Bruno Tolentino OS SAPOS DE ONTEM
Sumário OS SAPOS DE ONTEM I. O PRÓLOGO DE UM EPÍLOGO A FARSA COMO HISTÓRIA II. O PRINCÍPIO DO FIM CRANE ANDA PARA TRÁS FEITO CARANGUEJO CARTA DO SR. AUGUSTO DE CAMPOS RÉPLICA CHEGOU TARDE AO EDITOR DA SEÇÃO ( NOTA DO SR. JOÃO MOURA JR., EDITOR, EM CULTURA DE 16/9/94) AUTOR SE DIZ VÍTIMA DE ATAQUE ORQUESTRADO AUGUSTO DE CAMPOS REAGE A ARTIGO DE BRUNO TOLENTINO COMENTÁRIO DE BRUNO TOLENTINO À REAÇÃO DO SR. AUGUSTO DE CAMPOS PUBLICADO EM CULTURA, AOS 16/9/94 CARTA DO SR. OLAVO DE CARVALHO AO SR. EDITOR DE CULTURA EM 20/9/94 III. A RETIRADA DA LACUNA A IRADA FLOR DOS CAMPOS, ou I. CLUBE DA VITÓRIA RÉGIA 1994 II. O RABO DO NIMBÚ III. A QUARENTENA IV. O HOMEM QUE NÃO SABIA JAVANÊS V. SAPO-BOI & REI LEÃO VI . O REI MENOS O REINO AVISO AOS NAVEGANTES POST-MORTEM PAULICÉIA DESVALIDA TOTTENLIEBE O ADO DOS MESTRES A RETIRADA DA LACUNA MEA CULPA? O NOVO PRODUTO LA VIEILLE GARDE OS IRMÃOS GONCURTOS SAPOPPELGÄNGER ARREBOL NA ILHA FISCAL O CREPÚSCULO DOS ANJOS
TEMPO DI MIGRARE IN (FUTURAM) MEMORIAM A HOMÉRICA GARGALHADA ASSIM FALOU ZARAUGUSTA (1.) SOMETHING ROTTEN (1a) ALGO DE PODRE (2.) SIMPLE, AIN’T IT? (2a.) SIMPLES, NÃO ACHAM? (3.) UNSIGNED, FROM THE BEYOND (3a.) SEM , DO ALÉM (4.) OEDIPUS & THE TOAD (4a.) ÉDIPO & O SAPO (5.) “LEAFES OF GRAS” (5a.) “FÔLIAS DE HERVA” SITTING DUCKS CORO DOS CEGOS DE TEBAS INOCENTE INÚTIL ATA & MINUTA BINÓCULO PELA CULATRA CONVITES À FILOSOFIA EM RETROSPECTO MUDEZ DE PEDRA HOMUNCULUS PAULISTANUS ET CATERVA SEGREDOS DE IMPRENSA JOVENS BÁRBAROS CENSORES? CARTA ABERTA AO JOÃO CARTA ABERTA A MARLY IV. RESPONSABILIDADES AQUI TERMINA OS SAPOS DE ONTEM INSIDE THE HOUSE OF USHER GRITARIA NA TOUCEIRA NOTAS
“ Os principiantes são bem-vindos. Eu também sou um deles, principalmente após vários anos de prática das disciplinas implícitas neste livro. Nas palavras de Thomas Merton: ‘Ninguém quer ser principiante; mas convençamo-nos de que não aremos nunca disso’. (...) A superficialidade é a maldição do nosso tempo. O mais urgente hoje não é um número maior de pessoas inteligentes, ou talentosas, mas de pessoas profundas. As disciplinas da vida do espírito nos convidam a ar de uma vida à superfície para o viver em profundidade. Instam conosco a que sejamos a resposta a um mundo vazio.” ( R. J. Foster, Celebration of Discipline )
I. O PRÓLOGO DE UM EPÍLOGO A FARSA COMO HISTÓRIA Marx pode ter sido uma Cassandra que não deu certo, mas num ponto acertou em cheio: a História que se tenta repetir acaba em farsa. O chamado Concretismo foi uma delas. A idéia mesma de “vanguarda” talvez já não se preste a outra coisa. Em todo caso, o certo é que estas últimas décadas, enquanto se agredia a inteligência brasileira por todos os lados, em poesia pretendeu-se mascarar indigência de inspiração e inabilidade artesanal mediante um exótico receituário pretensamente “novo”. Não há, nunca houve novidade alguma nos maneirismos e ludismos das civilizações em crise, como o atestam, entre tantos sintomas alhures, os jogos florais de romanos e gregos in extremis. ado o ápice de cada projeto civilizatório em via de esgotamento, surgiu sempre ao longo da História uma pletora de esoterismos próprios a entreter uma ilusão de liberdade enquanto não chegam os bárbaros. Como na obra-prima de Cavafy sobre o tema, ou na ode de Ricardo Reis sobre os jogadores de xadrez, o que todos esses estados de transe têm em comum é invariavelmente um mesmo grau de vacuidade existencial e idolatria esteticista, nascidas do pânico ante o real e traduzidas em impotência ante a linguagem. O poeta então, sem fala como o menino ante a nudez da maja, ato contínuo diviniza-a: mais ainda que do desejo sem meios, é sempre do sacro pavor que nasce a idolatria. O culto da linguagem é a coisificação totêmica da deusa nua. Quando a linguagem de uma tribo deixa de ser instrumento natural de comunicação para tornar-se objeto de manipulação pelo neófito, é que já foi entronizada como fim em si mesma. Promovida a assunto, não tarda é proclamada meta suprema do ofício de dizer. Subitamente já não lhe cabe significar senão a si mesma, e não mais ao ser, à vida, ao mundo. Este, aliás, é o primeiro que some, como a insignificância que é ante o totem-em-si, a celebrada e reverenciada “meta linguagem”: o utensílio vira amuleto, o amuleto é divinizado e o carro solenemente empurrado para adiante dos bois. Na antologia de 1982, a cura de Vinícius Dantas e da hoje pentita Sra. Iumna Maria Simon 1 , o Concretismo era a certa altura descrito como “ totem para seus criadores e tabu para seus leitores ” e o poema como “ verdadeira utopia ... sem valor de troca”; quanto a seu “consumo” pelo leitor, apelava-se mais adiante para uma sua “boa vontade lúdica”. Uma vez mais, a coisificação
idólatra da escrita e o espírito de play-ground . Lia-se ainda que “ o poema deixa de expressar e representar um universo de sentimentos e emoções exteriores a ele, para presentificar uma realidade viva e autônoma - a realidade em si do poema (...) a perda de si na linguagem, o desaparecimento do eu sujeito lírico em benefício da plenitude gráfica e visual, é o modo como o poema procura sustentar a linguagem nova.” Anos antes, em Teoria da Poesia Concreta 2 o Sr. Haroldo de Campos, citando Gomringer, explicava: “ O poema concreto é uma realidade em si, não um poema sobre... E como não está ligado à comunicação de conteúdos e usa a palavra como material de composição e não como veículo de interpretações do mundo objetivo, sua estrutura é seu verdadeiro conteúdo .” Desde o Renascimento a ideologia vem substituindo o mundo-como-tal pelo mundo-como-idéia numa variedade inesgotável de fórmulas, mas esta particular perversão apresenta a vantagem de combinar cacoetes milenares com um sotaque de “modernidade” todo especial. Com efeito, a fórmula é imbatível, pois aparece como um solipsismo que abolisse precisamente o eu, retirando-lhe a subjetividade em favor de uma cobiçada divindade secular: o relativismo mascarado em objetividade. Esta última, numa súbita espécie de imanência iluminativa é então atribuida ao novo totem, a linguagem-em-si; o que só os deuses possuiriam, a apathea da objetividade, o novo ídolo a a encarnar neste pobre mundo de incertezas. Por outro lado, a incerteza do fugaz cabe como uma luva ao monstrengo: ao indizível divinizado corresponde a sinuosidade dos fenômenos. São incontáveis ao longo das monotonias da História as instâncias em que se voltou a constatar embasbacado que a àspide da linguagem pode dançar tão ou mais rápido que as aparências fugitivas, que delícia! O que aconteceu entre nós com fumos de novidade foi mais uma instância desse antiquíssimo jogo de aflições adolescentes,3 não ou disto apenas, de um deslocamento do essencial para o supérfluo, de uma coisificação divinizatória do meio como fim. Não caberia mais escrever poemas, mas compor, melhor ainda, propor poéticas. Em vez do bolo pronto, uma infindável exposição de receitas e ingredientes, todos, aliás, com seu mofo particular separado do bolor acusatório dos outros em nome de uma suposta superioridade intrínseca. Foi sempre revelador, de resto, que em tempos de gagueira pânica o trocadilho vingasse à solta: o “esboço da serpente” ociosa compraz-se em seus nós mais óbvios. E se o poema, como o todo vivo que é, atreve-se a nada ter a ver com uma pomposa sugestão de intenções programáticas entre esotéricas e futuras, é como se não falasse, ou pior ainda, falasse do que, não sendo elemesmo, pertencesse ao odioso reino do real, esse desmantelador incurável de
conjeturas... ado o susto e expulso o intruso, volta-se à ordem plácida das prateleiras, o jogo continua. De grão de mostarda de uma fé natural, de ato de confiança vital no verbo humano, de microcosmo dessa mesma humanidade, o poema é intimado a tornar-se picadeiro de bolso, tabuleiro de xadrez, tubo de ensaios de uma ociosidade vazia de sentido. Assim foi, a um certo nível ao menos, com aquela idolatria paralisante de ordem abstrata e de cunho conceitualautoritário que teve incontáveis nomes no crepúsculo da antiguidade clássica e se chamou por aqui vanguarda, concretismo, praxis, etc. A um certo nível, digo, porque a um outro nunca ou de vulgar impostura. Tanto mais óbvia como tal, quanto surgiu paradoxalmente no instante mesmo em que no Brasil as artes do vernáculo, espécie em poesia, atingiam enfim a um patamar de universalidade que todas as civilizações em todas as eras chamaram de clássico. O espantoso, pois, o flagrantemente artificial, não era apenas que os gaguejos futuristóides de Noigandres nascessem dos ainda recentes bocejos parnasianísticos e abarrocados de três autores em nada distintos da pior mediocridade morna da Geração de 45, à qual o trio de fato pertence em estilo, mentalidade e fôlego; o surpreendente era que erguessem as autoexcitadas cabeçotas justamente quando Bandeira, Drummond, Cecília, Jorge, Murilo, e até o jovem Cabral, elevavam nossa lira a cimos que até então desconhecia. Tudo isto acontecera e continuaria a acontecer enquanto não havia como perceber diferença alguma, fosse qualitativa, fosse de dicção, vocabulário, sintaxe ou sensibilidade, entre a fraternidade de Noigandres e o resto que fumegava então do pior calibre 45. Atestava-o o estilo penteadeira-de-velha do Sr. Augusto de Campos por volta de 1953: “em glaromas de amil e penubis / (...) / com estas mornas flores de oromãs / morigerantes ou cansadas corças” são, colhidas ao acaso em seus textos pré-“revolucionários”, algumas das incontáveis pérolas cediças com que se adornava então a musa solteirona do futuro “ enragé”.. . Cujo ‘salto formal’ (ou gráfico?) não mudaria em nada o teor do florilégio: “ Ovo novelo / novo no velho (sic) / o filho em folhas / infante em fonte / feto feito / dentro do centro / (...) / noturna noite (sic) / em torno em treva sem contorno / morte nó cego / sono do morcego ” e o ideogramicamente genial: “ entreventres / quando queimando / os seios são / peitos nos dedos” ... Eram assim todas as erupções salivares e salvativas dos torquemadanostradamus da lira “em crise” no Brasil dos anos 50... Eu sei, parece incrível. Mas veja-se como, pela mesma época, versejava o irmão mais velho, sempre estravazadamente mais audaz: “Filomela de azul metamorfoseado / zênite de marfim onde o crispado / anseio se arbitra / (...) /
xadrez de estrelas, salamandras de incêndio / princesa plenilúnio desse reino / de véus alíseos: o ar. / (...) / astronomia de que são órions de pena / Lusbel libra-se sobre o abismo...” 4 Nem se imagine que posteriormente o “salto revolucionário” viria a tornar mais sóbria a ígnea musa sub-45 do savonarola das Perdizes, pois veja-se como, em Ciropédia: A Educação do Príncipe, progredira a coisa: “ Ó inferno afélio do langue heliotropo! /(...)/ Núpcias. Paranúpcias. Pronúpcias. / Congregação de rubís, a puberdade instaura a missa rubra. / Ele ira as grutas, apalpa as volutas cornucópias, contorna o maralmíscar das sereias. / A Geometria Plana? Júpiter Tetraedo de quadradas espáduas? / - Drósera rotundifólia, amálgama de sílabas cardeais. / Labilíngue ele diz : amor - larva do beijo, ninfa nibelung dum ciclo de legendas. / Meisterludi: Rigor! / Cobiça as galáxias estrelas, doutora-se em lânguidas palavras (sic) , licornes libidinosos / e glúteas obsidianas. Luz purpúrea. / Em Agedor chega-se à idade por uma súbita coloração roxa sob as unhas...” E, como se vê, o roxo escorre pelos purpúreos versos... Mas notável mesmo era o decano da banda, Sr. Pignatari, cujo inolvidável refrão: “cansada cornucópia entre festões de rosas murchas ” efetivamente resumia a tripartite arte num único verso-emblema. Sim, leitor, os precoces “velhinhos” da caluniada Geração de 45, bem mais sóbrios, desde então pagam o pato plumoso, mas os cisneramas de Agedor & Cia. eram pura lantejoula e pailleté. Ninguém parece haver notado o óbvio, o que é espantoso, mas “ sapos já foram pombos / nas madrugadas de outrora ”... Mas enquanto a bruma beletrista espraiava-se rala pelos campos (sobretudo paulistas...) de 45 e adjacências, aqueles mestres egressos de 22 pairavam cada dia mais longe dela, mais alto. Com a maturidade de cada um deles nossa Musa ascendia a uma nova medida de grandeza, a par com as mais altas vozes européias e continentais. Pela primeira vez desde a erupção romântica (quando alas! corremos atrás de Victor Hugo e Lord Byron, desdenhosos das lições de Leopardi, Baudelaire e Hoelderlin, para não falar daquelas, algo mais accessíveis, de Wordsworth ou Keats) tivemos fartamente, de 1930 a 1960, uma voz poética ao nível do coro universal de nossos inevitáveis modelos externos. Nada parecia preludiar, menos ainda convidá-lo a uma “desconstrução”, um abstruso ascetismo no corpus recente - e tão frágil ainda! - da linguagem de uma raça que se despia enfim de exterioridades e sentimentalidades para por a nu o próprio estofo da alma. Ao contrário! Com Claro Enigma (1951) e adjacências, o nervo da interrogação metafísica nos trópicos abria amplos e profundos espaços para uma verdadeira perquirição do ser, finalmente possível com a superação da obsessão telúrica e a conquista de
um idioma próprio, a um tempo denso e abrangente, capaz de encasular a reflexão do universal em suas infinitas possibilidades. Mestre Bandeira por mais de 30 anos purificara o idioma da modernidade, universalizara-o e aclimatara-o, interiorizando o olhar que pesa o mundo, limpando o horizonte emotivo-verbal para que nele se movessem, tanto o gigante drummundiano da interrogação de Édipo, quanto a reconstituida silhueta de um Orfeu recobrado à bacante e dado à História. Jorge de Lima emergira dos telurismos de cromo e vinheta ao gosto do dia, ara pela pia batismal do versete bíblico e o fora reinventar, ao telúrico que lhe era congênito, nas águas fundas do mito; Cecília Meireles codificara a tradição mais perene, tornara límpida sua historicidade e dera-lhe raízes nativas pela primeira vez paralelas às da metropole da língua, mas enfim livres dela. E Drummond orquestrara tudo entre o tédio dos fatos e o surto agônico da interrogação metafísica. Tudo se constelava, surgia de onde não se suspeitara até então andar tão poderosamente a multiplicidade do real: entre A Rosa do povo (1945), o jorgeano Livro de Sonetos (1948) e o Romanceiro da Inconfidência (1953) nossa lírica funda definitivamente a parte da História em solo nosso. Porque o inventor daquela jóia do mais vivo cromo nativo, a Negra Fulô parente da Irene-preta-Irene-boa manuelina, fora de repente muito mais longe ainda: como se não bastasse Miraceli, Jorge reinventara, não tanto ao Orfeu inflado e semiforme como acabara impresso em 1953, mas ao soneto, esse haicai da música conceitual do Ocidente. O surpreendente alagoano, menos artífice mas tão grande artista quanto o Bandeira e o Drummond sonetistas, não dispensara o órfico de pensar em quatorze versos, mas o confrontara à lava candente da metáfora a um tempo barroca e moderna. E eis que tudo isto estranhamente escapava à retórica iluminódina do Sr.Haroldo de Campos que, em artigo no Diário de São Paulo de 5/6/1955 o resumia como “o lirismo anônimo e anódino, o amor às formas fixas do vago (...) a ‘redescoberta’ do soneto à guisa de ‘dernier cri’ (...) preguiçoso anseio em prol do domingo das artes, remanso onde a poesia, codificada em pequeninas regras métricas e ajustada a um sereno bom tom formal (...) pudesse ficar à margem do processo cultural”.5 Afortunadamente a lição chegava tarde a mestres e discípulos: ao pé das sempre crescentes alturas de Bandeira, Drummond e Cecília, João Cabral, nos Poemas Reunidos de 1954, sobretudo da Fábula de Anfíon ao Cão sem plumas, mineralisava o indizível, dava-lhe corpo e música longe ainda das monótonas logofonias do conceito; e Murilo Mendes não deixava por menos: de Poesia Liberdade (1944) a Tempo Espanhol (1959) densidade, ritmo e espaço davam-se as mãos para dar asas próprias à linguagem arraigada no dia-a-dia,
aquela mesma que Mário de Andrade tanto havia imaginado sem alcançar.6 Súbito, eis que já não era imprescindível importar: amalgamava-se, senão sempre com água de fonte ao menos com força de torrente viva, as tabatingas palpitantes da tribo; Peri e o Timbira tinham enfim sua prole madura, nosso Guararapes poético triunfava de Pernambuco às Minas Gerais, das Alagoas ao Morro Cara de Cão. Não, nada pedia ou deixava prever um colapsus linguae a irromper da compulsão auto-biográfica de alguns iluminados. Norte-sul-lesteoeste da língua madre, revificada pela ascenção interior da Musa, da Musa local, a uma tão buscada identidade própria ante o desafio da universalidade, os anos 50, nosso meio do caminho, não pediam um pedra de plástico importada, nem tinham porque ar a campo de pouso de implumes aves exóticas, no instante mesmo em que eram enxotados de vez os papagaios, jacarés e cererês do incorrigível Sr. Cassiano.
*** Não obstante, aqui começa a triste história cujo pífio desfecho este ensaio autopsia e este livro celebra. Porque, face à mais alta plenitude de nosso verso em quatro séculos, começara a arregimentar-se a legião dos ressentidos. Os reprovados no vestibular da universalidade contestavam não apenas as regras do jogo, mas a legitimidade mesma da arte nacional, e isso no instante exato de seu tão anelado zênite! Os sem papel na História propunham-se refazer a História no papel, pregavam o golpe de estado que pusesse o mundo-como-idéia no lugar do real. E a agitação contagiava: arauto da mais recente perversão da sempre preciosa seita dos cristãos novos do Conceito, Mario Faustino, dos altos de sua página no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil perdia de vez as estribeiras. Tratava-se de um jovem autor cujo único livro, o recém publicado O homem e sua hora, em seus cerca de 700 decassílabos regulares (quase todos brancos, exceto por um rimancete e oito sonetos entre as vinte e uma líricas da coletânea) enxertava a dicção de Jorge de Lima a um lastro discursivo algo mármoreo, de cunho conceitual-idealista, embora assaz pessoal. Eivado de exotismos, mais pungente que pujante, seu verso correto, mas pouco dúctil, afastava-se tanto da fluência do demótico quanto do léxico contemporâneo, privilegiando a dicção cultista a serviço de uma visão heróica da História. Esta, em seu cerne um paganismo apeso menos a uma ideologia que a uma nostalgia, parecia porejar sobretudo de sexual undertones de um cunho francamente alternativo. Mais imaturo e audaz que propriamente inventivo, havia ainda assim
no irrequieto piauiense precocemente falecido aos 32 anos uma força original evidente nos melhores momentos de seu Opus 1 e único. Poeta algo excêntrico, mas de fôlego, tão impresivisível quanto promissor, tornara-se também um polemista de verve e ampla influência em sua página semanal do Jornal do Brasil, Poesia-experiência (1956-58). Desafortunadamente, após canibalisar sobretudo ao Jorge de Invenção de Orfeu, descobrira o caleidoscópio cubista do velho Ezra (jovem autor, ara uns meses nos EE.UU.) e o começaria a decalcar em “textos experimentais” em que pouco mais conseguia além de neologizar seu flórido lexico e introduzir um frisson de fragmentação arbitrária em seu irresistível pendor gongórico. Assim armado (ou “couraçado”, como descrevia os “infantes” helenos na barriga do Cavalo de Tróia) por ocasião da Primeira Exposição Concreta no Rio de Janeiro já o sanguineo rapaz se havia tornado uma espécie de homérico farol da vanguarda local, e saudava a chegada da trindade papal à nova avignon sismática, como quem “slouches towards Bethelhem to be born”... Não, o aterrador sarcasmo do célebre verso de Yeats talvez não caiba assim tão mal aqui: com sua inesperada revigoração do mítico pelo coloquial (slouches: arrasta-se desengonçadamente) pode servir de contraste instrutivo à retórica de estandarte e poeira de estante que, em lexico como em sintaxe, de fato unia subrepticiamente o new look do piauiense ao estilo intrínsico dos paulistanos. Senão vejamos. Aos 22/10/56 Faustino publicava em sua página do SDJB as ultimas espigas d’oiro de sua nova e epicizante seara: “Cavossonante escudo nosso / palavra panacéia / ornado de consolos e compensas / no sabuloso mar na salsa areia /(...) / a fraga estilhaçamos nus sem pele / estrelorientados rumo-nós / (...) / e em violetas me violentam - frutos / NÃO!: pois inútilbelo (sic) tenho sido / e do bembelo hei rido / o feiobom ferido / (...) / Foi-se na espuma - foice de escuma sega / meu pescoço nodoso e pelágicos deuses / conspiram contra mim, jogam-me em ilhas / que não são minhas...” Não, não eram mesmo, eram - na melhor das hipóteses - do mesmo Jorge de Lima a estragar tudo sob a maquiagem do moço, a intrometer-se nos Piauían Cantos lá de seu além, sorrindo “à margem do processo cultural”... Pois em artigo de fevereiro de 1957, esta alma fraterna dos glenubis de amil e oromãs apresentava encomiasticamente a nova leva dos Jaús a insurgir-se armados da paulicéia um quarto de século após 32, como se de fato se tratasse do tão esperado Second Coming: “A poesia no Brasil estava precisando, desesperadamente, de um acontecimento” escrevia o cavossonante bardo... Note-se que não decorrera um ano da aparição de Duas Águas e Grande Sertão, e que a tinta mal secara no Itinerário de Pasárgada... Mas nada disso o
comovera ou instruira, e o rapaz tonitruava que nossa lira andava “urgentemente necessitada de um shake up...” Pouco antes de exigir a milk shake for her (como na famosa repartida de Bette Davies em All about Eve), comunicava-nos que: “...um grupo de três rapazes, dois dos quais irmãos... (sabem que) Mallarmé e Pound (são) mais importantes para o progresso da poesia que Eliot e Baudelaire”. Não se privava de garantir-nos tampouco que “os três lêem (direito!) os alemães e outros centro-europeus (e ele, como os leria?) assim como os americanos (sic) e os ingleses”. A importância disto, a aceitar que fosse um fato, ficava por conta da “nova estética”: dado que não tínhamos em casa com quem aprender a escrever poesia em português, importar era preciso... Marly de Oliveira, Merquior e eu entreolhávamo-nos perplexos: seria então isto ao que se chamava “revolução” nas pátrias letras?! Talvez não, mas com semelhantes “chutes” e cosmopolitismos bocós ia-se prenunciando o ainda incipiente Febeapá letrado. Porque eu, for one, jamais notei em Faustino uma aptidão linguística tão ampla e fina que lhe permitisse avaliar, menos ainda avalizar, a alheia, bem ao contrário... É que haviam soltado a Ezra Pound do hospício e ele záz! mandava-o para cá... Até porque ninguém mais queria em parte alguma the wretched, tedious man / in the House of Bedlam, segundo a genial evocação que dele fez La Bishop, em Visits to St. Elizabeth’s (1950). Este poema, aliás, em tradução de Alfredo Lage e Lota de Macedo Soares, sob tutela da autora, levei-o eu mesmo a Faustino, que o “aceitou” para sua página em março de 1957; quinze meses depois, ao trocar sua profética tribuna por um emprego em Nova Yorque, continuava inédito. Cheguei a contar, durante o mesmo período, perto de cem referências ao Master of Masters; mas do devastador retrato que dele fizera a testemunha ocular, um dos dois maiores poetas americanos do pós-guerra, nada se ficaria sabendo. Nem sequer foi devolvido o manuscrito. Vanguarda é isso mesmo, tudo, sobretudo a censura, pela saúde da Causa! Já por essa época a declinante Geração de 1945 havia mal entendido tudo. No geral sem o gênio de seus predecessores, sem grande cultura e sem credencial específica ante a História, aqueles rapazes que raramente acertaram uma cadência imaginavam trazer de volta à pátria lira uma suposta solenidade perdida... Curioso, pois que mais haviam feito aqueles mestres?! Quem precisava de lições de gravitas, de limpidez, de elegância formal? Certamente não os autores de Belo Belo (1947), Livro de Sonetos (1948) ou Retrato Natural (1949). Menos ainda o criador de José (1942), da Bruxa (1945), de Luisa Porto (1947). Não, aqueles rapazes não haviam lido com muita atenção senão os “sinais dos tempos” a chegar-lhes do hospício poundiano com a data vencida
havia décadas, mas em socorro de seus “festões de penubis e oromãs”... Não é de espantar que, uma vez evidenciado o mofo na prosódia de seus primeiros livrecos sem graça e sem eco, nossos Marx Brothers se propusessem como revide a reinventar a roda. Porque assim foi como, encurralados no naufrágio geral do Titanic de papel de seus companheiros de primeira viagem - os demais invertebrados de 45 - três dentre os mesmos, quando o fracasso lhes subiu à cabeça, julgaram achar no eureka poundiano um salva-vidas: metamorfosearamse em fênix de jornal para “salvar a poesia”, proclamando a morte do verso com a mesma cara de jacarandá com que Nietzsche anunciara a de Deus. Mas, defuntíssimo Senhor, que verso senão o deles poderia estar morto no Brasil dos anos 50? De quem senão de Drummond saía A luta corporal de Ferreira Gullar em 1954? Onde senão à sombra do Orfeu de Jorge espoucava no ano seguinte O homem e sua hora, o melhor que faria jamais o mesmo Faustino, em transe ideogrâmico a partir de 56? A que fontes senão às mais castiças bebera Otávio Mora, o adolescente que nos dava em 1956 Ausência viva, talvez a mais bela estréia poética desde A cinza das horas? Quem melhor que Cecília informava a Explicação de Narciso que Marly de Oliveira publicava dois anos depois? E não só, a lista é tão longa quanto irrespondível. Edmir Domingues mesmo, 45 ou não, certamente não necessitava de um urgente boca-a-boca para que seu verso vivesse, livre que nascia de “lusbéis alíseos, morigerantes glaromas & cansadas cornucópias”. Ele e incontáveis outros, not least a inclassificável Maria da Saüdade Cortezão, cujo O dançado destino de 1956, exemplar quase eliotano de clássica limpidez, nem toda uma banda dodecafona faria dançar com menos elegância ante os educados príncipes de “Agedor”, wherever that was to be found... A ela devo muito, muitíssimo, como a todos os acima reverenciados, jovens ainda quando eu começava a ser jovem. Velhos mesmo, velhos de matusalêmicas e parnasianas canseiras, só nossos empoeirados sapos de ontem, desde então reafinando em vão seus surrados realejos em uníssono para, na zoeira, proibir a tudo e a todos de existir. Mas aludi a uma História que se teria repetido aqui como farsa. Qual foi? Ora, qual outra senão a idéia de reeditar 22 em 55? 7 Pois examinemos de mais perto aquele solerte mal entendido. Uma revolução faz-se sempre, e já por etimologia, no sentido de um retorno a algo perdido, ou descurado. Na arte da poesia ela se faz urgente, e por assim dizer inevitável, a cada vez que a linguagem poética se afasta perigosamente da língua corrente. Quando se torna um linguajar, próprio apenas a educar príncipes em Agedor com filomelas corças murchas; quando resvala num sistema fechado de signos e convenções, a linguagem profunda de um povo começa a anquilosar-se e
a evaporar-se e faz-se imperativo trazê-la de volta àquela que é sua fonte e referência: a fala, a língua como de fato se fala. Wordsworth e Coleridge não tinham outra meta em mente, nem Pound e Eliot um século mais tarde. Cavafy não foi grande por outra razão. Ungaretti e Montale tampouco. Ou em Espanha a Generación del 98. Nesse sentido nosso Modernismo, às antípodas do de Dario, fora um salutar e revolucionário esforço, e por isso mesmo um triunfo. Longe de São Paulo (em que um Andrade se extratificara a estrofisar um coloquialismo inexistente e o outro sucumbira às piadinhas do minimalismo mental de circunstância) 8, o movimento quase que natural, em todo caso em combustão expontânea a partir de 22, havia restituido a linguagem poética à fala natural da tribo, revigorado as formas e os ritmos próprios à musicalidade inerente à língua, sem prejuízo de seu comércio com o sensível, o imediato, o real. Feito isto, restaurara a balada, o rimance, a cesura, a redondilha, o soneto; e esplendidamente sobretudo este, que Bandeira, Drummond e Jorge haviam resgatado ao torniquete parnasiano e, os dois primeiros, devolvido à invenção ao nível da fala corrente; para além, não para aquém, da qual, o terceiro o levaria a um rodopio órfico até então inédito em português. Enfim, outra vez tornavam-se possíveis todas as reinvenções inerentes à riquíssima tradição poética lusofônica. Quanto à história da gralha, ou da farsa tentando fazer-se ar como História, seria apenas uma idéia, uma irrequieta enfrutescência a mais no mamoeiro marmorizante do Conceito; e a noção era simples, simplória mesmo, como tudo o que se a no mundo-da-lua: uma espécie de exame de segunda época do Modernismo radical de três décadas antes. Eureka! Eureka! Eureka! repetiam-se as três sápicas graças, já que ninguém gostou dos penubis do Príncipe, desmaquiemo-lo e salvemos o Modernismo! Mas este havia cumprido perfeitamente sua função histórica e perdido sua razão de ser ao livrar do colete o idioma nobre e revigorar o discurso criador reaproximando-o do vigor coloquial da língua. A “nova” receita, no entanto, para justificar sua oportunidade (ou seu oportunismo?) negava tudo isso. 9 Propunha um “movimento revolucionário” pertinente apenas às cabeças de ogiva gótica de seus arcaisantes e estrangeirados inventores, auto-proclamados cibernéticos em transe, mas em verdade neo-românticos retardatários em busca de redenção. Cobra mata-se de uma paulada só; mas a Tricéfala, além de venenosíssima, era sinuosa e camaleônica, deslizava entre oromãs de amil e ava do roxo agedórico ao multicorolérico da sacra indignação... Ainda assim, aqui tocamos o nervo da ruidosa e ruinosa questiúncula, afloramos a decifração do transparente enigma que faria de Lusdrósio, Glaromil e Cornucópius os três arcanjos
vingadores da modernidade apunhalada por Fulô, José e Totônio Rodrigues. Aristóteles chamou à tragédia “a purificação de uma paixão perigosa através de uma libertação veemente”... Trágico só para eles, o edípico dilema dos moços (basicamente a frustração de haver perdido o pioneiro barco e não saber nadar por escassez de fôlego lírico, bovarismo de província e forma mentis retórico-floral), a “revolução” por eles proposta, e quase imposta à força de bastonadas e embustes, era, além de proto-fascista em sua inspiração e molde, sobretudo descabida porque abstrata, arbitrária, inútil. Não se propunha a socorrer uma língua abandonada por sua linguagem profunda, mas a impor uma linguagem de gabinete, um dialeto gráfico, ao mais sadio e pleno momento da língua. Que o tenham, esse linguajar, travestido de modernosidades e excentricidades importadas, e revestido-lhe os penúbicos glaromas de exotismos, populismos, trocadilhos, truques graficômicos, pedanteria professoral e erudição de chusma de periódico, em nada o tornou menos cediço ou menos fátuo. E pelo simples fato de que poesia e língua nunca se haviam dado tão bem entre nós quanto aos meados deste século. Este aspecto da farsa, aliás, sempre me impressionou. Que o mais rico e original instante da poesia no Brasil, os anos de apogeu e refinamento de três décadas de Modernismo, fosse não apenas ignorado, mas negado e caluniado pela sápica trindade, parece-me hoje um caso exemplar em favor da tese bloomiana sobre a “angústia da influência”. 10 Incapazes de resolver esse tormento pela superação do modelo edípico - já que não tinham, nenhum dos três rapazes, poesia alguma a fazer, como se viu e se há de ter notado pelos exemplos transcritos aqui - a aristotélica libertação veemente só se podia manifestar através do assassinato coletivo do arquétipo; já não mais da identidade, mas da própria natureza do modelo ante o qual o neófito falira... A fúria contra a palavra em favor (notem bem) da idéia é reveladora, elle en dit long; no artigo de 1956 acima referido, o mesmo Sr. Augusto de Campos, inolvidável autor daqueles “glaromas de amil e penubis” e outras incandescências florais ainda tão próximas quanto mornas, investia contra nada menos que “a introspecção debilitante ” (sic) e denunciava “as palavras como meros veículos indiferentes, sem vida sem personalidade sem história - túmulos-tabus com que a convenção insiste em sepultar (atenção!) a idéia.” A velha fórmula não falha: quando o mundo-como-tal desautoriza ou rejeita uma auto-imagem, torna-se inável e faz-se imprescindível sua substituição pelo mundo-como-idéia. Jean Cocteau dizia que os homens se suicidam porque não conseguem ser poetas; a idéia da “morte do verso” no momento mesmo de seu apogeu, foi exportada para a nação pela trindade em pânico como uma indução ao suicídio coletivo: avec nous le
déluge... Sedutor convite, a julgar pela rapidez com que a arca se encheu de toda espécie de animais dos campos... So much for that, though, o dilúvio não veio e a farsa expirou not with a bang, but a whimper, o gemido moribundo da saparia glaromitomana recauchutada. A História nada teve a ver com isso e o século afinal acaba melhor do que começou. Porque, como é sempre o caso em tempos de crassa usurpação e truculência normativa, a poesia se fêz, continuou a ser feita apesar da ocupação do espaço exterior pelo mais reles espírito de prosa: o sempre crônico, inevitável prosaísmo das variegadas ditaduras do mundo-comoidéia. Aos cimos em que se move o espírito, o poeta, o albatroz, o falcão e a claridade, os miasmas do charco pseudo-conceitual não chegam, lá o esoterismo programático não pode desvirtuar, poluir ou impedir nada. Foi perfeitamente possível ao poeta nato, a um Ferreira Gullar, a uma Adélia Prado, a um Alberto da Cunha Melo, a um Romano de Sant’Anna, a uma Marly de Oliveira, a um Jairo José Xavier e a muitos outros, ignorar a pseudo-revolucionária “sapiência” e construir suas obras a partir da grande herança do Modernismo, absorvida no corpo vivo de uma tradição que nunca andara tão bem de saúde. Tutto sommato, a farsa não repetiu a História, pensando bem. Tratou de macaqueá-la e, como o “processo cultural ” todo seu que era, deu-se à margem dela, como se dá um espetáculo de circo ao largo da vida normal de uma cidade. Afinal, nunca se conseguiu instalar um charco numa praça central, ou periférica que seja. Ateste-o o Anhangabaú, que continua seco... *** E não obstante o estrago foi considerável. É que toda agitação artificial e estéril confunde, dispersa ou paralisa um elemento indispensável a qualquer sedimentação cultural: o bom escritor de segundo escalão, de porte mediano, fruto da excelência do esforço, da dedicação ao estudo, do suor do talento e não do gênio.11 É ele que, paradoxalmente, sustém as altitudes do gênio de uma raça, embasa-as à maneira da cordilheira erguendo, sustentando seus cumes. A solidão destes últimos não pode ser, não tem porque ser total, ela é tática apenas. Sem a hierarquia de seus pares, o lobo solitário é pouco mais que um desgarrado, por grande e pungente que seja seu uivo, seu protesto precisamente contra esse isolamento, sempre anti-natural e, enquanto dure, uma perda para todos. Com efeito, os momentos decisivos nas grandes culturas do Ocidente foram aqueles em que toda uma miríade de talentos menores superou a platitude da
mediocridade, que é toda outra coisa, e circundou com naturalidade suas figuras de proa. A sólida nave de uma cultura é feita do lenho tosco, mas confiável, do que um povo tem de mais próximo, mais familiar, mais saudável. Os altos mastros não se erguem do nada, mas de um amplo convés do mesmo lenho. Navegar é preciso, mas é toda uma raça que o faz, quem à gávea, quem à bússola, quem à proa e quem à popa - e ao leme, aos cordames, aos remos. A invisibilidade da tripulação nunca é mais que aparente, sua presença miuda é condição indispensável ao bom destino da empresa, da aventura. Pois como imaginar Bandeira sem Ribeiro Couto, Dante Milano, Joaquim Cardozo, Ronald de Carvalho e muitos mais, na verdade os outros todos! Ou Graciliano sem Lins do Rego e Marques Rebelo, ou Clarice sem Lúcio Cardoso e Cornélio Pena? Nem Drummond é pensável sem Mário e Oswald, sem Abgar e Henriqueta! Nem Jorge de Lima sem Ascenço ou Bopp... Mas os exemplos são íveis de confusão. Não se trata de mútua influência, trata-se daquela participação quase anônima no que em Weimar se chamava Stimmung. E onde se perceberia melhor essa atmosfera, do que no mundo germânico? Que foi o Sturm und Dräng senão um estado de espírito entre pares, um stato d’animo antes de tudo? Tais como Goethe e Schiller, nossos dois gigantes românticos erguem-se muito bem nos ombros de mais quatro, seis, dez companheiros de jornada; sem contar, é claro, os hoje esquecidos e então indispensáveis semi-anônimos que sabiam o que eles sabiam, que o serviam cada um à altura do próprio porte, mas sem ruptura ou descontinuidade. Em tal contexto, a tentativa de exumação pelos vanguardistas de dois abortos literários de nosso Romantismo, supostamente preteridos, é um inesperado aporte da saparia a esta tese, justamente uma sua irônica ilustração: o voluntarista excêntrico nunca a de patética aberração. 12 Não teria havido nem mesmo nossa sorridente trindade parnasiana sem a sociedade de versejadores a que sorria, sólida até mesmo quando emoldurava os rebeldes. A essa luz, Cruz e Sousa, Alphonsus e até o paraibano de gênio não eram alheios a um caldo de cultura que alteravam, é certo, mas sem o qual são inimagináveis. E assim por diante. O que se está buscando dizer é que, qualquer que seja o nível dos acertos e erros de um seu momento ou outro, uma cultura não se faz sem que a média daqueles que nela atuam seja capaz de juizo intelectual responsável e, de acordo ou não quanto à precisa hierarquia dos valores que acumulou, conheça-os e, reverencie-os ou critique-os, mostre-se à altura de fazêlo a partir de um padrão comum de lucidez e participação. A principal condição da vida do espírito, seu teste sempre renovado, é essa capacidade de servir o ado com reverência, o presente com audácia e o futuro com fé. Não há nem pode haver civilização sem esses exercícios em humildade, esse lento avançar
de joelho dobrado e olho aberto. E é bom e é justo que assim seja, pois uma certa unidade na diversidade ou, se preferem, o reverso dessa fórmula banal, sempre existiu e serviu de garantia ao amadurecimento de uma arte e de uma tribo. De que modo dar um sentido mais puro à língua que um só homem, ou dois, ou mesmo três, falam sozinhos? Ora, foi nesse sentido que a arregimentação exclusivista, o raio dos Zeuses do pântano de carteirinha caiu sobre a unidade da raça como uma vassourada no cérebro. A chuva sobre Danaë foi dourada como a terebentina que dilui as cores. Sua intenção? Dispersar. Desinformar, desviar, empolar e entortar. Seu efeito? A tragédia criminosa que é sempre arregimentar os neófitos contra a tribo, contra a possibilidade, a legitimidade mesma daquela sabedoria sempre embutida (talvez em banho-maria, mas so what?) na auto-consciência como no subconsciente da taba. A dose do curare importado, obsessiva e matraqueada como a receita da salvação, nunca disse do quê exatamente salvava os coitados que a gagarejavam. A suposta “morte do verso” não salvava ninguém de escrever mal, como se viu com seus próprios arautos... “Salvava-os”, isto sim, do bom-senso, do consenso, da humildade de tomar por adquirido o direito (e o dever!) de pensar e sentir e criar tendo em vista as linhas mestras de uma sensibilidade tornada natural à força daquelas periódicas “crises de convergência” que fazem o acervo de uma literatura, de um povo, de uma identidade nacional. Fora exatamente o que fizera o Modernismo, chegado “de baixo” aos cumes da poesia do pensamento, que inaugura sua plenitude com o Drummond do pós-guerra, mas que traz em seu estofo os sonetos de Jorge e os ritmos de Bandeira, o grafismo lírico de Cecília e as minerações mentais de João Cabral. Mas não seriam eles, os grandes, os indeformáveis, a pagar a conta. A ave depenada não é nunca o cisne na hora rósea em que o horizonte e o além o chamam. É o ganso selvagem, o marreco solto, o patinho feio que ninguém sabe ainda o que vai ser. Foi o escritor mediano em formação que bebeu a terebentina e definhou, virou minimalista ou menos ainda. Foi o jovem que Jove alçou às pretensas alturas do novo Olimpo e largou no charco ideogramático, confuso e só, patético e arrependido tarde demais. Foi todo um acervo, fulgurante já, mas incipiente ainda, que, penosamente construido durante a primeira metade de um século decisivo, viu-se acusado, caluniado, desautorizado, exilado das atenções como “tradição”, sendo esta, claro está, equacionada com “repressão”... Foi aquele frágil triunfo em agoniante suspense que os hunos do “make it new” bombardearam de fora, ao abrigo de qualquer revide pela carapaça de insensibilidade ao belo e ódio ao real que os enxoviava e resumia. “O bárbáro” - lembrava-nos, em seu lancinante ensaio Os Bárbaros no
Jardim, o grande poeta polonês Zbigniew Herbert - “é especialmente difícil de resistir quando se faz ar por homem de cultura”. 13 O massacre do tenro, do mediano, do ingênuo, foi o legado de Herodes dos “inovadores” a uma cultura nunca antes tão fértil, porque havia pouco iravelmente renovada. Não contentes de vandalizar os flóridos jardins de Agedor, os hunos do concreto armado propam-se demolir, senão o Domus poético nacional, que vai bem, obrigado, ao menos o pessoal da manutenção, a quem trocavam “os materiais da vida”... Drummond, que logo o percebeu, caricaturou-o muito bem, como uma advertência; mas o fiat se fez e, se não desfez tudo o que quis, embaralhou o quanto se expunha ao cantochão maralmíscar das sereias, as mesmas que J. Alfred Prufrock sabiamente não quiz ouvir: “Drls? amor em vidrotil, coitos de modernfold, que a lança interflex nos separe em clavilux, vipax ondalit camabel camabel o vale ecoa... E pronto - plkx! E o canibal instala seu banquete de ossos, o sapo engorda, o charco se faz charcuteria e o verso morre de não nascer, de não poder ou não querer mais saber se poderia ou não ter nascido, querer nascer. Essa conta, paga ao longo de quatro décadas pelos desvalidos de uma raça sob agressão num país ocupado, os bárbaros do DOI-CODI vanguardista devem-na a uma nação hoje amputada. E amputada não de seus cumes e gênios, mas de algo igualmente vital: de seu intelectual anônimo, de seu leitor atento, de seus talentos medianos, mas dedicados, participantes, operosos. O torturado até à paralisia nos porões da moda foi o aluno esforçado da Musa e do real, o humilde guardião da tradição, o artezão obscuro dos veios provados, o cultor do tesouro comum de um povo. Ele é que foi submetido à lavagem de cérebro do marketing ideológico, ele é que bebeu a terebentina e entrou em coma balbuciante. Ele, logo ele, o ingênuo herói sem nenhuma culpa, o que serve de base a toda uma cultura e foi amordaçado no primeiro andar e atirado aos porões de uma poesia que podia ter sido e que não foi. Coitado, o editor que me pediu este livrinho, este semi-panfleto, não esperava mais que um j’accuse jocoso, mas a hora é grave. Penso naqueles meus irmãos poetas que se deixaram abortar por falta de quem os defendesse, contra si mesmos, se necessário. Nunca fora tão necessário aos mais velhos, aos veneráveis vencedores, insugir-se, instruir, afirmar, e ninguém abriu a boca. Manuel mesmo, o grande Manuel, contentou-se em mostrar que também podia fazer o novo, caso lhe desse na telha. Drummond lançou suas farpas, como vimos acima, mas não argumentou, não pensou em público. Dona Cecília tinha “ouvido falar por alto”, como suas virgens loucas, do desamor, da tristeza do desamor à vida e à arte, que se travestia em douta baderna, mas limitou-se a suspirar ante
seu cipreste do Cosme Velho: “que te julgue o tempo sábio: / entre os espinhos a rosa, / entre as palavras teu lábio.” Murilo fizera prudentemente as malas assim que Jorge juntou-se a Ismael Nery na glória do Senhor, e fora rezar em San Pietro pelo que já não lhe importava mais, ou nem tanto. Restavam Vinícius e João Cabral, o que não teria sido pouco, se o primeiro não tivesse emigrado para dentro de um violão e um copo de scotch, e o outro não se tivesse deixado subornar pela bajulação batráquia. Porque, ao contrário do que proclamaram os atrevidos sapos - e aram a repetir seus acólitos aprisionados14 na ideologia - João Cabral de Melo Neto não era nosso maior poeta vivo, menos ainda o guia-mapa da poesia do porvir. Um título e outro evidentemente cabiam por longevidade de triunfo e nitidez de estilo a Manuel Bandeira, nosso poeta exemplar; ou então, por tudo isso e muito mais, a Carlos Drummond de Andrade, nosso poeta maior quase que por antonomásia. O qual, é verdade, já então esmaecia, dedicava-se já então à crônica, ao faits divers do quotidiano ou ao memorialismo de almanaque, como o fustigava Mário Faustino. Sim, o fazendeiro do ar mudava-se para o sub-solo, mas não deixava por isso de ser o primus inter pares, o poeta maior, o modelo, como afinal ficou sendo. Mas João Cabral de Melo Neto aceitou o galardão surrupiado pelos sapos, Simplício gostou da piada... Leonizado pelos papas do pântano, deu-lhes seu ambigüo aval de napoleão de terceira fila. Vestindo a carapuça sem necessidade - e sem efeito algum aliás - o usurpador do barrote republicano ajudava a tudo inverter, até mesmo o sentido da imagem de Dante segundo a qual o eleito ...fece per viltà il gran rifiuto. Sem efeito algum, entenda-se bem, para nós, para “aqueles poucos que fazem a cultura de uma época”, como na lisonja que me fez Bonnefoy. Para estes não houve nunca dúvida alguma de quem fosse de fato il maestro di collor che sanno. Mas para a vítima confusa do assalto ao verso e à realidade o embuste foi fatal. Este, o patinho feio de sempre, entrou no espeto made in Perdizes segundo a receita do hospício de Saint Elizabeth, para virar ora o porrete dos sapos, ora o cetro usurpado do poeta-diplomata. E foi o que se viu. Afortunadamente o que hoje se vê são as inglórias ruinas de papelão de um show que acabou em menos que nada. Com efeito, o “novo” parto da montanha em revolução intestina resulta apenas no roedor elegíaco das próprias entranhas. Já há mais de vinte anos, quando do aniversário do cinquentão, à página 215 d'O Modernismo 15 Affonso Ávila, em nome de tantos mutilés of the esthetic war (A.A.Alvares), chorava o tramontar do projeto vanguardista tous azimuts: "O Modernismo não conseguiu evitar que estruturas anacrônicas continuassem a prevalecer (...) ressurgindo pouco depois numa arte acomodada" (leia-se:
Claro Enigma, Belo Belo, Morte e Vida Serverina, Vidas Secas, Invenção de Orfeu, Grande Sertão: Veredas, Laços de Família e outras anacrônicas acomodações...). E o lamento concluía: "Apesar do radicalismo com que algumas propostas básicas desafiaram o tempo, o movimento não teve força bastante para impedir que, num estágio subsequente, fosse desenvolvida uma arte classicizante". Que pena! Enquanto isso, no resto do mundo, de Responsibilities a Anabase, da Jeune Parque aos Four Quartets, dos Campos de Castilla aos Sonette an Orpheus, dos Ossi di Sepia ao Lord Weary's Castle, chegava-se sem lamúrias ao Du Mouvement et de l’Immobilité de Douve de Yves Bonnefoy, ao The Less Deceived de Philip Larkin, ao King Log de Geoffrey Hill, à Späte Gedichte de Paul Celan, aos Canti Barrocchi de Lucio Piccolo, à Elegie Fortinbras de Zbigniew Herbert, aportava-se sem perda de substância ou forma às aporias da História uma vez mais e sempre clássicas. A diferença é que no mundo civilizado, sem capitanias gerais, ninguém sonhou "conseguir evitar" que se fizesse arte nenhuma, nem se lamentou de não ter "força bastante para impedir que" se desenvolvesse a grande arte classicizante de ontem, de hoje e de sempre... Sim, a hora é grave, quae sera tamen. Não importa, a arte tem um tempo acima e além das cronologias, uma dimensão retroativa que é seu dom peculiar. Não se perde o ado, é impossível ao artista não redimí-lo, não salvá-lo de seus escombros meramente circunstanciais. Seferis o diz esplêndidamente, virgilianamente: “quem quer que não tenha amado amará / na luz.” Luz histórica e lírica, corpórea e intemporal, “ luz angélica e negra”, ela traz em si todo o ado como categoria do presente perpétuo a que Paz deu um título límpido e mais que nunca atual. Nosso poetas abortados, suicidados, programados e ideogramados, habitam o verso vivo de hoje e de sempre. Assim como as formas e ritmos naturais à sensibilidade de um povo, assim como o decassílabo, a redondilha, a cesura, o soneto, assim também o sumo agônico do gênio de uma raça é impessoal, indestrutível. É possível restaurar a dignidade, a integridade, a limpa paisagem de uma poesia que poderia ter sido e que não foi, porque ela não morreu, porque nada a esse nível morre jamais, a morte especialmente a “do verso” - não existe. Nunca existiu, diz-nos Yeats no fecho magistral daquela sua torre, The Tower, que pus em português nos confins do meu Os Deuses De Hoje16 porque tem tudo a ver conosco, com nosso aqui-e-agora. A hora é grave e a torre é nossa, indestrutível, towering high sobre o campo e o horizonte, capaz de retirar ao batráquio veneno até mesmo seu poder de haver envenenado. A ressurreição do verso não se faz necessária porque sua vida é contínua, inevitável, esplendorosa e natural como a inteligência musical de uma
raça que pensa. A língua que Camões sagrou e legou-nos, a linguagem que os mestres de 22 arraigaram na inteligência nacional de uma vez por todas, nunca teve nada a temer dos falecidos marqueteiros de ontem, sempre de ontem como tudo o que as Parcas nos fazem ver voltado para o crepúsculo. Arrebol é seu apelido. Sapo é seu nome. De ontem.
II. O PRINCÍPIO DO FIM “ ao mais é ver-se baixo esta perse que a guido o cate bufa lixeiro goria lo se que oficial esconde cheira do flor de a vate estufa lixo a sua mas quem língua ao como é justo conde menos se esbate corada tem assim que se mate a extingu cheiro o augusto ir-se ........... busto” (Poema de Augusto de Campos em 1955)
CRANE ANDA PARA TRÁS FEITO CARANGUEJO Artigo de Bruno Tolentino, O Estado de São Paulo 3/9/94 Assim não dá! O verso vai bem, muito bem em mãos de muita gente por este Brasil que cansou de usurpadores. Mas vai mal, muito mal há quatro décadas com nossa dita “vanguarda”, a mais envelhecida e empoeirada vitrina terceiro-mundana. Senão vejamos; uma vez mais, na Folha de São Paulo o sr. Augusto de Campos ocupava, a 7 de agosto, três páginas: ao lado do panegírico
de um nipote sobre sua confessa despoesia, fazia publicar dois retratos seus e um de um poeta, Hart Crane, que nos pretendia apresentar e se empenhava (?) em traduzir. Do primeiro e altaneiro desígnio haveria muito, muitíssimo a observar, mas vá lá; já ninguém sério se altera com o panteão idiossincrático dos nossos mata-mosquitos culturais. O grave para a saúde do verso em nossa língua não é o que o ideólogo-ideogramático professa ex catedra sobre os versos de língua inglesa, que não nos parece ler com muito engenho e cuidado (como soariam ditos por ele em voz alta, por exemplo?), mas o que o artífice-tradutor faz com as duas dúzias que formam o talvez mais belo poema de Crane, Praise For An Urn. Valéry disse da poesia que era um abus du langage, no sentido de uma sensibilidade obrando aos limites as potencialidades virtuais da língua, o sentido inverso ao de um abuso da sensibilidade e do senso comum do leitor. E o que nos brinda o multi-retratado medalhão é um escárnio anêmico a toda a vitalidade natural do idioma em que Camões padeceu e cantou. Ao exibir aos supostos pobretões de nosso rincão poético o que fez a Crane (“com exclusividade”, informa-nos a capa do suplemento), o augusto escriba sucumbe a um subparnasianismo como o autor do original abusado jamais sonhou ler nem sóbrio e Onestaldo de não-sei-de-quê não comporia nem bêbado! Informa-nos nosso mestre ourives que sua tradução é “bastante livre, procura manter, além do sentimento orgânico geral do poema, o staccato e o pique (sic) emotivo-conciso do original, perdendo alguns detalhes em função da (note-se bem) preservação do ritmo, mas ganhando coesão estrutural e surpresa poética, inclusive com acréscimo das rimas (...) de forma a fazer da versão um poema palatável em português e não o típico vale-tudo das traduções-dublagem”, etc, etc (os grifos são meus). À parte a curiosa noção de que o poema de Crane com a ajuda do tradutor sairia “ganhando em coesão estrutural e surpresa poética”, tudo mais de que nos adverte é perfeitamente óbvio: no verse is free enough for whoever wishes to do his job well, já observava Eliot. Mas, se por essas bandas não nos ensinarem o óbvio, ai de nós... Pois bem, anyone for tenis? Cotejemos intenção e resultado, de antemão apregoados como job well done. A primeira estrofe tem de tudo menos de staccato: os versos são rijos, o ritmo vai a reboque da métrica e bamboleia ao sabor do previsível e do irresponsável, a respiração natural à fala poética sofre de sufocação metronímica e o Ouvirundum, nosso orgulho nacional, faz sua entrada desde o verso inicial, na preciosa inversão “do norte o rosto”... Que “norte” seria este, sem sequer a maiúscula anacronicamente emprestada ao início de cada verso? Mas não é tudo; “terno” ainda vai rimar
com - surprise! - “eterno”... Entre os “detalhes perdidos”, um erro reiterado de leitura; surpreende a reincidência, posto que Oswaldino Marques, em sua versão pioneira do texto (Videntes e Sonâmbulos, Serviço de Documentação do Minsitério de Educação e Cultura, 1955), já havia lido no verso 2 in such exile guise (literalmente ao modo do exilado) presumivelmente por the exile’s disguise (ou seja, disfarce de exilado). À época, Elizabeth Bishop, recém chegada entre nós, lhe teria feito a mesma observação que nos cabe agora reiterar ao novo desbravador de clareiras e esplanadas. Note-se não apenas a ignorância do inglês idiomático, mas a pouco rigorosa atenção ao trabalho de seus predecessores, tudo valendo ao morto a crassa acusação de “falso exilado”. Mas nem tudo vai ainda às favas; am a fina rima toante entre “juntando” e “Gargântua”, e a gargalhante aliteração, igualmente eficaz. Mas há pior que mal ler o inglês e ignorar a trajetória de um texto na língua a que se propõe introduzi-lo, há mal manejar o vernáculo: na segunda estrofe, igualmente mole, da versão: aparece logo uma adenda - “insônia” - infelizmente adicionada para rimar com um dos três bom versos (4, 8 e 9) na geringonça campista, o belo “corcéis suaves do ciclone”. Mas o pior se avoluma nas estrofes 3 e 4: as quais abrem promissoramente com uma repetição de obliquidades felizes, em que pese um “monte”, necessário a métrica e ritmo, que enfim coincidem; mas só para nos dar o gosto do que não vai mais se ter, ou seja, para se desjungirem imediatamente e já agora até ao fim do empenho, a culminar no hilariante verso 11: “Do que ainda vivo o morto abriga” (sic). Com efeito, quase se poderia dizer desse verso o exato contrário: o peso morto da tradução não abriga, antes obriga o verso do original a sepultar-se nela... Quanto ao prometido staccato onde terá ido parar? Questão prenhe de “Questões da alma e dos instintos”, que é a versão dada ao rico such assessments of the soul, o que logo nos explica porque os presságios mais acima eram “indistintos”: precisavam rimar com os “instintos” do tradutor... E estamos a meio do poema de Crane, que a flor dos Campos já rachou ao meio com inabilidades de peggior fabbro, para quem o rigor formal se confunde com o rigor mortis. A métrica ta-ti-tan-ta-ti-tan, em nada inglesa, abafou até agora a respiração natural da dicção de Crane, enquanto o ritmo, totalmente ignorado como elemento constitutivo, foi atrelado ao velho metrônomo oitocentista dos saraus bocejantes; tudo culminando na ontológica dor de barriga
verbal do nunca demais lembrado “do que ainda vivo o morto abriga”, impagável em sua solene contorção ouvirundumística. Mas do grotesco risível a-se ao meramente banal na estrofe 4: em que se põe a perder irremediavelmente o efeito da sutilíssima ruptura temporal que o poeta introduz em seu texto: à evocação de um rosto vivaz, de um corpo delirante e sonhador, Crane dera alternadamente terse rythms e modulating tensions, fazendo cair os acentos todos ora no inesperado vigor das combinações medianas, como em Chaucer, ora nos abrupt extremes de Donne ou Marvell: kÍn / dÃn / Ór / thÊrn; suchexÍ / leguÍ /se; andÓf / GargÄn /tuanthelÁu / ghtÊr Ou ainda em torno do miltoniano “eco dútil”, as hesitações à volta do iambic pentameter: histhÖu / ghtsde / lÍ / vËr / edtomÊ... / fromthewhÏ / tecÖ / verlË / tandpÍ / llÖw. Nosso subparnasiano deu a tudo isso duas inversões alla Duque Estrada mais o direito a um travesseiro insone. Agora, enquanto o autor abre o segundo movimento de sua sonata fúnebre com o tique-taque de um relógio mortuário, contrastando a aceleração agônica dos enjambements lógicos à lentidão discursiva com que evoca a angústia da cena através de um objeto correlato, de formidável urgência semântico-metafórica, nosso tradittore vai dar à riqueza estonteante do todo uma nova dose de aspirina, redondinha como a redondilha... Sem se privar de recheá-las com as rimas mais surradas do rimário oitocentesco (“remoía” com “dia”), para que moídos de tanta pancada no ouvido todos durmam bem. Ainda assim, justiça se faça: ante um sarcástico relógio na frieza de um necrotério poderiam até caber os mecânicos ritmos do tradutor... não se tivessem já tornado inseparáveis de sua arte, a este ponto irremediavelmente previsível. Não fosse a monotonia metricográfica que desde o início da necrose começara por aquela ‘gravata’ e aquele mogadon aplicados a um dos mais elétricos exórdios ex-abrupto da lírica anglo-saxã. Não, não há aqui device algum, mas o óbvio intrínseco ao estilo morto. O necrotério nada tem a ver com ele. Nada de inesperado, pois, tudo como abrantes no quartel dos dantes.
Mas fico pasmo: será que absolutamente tudo o que o grande americano fez em 140 palavras magistralmente agenciadas escapou a um tão vetusto inspetor de poesia, inclusive a de língua inglesa? Em todo caso, este consegue fazer da surpreendente dry directness irrompendo em: as, perched in the crematory lobby, / the insistent clock commented on, a empertigada flacidez de: “iguais às que, no crematório, / do alto o relógio remoía”. Daí aquele “obrigatório”, ah, bom! Mas “remoía” por quê? Por que um relógio viraria a mó na boca de um camelo? Apenas para rimar? E logo com “dia”?! A semelhante fac totum foi abandonada a lira nacional, a sabichões desta ordem deram a palma e o espaço e o silêncio em que operar a lobotomia do verso e do jovem. Macacos me mordam, mas desde minha infância gente assim se arvora a ensinar-nos to make it new. E vai-se ver não sabe nem fazer o velho e cansado parnasianismo de pacotilha das mais ralas versões; das de Guilherme de Almeida, por exemplo, que, justiça seja feita, jamais resvalaram em paralisias tais. Tais como, para finalizar esta triste autópsia, as que acometem, por augusta cirurgia vernácula, as duas últimas estrofes (“enigmáticas” diz-nos o mestre de tantos exoterismos...) de um dos mais pungentes poemas no rico acervo elegíaco da língua inglesa desde Herbert, Marvell e Donne. Ei-las, sob a augusta anestesia: Na penúltima, vertida a um português de amanuense, há uma invertebração completa, uma banal amputação do nervo rítmico e do tutano lógico-sensorial, e em favor do quê? Ora, do quê senão do enxerto arbitrário da rima mais frouxa? Porque em vez do esplêndido largo penseroso dos versos de abertura, ao pausado solilóquio de Still, having in mind gold hair, I cannot see that broken brow, vai “corresponder” em nossa língua nada menos que: “Mas ao lembrar a mecha de ouro / já não o o rosto baço”... Baço?! Mas não era terno, entre o Pierrot e o formidável herói de Rabelais? Era, leitor atônito, mas vamos precisar rimar alguma coisa com um “espaço” que já vem por aí, seu ignorantão! E sim, leitor, é “a” mecha mesmo, e não “as mechas”, cujo sentimental déjà vu ao menos teria certa lógica; o que não se fica sabendo é que única mecha e essa... Ah, mas se fosse tudo! Se ficássemos por aí, sem o “surdo coro” em que vão ser metidos, para arrematar a penúltima estrofe, os talvez mais ricamente resounding versos
do poema inteiro: andmÍ / ssthedrÝ / sÓun / dofbÊ / Ês strÉ / tchinga / crÓss / alÛ / cidsp /ce. Que custava, que poderia ter custado ao limp-fisted surgeon poupar para nós o chiaroscuro de uma dor tão esplêndida quanto as vogais alternadamente abertas e fechadas de Crane são serenas em sua majestosa lentidão? Mas temo que nosso insosso dublê de Pitanguy literário, não tendo lido nada disso tudo, sem perceber nenhuma das sutilezas silábicas que sustêm a intensidade melopaica, não tinha mesmo como não meter o bisturi aparnasianado nelas! E o belo torso é amputado de sua dor musicalmente perfeita para caber no ramerrão: pata-ti-pata-tá / pata-tá-pata-ti... Nothing doing! O homem não tem ouvido nem para o próprio idioma, e faz seu dever de casa como o Bilac de Tarde mandou, nay!, como o Goulart de Andrade dos sapos do saudoso Manuel de há 75 anos atrás! Setenta e cinco, leitor, sete décadas e meia de desmoralização do make-itold-and-bad e um dos mais vociferantes maestrotes do como fazer e não fazer faz-nos uma dessas... E com Hart Crane! Enxertando rimas de pau molenga nas mais ágeis pernas do melhor verse making deste século. Tudo em nome da lembra-se? - “surpresa poética”... Assim não dá! Mas assim, assimzinho mesmo termina de enterrar o poema o nosso mago d’antanho, com sua promessa cumprida de um ontem pior, muito pior! Observese, vale a pena seguir o enterro de uma obra-prima em toda sua “poética” minúcia: Scatter these well-meant idioms VERSUS Espalha a cinza deste versos Into the smoky spring that fills VERSUS Pelos subúrbios , no arrebol The suburbs, where they will be lost. VERSUS
Onde se perderão, dispersos . They are no trophies of the sun. VERSUS Estes não são troféus do sol. Isso mesmo, como você o leu: “estes” e não eles; num estapafúrdio “arrebol” que empata mas desafina como o sol de que não há aqui, diz-nos expressamente o magnífico verso final, troféu nenhum. E os versos perdem-se “dispersos”, caso o leitor imagine que se perderiam juntinhos, alivanhados no cordel do augusto doutor. E a cinza, leitor, a cinza que o Manuel salvou das horas! Note-se bem o absurdo: por que se meteria aqui essa cinza, a que o poeta precisamente se esforçou durante tantas estrofes para não mencionar, como parte do elegíaco louvor que faz à urna, metáfora concreta em que se obstina a ver keatsianamente o corpo do amado? Isso só Noigandres sabe. O “detalhe” pelo qual foi trocada essa abstrusa cinza fin de siècle era apenas uma das mais terríveis ironias de todo o poema; e aqui vai o penúltimo cachação desfechado no inglês pelo apressadíssimo sábio poliglota: well-meant idioms quer dizer, significa aqui, a boa intenção, que se sabe falsa, de dizer de uma dor which eth all understanding; a escolha altiva, fairly High Church, deliberadamente anglicizante, de idioms (subentendendo profetic utterances, versetes bíblicos) sendo a última amargura religiosa de um texto sub species aeternitatis. Tudo, portanto, podia caber aqui, menos “versos”, e cinza de versos ainda por cima! Banaliza-se e desvirtua-se de uma penada só. Mas observe-se como se vai jogar a um texto ilustre, de uma grave e perturbadora beleza, a derradeira pá de cal após doses e doses de poeira de estante. Último “deslize” do inglês de Campos: suburbs na língua de Shakespeare, e certamente já nos tempos de Crane, descreve não os subúrbios como os temos por cá, periferia dos desvalidos; mas, muito ao contrário, as áreas verdejantes ao redor da cidade, os affluent quarters onde, fugindo ao downtown do vale-tudo social, os abastados se refugiam no pardieiro urbano. Seu correspondente mais próximo seria o que hoje são por cá os luxuosos condomínios. O uso em português do homógrafo, prenhe do único sentido que “subúrbios” tem por aqui, é na versão do Sr. Augusto de Campos uma última estrondosa asneira, reveladora de uma dupla ignorância: da não correspondência em outra língua de um mero homógrafo, o que é elementar; e, mais grave ainda para quem vive de dar lições à chusma inculta, uma inescapável demonstração de
que não entendeu absolutamente nada do sentido geral do poema, implícito na escolha pelo poeta precisamente daquela palavra para figurar sua metáfora última, resumo do poema e seu fecho dramático. A dupla escorregadela é tanto mais gritante quanto nesta “enigmática (e pudera!) estrofe” Campos enfia ainda um “arrebol” neo-romântico e ignora - ou se o sabe desdenha dar-nos a entender - qual seja precisamente aquela última metáfora. Ainda não a adivinhou, leitor? Vai ver que anda a ler maus leitores, desses que traduzem antes de entender... Pois bem: naqueles belos jardins de “subúrbios”, the smoky spring, a pontual e elegante fonte fumacenta, espécie de gêiser dos ricos, como uma distraida e inútil elegia coroando os bairros nobres, é a derradeira finura de um texto construido delas; e exatamente porque, ampliação cósmica do odioso crematório, corresponde sub-repticiamente à queima das folhas outonais em cada jardim well-to-do durante a penúltima estação dos americanos... The Fall, como eles dizem, e Crane não diz para calar mais alto sua conclusiva e contundente revolta de puritano agnóstico. Mas o jansenismo do senhor tradutor é de outra ordem, é estilístico. Assim não dá! Ecrasez l’infâme.
CARTA DO SR. AUGUSTO DE CAMPOS AO SR. JÚLIO DE MESQUITA NETO O ESTADO DE S.PAULO, 16 de setembro de 1994 Na qualidade de escritor e de ex-colaborador do antigo Suplemento Literário desse jornal, venho à presença de V.S. para expor e solicitar o seguinte. O Caderno 2 (suplemento Cultura de sábado, dia 3 do corrente mês, publicou longa matéria (duas páginas), sob o título Crane Anda Para Trás Feito Caranguejo, onde, a pretexto de criticar uma tradução de minha autoria do poema Praise For An Urn, de Hart Crane, o articulista se permite alinhavar um inaudito enxurro de insultos e grosserias a meu respeito, com a clara intenção de injuriar-me e de tentar denegrir minha reputação de escritor. A matéria foi produzida com estardalhaço, objetivando nitidamente escandalizar, estampando minha fotografia junto a toda sorte de afrontas e com a reprodução, sem consulta prévia e sem autorização, de meu trabalho literário, ainda inédito em livro e apenas divulgado, como colaboração especial e exclusiva, em outro periódico. Como é evidente a orquestração da matéria pelo atual editor do suplemento, Sr. João Moura Jr., dirijo-me detamente a V.S., para assegurar-me do direito de resposta, que - não teria guarida nas mãos deste mau jornalista, meu desafeto, que se vale de sua posição para ofender-me por mãos alheias. Anexo a esta o teor de minha resposta, que será breve e ocupará pouco espaço, mas que solicito seja publicada no próximo número do mesmo suplemento e com igual destaque. Atenciosamente, Augusto de Campos
RÉPLICA CHEGOU TARDE AO EDITOR DA SEÇÃO ( NOTA DO SR. JOÃO MOURA JR., EDITOR, EM CULTURA DE 16/9/94)
Como editor do Cultura, devo uma explicação ao leitor pelo fato de uma resposta datada de 6 de setembro só estar sendo divulgada agora no suplemento. É que, em vez de enviá-la a mim, o Sr. Augusto de Campos, como o leitor pôde verificar, preferiu pedir minha cabeça ao diretor do jornal, simplesmente porque publiquei artigo criticando-o. Isso fez com que a referida resposta só chegasse às minhas mãos na sexta-feira, dia 9, quando o último número do Cultura já se encontrava impresso. Ninguém idolatra Pound impunemente. Se o Sr. Augusto de Campos não aprendeu poesia com o mestre, embora o macaqueie até traduzindo poetas provençais, em matéria de atitude fascistóide sem dúvida foi mais realista do que o rei. Pena para ele que o arbítrio autoritário tenha desaparecido do País com o fim do regime militar, coisa de que parece não se dar conta. Enfim, mais um anacronismo do Sr. Campos.
AUTOR SE DIZ VÍTIMA DE ATAQUE ORQUESTRADO AUGUSTO DE CAMPOS REAGE A ARTIGO DE BRUNO TOLENTINO No dia 3 do mês corrente o suplemento Cultura publicou sob o título acima mencionado (CRANE ANDA PARA TRÁS FEITO CARANGUEJO) longa matéria (duas páginas) onde, a pretexto de criticar uma tradução de minha autoria do poema Praise For An Urn, de Hart Crane, o articulista se permite alinhavar um inaudito enxurro de insultos e grosserias a meu respeito, com a clara intenção de injuriar-me e de tentar denegrir minha reputação de escritor. A matéria foi produzida com estardalhaço, objetivando nitidamente escandalizar, estampando minha fotografia junto a toda sorte de afrontas e com a reprodução, sem consulta prévia e sem autorização, de meu trabalho literário, ainda inédito em livro e apenas divulgado, como colaboração especial e exclusiva, em outro periódico. Nada mais natural e legítimo do que as diferenças de opinião no mundo das idéias e da literatura. Não se pode confundir, no entanto, divergência com violência e crítica com coice. Não é dessa forma que se enriquece o debate cultural. Com mais de 40 anos de atividade poética, e mais de 40 livros
publicados, dois terços dos quais dedicados à tradução de poesia, uma bagagem literária abismalmente superior à do desprezível e obscuro articulista, meu gratuito desafeto, e à do seu padrinho, editor deste suplemento, ambos aspirantes ressentidos a poeta e tradutor, estou certo de que não mereço a infame tentativa de linchamento intelectual de que fui vítima e me sinto à vontade não só para repudiar esse injusto tratamento como para recusar-me a trocar argumentos com um arrivista, um salta-pocinhas internacional, que em vez de ascender por seus próprios méritos, quer conquistar espaço e notoriedade a tamancadas, fazendo uso da tática surrada de provocar e difamar os seus pares mais conhecidos. Sobre a leitura torpe que faz dos meus versos, basta-me dizer com Marcial: “Quem recitas meus est, o Fidente, libellusmeus est: / sed male cum recitas, incipit esse tuus.” Ou em tradução sempre livre: “Os versos que citas, Fedentino, são meus: / mas tão mal os recitas que parecem ser teus”. Ao divulgarem sem autorização, desrespeitando a boa ética, o meu trabalho literário, ao lado da mal ajambrada tentativa de versão do poema de Crane pelo meu antagonista, fizeram-me no entanto, ele e o editor do suplemento, sem o saber, um favor incomensurável. Pouparam-me de qualquer necessidade de dar resposta casuística a esse destampatório pedantesco mas imperito, inçado de solecismos (como o emprego de “posto que” como locução conjuntiva causal em vez de concessiva - erro crasso em português). É tão risível a incompetência da tradução do meu detrator, que já na primeira linha converte, grotescamente, o amigo de Crane em um cachopo lusitano (“nortenho” é o natural ou habitante do norte de Portugal...) ; é tão risível o seu arremedo, recheado de pés quebrados e de rimas pobres, frouxo e adiposo a ponto de acrescentar ao texto uma estrofe inteira inexistente no original, que não é preciso buscar nenhuma pérola de retórica para retrucar a esse ataque de cólera ao mesmo tempo tolo, doente e cretino - ou numa só palavra-valise: Tolentino. O leitor que julgue. Colaborador, por muitos anos, do antigo Suplemento Literário do Estado de São Paulo, lembro-me com saudade do tempo em que era dirigido por Décio de Almeida Prado, intelctual digno, de conceitos artísticos diferentes dos meus sob vários aspectos, e que acolhia liberalmente nas páginas daquele suplemento as mais diversas opiniões, mas que - estou certo - jamais concordaria com a publicação de matérias de tão baixo teor ético e estético como aquela com que fui agredido. Quanto ao editor de Cultura, João Moura Jr., que escondido no anonimato, orquestrou essa parada de insultos para atingir-me com mão alheia, reinaugurando o jornalismo marron em nossas páginas culturais, o episódio só evidencia que ele não tem nível intelectual nem responsabilidade para ocupar o
posto que ocupa nesse prestigioso jornal. Mostra-se da mesma altura do apagado esboço de poeta e tradutor (alguém o conhece?) que irremediavelmente é e sempre será.
COMENTÁRIO DE BRUNO TOLENTINO À REAÇÃO DO SR. AUGUSTO DE CAMPOS PUBLICADO EM CULTURA, AOS 16/9/94 "Que, posto que em cientes muito cabe, mais em particular o experto sabe." (Os Lúsiadas, X: 152) Caro Sr. Editor, vê-se que em sua irada "resposta" o autor do texto beletrista que dissequei para seu jornal não consegue discutir minha análise, prefere esbravejar a argumentar. Fora de si, o resident parnassian rotula-se um de meus "pares" (?). Nunca me veio à idéia tal hipótese... Em todo caso, o ronco do Goulart d'Andrade redivivus é puro arroto balofo, foge do assunto e grunhe como o sapoboi do Manuel: "Não foi!" -"Foi!" -"Não foi!". Ei-lo pulling rank para desviar a atenção de sua pobre leitura do inglês e da sua lirazinha de batráquio 1918; sorry, mas não se trata de "saber com quem se está falando", mas de saber do que se está falando. Espécie quando se pretende apresentar e traduzir "com exclusividade" o que já se sabe e já se fêz. Mas já que a vaidade ferida o levou a perder momentaneamente o auto-contrôle, fico sabendo não apenas do que falo, mas também de quem falo: de um vaidoso prepotente, mais um delirante autoritário num país que se cansou deles. Como poeta, nosso ofendido vanguardista sempre me pareceu uma nulidade sem graça; hoje estendo meu desdém à fraude linguística e ao mau jornalista que é. Sem prestar mais atenção a uma estátua eqüestre nos "subúrbios de arrebol" de nossas letras (roam-se de inveja os esforçados provincianos, mas in my exile's guise ei a vida entre os que de fato são meus pares), de visita por aqui peguei o sábio com a boca na botija, seu ubíquo retrato todo lambusado de
melado sub-parnasiano, gaguejando o inglês e babando regra e "cinza de versos" em seu boletim semanal às custas de um verdadeiro poeta; pasmo de que o homem afinal não soubesse javanês, pus os pingos nos ii da escolhinha Berlitz, that's all! E eis que, à falta de poder defender-se, ofende-se com meus argumentos e demonstrações. Ante a afronta de um text criticism atreve-se (não acabo de crê-lo!) a "exigir respeito"! O autoritário d'antanho sabe que não tem o que dizer à gargalhada que hoje o emoldura do Oiapoque à Marilena Chauí: não pode, nunca pôde fazer melhor, pouco conhece e nada domina de versificação nenhuma, muito menos da inglesa, mal sabe inglês e não consegue fazer versos na própria língua ou encarar-se no espelho da crítica de texto. É natural que esbraveje, mas dá-me pena. Formalista insosso, sem entender (será o Benedito?) que a recriação de um poema nada tem a ver com o número de versos, mas com a devida equivalência dada ao sentido, ao ritmo e à matéria a verter, finge (não creio que seja o Benedito...) escandalizar-se de me ver "acrescentar ao texto uma estrofe inteira". Coitado, compreendo-o: incapaz de conseguir uma única, como lhe deve ter doído aquela estrofe a mais! Mas há pior: inconformado com a liberdade de imprensa, agride o editor que ousou faltar à genuflexão ante a vaca sagrada; trata-o de "desafeto" à mera suspeita de que não o ire; acusa-o de "orquestrar insultos" para atingí-lo (no Olimpo?) "com mão alheia"; contrasta-o calhordamente a um predecessor ilustre a quem atribui alma de censor, e investe, ele sim, com "coices" e "injúrias", na "tentativa de linchamento" de uma reputação de jornalista e autor que não esteve em questão em toda essa questão. Com sua notória ausência de sense of humour, agride quem ousa examinar-lhe o sacro texto e quem cumpre sua função de informar. Não ando ver-se posto a nu, pomposo e quantitivo cobre-se com suas quatro dezenas de volumes abismalmente (é ele quem o diz) diferentes dos meus quatro nos quatro idiomas em que os escrevi, que de fato conheço e nos quais (são eles, os nativos de lá, que o dizem...) tornei-me ilustre. Protesta contra um desdém que diz ferí-lo em seus brios profissionais. Quais? Que "reputação de escritor" é essa, que não a começar ou acabar numa análise de texto? Ou se imagina a salvo de julgamento pelo furibundo horror que lhe causa saber-se desprezado? Se calhar, o homem não sabe que é sub-geração de 45, vai ver que se ira mesmo de meu ultraje ante sua audácia e incompetência... Nesse caso, sinto magoar um desequilibrado, mas que se há de fazer? Deixar Nabucodonosor pastar à solta? Paste, pasme o ensimesmado monarca, mas para mim seus textos são impagáveis e seu autor não a de um pobre diabo, a comic strip. Trágico, aliás, porque um falsificador inciente do belo, daquela joy forever que é incapaz de conhecer. Que pena se perdeu mesmo
o tino! Mas não posso, na dúvida se Rubião está ou não em seu juizo, fingir respeito pelo "imperador", menos ainda pelas sobras de um autoritarismo de que já vai longe entre nós o “arrebol”... Fiz bem em não afetar um respeito que nunca tive pelo esperto trabalho de um marqueteiro, e agora é tarde, o reizoca está nu. E ainda implume, a despeito de 40 anos e 40 cambalhotas para fazer-se ar por poeta; uma por ano! informa-nos o sargento-mor de nosso último DOI-CODI. We are not impressed. Se nos ativermos ao vernáculo de tantos fascículos, a nudez do sapo-rei é apenas cômica. Se nos estendermos à leitura competente das línguas que anuncia conhecer, a coisa é mais séria, cheira a uma indigente intrujice que não aria no exame vestibular de Oxford. With respect, senhor redator, é tempo de que varram da cena as baleias auto-encalhadas na praia da História. Louco mesmo, ou só louco de raiva, écrasez l'infâme! Seu, cordialmente, Bruno Tolentino, Rio de Janeiro 9/9/94. P.S. E Achtung! Se o defunto tentar ressuscitar, disseco seu Rilkecídio recente e, aí sim, a onça vai beber água naquela Brunnen-Mund... Mas, pensando bem, são por demais sensíveis as múmias envoltas nas folhas da moda, pura maldade acordá-las no mundinho do Mamais! Requiescat.
CARTA DO SR. OLAVO DE CARVALHO AO SR. EDITOR DE CULTURA EM 20/9/94 A RESPOSTA DO SR. AUGUSTO DE CAMPOS às observações do poeta Bruno Tolentino acerca de sua tradução de Hart Crane é absolutamente insatisfatória. O número e o prestígio das s no manifesto que a secunda só mostram que um séquito volumoso de guarda-costas ilustres não serve para dar recheio a uma argumentação vazia. Resposta e manifesto concentram-se no tom — considerado insultuoso —
do artigo de Tolentino, ando cautelosamente ao largo do seu conteúdo, que, naquilo que diz respeito à análise da tradução, é cientificamente exato e aparentemente irrespondível. Tolentino pode ter infringido as regras do bom-tom, mas uma cultura em que as regras de bom-tom são mais relevantes do que a veracidade intrínseca dos argumentos é uma cultura moribunda. Uma crítica literária de alto nível pode viver bem numa linguagem dura, agressiva, mordaz, como o provam os exemplos célebres de Jonathan Swift, William Hazlitt, Oscar Wilde, Voltaire, Joseph de Maistre, Julien Benda e inumeráveis outros, entre os quais os nossos Mário e Oswald de Andrade. Mas ela não sobrevive ao culto das exterioridades e ao dogma da polidez a todo preço, que hoje governa o jornalismo cultural brasileiro, e que O Estado de S. Paulo, ao publicar o artigo de Tolentino, ousou contrariar. É da tradição da critica literária, aliás, acender de tempos em tempos as chamas da mais viva controvérsia, onde a última coisa que importa é medir as palavras. Os insignes fundadores da crítica nacional, Sílvio Romero e José Veríssimo, pegaram-se como gato e cachorro num entrevero verbal que, pelo visto, ofenderia a delicada sensibilidade da corte do sr. Campos. Nas últimas décadas, como é público e notório, a crítica literária andou desaparecida do nosso cenário cultural, e isto é provavelmente o motivo pelo qual a linguagem pessoal e desabrida em que se escreveram algumas das produções clássicas desse gênero se tornou destoante no nosso ambiente jornalístico, onde as normas de impessoalidade e frieza que devem imperar no noticiário acabaram alastrando sua jurisdição, indevidamente, para as páginas culturais e literárias. Nestas últimas deveria vigorar, em vez disso, a linguagem literária, pessoal no mais alto grau compatível com a exigência de comunicabilidade, e que não exclui nem pode excluir a ironia, o sarcasmo, eventualmente até mesmo o insulto, quando legitimado por motivos intelectuais e morais relevantes e quando dirigido contra obras, idéias e doutrinas de domínio público e não contra meros comportamentos pessoais. O que é realmente inusitado, anormal, aberrante, é responder a uma crítica literária, feroz e insultuosa o quanto seja, mediante um manifesto coletivo de desagravo 17. O desagravo, como o próprio nome diz, é cabível somente em caso de agravo moral, isto é, de ofensa à honra. Uma das formas de ofensa moral é a difamação. Mas o nosso Código Penal exclui desta categoria as opiniões depreciativas quanto às qualidades intelectuais da suposta vítima: “Não ocorre difamação no procedimento de quem se limita a externar opinião pessoal a respeito de qualidades psico-intelectuais da pretendida
vítima” 18 . Chamar portanto um cidadão de mau filólogo, de tradutor péssimo, de poeta inepto, não constitui difamação. Será então injúria? Impossível: Não há crime de injúria em crítica literária, onde, afirma Heleno Fragoso, “a exclusão do crime deriva do animus criticandi , que exclui o propósito de ofender e, pois, a conduta típica” 19 . Mas se não houve no artigo de Tolentino injúria ou difamação, então não houve ofensa moral de espécie alguma, e sim o exercício normal de uma das funções da crítica, que é a de separar o que presta do que não presta. Se Tolentino acertou ou errou nas suas observações sobre a tradução, é o que os experts em literatura, Campos, Cabrais, Costas Limas e Wisniks incluídos, teriam a obrigação de discutir, para esclarecimento do público, e foi precisamente esse o ponto que eles escamotearam ao exame do leitor, preferindo, em vez disto, fazer uma exibição deprimente de suscetibilidades morais inteiramente deslocadas do contexto 20. Quanto aos argumentos de Tolentino, se não são absolutamente irrespondíveis, permanecem ao menos irrespondidos, graças ao fato de que, nos seus opositores, o reflexo emocional barato predominou sobre a reação intelectual séria. Os signatários do manifesto deram uma demonstração coletiva de imaturidade intelectual, ao julgar que trejeitos de suposta dignidade ofendida podem proteger o sr. Campos das objeções críticas de Tolentino, as quais, o que quer que pensemos do linguajar em que se expressam, são, em sua substância, sérias e pesadas. No futuro esse infeliz documento será encarado como um testemunho da pobreza cultural deste nosso tempo brasileiro, em que meros protestos e reclamações tendem a fazer as vezes do pensamento, e no qual o gênero literário mais assiduamente cultivado é o “manifesto de intelectuais”. No terreno crítico e filológico, que é a esfera própria da discussão iniciada por Tolentino, o único sinal de um revide por parte do sr. Campos foi sua observação a respeito do uso que a tradução concorrente da sua faz da palavra “nortenho”, uso este que o sr. Campos considera indevido, por fugir à acepção consagrada nos dicionários. Mas o que é realmente indevido é um teórico de poesia renomado como o sr. Campos pretender que a linguagem poética deva ater-se às acepções consagradas nos dicionários — o que é precisamente o contrário da definição mesma de poesia, a qual consiste, segundo uma frase que o sr. Campos citava muito, antigamente, em donner un sens plus pur aux mots de
la tribu, sentido este que só por uma rara exceção coincide plenamente com o que se encontra nos dicionários. O sr. Campos também faz, com uma intenção que deve ter lhe parecido muito filológica, uma censura ao uso da locução conjuntiva “posto que” no texto de Tolentino — um erro crasso de gramática, no seu entender. A boa retórica não é incompatível com erros crassos de gramática, mas é certamente incompatível com a falta de sensibilidade para o contexto verbal, onde uma locução pode se encaixar às vezes até mesmo com sentido inverso ao usual. O “posto que” está perfeitamente encaixado no seu posto, sugerindo espontaneamente o significado que lhe deu Tolentino, e portanto não é erro crasso nenhum. Tanto o sr. Campos quanto os seus guarda-costas poderiam ter feito melhor. Estes poderiam ter oferecido em defesa do seu protegido argumentos críticos em vez de recriminações. E o sr. Campos, que já fez boas traduções, poderia ter posto a salvo a reputação das restantes mediante o simples reconhecimento de que a de Hart Crane, mal lido e mal entendido no original inglês, está mesmo abismalmente mal feita...
III. A RETIRADA DA LACUNA “One can no longer go to court, Because his legs have grown too short; The other cannot sing a song, Because his legs have grown too long.” Nursery Rhyme, cf. T.S.Eliot, “The Three Voices Of Poetry” (Um já não pode ir mais à Corte porque cada perna sua encurtou-se; o outro quer cantar sem ser capaz: as pernocas cresceram demais.)
A IRADA FLOR DOS CAMPOS, ou “Ce qu’on dit au poète à propos de fleurs” “ O sonho de mel de uma abelha esfuziante adormentada dentro de um favo. Despertá-la?” (Augusto de Campos, 1953)
I. CLUBE DA VITÓRIA RÉGIA 1994 Nossa! Como anda amparada a mais murcha flor dos campos! Enxames de pirilampos, espectros vindos do nada, do P.T., da violada, do arrebol... Com tantos grampos a tênue trança dos Campos
nunca há de ser destrançada! Paga o pato a liberdade, filha ilustre do desdém que toda cultura tem pelo embuste e a vaidade... Senhores, fiz muito bem, só faltei à caridade!
II. O RABO DO NIMBÚ Quanto à excelsa flor mais moça, sapo-boi de poça em poça, geme, xinga, vira à esquerda e em seu sotaque da roça faz lembrar as do Lacerda sua gritaria insossa. Gentinha hipócrita e lerda essas florzitas de louça! Contestar no mesmo tom, segundo disse o Drummond é pregar rabo em nimbú; mas, ó Piva, onde andas tu que ainda não lhe pregaste um bom pontapé na haste?
III. A QUARENTENA Diz a irada flor: "O fel que me distilas na orelha, ó zangão metido a abelha, não vale o meu ouropel, meu arrebol cor de mel! Invejas-me a lira velha! Terei talvez uma telha a menos, mas meu corcel relincha há quarenta anos!
Por concretos oceanos, por vagalhões de papel, meu Pégaso de cordel levou-me a entrar pelos canos mais ilustres de Babel!"
IV. O HOMEM QUE NÃO SABIA JAVANÊS Flor de cinza do arrebol, não sabes nem portunglês, quanto menos javanês, toma vergonha! O teu rol de cupinchas, teu inglês de suburbano de escol, teu verso todo em formol, não te salvam... Desta vez vá lá, mas se ainda te pego com tua riminha manca, com tua bengala branca de cego guiando cego, vais ver! Nem Florbela Espanca como eu te espanco, meu nêgo!
V. SAPO-BOI & REI LEÃO "Mas se a escolinha Berlitz deu-me todos os diplomas! Por quem, ó plebeu, me tomas? Que a mim se respeite! Imite-se feito tal: sofrer de artritis, mas tirar de minhas comas tantos compêndios de bromas e de poliomielitis! Já não terei toda a juba, mas guardo o rugido e a baba, e de Pindamonhangaba
a Itaquatatecetuba, ainda se louva, se gaba meu inglês e minha tuba!"
VI . O REI MENOS O REINO Aracnídeo mutante, tua baba é perigosa, teu rugido não: é rosa de oromã morigerante... Pode até ser que suplante o Onestaldo, a tua prosa metrificada e babosa, mas quanto a ter o desplante de trocar Goulart de Andrade por outro augusto batráquio, é vil regicídio! E ataque (o de ira ou o de vaidade) só coroa um rei de araque: o rei da mediocridade. (& UM P.S. ) O meu primo formou-se na USP, já eu não: ele mata mosquito no cuspe e eu na mão.
AVISO AOS NAVEGANTES Matei, direis, baleias mortas; digo-vos eu: se alguém traduz por linhas tortas é um sub-orfeu, "falso exilado" batendo às portas
do que mal leu; todo "arrebol" entre tais hortas e o engenho meu vai se dar mal a cada vez, principalmente se o enxertarem num portunglês de asno indigente por entre as pernas do verso inglês mais contundente!
POST-MORTEM Onde já se viu um rei ficar nu?! - Olha só o Gugu... Gruda-que-partiu, é mesmo verdade! - Quem diria, né? É, mas a cidade protesta de pé ... - Que cidade nada, mera paulicéia, menos desvairada do que desvalida: fica uma tetéia sem os sapos da vida...
PAULICÉIA DESVALIDA (Para o libretto d e um Réquiem ) Mas que ficou jururu sem o Gagá e o Gugu, lá isso ficou! Sem manos, nossos primos paulistanos
andam tão desinfelizes que cobrem o reizoca nu com suplementos inteiros, choram seus dois mamoeiros dando banana em Perdizes, ocos como o Pacaembu! Tristonha pizza de plástico entre o pedante e o granfino, parece que o teu destino é não dar Drummond, Brennand, Capitú nem Severino, até teu museu bombástico é esmola de nordestino, obra do Chateaubriand... Teu mesmo, de genuíno, apenas o Butantã. Sofres de ser uma aldeia sem lirismo e sem paixão onde a aranha baba a teia que a por poesia porque se afasta do chão; incapaz de perceber que te atolaste na idéia, na géleia do “saber”, detestas a melodia que alimenta o coração, sonhas matá-la e morrer. Sossega, cidade fria.
TOTTENLIEBE O canto mortal de Isolda confundiu tanto Tristão que de repente ele não
sabia se ela era gorda, se era de fato um canhão, ou se era “a revolução”, a arte pura, a nota solta, a pauta em vez da canção...
O ADO DOS MESTRES 1. À penteadeira Convido-te, leitor, a alguns exemplos do que do morto o vivaldino abriga em seu dourado acervo dos bons tempos; parece até mentira, mas prossiga, leia da sapórreia a lira antiga, como se dava a ler naqueles tempos em que o rei lhes crescia na barriga: à penteadeira se espelhavam templos, os glaromas de amil morigerantes multiplicavam rosas coruscantes , as guirlandas cresciam entre as canetas e embasbacavam tanto os três patetas, que escorriam a rodo das estantes e ornavam d’oiro os pálidos estetas... 2. Os Ofélios Filomelas de azul metamorfina “arbitravam” de estrelas o xadrez, príncepes plenilúnio alguma vez lá iam dar, vestidos de menina... Órion de véus alíseos , a cortina era flébil fumaça, ler inglês não devia ser fácil quando os três afinavam no amil a concertina! Mas ei-los juntos, ó inferno afélio , “librando” a Lusbelel o glúteo almíscar , que galinho heliotropo quando cisca se não arrisca o novo faz o velho, o núbil Jove pentear-lhe a crista, rotundifólio, drósero e heliocélio. 3. Eu? Reka!!!
Cada arcangélico arrebol -crepúsculo nascia assim, da incandescente lava, o sapo empurpurava um novo opúsculo e o Clube de Poesia o publicava: já que caimbra é fenômeno do músculo, a sub-saparia o emasculava... Assim não dá, né mesmo?E não, não dava, mas é no mangue que mais dá molusco! Porque “ fazer o novo ” foi eureka de batráquio barroco, como lês, jovem leitor desinformado: os três que fizeram concreto de muqueca da nossa inteligência aquela vez, da tua fazem bunda de peteca! 4. envoi: Dói-lhes agora o glúteo Tetraedro , mas antes não doía... A obsidiana, rotundifólia, drósera pavana, apalpava os penubis desde cedo, volutas cornucópias em segredo lambiam a labilíngue nibelanga, maralmíscava a púrpura missanga em que Agedor fora enfiar o dedo, e o impúbere pensava: a pluma, o pajem... Ah, Rigor! Libra, ó língua, a rubra missa e irisa-me a libélula ! Ó linguagem que ao beleléu te vais louca e cediça, como dói ser herói! Vai, vira a página, camaleoa a augusta maquiagem, faz o novo, Agedor , enche linguiça!
A RETIRADA DA LACUNA Com dó do terceiro mundo dois irmãos inventam a roda: pedante vira profundo, pernóstico entra na moda. Vai-se abrindo uma lacuna no cérebro nacional e a poesia vira aluna de sapos de manual. A musa proto-fascista do Pound e de outros malucos pare batráquios e eunucos, a onda minimalista espraia-se das Perdizes a todos os suplementos e a castração das raízes resume os dez mandamentos segundo três manda-chuvas. Enquanto isso um país que sobrevive a sauvas não sabe mais o que diz e, sem pensar no que faz, gasta cuspe e engenho lírico macaqueando jerico para publicar no Mais! A ambição da paulicéia uma vez mais ressuscita
e cobra caro a visita do mundinho-como-idéia: - Assim falou Zaraugusta! Os ocos do Pacaembu morrem de rir: se não custa dar de graça o pátrio cu, que se entupa de concreto o nacional orifício, que o fácil vire difícil e tudo mais objeto, que o país se torne um poste cercado de vira-latas! “E é possivel que se goste de molhar de tinta as patas por tão pouco resultado?!” É sim, leitor, ou já foi... Um país seviciado por resmas de sapo-boi acordou com uma enxaqueca intolerável no reto, uma sensação de seca, de vagalhões de concreto entrando pelo conduto maís intimo de um sujeito, o reinado absoluto do sapo-impostor... Bem feito! Quem manda se enfileirar para pagar vassalagem no charco da moda? Pajem de pagé tem que aguentar... Transforma-se o amador na...
...coisa amada, e no entanto a morigerante morna não tapa apenas o canto de uma raça em demissão, tapa-lhe também o resto, entope-lhe sem protesto o orifício ao rés-do chão, quem manda dar o que é seu? Mas que ninguém mais se assute, a macacada aprendeu por onde entra um embuste e o vento afinal levou concretos e concretinos como velhos inquilinos, urubuzecos de um vôo que já não sai do quintal; hoje os pobres bicharocos, amarrotados e roucos, trocam socos num jornal que lhes faz o obituário com semanal devoção, mas não adianta não, o velho receituário não presta para mais nada, nem como ajuda em latrina, e a urubusada, coitada, melancólica termina onde começou: nas redes jornalísticas do esgoto, que nem gozo de garoto solitário entre paredes...
Anda a escassear quem goste de dar o pouco que tem, não há mais um joão-ninguém querendo servir de poste a pausa de vira-lata, chegou-se enfim a um consenso (óbvio desde que eu penso) de que a coisa era tão chata quanto afinal perigosa. Se, patético, persiste algum resíduo, anda triste: o mote não vale a glosa e morre dando pinote, que hoje é muito mais difícil segurar pelo cangote doadores de orifício... II Mas, imaginem, este caso de necrofilia crônica entrou pelo último ocaso numa cena tragi-cômica, sob estranha revoada (a bem dizer gritaria) em prol de uma saparia que se presumia alada. Um certo Doutor Enéas fez o papel da Chauí, muita gente o da Dercy e, entre incontáveis mocréias,
até a suave dondoca desfilou com um Luis XV que, se bem que ainda ranzinze, já não abre mais a boca senão para confundir seu sacro terror do eterno com seu ódio do porvir, sua ante-visão do inferno. Sim, mas como? Como foi que se ajuntou tanto trapo em torno de um sapo-boi, e o que tinha feito o sapo? Um yankey, muito fino para o engenho suburbano, ia entrando pelo cano quando um tal de Tontolino (que detesta trocadilho porque respeita o idioma), pôs o sapo-boi em coma confiscando-lhe o espartilho com finuras espartanas... O raio, ao partir ao meio os batráquios e os bananas, fez um deles falar feio cercado de guarda-costas, mas todo o disse-me-disse foi dito sem que se ouvisse uma só dessas respostas que vão direto ao assunto... Hoje o sapo-gralha mente, grita, jura de pé-junto
que sabe inglês, mas se sente um certo constrangimento até mesmo em quem o adora, e há quem planeje ir-se embora, ou ler outro suplemento... Mas o que fizera o bicho que já não tivesse feito para baixar no conceito de um país e virar lixo? Sapo-gralha perde a pluma mas não perde um bate-boca, não tem vergonha nenhuma e toda vergonha é pouca quando se é pego em flagrante sem saber nada de inglês, ou sem saber o bastante para pô-lo em português. Sobre esta simples premissa baseia-se a história inteira do conteúdo à maneira, mas basta de encher linguiça, emos logo ao suplício da saparia indigente, bicho que fala difícil para parecer que é gente. Num arrebol suburbano os sapos pontificais enxertavam, ano após ano, filas de intelectuais com o sumo da paulicite, isto é, com traduções
repletas da celulite dos falsos cirurgiões. O frankenstein troliglota faute de mieux conseguia substituir a poesia entre o Gianotti e o janota, segundo um estranho pacto: quem mal escreve traduz... Havia um acordo tácito quanto às transfusões de pus que a dupla tranqüilamente injetava no sistema de artérias do paciente, presunçosa como a teima de um moribundo em viver. Quanto a mim, não vejo como quem mal consegue escrever pode dar, tomo após tomo, lições a ninguém de nada, mas por lá é um caso sério, importação transformada em anjo de cemitério é um esporte cultural, que fazer... Fez-se de tudo na empolada capital, menos um pequeno estudo textual da transcrição, da transformação de um mano no outro, e dos dois no engano chamado contrafação,
senão embuste atrevido. Foi o que fez um sujeito que não só era bem lido, mas sabia ler direito e abaixo veio o mundinho dos sapos com sua escória. Eu, que acompanhei a história, resumi-a sem carinho, é certo, mas com pesar. Não quero causar alarme, mas começo a perguntar-me como a coisa há de acabar... III Recapitulemos, pois, em ritmo de balada a lacuna retirada de um sapo em nome de dois. De tanto "fazer o novo" cambaleava o defunto sem fôlego e sem assunto, mas Eva ainda via o ovo! A aranha arranhava a jarra de Nabucodonosor quando lhe podaram a garra e lhe espanaram o bolor... Êta vidinha cruel! Nos subúrbios do arrebol, um sapo tapara o sol com a “cinza” do Manuel, e, coitadinho, a peneira continha ainda mais furos
(de inglês) do que os ex-futuros ideogramas da zoeira... Por isso o tal rufião que sabe ler e escrever mostrou a toda a nação um sapo para inglês ver. Só vendo... Cala! Caluda! Façam calar esse incauto, que o sapo de salto alto foi ao chão! Deus nos acuda! Mas claro que o Hart Crane tratou de não mencionar cinza alguma! Agora azar... Aboliu-se um coûp solene, cu de desde priscas eras mallamerdeando a poesia e atirando o verso às feras! Hasard, azar, quem diria, Golias tinha platéia, Davi só tinha uma funda, mas mandou-lhe, ó boa idéia, uma pedrada na testa... Que festa! No país todo o eco de uma pedrada foi virando gargalhada! Riu-se à beça, riu-se a rodo e quem não podia rir pôs-se a gritar, que remédio? Morria o arrebol do tédio nos subúrbios sem porvir
e eis que o augusto batráquio vai pedir de sapo em sapo proteção contra um “ataque” que lhe desinchara o papo! O velho Matusalém, irmão do pobre tetrarca, miando triste do além ao ver o mano de maca, o terceiro homem sente que o sapo já foi ao fundo e confessa a meio mundo: - “A pedrada é inteligente, quando não se tem resposta de que vale um ti-ti-ti assinado por Gal Costa e Marilena Chauí...?” Assim mesmo o inconsolado manda chamar do Oiapoque à Chauí seu semi-gado, sua tropinha-de-choque, em vez de estudar inglês! Quatro décadas depois está sem emprego e os três ainda por cima são dois... Que editor arriscaria por a corda no pescoço publicando a despoesia que intraduz o sapo-moço? Ou o sapo-velho também, que do hebreu ao russo, ao grego, chama urubu de meu nego e o bicho avoa e não vem...
Xô, xô, urubu ingrato, bicharoco desalmado que deixas desempregado um par de sapos no mato sem cachorro e sem idéia de como se há de explicar à nata da paulicéia se lhe der de perguntar: - “Mas nem inglês, meu irmão?!” Não, nem inglês nem zulu... Mas a culpa é do urubu, não é culpa deles não! Peguem o bicho em pleno vôo, depenem, apedrejem, matem o urubu que desertou von galochen zwei chaten, porque sapo de galocha no meio da tradução, fazendo a coisa nas cocha não tem remédio ou perdão. Que fazer? ar recibo de inepto e de arrivista pulando à toa no estribo da redondilha petista, ou andar atrás dos gatos do Eliot, mais gagá do que os últimos gaiatos do velho Febeapá? Não, irmãos, assim não dá!
MEA CULPA? Em terra de sapo cego o olho do cu é rei, e ainda assim, Senhor, não nego, confesso-Vos que pequei, que atentei contra a mais nobre das virtudes de um cristão: caridade com um irmão... Mas que o Diabo me cobre esse pecado mortal, não vou é deixar que a pata de um sapeco de jornal com sua gosma barata grude a lira brasileira, prefiro a ira do Cão a perdoar baboseira de batráquio de salão!
O NOVO PRODUTO Poetastros do Brasil, esqueçam o Fimatosan, o xarope é o Glaromil, um ontem para o amanhã! Misto de cinza senil com penubis de oromã, põe até pernas de rã na barriga de um barril!
Asmático debutante, se não logras ser poeta toma a lavagem concreta que no espaço de um instante sai-te do reto uma reta moderna & morigerante.
LA VIEILLE GARDE Um contorce e o outro inverte, é o Ouvirundum de ambos: sob o ritmo mais inerte os versos viram molambos. Um já mia, o outro se perde no arrebol dos pirilampos. Cambronne diria Merde! Bastaria dizer Campos.
OS IRMÃOS GONCURTOS Dois manos morreram juntos de cachumbas e sarampos, mas deixaram os dois defuntos entre os túmulos e os campos e a dupla agitou às pampas! Iniciaram vários surtos de nada e pam tampas em tudo, os irmãos goncurtos... Em manifestos e cartas mataram o verso mil vezes
e já pousavam de deuses quando as Musas, mais que fartas, pegaram os dois animais e os sepultaram no Mais! II Trata-se de um suplemento de teor assim-assim, mas que lido até o fim lobotomiza jumento. Quanto ao duplo monumento, ou de mini a mirim por conta do atrevimento, da intrujice: de chinfrim um deles ou a zero de uma esquerda de arrivista, já o outro urinou na pista por conta de um lero-lero que "traduziu", desta vez, coitado, do javanês... III Pobres dos irmãos germanos! A ira da Musa faz como sempre estragos tais que hão de ar muitos anos antes que se esquentem os panos que tentam pôr os jornais nos ferimentos morais... São esforços sobre-humanos
nas folhas da capital para que cada animal tenha sua morte honrosa, mas a dor é tão raivosa e o pânico tão geral que o mote mal vale a prosa.
SAPOPPELGÄNGER Quem é o outro e quem é o um não há mais quem saiba ao certo, porque apesar do zumzum ninguém mais quer se ver perto de animália tão comum e em qualquer charco deserto nada, ninguém e nenhum dão num mesmíssimo enxerto. Sapo Seca-pimenteira, Sapo Brabo ou Sapo-Brahma, é tudo sapo na lama da sapientíssima asneira, já não há ninguém que os queira e até o P.T. já reclama!
ARREBOL NA ILHA FISCAL Haroldeco, o reizoca, vai nu e é feio páca! Logo atrás vai o outro babaca, o mano Gugu. A poesia não quer virar vaca, não quer dar o cu, e não vai! O caçula ataca-a,
tão nu e cru quanto o velho vira-casaca que hoje é barroco. Onestaldo chega de maca ao baile choco, mas quem canta é um B.Lopes rouco que nem matraca.
O CREPÚSCULO DOS ANJOS Cornucópius (Cornu, para os de casa), força é convir, sempre foi mais conciso; se não fugiu de todo ao Paraíso, tem buscado poupar a própria asa: com olhos para ler inglês em Gaza, recusou-se a sem ser preciso um cheque em branco ao sapo sem juizo que este livreco uma vez mais arrasa... Até mesmo um arcanjo sente a idade; até mesmo cloaca tem saída; se a nem todo babaca a realidade logra um dia ensinar pausa e medida, resta sempre a esperança encanecida de deixar de voar pela metade. ii Lusdrósio não tem jeito, mas tem gatos: trocou seu dó de peito por um mi e o mi por um miau; segundo li, seus bichanos, se bem que correlatos aos do Eliot, sabem-se tão chatos
ao rés-do-chão que fazem seu xixi no texto mesmo: é coisa de guri, mas pelo menos é daqui, dos matos, são gatos de quintal, não de sofá. Lusbel cortou-lhe a altíssima voltagem e trocou-lhe os almíscares do pajem pelas gatinomias do gagá. Naturalmente o cara ainda é um chato, mas já sai pelo menos mais barato! iii Quem não tem jeito mesmo é o Glaromil ! A arcangélica flor dos oromãs quer encher de penubis o Brasil, sonha morigerantes amanhãs, túrgidos arrebóis , fofos divãs em que espalhar a cinza a mais senil: o rapaz continua tão febril, que ainda se enrola em mornos astracãs... Gênio não se improvisa, e quem o finge acaba acreditando, não na esfinge, mas, coitadinho, tão somente em si; só ele se comove, a turma ri: -“Glaromil, tens um sapo na laringe, e um sapo de ante-ontem e não daqui !”
TEMPO DI MIGRARE "Settembre. Andiamo." etc. (D'Annunzio) Augustoldo e Harolgusto
são proxenetas da Musa sempre a um altíssimo custo, mas de maneira profusa. O público leva um susto, a coisa é mesmo confusa: o verso é brocha, mas usa camisinha até o busto! Os dois insistem no coito com rimas que Arrigo Boito não perdoaria a D'Annunzio nem os dois a Umberto Saba, só que por aqui na taba vale tudo e é tudo anúncio...
IN (FUTURAM) MEMORIAM "Cão mijando no caos”(CDA) Augusto Goulart de Andrade e Haroldo Francisca Júlia são fatos de que se orgulha a intertextualidade, não são mais nada. É possível que mereçam um rodapé, um obituário ao nível literário da ralé, mas se um caminhão de lixo asse em cima dos dois levando as sobras depois, bastaria um só esguicho do cão do Drummond, lavando o onde, o como e o quando!
A HOMÉRICA GARGALHADA A ira do velho grego não se fez ouvir... Talvez porque Homero sendo cego, claro, não lê português.
ASSIM FALOU ZARAUGUSTA -“ Publica aí, meu cupincha, que esta minha despoesia é a mais pura alegoria do vazio quando guincha!” Assim falou Zaraugusta; Zaroldrósio falou mais, disse: - “Miauuu...” Não lhe custa constranger os animais...
(1.) SOMETHING ROTTEN Rosencrantz & Guildenstern were born dead; but they just couldn't lie still, so they fell on Brazil like a mattress of lead.
(1a) ALGO DE PODRE Rosencrantz & Guildenstern nasceram mortos,
mas, sempre mais irrequietos, seus dois corpos cairam em cima do Brasil de um golpe, juntos, como um colchão de chumbo!
(2.) SIMPLE, AIN’T IT? Simple Simon saw the joke, nobody else ever did; so he bought for a quid a ladder, a curtain of smoke, plus a social-climbing zest proper to teach any goofer to sit high on the roof whereby lie the very best! Humpty laughed his head off; yet Simple climbed and climbed, so high up, his behind came to be seen bare and lofty! Humpty whispered (duely bored): So, there he climbs, one more rogue, I’ve seen it all before, every inch a king of frogs! Then came the fatal fall: King Simpleton, the Last, stuttered, stumbled & bit the dust to the laughter of them all. Never mind, moaned Simple, Humpty came tumbling down through sheer lack of know-how, I through a bum and a whimper...
(2a.) SIMPLES, NÃO ACHAM? Simplício achou muita graça, mas ninguém se ria; então ele comprou com um tostão uma escada, uma fumaça (de cortina) e essa ambição que anima tanto o empregado que o faz galgar um telhado como se fosse o patrão... Humpty (Homem-Ovo em Alice no País das Maravilhas) ria à beça, mas quem disse que o outro ligava? As pilhas da ambição super-ligadas, Simplício subiu tão alto que suas brilhantes nádegas eram vistas lá do asfalto! Humpty, com aquele bocejo de quem sabe o fim da história, ria, ria: “Mas que vejo?! O rei das rãs galga à glória! ” Foi então que a queda veio: Rei Simplício, o Derradeiro, tropeçou no inglês primeiro, gaguejou e falou feio, mas se esburrachou no chão... Eu, tradutor do poema, opto por sua extensão para elucidar o tema
embutido em seu final: Simplício diz-se que o Ovo caiu de bobo, afinal nunca quiz “fazer o novo”; ele, um insígne Homem Oco, caiu com estilo e garbo, ou seja, através do rabo... (Bum ou bang, o cara é louco!)
(3.) UNSIGNED, FROM THE BEYOND “Dear Mr. Tontolino (I trust you’ll let it be If I’ve mispelled, latinos Have always confused me): A bag-filling process In the bush without a dog Can only end with a frog Jumping sideways, or less, What’s all the fuss about? Who’s been tampering with an ash I’d so pointedly left out? Who is this pompous ass? Or, rather, who was , I’guess... Though, as death & sex go, one fares better in Mexico, thank you all, nevertheless.”
(3a.) SEM , DO ALÉM
“Caro Senhor Tontolino (há de perdoar-me, espero, se errei seu nome, os latinos sempre me induziram ao erro), encheção de saco em mato sem cachorro é coisa vã, só pode levar a rã a tentar pular de lado, mas que balbúrdia é essa aí? Quem foi remexer na cinza que eu, na forma a mais precisa, senti, mas não escrevi? E o asno, quem é (ou era)? Em coisas de morte & sexo eu ainda prefiro o México, mas obrigado à galera.”
(4.) OEDIPUS & THE TOAD Toad the King in the middle of such a sticky muddle?! Up the creek without a paddle, Oedipus thought the riddle an easy pie to translate, it was not... King Toad got his English too late, i.e., too little too old.
(4a.) ÉDIPO & O SAPO Sapo-rei com um tal estigma,
numa trapalhada dessas?! Édipo achou mole à beça traduzir o tal do enigma e acabou ficando cego; Saplício aprendeu inglês tão velho que deu o prego quando leram o que ele fez...
(5.) “LEAFES OF GRAS” A toad picked up a blade of thin, very thin grass, went straight home and made a translation thick and crass; unfortunately, what he did was done in the open air, where (to his lasting despair) hard it is to have a lid fit well onto one’s mess: it all blew up on his face... Lo, poor Toady in disgrace, trying hard to digress, counted verses, run amok and bought himself a Grammar, an English one... In shock, he still mumbled: “Next Summer I’ll be back!” “...back, back...” went on the echo in a laughter, as Toady hit the sack, never to be seen thereafter. (Now, this is the story in English; five verses, as you count;
however, toads are ticklish, for them translations amount to sheer numerologics; so, not to still offend, I acquiesce in the end: let Saint Arithmetics add three verses (no more!) to my own wicked five; they needen’t be alive, it’s all to please a bore.)
(5a.) “FÔLIAS DE HERVA” Com um fiapo de erva fina (mas fina demais...), Saplício aplica-se a uma difícil tradução; quando a termina publica-a logo, correndo! Ora, ao ar livre intrujice é sempre um erro tremendo e, sem tampa que a encobrisse, a burrada do batráquio explodiu-lhe no focinho... Desesperado, o reizinho chamou a coisa “um ataque”, contou, recontou estrofes, tapou com peneira o sol, espalhou pelo “arrebol” “cinza de versos”, os bofes pela boca, e foi comprar-se uma gramática inglesa...
Mas o eco é uma beleza! Sem piedade e sem disfarce desfiou que nem um trapo a última frase do mestre: “É impossível que um rei-sapo faça algo que não preste!” “Preste... preste...”, repetia o eco... “Preste-nos contas!” completava quem o ouvia, a um pobre Saplício às tontas. Desde então silêncio. O afoito contador calou a boca porque a coisa é meio louca, mas as estrofes são oito!
SITTING DUCKS There wasn’t a thing in which old Byron would not excel; he was never shy, so, what the hell, he might as well try! Undaunted by luck, he would dare and sing just about anything, good old Lord Byron, unless, it seems, if it be his dreams, poor lame duck, of waltzing, o waltzing from London to Cairo! So with our two brothers, plus a third man;
unlike many others somewhere in between twelve and eighteen, they do what they can, not to say a bit of just everything: come Winter, come Spring, not ever despairing, stuffed with the wit of an old herring, if only they could they might, they should, they ought to do it!
CORO DOS CEGOS DE TEBAS “Como um rebanho, uma horda, nós, os abaixo-assinados, cá estamos, disciplinados como um boneco de corda. Mal informados, mal lidos, somos cãezinhos fiéis e vimos lamber os pés de barro dos nossos ídolos. Não lemos e não gostamos, e por isso a uma só voz protestamos, todos nós penduricalhos em ramos aos frangalhos desta vez, talvez, mas não nos importa: desde quando Inês é morta beijamos o pé dos reis. Nosso brio é algo insólito,
vergonha é pra quem tem cara, nós temos coisa mais rara: a cara de pau do acólito. Somos fátuos, mas extremos: nossa mais cara função é o público beija-mão dos deuses a quem nos demos e hoje ameaçam depor! Como po-los nus, no entanto? Nunca tiveram outro manto senão nós para antepor ao vácuo em torno de um oco! Um tóten oco é sagrado, nu ou não, ao nosso lado um rei não rui por tão pouco, se não sabe javanês, que não nos venham informar! Que mal pode versejar constatou-se a cada vez que andou a reinar em metro, não chega a ser novidade, mas é uma barbaridade contestar o augusto cetro! Sabemos que lista alguma faz reviver a donzela que se atira da janela, mas nós somos como a bruma, cobrimos tudo de leve, revestimos tudo, tudo, em rapapés de veludo. Quanto ao que um de nós escreve,
não pode ser discutido, não pode ser discutido porque não é lido nem quer ser lido por ninguém: pior que um mal entendido, esperar que a coisa escrita seja mais que referência é uma grande impertinência! Portanto, nossa visita à hediondez deste momento, às páginas sacrossantas de uma folha como tantas, tem como único intento tapar a augusta nudez de uma maneira qualquer. Que leia quem bem quizer, nós não sabemos inglês e nada temos que ler, somos cortesãos apenas, os figurantes em cenas feitas para o bel prazer de Beemoth e Leviatã, não para instruir ninguém. Fazemo-lo muito bem, deitamo-nos no divã como um perfeito ato falho, os Édipos sem Jocasta, pertencentes a uma casta de coringas sem baralho porque o jogo é sempre o mesmo: nada se tem a perder
com calar. Quanto a escrever ou ler, fazemo-lo a esmo quando o fazemos às vezes. Nossa função é servir a uma idéia de porvir que não desagrade aos deuses, nossos deuses insultados por análises de texto. Como matilha em cabresto protestamos indignados! Não, não sabemos inglês nem português muito bem, mas que importância isso tem? Digamo-lo de uma vez, somos como os Homens Ocos de um poemeto que não lemos: o que eles sabem, sabemos; se o não sabem, nós tampouco... ”
INOCENTE INÚTIL “Sou um bobalhão que não fede ou cheira, fui a um beija-mão por engano e, queira ou não queira, irmão, fiz mais uma asneira... Mas me esquento não, foi de brincadeira, eu sempre brinquei com a vida, com a arte...
Mas respeito a lei do mais forte, à parte o rei que beijei, meu amo é o Sarney!”
ATA & MINUTA A União Simiesca do Vácuo, unida em vão, laureou outra vez um macaco de estimação: concedeu-se o troféu 'Puxa Saco de Salão' ao Senhor Nelson Asco, um velhaco trapalhão que arrancara uma carta ao Candido e, por que não?, pendurou-a às orelhas... O bando deu-lhe razão e o pilantra saiu ganhando! Fim da Sessão.
BINÓCULO PELA CULATRA Uma gralha enfeitada com a pena de um ancião se avacalha: um pavão dá pena, um trapalhão enrolando-se aos pés de um mecenas na contra-mão
suja as próprias orelhas apenas, chateia o chão. Nosso bobo-da-corte, incapaz enquanto artista, já minúsculo, diminui-se mais: minimalista, com a epístola o pobre rapaz some de vista.
CONVITES À FILOSOFIA O último ataque de sabedoria da bela doutora Chauí me deixou perplexo! Um dia num canteiro de Alexandria a única flor que eu não colhi ou horas e horas ali explicando filosofia a um cliente da casa... Lili, se fazia chamar a guria. No batente contraíra o mal que não desgruda quando ataca e a paixão do conceito. Polaca (uma ex-noviça, por sinal), escapara ao torrão natal na valise de um industrial, mas matara-o de morte macaca e agora despachava-os de maca rumo à enfermaria geral! Sabia tudo de Epicuro, o seu xodó. Falava bem, punha qualquer um de pau duro
com as dissertações e o vaivém das mãos sábias, no claro-escuro à beira-leito... Jurar não juro, mas, se não convertia a ninguém, fascinava o varão maduro e os mais inespertos também. Clandestino e errante, eu sabia que, sem Visto no baixo Egito, se me pegassem estava frito: dormia ali durante o dia, hotel nem morto! O arranjo previa apenas que o moço bonito dormisse sozinho e, repito, eu dormia a manhã toda, ouvia Lili me explicar o infinito e Epicuro lá para as duas; cerca das quatro, quatro e meia, devolvia o cascalho à bateia e reganhava o ouro das ruas, as semi-ninfas semi-nuas ficavam para trás, a feia das grandiosas semi-luas e a estupenda Lili. Cantei-a de mil maneiras, das mais cruas às mais cruéis, das mais virís às mais dúcteis, mas não houve jeito: epicurava ao pé do leito, mas de graça não dava! Fiz o que pude, o malandro perfeito, mas epicurista aprendiz é mesmo um pedestre, e bem feito! Ah, pudesse este meu país resistir às nativas Lilis, seus babados e baboseiras,
como a pérola de Alexandria resistiu-me semanas inteiras! Manual de filosofia a noite toda dá em olheiras, mas é mal incurável, mania até mesmo de ex-futuras freiras filosófico-epicureiras como as há também, quem diria, neste nosso agreste jardim. Minha Santa Teresa, eu li o manual da nossa Lili de cabo a rabo! É verdade sim, li tudinho, e ansioso torci pela guria até ao fim... Mas uma cena que nunca esqueci, dentre as lufadas de jasmim daquela mansão sem jardim veio a mim como uma chibatada: vi minha Lili de olhos belos, de calcinha toda rendada num florido patamar de escada como a jovem do poema de Eliot e sofri! Aquela madrugada eu voltara mais cedo, os melros começavam a cantar na estrada: Lili desatara os cabelos, largara Epicuro e, à janela, chorava, chorava... A verdade chegara muito perto dela, com a imperdoável crueldade das horas vazias, aquela era a hora da verdade. Bela, descabelada e sem vontade de iludir-se, dava pena vê-la: afinal esquecia a vaidade,
desmentia a reputação de Diótima eslava e selvagem e soluçava de pé no chão... Levei comigo aquela imagem anos a fio, desde então sinto certa camaradagem com todas as fêmeas que em vão pensam que sabem o que não sabem. Soube que morreu no Sudão alguns anos depois. De frio. Esfriara a pérola ardente, murchara quando um livre docente desmanchara-lhe fio por fio a douta cabeleira insciente aquela noite... Conheci-o, um professoreco insolente de Liceu: humilhou friamente minha flor, e Epicuro, o vadio, nem se importou, fez-lhe o favor de abandoná-la nua e crua à escolástica do inquisidor. Se a nossa doutora não for tão sensível, a sorte é sua, talvez ainda possa dispor da arte fria de um cliente-instrutor; recomendo uma noite sem lua em Alexandria: há uma rua transversal entre o velho mar, o Maryût e a Rodovia dos Ingleses; nela há um solar que todos conhecem, de dia a casa é fácil de encontrar; o tal professor não saía de lá, com certeza há de estar. Não ensina filosofia, ensina as Lilis a acordar.
EM RETROSPECTO Pobre pequena, sofreu demais! Com aquela cena perdeu a paz, não se viu mais feliz, serena, era só ais... Já a Marxilena é um monstro horrendo: eu fico lendo Tia Chauí e me arrependo do que senti pela Lili!
MUDEZ DE PEDRA Deram um jaboti-ti-ti para uma jabotetéia das muitas que dão ali no mundinho-como-idéia: diante de toda a platéia o bicho foi com a Chauí! Se a esperta compôs de cor ou colou do namorado, ninguém sabe: o Merquior, nosso mais lido letrado, foi desta para a melhor e o bicho é mudo, coitado...
HOMUNCULUS PAULISTANUS (vulgo Chatus Rex Brasiliensis) Fóssil de terceira. Segundo o arquivo presume-se vivo, mas sob a poeira não se sabe ao certo. Período mundano. Ignora-se o ano em que num deserto reuniu caretas, numa companhia que chamou de letras, mas como mal lia acabou o herói do semi-letrado: o editor play boy. Pede-se cuidado, único exemplar empalhado em vida! Favor não tocar. Foto proibida.
ET CATERVA Lulu Gosmolima projeta na Musa a alminha confusa, quanto mais a estima mais o gajo abusa,
mais lhe baba em cima. Lirinha cafusa sem ritmo ou rima quando o entusiasma como um trem fantasma excita um pirralho o estilo cascalho, de gato com asma, fica duca mesmo! Fauna Sucesseira é outra personagem que só lê asneira, adora bobagem! Deve ser faceira debulhando vagem, se fosse rameira teria a vantagem de ganhar a vida de maneira honesta, mas é precavida, só lê o que não presta, flor tão bem nascida não enruga a testa.
SEGREDOS DE IMPRENSA Caro Alcino Leite Neto: tem nêgo aí protestando que nem capanga de bando, mas no meio do panfleto há um ou outro indiscreto que anda dizendo, explicando que não viu nem o esqueleto do manifesto nefando;
diz que foi mal informado... Se faz parte da quadrilha ou caiu numa armadilha, a cada desenganado vai soneto em redondilha; se os publicar, obrigado.
JOVENS BÁRBAROS CENSORES? Minha querida Gal Costa, como entender o seu gesto? um manifesto pro-censura?! Você gosta só do censor ou de bosta concreta também? Não presto, vá lá, mas por que o protesto em lugar de uma resposta? Por que recorrer à lei, e a lei de imprensa?! Porque ponho a nu um sapo-rei? Me iro de você (que até hoje irei) sendo a flor num tal buquê! II Os meus parabéns, Betânia! Não leste e não assinaste! Não és enxerto de haste de buquê de coletânea datée! Aos irmãos arcanos, à inania verba, a esse traste lembras que arbítrio e desastre já nos devem vinte anos! Tu, que preferes porvir a "arrebol", vai, salva a pele do teu mano, viu? Aquele
que fazia a gente rir de milico, diz a ele que é proibido proibir... III Escutou, Gilberto Gil? Se um galo canta, o experto neste matreiro Brasil vai verificar de perto, tem sapo neste deserto que imita tudo! O mais vil, nostálgico do fuzil, do bom AI-5, é certo que imita o Armando Falcão, canta que nem arinho, um primor de imitação! Mas velho galo-de-rinha que não leu linha por linha não assina nada não! IV E agora, cá entre nós, Caetano Veludoso: como andas melindroso! Sacodes com tua voz os canecões, mas após tanto discurso estrondoso, tanta irreverência, a sós com um sapinho vaidoso, assinas o mais careta, o mais pífio manifesto! Quando a coisa andava preta
era outro o teu protesto, por que servir de muleta a um censorzinho molesto?
CARTA ABERTA AO JOÃO "Só se for na vaga do João Neves." (J.C.M.N. em 1955) Deixas claro com quem andas; pergunto-te eu: quem és? Quando lá por tuas bandas, com teus canaviais aos pés, já fazias rapapés a nulidades nefandas? Já adulavas coronéis? Hoje assinas. Hoje mandas emboscar velhos amigos por detrás. Hoje és do bando. Como os engenhos antigos que se foram hipotecando: cassaco virando caco; velho virando velhaco. II Mas não faz mal, o cochilo cavalar de um cavalheiro expõe de uma vez o estilo do medalhão brasileiro: faz-se o que se faz primeiro; depois, no tom mais tranqüilo de quem "nunca disse aquilo", põe-se a culpa num terceiro... Há aquilo que um homem diz e aquilo que não se faz; há muito gesto infeliz
de rapazote, que os pais não aprovam, mas que fiz? Perturbei a santa paz dos medalhões do país...
CARTA ABERTA A MARLY "A fonte dessa mágua é uma lanterna..." ( Marly de Oliveira,1959) Sim, aram-se quarenta anos, qualquer coisa como um vendaval de dispersões, e até de enganos, inissíveis como tal entre nós, mas a um teu sinal tudo se recontituía, voltava ao normal. As esperas podiam ser pura agonia, mas eu era fiel e tu eras a que cercava as primaveras de ritmos, de imagens exatas, dos cuidados de uma enfermeira, de uma irmã... E de repente matas sem aviso ou razão! Traiçoeira, estraçalhas uma vida inteira com uma simples , concedida (segundo me dizes) ao primeiro que te procura para arrancar pelas raízes nossas páginas mais felizes! Uma longa fraternidade que além de nós dois incluía bemmais:CarlosDrummond de Andrade, o Manuel, Ruth Maria e Dona Cecília, que um dia (não lembras?) sorrindo nos disse que era preciso ter cuidado para que nem sequer Clarice
conseguisse nos pôr um de um lado, a outra do outro... Esse ado, que nunca ou para mim, era belo como a cabeleira de um outro poeta sem fim, o nobre Tasso da Silveira, cuja limpa, gradual cegueira, via mais, muito mais claro ainda, que nossos olhos juvenís. Hoje, eis-me posto na berlinda diante de todo este país por ti também, e algo me diz que não te dói a traição que me fazes gratuitamente, como a toda uma vida... A mão dói-me mais que o punhal, o dente mais que a mordida: serei doente, tolo certamente, e cretino (conheço-me, como duvidá-lo?), mas não te reconheço! Menino, vi em ti a silhueta, o halo de um poeta, e o mais longo intervalo, a mais estúpida separação, nunca puderam esmorecer a força daquela visão. Por que pões um anoitecer sem nenhuma razão de ser - com uma rápida sobre minha total confiança em ti, na límpida figura que era minha desde criança? Por que o coice na esperança
que sustém a infância da vida, por que em vez da mão a pata já quase à porta da saída? Vamos morrer, sabes? A data pouco importa, importa o que mata sem ser preciso e, o que é mais triste, importa o gesto de matar. Vejo a mão com que me feriste, a facada sem avisar, o golpe brutal em lugar de quatro décadas de amor... Mas por quê? Era tudo mentira? Mentes agora? Ou algum mentor ensinou-te como se vira tudo ao contrário, tira a tira rasgou-te a alma de menina, de poeta? Na casa em que Stella morreu dando à graça divina resignação ainda mais bela que a ao fim da tela, a obra-prima que assinou foi memorável: a agonia foi fértil como ela, o vôo elegante como o dia-a-dia com que amparou uma poesia e seu poeta-inquisidor. Em algum lugar dessa casa que hoje é tua, há algo de amor, de um anjo bom, daquela asa que tinha todo o ardor da brasa, mas nunca queimou, nem de leve, sequer o leite da coalhada, que fervia como se deve:
sem distração nem trapalhada! A mão que nunca assinou nada de infeliz nem de traiçoeiro, virou asa, e talvez ande perto... Se te tocar o travesseiro, se ainda voltar a esse deserto que fizeram de seu lar, é certo que algo terá para ensinar-te. É possível que seja algo assim (conheci-a bem...) : "Não há arte que valha um só gesto ruim, quando alguém confiou em mim nunca encontrou fechada a porta..." Mas talvez seja muito tarde para entendê-la, Inês é morta, o vivo sempre mais covarde, e, sem lareira onde arda, arde sem brilho ou eco a brasa eterna. Aprenderás o que aprenderes deste episódio, a alma hiberna, mas acorda. A de certas mulheres será sonâmbula ou, se preferes, oblíqüa, caprichosa, fria, talvez, mas podes estás certa que a tua, sonolenta hoje em dia, de repente há de se ver desperta numa enorme casa deserta. Talvez saibas então quanto custa o que fazes, Marly, da maneira mais leviana e mais injusta: apunhalar (ou foi brincadeira?) um amigo e uma vida inteira.
IV. RESPONSABILIDADES Ah, o país dos poetas! Quanto mais improvável aqui, no pobre agora dos desastres morais, quanto mais fora das probabilidades do fugaz, quanto mais sujo, mais doente, mais esquecidiço, quanto mais demora a aparecer esse país, a hora de defender-lhe as torres ancestrais, as coisas que fundaram esta linguagem, ou a replantaram aqui nesta paisagem insultada, mas certa do que é, a hora de erigir-se alguma fé faz-se mais clara e cheia da coragem que obriga a não ceder, a fincar pé! William Butler Yeats, não irei a Pasárgada alguma, ou visitar-te outra vez em Sligo: minha parte de réprobo, de autor fora-da-lei, de degredado de uma raça, eu sei, era bem divertida, mas a arte republicana é a da linguagem, e o rei ou o ditador só morrem de um enfarte: o que vem da arruaça, quando assume a graça da poesia, o único estrume que tapa formigueiro... O vigarista (foste tu que o disseste) tem no artista seu pior inimigo: há quem resista à facada do canto como gume?
Vou ficar por aqui, nesta arruaça, porque ela se parece ao meu país, como o teu parecia-se à desgraça, à fome, à fuzilada... Algo me diz que por aqui sou mais teu aprendiz, da tua arte, a arte do que a, desmorona-se e serve de raíz. A raíz da canção, daquela graça de cantar, de erigir-se cada torre no lugar do real. Que não socorre nem seduz, mas insiste e insiste até fazer da coisa humana o que ela é. Somos assim aqui também: o porre, a gritaria, o descalabro... E a fé. So long! Até um dia destes, Mestre do ontem e do amanhã, que continua, que não pode parar. Talvez não preste, mas se assim for a culpa é minha e tua, porque culpa é de todos, não da lua, do eclipse... A minha tribo é mais rupestre do que a tua, é verdade, sai à rua nua, a cara pintada à moda agreste da indiarada abusada pelo resto; mas não, não quer dizer que não se entenda ou não perceba a mentirada, a venda já não presta, anda em tiras. Há um protesto cantando por aqui, como na lenda do vilão que, com medo da encomenda trancou-se a vida inteira do homem honesto...
AQUI TERMINA OS SAPOS DE ONTEM (TEXTO EXCLUÍDO)
INSIDE THE HOUSE OF USHER Ele um velhote infeliz, cortezão de longa data e mácula do país, cuja obsessão barata é ele-mesmo, sempre à cata do acólito, do aprendiz que lhe imite a lira chata, a “anti-lira”, como diz... Ela, a dondoca de bata, calculista até a raiz: fez acrobacias mís para acabar candidata a Du Barry do país; de luxo, nada barata, fez-se folhear a prata o ganha-pão em Paris... House of Usher sure it is! O mal sempre pede bis às portas de uma alma ingrata e a experiência me diz que onde eles pem a pata tudo o mais vira sucata, só se escapa por um triz: o que não morrer se mata.
GRITARIA NA TOUCEIRA
“Macaco quanto mais sobe mais se vê o rabo...”
(Dito popular trásmontano) No país dos antolhos, da vizeira, não há nada de proibido, a não ser haver lido uma asneira: se for de vanguarda, convém calar sobre a gaffe, se bem que o mais prudente é declarar-lhe amor. Eu conheci um vendedor de vento num país parecido ao nosso que só vendia um troço nojento: boato... Fazia-se pagar por si mesmo, assumindo o ar de quem conhece a letra do contrato. Por aqui, nem falar, tem muita gente dando-se esse mesmo ar: o asno oracular, o doente... No entanto ai de quem vir o rabo do símio quando sobe! Eu acabo de ver um deles nu, mas meu espanto no caso, não foi tanto por conta do dito rabo, cuja ponta em cu de deuses deve-se ao acaso, foi por conta da incrível gritaria
de tanta gente contra mim! Gente séria e chinfrim, quem diria! Séria mesmo, não sei, até então duvidava, hoje hesito: marmanjo não ganha no grito, a razão é a meta, mas no caso não era! É que símio por aqui é fera, faz tudo quanto quer, faz-se poeta...
NOTAS 1 Poesia Concreta (Literatura Comentada, 1982) 2 Duas Cidades, 1975 3 “A sensibilidade agora presente é mais a de um transeunte enervado que lança seu testemunho anônimo, mistura de gesto enigmático e de deboche, do que a de um poeta...” (cf. opus cit.) 4 Em nota a esta jóia de seu “Teoria e Prática do Poema”, o imantado versejador que em breve relegaria Bandeira, Drummond e Jorge de Lima “à margem do processo cultural” informava-nos estar “na mesma trilha de João Cabral, porém ao avesso” (sic); por si só tal “silogismo” parece-me antológico... 5 Observe-se que até hoje o articulista não se mostrou capaz de um único soneto, não se diga com a alta voltagem dos que nos deram aqueles três mestres modernistas, mas por vago, anônimo ou anódino que fosse; mas já se mostrava capaz de decidir por si só o que fosse esse processo cultural, a cuja margem relegava nossos dois maiores poetas de roldão com a espetacular reinvenção jorgeana da secular forma toscana. 6 Manuel Bandeira não fugira a esse problema crucial, que acabaria por comprometer irremediavelmente a realização poética marioandradina; com a aguda clareza do poeta-crítico, diagnosticara-o lapidarmente como uma deslocação do imaginário, uma fatal falta de chão sob todo o seu projeto lírico: “linguagem artificial, porque é uma síntese e sistematização literária pessoal de modismos dos quatro cantos do Brasil ” (à página 134 de Apresentação da Poesia Brasileira, Casa do Estudante do Brasil, 1953). 7 Na introdução à 1a. edição de Teoria da Poesia Concreta.: Textos Críticos e Manifestos (Duas Cidades, 1975), o trio “revolucionário” gabava-se de haver “retomado o diálogo com 22, interrompido por uma contra-reforma convencionalizante e floral” (sic). Para além deste curioso ato-falho, a nostálgica ciumeira dos “morigerantes maralmíscares” não explicava quem dos seis grandes e dos seis estreantes acima citados teria sido responsável por esse lapso; ficávamos sabendo apenas que a “educação do príncipe”, aquele fino “operário do azul em Agedor” estivera ameaçada até que os três grandes de Noigandres varressem para “a margem do processo cultural” as baboseiras contra-reformistas de Drummond, Bandeira, Cecília, Jorge, Murilo e seus jovens turcos. Ufa! 8 Seria ainda Manuel Bandeira a dar a medida e o nome aos boizinhos sagrados da paulicéia minimalista. Em sua Apresentação da Poesia Brasileira (cf. nota 5) resumia assim a arte oswaldiana: “pequenos trechos de prosa que ordena em verso-livre (...) menos por inspiração do que para indicar novos caminhos (...) versos de um romancista em férias, de um homem muito preocupado com os problemas de sua terra e do mundo, mas... exprimindo-se ironicamente, como se estivesse a brincar.” Com efeito, só que a brincadeira não acabara, a ampliação valorativa do mini-mestre de Pau Brasil far-se-ia indispensável à fabricação de novas miniaturas à la Leminski, entre tantas... 9 “O velho alicerce formal e silogístico-discursivo, fortemente abalado no começo do século, voltou a servir de escória às ruínas de uma poética comprometida (sic), híbrido anacrônico de coração atômico e couraça medieval.” cf. Augusto de Campos in Suplemento Dominical do Jornal do Brasil aos 12/5/56. 10 cf. Harold Bloom, A Ansiedade da Influência (Imago). 11 Será superfluo, mas não é nunca demais lembrar que Machado de Assis, supremo cume do gênio nacional, não aria hoje de nota de rodapé em nossa história literária caso tivesse morrido antes dos quarenta. O gênio é imprevisível, às vezes já lá está, às vezes vem tarde e, se às vezes não vem, convém aguardá-lo sempre com reverente confiança. Que significaria hoje para nós Manuel Bandeira se a tísica o tivesse levado à idade de Raul de Leoni? Que se teria tornado, se lhe tivesse sobrevivido, o autor de Luz Mediterrânea? 12 Vejo neste tipo de episódio, de resto, mais uma instância do ódio visceral que anima os dois manos contra aquilo que lhes escapa congenitamente, ou seja a arte que jamais souberam fazer. A reunião dos
preciosos espólios de Titio Kilroy & Vovó Sousândrade, respectivamente o Homem Torso e a Mulher Barbada das sub-letras tropicais, mais que um consolo à solidão da Família Adams do Belletrismo-em-armas, seria um modo a mais de torpedear a idéia mesma de uma ordem possível no acervo cultural de um povo, especialmente uma que unisse beleza e verdade como traços da fisionomia nacional. 13 Veja-se como, em Soneterapia, o Sr. Augusto de Campos, trinta anos após seus “morigerantes penubis e glaromas” receitava à pátria lira seu novo Elixir da Longa Vida, marca 1982: “Drummond perdeu a pedra: é drummundano / João Cabral entrou pra Academia / custou mas descobriram que Caetano / era o poeta (como eu já dizia)”. Ao desrespeito ao Poeta Maior, homem que terá sido tudo menos mundano, soma-se o despeito adolescente à Casa de Machado de Assis. E o elixir é barato, à venda no Canecão, última Ágora do make it new. O populismo cai como uma luva ao demagogo. O artista falido detesta a arte, essa ingrata que não o quiz e ele atira com facilidade ao populacho pela mão dos DJs. O bárbaro no jardim do espírito, com seu ódio ao belo, seu desprezo pelo pensamento e sua aversão à poesia - a esse indispensável acervo de um povo que é sua linguagem profunda - faz sempre o mesmo itinerário: a pelo embuste e vai cair na anarquia. De quatro. 14 Ou aparisionados? 15 (Perspectiva, 1972) 16 Bruno Tolentino, Os Deuses De Hoje, Poemas 1964-94 (Record, 1995) 17 O manifesto, publicado em O Estado de S. Paulo de 16 de setembro de 1994, trazia as s de dezenas de intelectuais de prestígio, entre os quais João Cabral de Melo Neto, Marly de Oliveira, Luís Costa Lima, José Miguel Wisnik, José Lino Grünewald, Marilena Chauí, Gilberto Gil e Caetano Veloso. Alguns alegaram depois ter assinado em branco, sem saber exatamente o que o Sr.Augusto de Campos iria colocar acima de seus honrados nomes. É mais seguro em branco notas promissórias do que manifestos de intelectuais. 18 TACRIM -SP — HC — Relator Juiz Valentim Silva — JUTACRIM 37/86. 19 Heleno C. Fragoso, Lições de Direito Penal, São Paulo, Bushatsky, 1976, p. 225. 20 Suscetibilidades, aliás, hipócritas. Fingir-se de escandalizados por coisa pouca é um truque pueril com que os políticos do interior dão à platéia caipira uma impressão de pureza. Basta com dizer umas obviedades, e logo esses santinhos-do-pau-oco sentem um impulso irresistível de mostrar/ocultar suas paixões vis por meio de afetações de escândalo. Dizem então: “Nossa, como ele tem ódio!”, ou melhor, fazendo biquinho de velha inglesa: “Como ele tem óóóuuudiu!” — para que o auditório entenda que no coração deles não existe senão o puro amor. Será que ainda existe quem caia nessa? Pobre Tolentino: trinta anos fora do Brasil, e um sujeito se esquece de que essas coisas ainda existem.