racismo, 19, 514, 574-5, 587,

592 Rádio, 500, 515, 538 Rawls, John, XIV, 7, 147-55, 181, 183-4, 189, 312, 388, 421, 465-7 Recursos: igualdade de, 4-7, 79, 156; e êxito pessoal, 26-8, 31, 38-41, 44; para gostos dispendiosos, 61-3, 67, 69; para deficiências, 70-4; distribuição de, 79-85, 113, 141, 147;iniciais, 111-3, 141; custos de oportunidades de, 202-7; e valores políticos, 388

Red Lion Broadcasting Co. v. FCC, 526-30 Redistribuição, 39, 69, 93, 111, 115-20, 125, 129, 133, 141, 147, 189, 235-7, 452, 512n5, 628. Ver também Distribuição

Regents of the University of Califomia v. Bakke, 544-5, 544n4,581,591, 599-605 l{egulações de zoneamento, 296 Rehnquist, William, 591, 595, 663-7, 664n21, 674 Relatório Wolfenden, 303 Religião, 157, 335, 362, 444n9, 515; líberdade de, 158, 167; aplicação da, 207-11 Reparação, princípio da, 149

'' Íl'lDICE RElvflSSNO

Representação: unidades de, 311-6; valores, 278-80; coletivas, 314-6

Republicanismo cívico, 309, 321-6

Responsabilidade: especial, XVI; problemas, 333-6;

causal/conseqüencial, 332-3, 412; atributiva/substantiva,

407n4 Restrições jurídicas, 157, 189n18, 201

IZevisão judicial, 261, 288, 504

Reynolds v. Sims, 278n5 Richmond, Va., 590, 594-7, 602 Riquezas, 431, 438, 461-3; distribuição das, IX-X, 233-7, 455, 470, 512n5; e· preferências, 56; e recursos, 92, 94, 116, 139 Risco, 91-8, 103, 128, 130,

438n4, 412, 619-21, 643; neutralidade, 122 l~scos morais, 473 Roe v. Wade, 646-7 Romantismo, 331.-2, 337, 356 Sacrifício, princípio do, 240-6,

241n30 Salários, 104-17, 163

San Antonio Independent School District v. R.ndriguez, 586n8 Sande!, Michael, 305

SAI, notas, 547-8, 552-6, 563-4, 567, 570, 573, 577 Scalia, Antonin, 517, 591-8, 605, 656, 661-3, 667, 669 Scanlon, T. M., 407n4, 414n9 Segunda Emenda. Ver Emenda 2 Seguro, 90-104, 223; mercados, 97-101, 103, 118-20, 121n9,

687 123, 129-36, 138, 141-2, 146-7, 150, 155, 472-6, 490-2.; prémios, 101, 103, 120-36, 436-42, 490-2, 642-3; subemprego, 118-29; índices, 121, 146; co-seguro, 130-1; desemprego, 152; abordagem hipotética, 467-79, 490-1. Ver também Assistência médica/seguro-saúde Seleção embriônica, 617-8 Selznick, Philip, 308 Sen, Amartya, 74, 401, 417, 421-7 Senado dos EUA, 266, 277, 624 Sexual, opção/.privacidade, 158, 167, 246, 317-9, 645-51, 657-63 Sistema de parâmetro liberdade/restrição, 192-9 Skokie, Ili., 524 Soberania do cidadão, 510, 513, 517-80, 523-6, 532-4, 539, 541 Soberania popular. Ver Soberania dos cidadãos Sodomia, leis, 291, 646-8, 658 Sofrimento, 12, 46-8, 75 Sorte, 85, 90-104, 117, 401-8, 417-20, 480-92, 634 Sorte bruta, 90-1, 95-6, 401, 419, 481, 487-8 Sorte de opção, 90-1, 95-6 Souter, David, 531, 598, 649, 666, 671-3,672n23 Stevens, John Paul, 531, 598-9, 605, 670-2 Strategic Defense 1nitiative (Iniciativa de Defesa Estratégica), 294-5 Suicídio assistido, 647, 649, 663-76, 672n23

1 688 Suposição da média, 97n5 Suprema Corte, EUA, 183, 278n5, 546n6, 579n33, 585n7; sobre gastos de campanha, 162, 241, 495, 524-6; sobre liberdade de expressão, 162, 494-503, 509-10, 517, 520, 537, 540; sobre o salário mínimo/número máximo de horas, 163-4, 244-5, 520; revisão judicial pela, 260, 288, 502; sobre as leis acerca da sodorrúa, 298, 395, 647-52, 656-63; sobre a ação afirmativa, 543-5, 572, 578-89, 591-606; sobre o aborto, 647, 665-6; e a cláusula da igual proteção, 652-3; sobre o suicídio assistido, 663- 73, 675 Tabagis1no, 643 Talentos, 107-17, 120, 124, 128, 138, 140, 461-3 :recnologia, 98, 120, 124nll, 433, 609-11, 624 Televisão, 493, 500, 515, 529, 537-8, 541 Teoria da justiça da maximização das riquezas, 144 Teoria dos jogos, 384

Teoria política, XIII-XIV, 22, 110, 112 Teorias aristocráticas, 19

Teorias do estado de

i consciência, 11-2 "Terceira via" de governo, IX, XVII Teste de cobiça, 82, 87, 91, 94, 107, 187-90, 196 Themstrom, Abigail, 583n4; A1nerica ín Black and Whíte, 554

A VIRTIIDE SOBERANA Themstrom, Stephan, America in Black and V\!híte, 554 Thomas, Clarence, 525, 591, 595, 663, 667, 669 Tirania, 254, 258, 262, 503, 517 Tolerância, 291-5, 298, 303-10, 322, 395-7 Tolerância liberal, 291-5, 298, 308, 323, 394-6 ]'ornil/o, veredicto, 528 Totalitarismo, 254, 258, 262, 503, 517 Trabalho, 88, 104-17 Transferências radicais, 72 Transigências, 56, 63-4, 67 Transplantes, 432-3, 442, 446

Turner Broadcasting System v. FCC, 529-30

'

Unidades de iniciativa, 311-6 Universidade da Califórnia, 543, 566-7, 573, 591, 599-603 Universidade de :Michigan, 545, 582 Universidade do Texas, 545, 568, 581-2, 590-4 Universidades, 543-583, 587, 590, 594, 399-607 Utilítarismo, 33, 63-6, 74-7, 143, 152, 179, 338, 356, 416, 463-5, 492 Utilitari~ta igualitário, 174-5

Valor(es): político, XIV, 386-97; e êxito pessoal, 29-36, 39-43; da vida, 33-4, 39-45, 61-2, 639-40; participativo, 275-80; agenciais, 278-80; distributivo, 281-7; crítico, modelos de, 350-5; independente, 610-1, 624,

1

1 689

íNDICE REMISSIVO

1

631, 639; intrínseco, 610-1; derivado, 624, 631, 639, 642. Ver também Valores éticos

Veredicto de 0-oson, 590-600 Vício, 408-9 Vida: valor da, 33-4, 39-45, 61-2, 639-40; boa, 331-8 Vida em comum: da

Welferismo, 74-7

Weyers, Heleen, 673 White, Byron, 292, 647-8, 651, 658-9, 661-2 Vl/hitney v. California, 523, 530

Williams, Bernard, 185n16

Wygant v. Jackson Board of Education, 603-5

comunidade 311-6; da

comunidade política, 316-21 Von Neumann, John, 143

Yoo, John, 567

Vontade da maioria, 291-302, 508

Zonas eleitorais livres de campanha, 530-2

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Overview 26281t

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