Enquanto Isso 276f47

SINOPSE

Segundo a Organização Mundial da Saúde, a OMS, o câncer é a segunda principal causa de morte no mundo todo, cerca de um em cada seis habitantes morre devido à doença. Os números são assustadores, todo ano morre o equivalente à população de um pequeno país, do tamanho de Portugal. Dentre os tipos de câncer, os mais comuns são, na sequência, de pulmão, de mama, colorretal, de próstata, de pele e de estômago. Os mais mortais são os de pulmão, colorretal, de estômago, de fígado e de mama. É uma verdade infeliz dizer que muitos de nós experimentaremos o câncer de alguma forma, seja em primeira mão como paciente ou no apoio a um ente querido através de seu diagnóstico e tratamento. Eu pensei que jamais teria. É verdade também que a doença cruel pode inspirar uma renovada empolgação pelo futuro, gratidão pela vida, desejo de alcançar novos objetivos e maior proximidade com as pessoas amadas. No final de tarde do dia oito de agosto de dois mil e dezenove, o Doutor Daniel Luis Luporini, meu gastroenterologista em São Carlos, interior de São Paulo, diante de mim, abriu um envelope com o resultado da biópsia de uma colonoscopia que eu havia feito pouco mais de um mês antes. A abertura do envelope levou uma eternidade, o antes e o depois pareciam ter anos de diferença. O câncer no cólon me foi revelado assim, com suspense, o maior susto da minha vida. Era dada a largada para uma longa corrida contra o tempo, pela vida, pela cura. Tal como aquelas Matrioskas russas, uma descoberta revelava outra, depois outra, e mais outra, surpresas sucediam-se, eu não fazia a mínima ideia de qual seria a próxima. Enquanto isso, a covid-19 me assombrou, outro susto, isso mesmo, teve coronavírus, teve pandemia, teve isolamento social, teve máscara hospitalar e álcool em gel, teve loucura, teve desobediência, teve arrogância, teve irresponsabilidade, teve carteirada, teve sacolé de cloroquina, teve politicagem, teve continência e incontinência, teve filósofo de esquina, teve de tudo muito e mais um pouco. Teve também união, compaixão, caridade, bondade, a humanidade se viu à beira do abismo, demonstrações de grandeza e de baixeza ocuparam as manchetes. Enquanto isso tudo acontecia, eu fui operado, eu fiz quimioterapia, eu engordei, eu tomei uma dose de morfina e outras tantas de ópio, eu viajei ida e volta até Alfa Centauro, eu sofri, eu chorei, eu xinguei, eu revisitei o meu ado, eu aprendi, eu mudei e renasci. O mundo não deu uma

pausa para que eu me tratasse e me curasse, longe disso. Foi bom assim. Enquanto isso, apesar de tudo, eu vivi, venci e sobrevivi para contar a história.

CONTRISTAÇÃO

"Agora folgo, não porque fostes contristados, mas porque fostes contristados para o arrependimento; pois fostes contristados segundo Deus" - Paulo. (II Coríntios, 7:9.)

Quanta vez se agitam famílias, agrupamentos ou coletividades para que a tormenta lhes não alcance o ambiente comum? Quantas vezes a criatura contempla o céu, em súplica, para que a dor lhe não visite a senda ou para que a adversidade fuja, ao encalço de outros rumos? Entretanto, a realidade chega sempre, inevitável e inflexível.

No turbilhão de sombras da contristação, o homem, não raro, se sente vencido e abandonado. Todavia, o que parece infortúnio ou derrota pode representar providências salvadoras do Todo-Comivo. Em muitas ocasiões, quando as criaturas terrestres choram, seus amigos da Esfera Superior se alegram, à maneira dos pomicultores que descansam, tranquilos, depois do campo bem podado.

Lágrimas, nos lares da carne, frequentemente expressam júbilos de lares celestiais. Os orientadores divinos, porém, não folgam porque os seus tutelados sejam detentores de padecimentos, mas justamente porque semelhante situação indica possibilidades renovadoras no trabalho de aperfeiçoamento. Todo campo deve conhecer o tempo de ceifa ou de limpeza necessárias.

Quando estiverdes contristados, à face de faltas que cometestes impensadamente, é razoável sofrais a agem das nuvens pesadas e negras que amontoastes sobre o coração; contudo, quando a prova e a luta vos surpreenderem a casa ou o espírito, em circunstâncias que independem de vossa

vontade, então é chegada a hora da contristação segundo Deus, a qual vos eleva espiritualmente e que, por isso mesmo, provoca a alegria dos anjos que velam por vós.

Lição 153 do livro Vinha de Luz editado pela Federação Espírita Brasileira (FEB)

A PRIMEIRA LEMBRANÇA

A vida do lado de cá começa quando a gente deixa o calor do útero da mãe e encontra a luz fora do ventre. Um momento importante, o mais importante de todos, porém, para sempre esquecido. Eu saí por um corte feito na barriga da minha mãe, a tal da cesariana me trouxe ao mundo numa noite quente de três de fevereiro de mil novecentos e setenta e dois. Isso foi em Rio Claro, no interior de São Paulo, nasci com praticamente quatro quilos e meio e o título de primeiro paulista da família. Um bebê grandão e bem mais moreno do que todos os outros no berçário. Assim me contaram, eu não me lembro de nada disso, uma pena, imagino como deve ter sido a percepção dos meus segundos iniciais. Pura magia, um verdadeiro mergulho no milagre da vida, ofuscado pelo intenso brilho da luz, um mundo de sensações novas, de frio, de sons, de movimentos, uma relação de causalidade num fluido diferente, menos denso, menos viscoso. Liberdade! Deve ter sido bom, assustador, marcante, definitivo. Sei lá, só posso especular. Minha mãe era uma jovem de vinte e um anos na época, meu pai tinha trinta e era professor na UNESP. Os dois ainda se lembram de detalhes daquele dia em que eu nasci, mas eu, que protagonizei tudo, não me lembro de nada. Enfim, o cronômetro já marcava o meu tempo, cortado o cordão umbilical, eu estava livre para começar a minha saga, sem saber disso.

Pois a primeira lembrança que eu tenho na vida, a que me acompanhou por décadas até a chegada dos meus cabelos brancos, a mais antiga de todas, é a de estar preso. Isso mesmo, preso dentro de um banheiro. Talvez a psicologia tenha uma explicação para os caprichos da memória, a personalidade do sujeito, isso e aquilo. Ou ainda, pode ser que a religião possua respostas. Não sei, só sei que eu fiquei preso no banheiro do apartamento em que ei a infância no Rio de Janeiro, e nunca mais esqueci. Antes disso, nada, nenhuma lembrança. Festinhas de aniversário, o primeiro Natal, os eios de Fuscão, a primeira ida à praia, as primeiras palavras, o primeiro dia na escola, nada, nada. Fim de ano chegando, eu de olhos fechados, durante a minha terceira seção de quimioterapia na Santa Casa de São Carlos, concentrado até o último fio de cabelo, focado na tarefa, em busca da minha própria retrospectiva, lá no começo, lembrei-me de estar preso no banheiro. Isso mesmo, não adiantava enganar a memória, fiquei preso no

banheiro logo após uma ida à Niterói, pela ponte recém-inaugurada. Um eio gostoso, com direito a um almoço delicioso, uma manhã que mereceria uma boa recordação, não fosse o xixi que me custou caro. Sempre tive muito pudor com relação a essas coisas, uma vez me chamaram de mijão na Praça da Ribeira, na Ilha do Governador, e, a partir desse dia, ei a trancar a porta do banheiro à chave. Essa última não era uma lembrança minha, mas dos meus pais.

O exercício de memória foi mais ou menos assim. Nessa época a minha praia era o Aeroporto Internacional do Galeão, religiosamente aos domingos, o meu pai me levava para ver aviões decolarem e aterrissarem, era um barato. O ritual incluía um saquinho de batata frita, cheia de sal, inclusive no preço, de alguma lanchonete que não vem ao caso. Tanta coisa boa para se fazer no Rio de Janeiro da minha infância, mas o que eu gostava mesmo era de ir para o Galeão. Depois eu tinha assunto para a semana inteira na Escola Topo Gigio. A recordação dos pousos e das decolagens era boa, ótima, mas tinha lembrança mais antiga do que essa na minha cabeça e eu sabia disso. Vamos lá. Eu fui à inauguração do Museu Aeroespacial no Campo dos Afonsos, Vila Militar, no final de setenta e seis. Momento histórico para mim! A partir desse dia precisamente eu comecei a dizer a todos que seria piloto, seguro de mim, uma convicção que durou até a adolescência, quando ei a usar óculos e mudei de proa, embicando o nariz para outras profissões. Bacana, né? Outra lembrança boa, o problema é que ela não era minha, mas dos meus pais. Estava convergindo, em algum lugar do ado, entre as idas ao Galeão, e o museu no Campo dos Afonsos, eu fiquei preso no banheiro, legitimamente, a minha primeira lembrança. Havia um ingrediente importante nessa minha viagem no tempo, rumo a um sábado de calor escaldante no Rio de Janeiro, a ponte Rio-Niterói. Imensa, imponente, interminável, por onde ei minutos antes de ficar preso. No banheiro.

Enfim, naquele sábado eu tinha entre quatro e cinco anos de idade, acho que já tinha cinco, vivíamos num confortável apartamento no início da Rua Gregório de Castro Morais do Jardim Guanabara, assim como a Praça da Ribeira, também na Ilha. O imóvel tinha um banheiro na área de serviço e eu fiquei preso nele. A extensa ponte Rio-Niterói, sem acostamento, havia sido impiedosa com a minha bexiga, cheguei de volta ao apartamento doido para ir ao banheiro. Esbaforido, entrei, bati a porta com força e ei a chave. Terminado o xixi, depois da

descarga, ciente de que eu deveria lavar as mãos no tanque que ficava do lado de fora, tentei abrir a fechadura, mas vi que ela estava emperrada. Que desespero! Os detalhes do meu cárcere temporário não estão mais disponíveis, mas os meus gritos de pânico atravessaram os anos, eu chorava muito e batia na porta. Não consigo reviver aquele momento, lembro-me dele já adulto, meio coroa até, mas gostaria de poder ao menos imaginar como deve ter sido. Acho que foi traumático, de legado, ficou uma certa paranoia com porta fechada à chave. Eu gritava feito um bicho, vomitei o almoço todo, não adiantava pedir calma. Eu não estava e nem fiquei calmo, muito pelo contrário, estava preso e queria sair. Meus pais, do outro lado da porta, sofriam comigo. Acho que o prédio inteiro, de poucos andares, me ouvia.

Por fim, não sei exatamente quanto tempo isso tudo durou, só sei que num determinado momento, meu pai perdeu a paciência, a cabeça e as estribeiras, meteu o pé na porta com força, e ela se abriu. Um legítimo super-herói! Eu estava apavorado. Para mim, terminava o drama. Não me lembro de ter saído, aos prantos, do banheiro, mas foi o que aconteceu. Fiquei mole o dia todo. No exercício de memória, minha primeira lembrança foi essa, cheia de gritos e de lágrimas, quase um parto. Era onde eu conseguia chegar na minha linha do tempo, meados da década de setenta, trancado no banheiro, desesperado para sair. Sei dizer que depois desse dia, até hoje, antes de trancar uma porta eu verifico se a fechadura está funcionando direito. Um hábito estranho para uma criança, mas nem tão estranho assim para um adulto. Eu faço isso, antes de fechar, dou umas voltas na fechadura com a porta aberta, escancarada. Ecos de um ado distante para mim, o mais distante de todos. Enquanto os medicamentos da quimioterapia circulavam dentro do meu corpo, meus pensamentos viajavam no tempo, de volta ao ado, sempre em busca de consolo para os dias que eu vivia. Preso no banheiro ou solto por aí, meu histórico de vida era recheado de bons momentos, um melhor do que o outro, o xilindró sanitário foi uma exceção. Seguindo as etapas da vida, subindo os degraus da idade, tomando injeções para me curar de um câncer, havia uma certeza na minha cabeça. Eu fui feliz.

PRÓLOGO

Todos os relógios do mundo, todos eles, em um enorme, ou melhor, imenso hangar. Antigos, contemporâneos, barulhentos, silenciosos, analógicos, digitais, prateados, dourados, de plástico, de parede, de pulso, de bolso, usados, novos, sujos, limpos, lá estavam eles, amontoados entre si, todos os relógios do mundo. Eram todos mesmo? Sim, eram todos, ninguém me dizia nada, eu simplesmente sabia. Não faziam nenhum sentindo onde estavam, armazenados dentro de um hangar escuro, filas e mais filas, jogos de prateleiras para todos os lados, não via onde começavam e nem onde terminavam. O breu e a tranquilidade do lugar davam um toque de mistério à experiência, como se algo fosse acontecer de repente. Eu caminhava lentamente, sem pressa, medindo os os, olhando para todos os lados, contemplando os relógios, esperando o sobressalto.

Em módulo de espera, seguia ouvindo o gostoso tic-tac, só os digitais estavam em silêncio. Todos funcionavam, marcavam as horas, um trabalho incessante, cumpriam com a sua função, mas nem todos faziam barulho. Tic-tac, tic-tac, quebrando o silêncio, deliciosamente, era muito gostoso ouvir os tic-tacs dos relógios, assim mesmo, no plural. O tempo parecia não ar, a não ser para os ponteiros que seguiam adiante, dando suas voltinhas, com um misto de tédio e eficiência, e delicada precisão. Displays também não perdoavam, devorando segundo após segundo, deixando-os para trás, sem dó nem piedade. Para mim, o tempo não ava, não significava absolutamente nada. Dentro daquele hangar, vencendo aquele espaço sombrio com os curtos e pausados, eu vivia uma experiência atemporal, uma espécie de relatividade mal explicada, como um feitiço do tempo. Tudo acontecia, realidade ou não, o tempo era abstrato, vagando como um náufrago. Um conceito e nada mais.

A medida em que eu seguia em frente, comecei a notar uma certa pressão em minhas costas, vindo da altura dos ombros e descendo até a lombar. Alças de palha sustentavam um enorme cesto que eu carregava como se fosse uma mochila, a princípio, sem notar. Segui caminhando, sem olhar para trás, era o que eu tinha que fazer, com um cesto nas costas, entre todos os relógios do

mundo. Alguns deles eram lançados ou se lançavam para dentro do cesto, o peso não me incomodava, mas ei a sentir a presença. A iluminação era péssima, uma leve névoa impregnava o ambiente, a paz de espírito me fazia muito bem, o frescor do lugar combinava com o pouco que eu via. As batidas do meu coração seguiam o ritmo dos tic-tacs dos relógios, irmanamente sincronizados, parecia que algo iria acontecer. O cesto dava suaves solavancos, mas eu não me assustava, havia uma harmonia celestial e um sentido naquilo tudo. Um episódio que eu vivia sem saber o porquê, mas que me fazia bem.

Lá estavam, todos os relógios do mundo, e eu, entre eles, levando alguns para ear em um cesto, dentro de um hangar sombrio. A mensagem não estava clara, tempo, presente, ado, futuro, tudo junto, difícil decifrar. Meu diálogo com todos os relógios do mundo era silencioso e cheio de indagações, cheio de questionamentos dos mais variados, os tic-tacs não me diziam nada, mas me faziam bem, só isso. Por que tantos relógios? Por que alguns pulavam para o cesto? Eu estava ganhando tempo? Por que eu estava ganhando tempo? Os relógios pareciam indiferentes a mim, até mesmo os que pulavam para dentro do cesto que eu carregava nas costas. Na verdade, eu nem os via, só sentia a presença. E a enorme indiferença. Estava no ar. Ali, naquele lugar, eu era uma sombra, uma silhueta na penumbra, caminhando, quase flutuando. Não sentia meus pés no chão.

O corredor parecia não ter fim, nem começo. Mas tinha ambos. Havia vários corredores lado a lado, paralelamente arranjados, entre as prateleiras de relógios. Decidi andar para a frente, seguindo um único corredor. Para ser sincero, decidir não seria o termo correto, o negócio não funcionava assim. Tudo parecia muito repetitivo, um monte de relógios, era só o que eu via. Sentia-me ivo e insignificante diante dos ponteiros. Eu assistia aquilo tudo e me indagava, sem parar, qual era o meu papel naquele contexto. Pairando lentamente, eu operava em módulo automático, buscando lógica e sentido, mas o raciocínio, simplesmente, não chegava lá. De certa forma, dadas as circunstancias, eu não sabia o que pensar. Também não sabia se eu tinha que pensar alguma coisa. Uma trama com enredo de diálogos silenciosos, sem script. Tic-tac, tic-tac, era muito agradável.

Apesar dos solavancos criados pelo pula-pula de relógios para dentro do cesto, era fácil transportá-los, meus os eram leves e lentos, caminhava como um astronauta na lua. Sem esforço. Tudo era muito bom, mesmo sem entender coisa alguma, eu seguia confiante, ciente de que não estava ali à toa. As perguntas eram feitas, minha mente não descansava, nem se cansava, mas as respostas não vinham, nunca vieram. O tempo é tudo o que temos, quando não há mais tempo, não há mais nada. Tic-tac, tic-tac, segundos mal chegavam e já iam embora, esvaindo-se de minhas mãos, como água de bica. Vivia um episódio que surgiu do nada, que me transportou para aquele hangar sem que eu tivesse me dado conta, um clique, um estalo, ou nem isso, e lá estava eu, na companhia de todos os relógios do mundo. Eram todos mesmo? Eram sim, já disse isso.

De repente, ei a sentir uma presença próxima, sutil, oculta na leveza dos meus pensamentos. Olhei para trás, mas não vi nada, ou melhor, ninguém. Ainda assim, havia alguém me acompanhando, o prazer imediatamente deu lugar ao desconforto. Não era medo, nem nada disso, a paz reinava em mim, o incômodo era mais intuitivo do que outra coisa. Talvez até, sugerido, fruto da mente, incessante em sua busca por respostas. Seria a mente o arquiteto daquilo tudo? Aproximei-me de uma das prateleiras, à minha direita, estiquei meu braço em direção a um punhado de relógios e os toquei levemente. Senti a matéria, o tato foi claro, não deixava dúvidas. Ou será que até o tato era obra da mente? Independente do que fosse, meus os eram seguidos, por algo ou alguém, real ou virtual. Não dava para tocar, mas dava para sentir. Meus os não eram os únicos a percorrer os corredores lotados de relógios, todos os relógios do mundo. Tímida presença.

Pouca luz, poucas pistas, muitos relógios, tic-tac, tic-tac, todos eles, aquilo parecia o caminho aberto para reflexão, para pensar sem parar, mas eu não queria mais pensar. Não tirava da cabeça a companhia que eu recém ganhara. Que eu nem conhecia, de fato, mal reconhecia. Só sabia que existia. Calafrios e arrepios múltiplos foram sentidos, o frio no estômago paralisou, pouco a pouco, meus movimentos. Minhas articulações começaram a enrijecer, era angustiante olhar para frente e não conseguir ir adiante, esforçava-me, mas quase não saía do

lugar. Enquanto eu petrificava, assumindo a forma de uma estátua, ei a sentir uma vibração nas costas, dentro do cesto, os relógios começaram a se rebelar. Todos ao mesmo tempo, estremeciam como se fossem explodir, eu já não me movia mais, nem tentava me mover. Mover-me não era mais relevante, eu sabia disso.

Num curto lapso de tempo, que mal cabia na escala dos segundos, alarmes despertaram e eu pulei da cama, sobressaltado, quase enfartando. A imagem de uma silhueta indefinida e desconhecida foi a última lembrança do sonho esquisito, diferente, que me deixou confuso por alguns minutos até eu fincar os dois pés de volta à realidade do meu quarto. Sentia-me contrariado, ainda deitado na cama, queria estar um pouco mais em companhia daqueles relógios, queria ter pego alguns, adoro relógios. De relance, cheguei a reconhecer um relógio que eu tive na minha infância, todo branco, especial da Disney, com um desenho do Mickey e seus braços indicando horas e minutos. Só depois isso ficou claro, durante o sonho, ou episódio, ei batido, indiferente ao relógio do Mickey, como se eu fosse os olhos de uma outra pessoa. Acho que todo sonho é assim, sei lá. Aos poucos, fui me convencendo do retorno à realidade, incentivado pelo frio que eu sentia. Era dezenove de julho, estava enfraquecido por conta da dieta à base de caldos que eu havia feito na véspera, parte do preparo para a colonoscopia.

O sonho com os relógios era recorrente, denso, que se repetia pela segunda vez como aqueles "déjà vu" que temos de tempos em tempos. Anteriormente eu havia tido esse sonho, nos mesmos detalhes, pouco antes de descobrir que tinha um aneurisma cardíaco. Ele parecia anunciar guinadas na minha vida, não seria diferente dessa vez. Não sei exatamente quando começaram, mas o primeiro semestre de dois mil e dezenove foi assim, repleto de sonhos, eu sonhava muito, diariamente, como nunca antes. Os sonhos viraram um hit nas minhas noites, sempre muito tranquilas. Estranhamente, ei a dormir com a expectativa do sonho que eu teria logo em seguida. Alguns eram do tipo nada a ver, outros me tocavam profundamente. Numa noite, sonhei que estava manobrando um fusquinha debaixo de uma árvore, e que a capota raspava em um galho. Até barulho fez. Certa vez, caminhei por uma praia estreita, de encosta, rente à água, sob o breu da noite, observando calmamente restos de peixes e de conchas

espalhados na areia escura. A luz da lua fazia até sombra. Estranho, não tentei interpretar, mas havia uma paz muito gostosa naquele ambiente funesto. Era sempre um mergulho inconsciente no meu subconsciente, no universo complexo de sentimentos e de sensações dentro de mim. Visível somente para os olhos da alma.

Avisos não faltaram, eu não suspeitava de nada muito errado comigo, mas diria que em um intervalo de uns nove meses, houve mudanças sutis e graduais nas linhas e nas entrelinhas da minha vida. As mais evidentes foram no funcionamento do meu intestino, hábitos matinais de várias décadas estavam diferentes. Dor, nenhuma, ao invés disso, um certo incômodo devido ao acúmulo das fezes e, vez ou outra, a sensação de estar com uma espinha de peixe entalada no abdome. Dependendo do histórico do dia, sintomas de uma leve cólica, ou quentura na barriga, me faziam correr para o banheiro, mas era quase sempre alarme falso. Não ava pela minha cabeça que aos quarenta e sete anos eu estivesse com uma doença grave e silenciosa se desenvolvendo dentro de mim. Por mais que eu, de fato, não associasse uma coisa com a outra, pouco a pouco, uma presença sutil ou a acompanhar os meus os, em cores vivas. Nada palpável, difícil de descrever em palavras, mas tão presente quanto tudo e todos que me cercavam. Manifestação espiritual? Talvez, ou uma companhia que poderia ser um pensamento, ou um monte deles, uma energia, uma nuvem, uma invasão etérea com um arsenal de novidades em minha vida.

Conjecturas iam se somando, ou melhor, se encaixando, de uma maneira bastante natural. Foi então que me deu vontade de fumar. Daquelas vontades difíceis de conter, como se eu soubesse exatamente como seria ter a nicotina em meu corpo. Nunca coloquei cigarro na boca, aceso, então, nem se fala. Tive muitas crises respiratórias na infância, por conta de uma forte bronquite, fumaça de cigarro foi responsável por algumas delas. Na década de setenta, havia poucas restrições aos fumantes, eu sofria com eles. De repente, sem mais nem menos, ei a gostar do cheiro de cigarro, quis saber tudo sobre sua produção, nem me importava com os malefícios à saúde. Quando via alguém fumando, ao vivo, na TV, não importa, sentia no canto da boca um prazer inenarrável, como a saudade de algo que eu nunca fiz. Parecia conhecer toda a dinâmica do fumo, da fumaça tragada, do pulmão cheio. Era junho de dois mil e dezenove, cheguei a sair de

casa duas vezes para comprar cigarro na rua, mas acabei desistindo no meio do caminho, em parte por medo, em parte por vergonha. Eu e o fumante formamos uma dupla improvável durante duas ou três semanas, depois disso, a vontade de fumar foi embora do mesmo jeito que chegou, sem cerimônia. Mas deixou uma pulga atrás da orelha.

Enquanto isso tudo acontecia com os meus dias, o mundo seguia dando suas voltas, rotineiramente, sem a pretensão de chegar a lugar nenhum, despretensiosamente girando na imensidão do espaço que é tão infinito quanto eterno. O bebê chorava em altos decibéis, começava a vida em algum lugar, em outro canto, a família chorava diante do caixão, fechava-se um ciclo, o começo e o fim. Muita coisa rolava, o futuro entrava em cena, sem pedir licença, e logo saía, deixando para trás um ado novinho em folha. O tempo seguia uma linha reta, sem recuo. Enquanto isso, flores insistiam em nascer fora da primavera, beleza e teimosia inspirando a doce fragrância do dia. O cheiro gostoso da chuva evocava lembranças, amanhecia em São Paulo, anoitecia em Tóquio. Alguém sorria, alguém sofria, uns chegavam, outros partiam. Fazia frio em São Carlos, era inverno no Brasil tropical, e um calorão em Paris, o verão no Velho Continente batia recordes. Mais de sete bilhões de pessoas em ação, espalhadas pelo mundo, como uma tropa de formigas ensandecidas, fazendo tudo ao mesmo tempo, dentro do segundo, do milésimo de segundo. E no segundo seguinte, tudo de novo.

A vida não dá uma pausa enquanto você a por dificuldades, tudo continua no mesmo ritmo de sempre, contas devem ser pagas, compras precisam ser feitas, aborrecimentos, tristeza, nada de ruim cessa para que você tenha mais tranquilidade e se cuide melhor. Só depende do bom uso da cabeça, ter equilíbrio, dar o devido peso aos fatos, contornar o que pode ser contornado, e encarar os desafios, todos de uma só vez. Saber escolher as batalhas do dia torna-se fundamental. Estabelecer prioridades, também. Em pouco tempo, fui envolvido por uma nuvem densa e escura, à minha revelia, que anunciava o período tempestuoso que logo tomaria conta dos meus dias. Foi como despertar de repente em um mundo diferente, minha percepção era outra, mesmo antes de ter o cenário completo da situação. Independente de credo ou de crença religiosa, algo ou alguém me preparava para o que eu viria a enfrentar, uma legião de

benfeitores talvez, ou uma força oculta em meu próprio subconsciente, sugerindo o que eu deveria fazer. Minha vida estava muito estranha.

Foi aí que veio o lampejo, em meados de julho fui fazer uma endoscopia juntamente com uma colonoscopia. A iniciativa de ar pelos exames foi sussurrada em meus ouvidos, não tenho dúvidas. Do nada, decidi procurar um médico sem me dar conta de que algo indicava a necessidade. Havia sangramentos esporádicos, mas havia também a negação, "não deve ser nada", eu pensava e me convencia. Realmente, só parei para prestar a atenção nos avisos que me mandavam, nas pequenas mudanças aqui e ali, depois que recebi o diagnóstico e olhei para trás, em busca de pistas. Antes disso, a idade era a culpada de tudo. "Estou ficando velho", era assim que eu respondia para mim mesmo. O tempo ava diferente, eu estava cismado, progressivamente, castelos de areia surgiam na minha cabeça. Varridos na menor brisa, para logo em seguida, aparecerem outros, no mesmo lugar. Não deve ser nada. Era a primeira negativa, ninguém quer ficar doente, muito menos de uma doença mortal, implacável, que assusta, que causa sofrimento, que muda tudo. Desconfiar, eu desconfiava, mas muito pouco, mal sabia o que me esperava.

É difícil para um adulto não entender o que está acontecendo, nascemos e crescemos para desvendar todos os mistérios do universo, funcionamos assim. Cientistas brilhantes levaram o conhecimento humano a níveis avançadíssimos, pensadores, filósofos, gênios, pessoas normais, muitas foram as contribuições. Dentro de mim, eis que surge uma revolução silenciosa, enigmática, provocando mudanças em minha vida. Interrogações não me levavam a lugar nenhum, eu simplesmente não entendia nada. Vivia dias diferentes, cheios de novidades, virei meu próprio ageiro, numa viagem insólita dentro de mim mesmo, duplicado de corpo inteiro, indo em direção ao que eu não queria que acontecesse. De nada adiantava lutar contra, formava-se, pouco a pouco, uma corrente de elos e de pontos que mexia profundamente comigo. Eu não me preocupava, mas também, não ignorava o que acontecia. A energia não era mais a mesma, vivia cansado, a vitalidade envelhecia prematuramente, deixando-me mais frágil e, o que era pior, mais vulnerável em meu cotidiano. A melhor descrição dessa fase era a cisma, a palavra fazia bastante sentido ao dar uma explicação à uma mudança de hábitos em que coisas estranhas se sucediam

diariamente.

Eu no meio disso tudo, zanzando meu zigue-zague, de um lado para o outro, seguindo minha trajetória, com suas curvas e seus altos e baixos. A vida me regalou alguns privilégios, tive tudo o que eu precisei, quase tudo o que eu quis. Fui e sou amado, estudei, viajei, conheci gente interessante, tenho um bom emprego, status-social, nada me falta, sou feliz. As pessoas me respeitam, fui criado com altos valores humanitários, éticos e morais, sem falsa modéstia, assimilei muitos deles. Me orgulho de minhas origens. Minha vida é muito boa, nunca tive que lidar com grandes problemas, nunca perdi nada muito valioso, a sorte ou o azar pouco se importaram comigo, até então, não fui sacodido pelas turbulências que atingem muita gente, vivi em paz, seguindo meu caminho por aí. Dei minhas trombadas, esbarrei no aleatório, tive poucos obstáculos, superei a maioria. Sempre achei que o entardecer e o amanhecer fossem presentes eternos, sempre tive a certeza de que voltaria para casa, ao final de mais um dia de trabalho. Nunca questionei meu futuro, vivi minha vida projetando os próximos os, novos desafios, os anos seguintes, seguro de que esses dias chegariam para mim. Foi então que eu acordei de manhã, para mais um dia de rotina, julgando ter a saúde de um touro premiado e, à noite, deitei na cama sabendo que iria dormir com câncer.

O SUSTO

Esperar é sempre muito chato, bom seria ter tudo sem ter que esperar. Mas não é assim que funciona, a espera não deixa de ser um ensinamento, algo que precisa ser assimilado para se viver melhor. Tudo acontece no seu devido tempo, em qualquer escala que se queira, queimar etapas complica tudo. A doença me fez, por força maior, repensar minha relação com o tempo, num curto período, torneime subjugado às suas vontades. Deixei de ser o timoneiro na minha própria linha do tempo e ei a viver uma dinâmica que me seria imposta, diferente da que eu queria. Mudanças assim são sempre muito complicadas, mas superar dificuldades significa melhorar como ser humano, e eu estava disposto a ar pelo processo completo. A vida começa com uma espera de nove meses, tranquila ou tumultuada, mas sempre, inevitável. Lá estava eu, esperando a minha vez de ser atendido, no consultório do médico, com mil e uma interrogações, pensando na vida, estranhamente sereno. Digo isso porque era verdade, havia uma influência boa e envolvente guiando os meus os, revelando em mim uma calma que eu desconhecia, uma maturidade que eu não imaginava ter. Talvez um dia eu descubra a verdade por trás disso tudo, dessa presença oculta, invisível, que me fazia bem, naquele momento, porém, eu só desconfiava.

O tempo todo eu sabia que havia algo de errado comigo, só não podia imaginar a dimensão do problema. Aos quarenta e sete anos eu já me sentia velho diante dos meus jovens alunos e jovem diante de muitos dos meus colegas da Universidade Federal de São Carlos. Não chamaria isso de um conflito da idade, nem algo bom ou ruim, só uma observação, ou melhor, uma constatação. De certa forma, o ambiente universitário tinha dessas coisas, professores ficavam mais velhos, os anos avam, mas nossos alunos continuavam com os mesmos vinte e poucos anos. Em pouco tempo, uma nuvem de cabelos brancos invadiu a minha cabeça, rugas suaves mudaram os contornos dos meus olhos, o reflexo no espelho era então o de um jovem senhor, saudável, com muitos desafios adiante. Eu vivia várias projeções, pessoais, profissionais, familiares, iria me mudar para um apartamento mais amplo, enfim, de certa forma, eu estava descolado do presente. Assim era a cara da minha vida, com as marcas do ado e os flashes

do futuro, enquanto eu aguardava pelo meu horário no consultório do meu gastroenterologista.

Durante a espera, engatilhei uma sequência de negativas para o que eu vivia, "não deve ser nada". Eu era o retrato da boa saúde, corado, disposto, nada parecia me fazer mal. Quando muito, uma vez ao ano eu tinha um resfriado, três dias de resguardo, no máximo, e ponto final. Ir para qualquer canto, longe ou perto, era uma grande alegria para mim, minhas malas estavam sempre prontas para viajar. Podia comer de tudo, e comia mesmo, enchia de pimenta as minhas refeições, experimentei muita comida regional em minhas andanças. Certa vez em Manaus, no restaurante Lenhador, comi fartas porções de arraia grelhada, sarapatel de tartaruga, guisado de jacaré, com todos os tipos de farinha disponíveis, levei dias fazendo a digestão daquilo tudo, mas dei conta do recado, com méritos. Quem convivia comigo tinha essa mesma impressão, de um cara muito saudável e com muita vitalidade. As mudanças pelas quais eu estava ando não encontravam respaldo lógico, portanto, não me preocupavam. Eu me julgava fora de todos os possíveis fatores de risco, se havia algo de errado comigo, certamente não seria nada sério. Um tratamento curto, um remedinho, talvez uma dieta especial (glutão por natureza, torcia para que nem isso fosse necessário) e tudo voltaria ao normal.

Tinha em minhas mãos os resultados da endoscopia e da colonoscopia, imagens acompanhadas de laudos com jargão que eu pouco conhecia. Havia sido encontrado em meu cólon um tumor de espalhamento lateral que dava aproximadamente meia volta no anel do meu intestino. Tinha um aspecto horrível. Isso parecia explicar a mudança no meu hábito intestinal, o acúmulo de fezes durante o dia, o desconforto abdominal, mas faltava a biópsia para confirmar se era, ou não, câncer. Já dentro da sala do médico, a abertura do envelope com o veredicto pareceu-me um momento do Oscar, com aquele suspense para segurar a audiência. Doutor Daniel Luporini movia-se em câmera lenta diante dos meus olhos, a ansiedade mexia com as batidas do meu coração, acelerando meu ritmo interno e, principalmente, minha vontade de saber logo o resultado da biópsia.

- É, é mesmo, era o que eu pensava, foi detectado a tempo, mas você vai ter que tirar isso aí

Era ou não era câncer? Em nenhum momento ele usou a palavra "câncer", ela só ficou subentendida, com esmerada clareza. Por fim, era sim, infelizmente, se não fosse, "felizmente, não é nada" ou "é benigno, ainda bem", teriam aparecido em algum lugar na conversa. Foi assim que eu recebi a notícia, ao abrir o envelope lacrado com o resultado da biópsia e correr com os olhos a análise feita, Doutor Daniel não esboçava nenhum tipo de reação que revelasse a gravidade do caso. Nos poucos segundos que permaneceu em silêncio, lendo atentamente o conteúdo do envelope, o médico parecia confirmar algo que já sabia. Talvez fosse esse um protocolo comum para o anúncio de doenças graves, tranquilidade e cuidado com as palavras, mas comigo, não funcionou, imediatamente, eu resmunguei para mim mesmo "tenho câncer". Aos poucos, enquanto ouvia os comentários sobre a minha situação, abriu-se um enorme túnel diante de mim, por onde eu gradativamente me afastei dali.

De fato, até ouvir as primeiras falas do doutor Daniel, o câncer estava totalmente descartado como possível causa de mal funcionamento do meu intestino. Não me ava pela cabeça ter uma doença tão grave que só os outros tinham. No primeiro semestre de dois mil e dezenove, um aluno me escreveu desistindo da minha disciplina por conflito de horário com seu tratamento quimioterápico. Fiquei profundamente sensibilizado, mas nada pude fazer. As aulas continuaram, sem ele. O câncer parecia tão distante de mim e da minha realidade que eu me julgava imune a ele. Fui da total indiferença à mais profunda preocupação em poucos segundos. Minha vida não mais seria a mesma. No resultado dos meus exames, a palavra "tumor" aparecia ao lado de uma das imagens, a mais feia e deformada. Entretanto, no laudo final, a anomalia foi descrita como uma lesão de ângulo esplênico, para que me afligir! Uma mera questão de semântica, coisas da medicina. A lesão logo virou uma mera fissura na minha imaginação, deixei de lado qualquer resquício de inquietação e levei vida normal por uns dias.

Existem momentos na vida da gente em que o antes e o depois estão tão

distantes que nem parecem instantes subsequentes, ao ouvir o prognóstico do meu caso clínico, uma enorme cratera se abriu na minha escala de tempo, nada mais seria igual. Eu envelheci dez anos. Olhava para o outro lado da fenda, distante no horizonte temporal, irando a rotina dos meus dias normais, que eu nem morria de paixão, mas que me fariam uma falta danada dali em diante. Em matemática, esses saltos são chamados de descontinuidades, implicando, quase sempre, em desafios adicionais, muita análise e reflexão. O mais curioso, porém, foi que num piscar de olhos, parei de pensar no futuro, ou melhor, não conseguia pensar nele. Isso só se intensificaria nos dias, semanas e meses seguintes. Tinha uma viagem planejada para a Espanha, ainda estava decidindo sobre qual seria a melhor época, provavelmente, partiria na primeira semana de dezembro. Adoro viajar, vou para onde for com sorriso de orelha a orelha, a viagem não saía da minha cabeça, todos os dias eu arquitetava algo para viabilizá-la. Como seria a trabalho, havia trâmites internos na universidade que eu teria que atender. Lá se foi a viagem, numa tacada só, apagada de um futuro que já não era mais o meu.

Eu já sentia saudades de mim mesmo, a fala do Doutor Daniel não estava nem na metade, enquanto uma estranha onda de nostalgia me percorria dos pés à cabeça. Fui retirado da sociedade naquele instante, estava mais do que claro que eu deixaria muita coisa de lado para me tratar. Ainda levaria quase um mês para eu, de fato, me desligar totalmente dos meus afazeres e das minhas atribuições, a gravidade do meu caso demorou para se revelar por completo. Não podia imaginar que uma verdadeira revolução tomaria conta da minha vida, da minha alma inteira, da minha essência humana. Sobreviver ao câncer significaria muito mais do que continuar vivendo, tinha que ser diferente, tinha que ser melhor. Viver como antes já não valeria mais a pena, novos valores entrariam em cena durante a minha luta contra a doença. A tranquilidade do médico, e a minha também, era um sinal dos novos tempos. De certa forma, profissionalmente falando, ele estava feliz por ter encontrando o tumor a tempo, por estar salvando a minha vida. Eu levei uns dias até perceber isso, o sentimento de gratidão chegou atrasado, mas veio para ficar. Até o fim.

Sem embasamento racional nenhum, mas seguro mesmo assim, não sei porque, eu estava totalmente convencido de que o tumor era benigno, uma fissurinha de

nada. Imaginava que se fosse maligno, eu estaria, de certa forma, mais debilitado. Levei um certo tempo para chavear da imaginação para a realidade. Eu tinha câncer, não havia dúvida. Dali em diante, tudo seria diferente, o médico deixou muito claro que eu não recebia uma sentença de morte, embora frisasse a urgência do caso. Por uma fração de segundos, tive medo de sofrer, não de morrer. O sofrimento da dor foi o único medo que eu tive e que, felizmente, durou pouco. Logo em seguida, me deu uma vontade incontrolável de sair daquele consultório e tirar logo o tumor, que crescia sabe-se lá há quanto tempo em meu intestino. Desconhecia esse meu lado intuitivo, agia como se estivesse aguardando a largada de uma corrida, apesar de não temer a morte, eu não estava pronto para ela. Ao invés de me abater, ganhei de presente uma batelada de energia positiva que me animou rapidamente. Ao sair do consultório do Dr. Daniel, nascia um novo homem, perante os outros e eu mesmo.

Uma avalanche de pensamentos e de sensações invadiu a minha mente assim que eu me despedi do Dr. Daniel e fui para casa. Meus pais me acompanharam na consulta, estavam abatidos, mas dissimulavam uma tranquilidade, bastante cenográfica, que me fazia bem. Foi nesse momento que as peças de um enorme quebra-cabeça começaram a se encaixar, a inexplicável vontade de fumar, as companhias que eu percebia, mas não via, os sonhos diários, estranhos, soltos, tudo ou a fazer sentido. De fato, pensei, havia uma áurea estranha ao meu redor quando fiz os exames que encontraram o meu tumor. Naquele dia, fui para a Santa Casa de Misericórdia de São Carlos encafifado com um sonho que eu havia tido na véspera, sobre um monte de relógios. Não era a primeira vez que esse sonho surgia do nada no meu sono, dentre os inúmeros relógios que apareciam, destaque para um branquinho que eu tive na infância, com desenho do Mickey Mouse e braços como ponteiros. Sonhos são, aliás, um ingrediente clássico em minha vida, acho que sonho mais do que a média. Acho também que meus sonhos são diferentes, mais densos, uma experiência mais completa. Mas não tenho certeza. Falarei neles mais adiante.

As ruas pareciam diferentes depois do susto. Era uma tarde quente de oito de agosto de dois mil e dezenove, quinta-feira, dia em que começava o segundo semestre letivo na UFSCar. Minhas aulas seriam às terças e quartas, Desenvolvimento de Processos Químicos e Mecânica dos Fluidos,

respectivamente. O dia começou como outro qualquer, acordei preparado para o agito da volta às aulas, dos estacionamentos lotados, dos corredores cheios, de muito ruído e falação, não ava pela minha cabeça que, naquele mesmo dia, eu iria dormir sabendo que tinha câncer e uma verdadeira batalha pela frente. Foi um grande susto, não havia definição melhor para descrever a forma como eu recebi a notícia. Foi como receber aquela conta de água com um valor dez vezes mais alto. Ou mil vezes pior do que isso. Minha vida sempre foi muito previsível, nunca ei por grandes turbulências, nunca tive que me esforçar demais para ter as coisas, para conquistar meu espaço. Nasci em Rio Claro, no interior de São Paulo, na noite quente de três de fevereiro de mil novecentos e setenta e dois. Meu pai, um mato-grossense de Poxoréu que no início dos anos sessenta foi estudar no Rio de Janeiro, onde conheceu a minha mãe, era professor universitário e trabalhava no Departamento de Física da UNESP. O jovem casal levava uma vida de classe média, sem luxos, mas confortável.

Já que comecei, vamos lá, eu, por mim mesmo. Pois naquele três de fevereiro, entre bebês miúdos e de pele bem clara, descendentes de alemães e italianos em sua maioria, eu era um moreno parrudão com quase quatro quilos e meio e cinquenta centímetros de altura, ou de comprimento. Diferente, imponente e preguiçoso, impossível confundir com os demais. A troca de bebês, por engano, nas maternidades brasileiras era um tema que assustava os pais daquela época, e os meus não foram exceção. Não sei se houve um caso famoso que ganhou notoriedade, nem se havia alguma razão específica para isso, mas muitos se preocupavam com a identificação dos bebês logo após o parto. Se por um lado a troca era um erro fácil de evitar, por outro, era fácil de acontecer.

- Quero ver meu filho!

Ao receber a notícia do meu nascimento, sem rodeios, meu pai engatou uma série de justificativas para o seu pedido. Dentre elas, o principal foi o receio de uma troca de bebês. "Não quero correr esse risco". Era evidente essa preocupação, ainda mais depois das várias tentativas para que minha mãe engravidasse e a longa espera até a minha chegada. José Teixeira Freire, meu

pai, um professor universitário, na época, trabalhando no Departamento de Física da UNESP de Rio Claro, como já dito, casou-se com a minha mãe, Luzia Carmen Bentes Freire, uma jovem carioca com recém completados dezoito anos, num sábado de muito calor no Rio de Janeiro, três anos antes do meu nascimento, em vinte e um de dezembro de mil novecentos e sessenta e oito. Num ano de muita agitação no mundo todo, em que jovens descontentes foram para as ruas protestar, meus pais, que também eram jovens e cheios de ideais, resolveram fazer uma revolução própria, à maneira deles, através do casamento. Filhos já estavam nos planos, dois ou três, se possível, começando por um menino. A lua de mel seria o ponto de partida! Com isso em mente, enquanto o mundo fervia, os dois trocavam alianças e diziam, um para o outro, em alto e bom som, "sim", na Paróquia São José, uma igreja de formas quadradas, como uma caixa de sapatos, na rua Salustiano Silva, entre o bairro de Magalhães Bastos e a Vila Militar. Cidade Maravilhosa, Rio de Janeiro.

Veio então sessenta e nove, o homem pisou na lua pela primeira vez, e nada de filhos, setenta, Brasil tri-campeão mundial de futebol, mas nada de filhos, setenta e um, primeiro carro zero quilômetro da família, um Fuscão azul calcinha, e nada de filhos. Minha mãe simplesmente não engravidava. Era difícil saber a origem do problema, não havia estudos como os de hoje, não se conhecia tão bem as várias facetas da fertilidade ou da infertilidade, biológicas, fisiológicas, psicológicas e mais um caminhão de termos nessa linha. Vivendo no interior, sem dinheiro para tratamentos ou terapias, o jeito foi esperar, ter fé e seguir adiante, tentando, lógico, mas sem criar expectativas. Enfim, depois de um certo tempo, a tática funcionou. De férias no Rio e se sentindo indisposta, minha mãe, acompanhada de uma irmã mais nova, Maria das Graças, foi à Copacabana de ônibus para uma consulta com o médico da família, o Doutor Fernando Braga Lopes.

- Doutor Fernando, tenho andado sem disposição para nada, vivo cansada e sem fôlego - proferiu, sem ânimo, a jovem que me levava no ventre.

O experiente médico conhecia muito bem e há muitos anos todos os membros da

família da minha mãe, desde a minha avó, na década de 40, até os seus cinco filhos. A consulta foi rápida, o diagnóstico foi fácil, tirando a gravidez de dois meses que lhe tirava o fôlego, tudo normal com a minha mãe, não havia razão para se preocupar. Finalmente grávida, que alegria! No ano em que os orelhões começavam a ser efetivamente instalados nas ruas das grandes cidades brasileiras, encontrar um telefone público funcionando, para dar a notícia ao meu pai, foi uma missão próxima ao impossível. Fazer o quê? Sem outra alternativa (celulares não apareciam nem em filmes de ficção científica naquela época), o jeito foi conter a ansiedade, encarar os dois ônibus de volta para o subúrbio e contar a novidade pessoalmente. Melhor assim, deu tempo até para uma brincadeira que entraria para os anais da família. Minha tia, ainda em Copacabana, no caminho de volta, comprou uma chupeta azul para anunciar a gravidez. Acertou na brincadeira, que fez sucesso, e, mesmo sem saber o sexo do bebê, acertou na cor também. Azul para meninos, rosa para meninas, setenta e um era assim, deliciosamente incorreto.

Eu vou, mas eu volto, quantas vezes forem necessárias. Não consigo ser linear. Pois bem, diante de um obstetra sorridente e bem-humorado, meu pai, preocupadíssimo com a troca de bebês, ouviu a seguinte resposta à sua insistência em me ver no berçário:

- Seu filho é aquele negão ali, já nasceu criado!

Realmente, não tinha como me confundir com os outros. Uma preocupação a menos. Em dezembro de setenta e três a família aumentou com a chegada do meu irmão, o Flavio, também em Rio Claro, amos a infância no Rio de Janeiro, voltamos para Rio Claro, depois fomos para São Carlos, estudei, me formei, fiz mestrado, fui para São Paulo, depois para Lyon, na França, voltei para São Paulo, defendi meu doutorado, depois fui para Vancouver, no Canadá, fiz pós-doutorado, voltei para São Carlos, me tornei professor, fui para São Mateus, no Espírito Santo, em seguida, para Santo André, no ABC paulista, voltei para São Carlos de novo, fui para Bilbao como professor visitante, no País Basco espanhol, depois voltei para São Carlos mais uma vez, e no dia oito de

agosto de dois mil e dezenove eu descobri que tinha câncer de cólon. Nada mais seria como antes.

Na noite desse dia oito de agosto, fui dormir completamente esgotado, como se tivesse vivido vários meses em menos de vinte e quatro horas. O tempo ava diferente, mais devagar, no começo, eu não sabia muito bem o que fazer ou o que pensar. Jamais imaginei, nem no pior pesadelo, que eu teria que ar por uma cirurgia, muito menos que a minha sobrevivência dependeria dela. Fui dormir pesado, com toneladas de preocupações sobre a doença imprevisível que acometeu a minha vida e transformou o meu destino. Fechei os olhos, caí no sono, mas minha mente continuou ativa, incendiada com as imagens do dia estranho. Eu tinha câncer, e sabia disso. Acordei sobressaltado no meio da madrugada, levantei da cama, tomei um copo de água gelada, peguei um bloco de notas, e ei a escrever sem pensar. Transcrevo aqui o trecho que mais me marcou, "Enquanto isso, a vida continua, amanhã será outro dia, você precisa seguir vivendo. O tempo não para, não vai haver uma trégua para que você se trate e se cure, acostume-se com isso. O sol vai continuar nascendo e se pondo, você não vai deixar de existir, não espere compreensão, nem crie expectativas nos outros, busque em você mesmo a força que você precisa. Enquanto isso, melhore como homem, e viva bem cada minuto, como se fosse o último".

Pela primeira vez, desde que me lembrava, eu sentia vontade de continuar vivendo, algo novo para mim. Achei que seguiria vivendo, e bem, independente do que fosse, nunca tive nenhum grande revés com a minha saúde. Desejar a vida, a felicidade de continuar vivendo nesse mundo de provas e de expiações, mudaria profundamente a minha essência. O câncer me foi imposto, eu não tive escolha. Não fiquei deprimido, nem caí em profunda tristeza, só lamentei um pouco, tinha muita coisa que eu queria fazer e que deixaria de lado por causa da doença. Do momento em que recebi o diagnóstico do câncer, em diante, cada dia traria uma novidade, algo inusitado para quem só sabia viver a rotina do expediente na universidade. O futuro virou o dia seguinte, a nova consulta, o novo exame, a solicitação de autorização junto ao plano de saúde, uma peregrinação diária na região da Santa Casa de São Carlos, onde ficava concentrada boa parte do setor de saúde da cidade. Não havia outra opção, era isso, ou não fazer nada e deixar o tumor crescer e acabar comigo, aliás, a única

certeza que eu tinha. Tudo ficou condicionado, meu caso não era gravíssimo, muito menos terminal, eu precisaria ar por uma cirurgia para a retirada do tumor e tão logo me recuperasse dela, voltaria à minha vida normal. Bom, naquele momento, era realmente o que eu achava.

A CIRURGIA

Dei entrada no Hospital de Pronto Atendimento da Unimed de São Carlos às duas horas da tarde do dia vinte e dois de setembro de dois mil e dezenove. Meu domingo havia começado com um café da manhã de realeza, uma corridinha em torno do Parque Faber, bairro de condomínios em frente ao Iguatemi Shopping de São Carlos, um banho especialmente caprichado, e o preparo da minha mochila para os dias de internação. Para quem faria uma cirurgia de grande porte, invasiva, no dia seguinte, eu estava bastante calmo, na verdade, não via a hora de ar por ela. As semanas anteriores haviam sido de enorme correria, agitação e estresse, para que a cirurgia fosse feita. Essa parte eu não vou descrever aqui, viver uma vez aqueles dias de grande ansiedade, vá lá, revivê-los enquanto eu escrevo, nem pensar. Quando se descobre um câncer, inicia-se uma verdadeira corrida contra o tempo, do dia dezenove de julho até aquele momento, eu não havia tido sequer um segundo de trégua. Estava cansado de conviver com a doença e os problemas que ela me causava.

O aneurisma que carrego na aorta ascendente me deu um trabalhão no préoperatório. Conseguir a liberação para a cirurgia foi uma luta, quando descobri o problema cardíaco, em comum acordo com o meu cardiologista, o Doutor Marcelo Henrique de Paulo, optei por não operá-lo, mantendo um acompanhamento por exames de imagem de seis em seis meses. Pois bem, veio então o câncer e a necessidade de retirar o tumor através de uma cirurgia invasiva, que exigia uma condição cardiovascular impecável. Aí, o bicho pegou. Por prudência, tive que fazer alguns exames adicionais para garantir que eu tinha um coração forte e saudável o suficiente para ar pelo bisturi. Mais exames implicaram em mais autorizações junto ao plano, mais agendamentos, mais tempo e mais estresse. Por fim, em meados de setembro eu consegui a liberação do cardiologista para ar pela cirurgia. Eu já estava pilhado de tanta ansiedade para virar logo essa página da minha vida. Tentava manter o equilíbrio, com algum êxito até, mas já estava de saco cheio com tantas idas e vindas a clinicas, consultórios, etc, nesse período, ver gente vestida de branco me causava até taquicardia.

Fui para um apartamento individual bastante amplo, com direito a dois acompanhantes, frigobar, ar-condicionado, televisão, banheiro, tudo incluído no meu plano de saúde. Como sou membro do Sindicado de Docentes da UFSCar, meu plano de saúde era conveniado, mesmo com um salário que não permitia tantas regalias, eu teria bastante conforto durante a internação. Enfim, logo de cara ficou claro para mim que tudo conspirava a favor, no meio da tarde, começou o preparo para a operação que eu faria no dia seguinte. Tomei doses periódicas de laxante junto com suco de laranja, ultra adocicado, para limpar o intestino. Minhas refeições incluíam caldos e gelatinas, no início da noite, após inúmeras idas ao banheiro, não restava dúvida de que o meu intestino estava devidamente limpo. Recebi a visita do cirurgião, Dr.Edilson Abrantes, pouco antes das nove da noite, ouvi uma breve narrativa sobre como seria o procedimento operatório da videocirurgia, nas palavras do médico, corriqueira e tranquila. Seria usada uma mini-câmera de alta resolução, junto com instrumentos de dimensões reduzidas. As imagens do campo operatório seriam observadas em um monitor de vídeo, a parte lesionada do meu intestino seria retirada por um corte lateral na parte de baixo da minha barriga, à esquerda dela, e o o para a câmera e os instrumentos seria por meio de três furos, dois na lateral direita da barriga e um logo acima do umbigo. As cartas estavam sobre a mesa.

Recebia mensagens da família, de amigos e, até, de alguns alunos. Fiz questão de me manter conectado e de responder todas elas. Busquei sempre um tom calmo e sereno nas minhas mensagens, estava convencido de que a força do pensamento positivo se refletiria na minha vida, minha fé era outra no momento em que entrei naquele hospital. A televisão estava ligada, mas eu não assistia nada, lia um livro do Elio Gaspari que eu já tinha lido antes, sobre sessenta e quatro. Vivia um intenso processo de transformação, em pouco tempo, tive que repensar a minha vida de cabo a rabo, meus planos para o futuro foram completamente reescritos, decidi, a rigor, não ter mais planos. Planos engessam, criando expectativas e eventuais frustrações. Não dava mais para ser como antes. Meus pais me acompanhavam, fui feliz solteiro e vivendo sozinho, até então, mas me mudei para o apartamento dos meus velhos naquele fim de semana. Assim que tivesse alta da cirurgia, voltaria para o meu lar, estar sob os cuidados dos meus pais era muito bom, mas não havia conforto maior para um solteirão

convicto como eu do que o do meu próprio canto, desorganizado, desarrumado, sem decoração, sem graça, mas muito aconchegante. A alta não viria tão cedo quanto eu esperava, mas eu não sabia disso enquanto recebia as doses de laxante e de remédios para enjoo.

Chegava o grande dia. Dormi bem, sentia-me ébrio de tanto cansaço, nunca havia ado por cirurgia antes. O risco de que algo desse errado era pequeno, mas existia. Definitivamente, eu não estava preparado para morrer. Nas semanas anteriores eu havia feito um esforço além da conta para ser um homem melhor, de pensamentos mais nobres, visando garantir um bom lugarzinho lá em cima, no universo além-túmulo. A perspectiva de morrer durante a operação, entretanto, gerou uma certa paranoia naquelas horas de espera no Hospital, não sei porque, mas fiquei refém da imagem de um velório com um caixão florido e um morto dentro. Estagnada na minha cabeça, ia e vinha que nem iô iô, eu era o criador e mentor intelectual dessa tortura, que me causava um tremendo malestar. A solução para sair desse ciclo foi jogar meus pensamentos para um futuro bastante próximo, do pós-operatório, imaginar como eu estaria voltando para o quarto para a minha recuperação. Parecia funcionar, sem muito esforço, eu já conseguia me ver bem e livre do tumor, mesmo antes da cirurgia. Meus guias espirituais, anjos da guarda, inconsciente protetor, mecanismos de defesa, como preferirem, estavam comigo, eu nem me reconhecia mais.

Enfermeiros iam com frequência ao apartamento para checar os meus sinais vitais e me ar orientações. Às dez horas eu tomei um banho, depois vesti uma toca e um avental branco, aberto atrás, o primeiro desafio do dia. Me fez repensar um monte de coisas. Sou daquele tipo que não trocava nem de meia na frente dos outros, lá estava eu, peladão, só com um aventalzinho fino refrigerado na parte traseira. Esse pequeno e insignificante detalhe me incomodou bastante. Se por um lado, a exposição do meu traseiro não estava no meu script, por outro, desviou a minha atenção do bisturi que me cortaria dali a pouco. Fui tomado por um senso de pudor muito forte, imagine, um cara com o meu histórico de vida, que já se julgou um daqueles iluminados que surgem de vez em quando, ali, peladão, exibindo a própria bunda, de avental e toquinha, ambos brancos, tudo meio transparente, que prova! Era o jeito, a opção do terno e da gravata não havia, tinha que ser pelado mesmo. Começavam as superações, circulei meio

sem jeito com aquele avental, sempre segurando a parte de trás com uma das mãos, uma verdadeira comédia. Enfim, tinha que ter humor, pelo menos, um pouquinho. Os profissionais da área de saúde não estavam nem aí para isso, seguramente estavam acostumados a ver todos os tipos de peladões e eu era só mais um.

Após o banho, ei por um período cheio de lacunas, em parte pelo meu estado de espírito alterado, em parte pela medicação que me era istrada. Tomei o pré-anestésico às dez e meia, mas só fui levado para a sala de cirurgia às onze e quarenta, bastante lúcido por sinal. Um pouco antes disso, fiquei um tempo aguardando junto com outros pacientes na sala de recuperação, ao lado de uma senhora que seria operada da vesícula. Em uma maca bem a minha frente, um garotinho muito falante conversava com enfermeiros que se divertiam com as perguntas dele. Ele tinha curativos na altura do tórax, mas parecia desperto demais, eu não entendia muito bem aquilo, mas era muito animador ver aquela criança cheia de vitalidade, recebendo atenção e muito carinho de todos. Fechei os olhos, pensei em meus avós falecidos, e rezei um Pai Nosso. Pedi a eles, do alto da minha fé, renovada e reforçada pelas circunstancias, que estivessem comigo, queria pessoas conhecidas e amadas ao meu lado naquele momento. Iria fechar os olhos dali a pouco, queria muito acordar livre do tumor, da agonia, pronto para retomar meu ritmo de vida normal. A oração me fez bem, foi como tomar uma ducha gostosa, um banho de paz, Dona Elza (que, a rigor, eu nem cheguei a conhecer pessoalmente) e Seu Joaquim Freire, Dona Olga e Seu Ayr Bentes, tenho certeza, ouviram as minhas súplicas. Eu estava pronto.

Na sala de cirurgia, ligado em tudo o que acontecia, conversei com o anestesista que me explicou por alto o que ele faria. A anestesia peridural seria istrada por um cateter direto na minha coluna vertebral, eu apagaria e acordaria na sala de recuperação. Enquanto eu ouvia o anestesista, o cirurgião organizava as coisas ao meu redor, escolheu uma posição para o monitor por onde acompanharia as filmagens, deu orientações à equipe, conversou comigo rapidamente e eu apaguei. Mergulhei na mais profunda escuridão, sem sons, nem ecos, nem nada. Minha última lembrança que ficou foi de ver o Dr. Edilson, com roupas normais. Depois disso, aria mais de doze horas com lapsos de memória, períodos de descontinuidade na minha linha do tempo, fatos

totalmente apagados da minha mente. Pensei muito em como seria fechar os olhos para sempre, se tudo acabasse naquela hora, segundo a minha crença, meu espírito continuaria existindo, mas eu tinha medo mesmo assim. Não o medo de morrer, mas o medo de sofrer, de não ser bem acolhido, de não merecer um bom lugar depois da minha morte. Quando a morte me sondou mais de perto, fiz várias autoanálises e me classifiquei como um pecador mediano, nunca fui invejoso, nem muito egoísta, mas desejei mal e tive pensamentos cruéis em momentos de raiva. Infelizmente, numa frequência que poderia comprometer as coisas para o meu lado.

No período em que estive me preparando para a cirurgia, li vários livros espíritas sobre o desencarne de pessoas boas e ruins, com poucas ou muitas dívidas a pagar. A maldade consciente e intencional parecia não ter respaldo divino, nesses casos, o umbral seria o destino certo. Demais desvios de valores e de conduta tinham um impacto menos drástico na trajetória do morto, torcia para que fosse esse o meu caso. Muita gente morre de sobressalto, em acidentes terríveis, vítimas de balas perdidas, em plena saúde, sem se prepararem para isso, num piscar de olhos. Eu tive tempo para pensar na morte, até de me preparar para ela. Minha vida não corria grande risco, não havia perigo iminente, as estatísticas estavam ao meu favor, mas foi a primeira vez que eu cogitei a minha própria morte. De alguma maneira, eu tinha que me preparar para ela. Pode ser que eu já tivesse escapado da morte antes, ao pegar o caminho da esquerda e não o da direita, esperando ao invés de ter o que eu queria, no ato, na hora, sei lá. Na aleatoriedade da vida, nos tornamos malabaristas da sobrevivência, a única certeza que temos é a de que morreremos um dia, só não sabemos onde, como e nem quando.

Em dois mil e sete eu era professor na Universidade Federal do Espírito Santo e fazia com frequência o voo entre Vitória e São Paulo, de preferência pelo aeroporto de Congonhas, muito mais conveniente para mim. No dia dezessete de julho, uma terça-feira, peguei um voo na capital capixaba no começo da tarde e desci em Congonhas uma hora e meia depois. Havia ado o sábado e o domingo curtindo o recesso das férias em Jardim Camburi, aproveitaria a semana em São Carlos para rever a família e trabalhar um pouco. Mantinha fortes vínculos com as universidades paulistas, voltaria, inclusive, para São

Paulo no ano seguinte, como professor da jovem UFABC de Santo André. Mas naquela terça-feira, eu ainda não sabia de nada disso, nem imaginava. Procuro sempre viajar na janela, corro para fazer o checkin assim que ele se torna disponível, naquele voo, não foi diferente. Na hora do embarque, já dentro do avião, notei que havia uma senhora ocupando a minha poltrona na janela, sem saber que havia uma numeração a ser respeitada. Fiquei fulo da vida, aceitei trocar de lugar e viajei na poltrona originalmente reservada para a ela, que era bastante gentil e simplória, mas lamentei bastante o ocorrido. O voo foi tranquilo, sem atrasos, ao chegar, sai correndo de Congonhas diretamente para o Terminal Tietê, peguei o primeiro horário disponível de ônibus e segui para São Carlos. À noite, na casa dos meus pais, de banho recém tomado, o plantão de notícias mostrava na televisão um avião da TAM em chamas após colidir contra um prédio depois de um pouso desastrado e catastrófico em Congonhas, por onde eu acabara de ar. Fiquei muito impressionado.

Lembrei desse acidente e de sua proximidade comigo enquanto lia os tais livros espiritas. Eu não só estava naquele aeroporto no fatídico dia como ei em frente ao prédio incendiado algumas horas antes. Mas a lembrança que mais me incomodou foi a da minha reação à senhora que se sentou no meu lugar, cuidadosamente escolhido ao lado da janela. Não fui rude, mas acho que não consegui evitar um condenável ar de superioridade diante daquela mulher que viajava sozinha de avião, muito provavelmente, pela primeira vez. Doze anos haviam se ado, eu nada mais podia fazer a não ser me arrepender e pedir perdão, tardio, mas sincero. A fisionomia da senhora estava completamente apagada dessa história toda, morena, loira, gorda, verde, azul marinho, não tinha como eu saber, só me lembrava, e bem, do seu jeito humilde e dos pedidos de desculpas. Num dia em que muita gente perdeu a vida, e que várias famílias sofreram um doloroso luto, eu me aborreci e estraguei uma viagem boa só porque não havia me sentado ao lado da janela de um avião em perfeitas condições de voo.

Perceber falhas como essa, itir o erro, de certa forma, confortava. Corrigir os erros e não cair na tentação de repeti-los, era uma outra história, mas não tirava o mérito do reconhecimento. Assimilar os ensinamentos da boa conduta, dentro ou fora de uma religião, pode ser o desafio de uma vida inteira, aos quarenta e sete

anos eu mi vi meio que obrigado a fazer isso em poucos meses. Tinha verdadeiro pavor do lamaçal do umbral, ou das chamas do inferno, não me julgava tão pecador assim, mas nunca se sabe. Morrer ali na mesa de cirurgia não seria fácil, a possibilidade era remota e eu sabia disso. Mesmo assim, eu me preparei como pude, ainda muito relutante, ainda muito abraçado à vida e ao mundo material. Queria muito uma segunda chance, renascido após aquela experiência tão intensa, de batalha contra o câncer. Naquele momento, minha vida parecia estar cercada por protetores, boas energias, gente oculta me auxiliando, não foi tão difícil lidar com a pressão dos fatos. Diariamente, um desafio, uma novidade, uma superação. Nem nos meus piores pesadelos eu imaginei que um dia poderia ter câncer, meu histórico de saúde sempre foi muito bom, mas a vida não era cartesiana assim. Veio o câncer, precoce, por assim dizer, e veio também, de carona, um sopro de mortalidade.

Felizmente, esse livro não foi psicografado porque eu não morri. Acordei da cirurgia meio abobalhado, na sala de recuperação, grogue dos pés à cabeça, mas lúcido o suficiente para notar que eu havia sobrevivido. Diante de mim, um relógio de parede marcava cinco horas da tarde. A imagem seguinte foi cheia de interrogações. Nem tudo precisa ser explicado, desconheço por completo os mistérios da mente, mas tenho a nítida lembrança de estar sentado em uma espreguiçadeira diante de uma paisagem serrana. Eu fumava um cigarro, dava para ver as mangas do roupão que eu vestia. Sentia muita falta de ar. Tinha uma dificuldade tremenda para respirar. Doía-me as costas. Uma confusão danada, entre a realidade da sala de recuperação e a visão da encosta de uma serra, uma imensidão esverdeada de bela vegetação. Será que eu morri?!!

- Sua taxa de respiração está abaixo do normal, você ficará por aqui enquanto ela não normalizar

Puxando a máscara de oxigênio acoplada ao meu rosto, alguém me proferiu essas palavras enquanto a falta de ar judiava de mim, a felicidade de abrir os olhos e de continuar existindo era inestimável, indescritível em palavras. Finquei imediatamente meus pés no agito da sala de recuperação, outros pacientes

orbitavam ao meu redor, aparentemente, voltei a respirar melhor, pois na próxima lembrança eu já estava devidamente alojado no meu quarto.

Recobrei plenamente os sentidos somente no dia seguinte, cheio de lacunas pelo caminho. Na tarde do dia vinte e quatro eu conseguia conversar com alguma coerência, fiz várias perguntas e ouvi as respostas entendendo tudo. O procedimento cirúrgico do dia anterior havia durado pouco mais de quatro horas, o tumor foi retirado com sucesso, fui costurado, grampeado ou colado, pelo lado de dentro e pelo lado de fora. O pior havia ado, faltava só o resultado da biópsia que seria feita no material coletado. Independente disso, eu me convenci, e meu ótimo pós-operatório só reforçaria essa crença, de que não precisaria fazer quimioterapia. Na verdade, em pouco tempo eu descartei a quimioterapia como etapa necessária para o meu tratamento, e ei a esperar, com ansiedade, mas sem sofrimento, a alta tão sonhada. No mesmo dia em que a minha vida parecia voltar para os eixos tão rapidamente, menos de doze horas depois da cirurgia, fiz uma caminhada no corredor em frente ao meu quarto. Apesar das limitações e da falta de jeito, fui para um lado e para o outro arrastando uma espécie de cabideiro com rodinhas, levando nele os medicamentos que me eram istrados através de uma punção. Foi muito bom, doía tudo, mas nada muito espetacular. A dor era ável, dava para conviver com ela por uns dias, sem reclamar.

- Oi Luzia!

Ao ar por um dos quartos no trajeto que eu fazia, ao lado da minha mãe, que me acompanhava no meu pequeno exercício indoor, uma conhecida dela a saudou com um enorme sorriso e uma surpresa ainda maior.

- Oi Vera!

Por uma daquelas coincidências que mais parecem obras do destino, Dona Vera, uma ex-vizinha dos meus pais que eu pouco conhecia, aguardava ao lado do marido a cirurgia semelhante à minha que ele faria no dia seguinte, mais precisamente, vinte e cinco de setembro. Deu para notar que ambos estavam muito ansiosos, o caso era mais sério do que o meu, mais emergencial, não houve tempo para preparo, logo após a colonoscopia, houve a internação.

- O Fábio fez essa cirurgia ontem à tarde e já está andando!

Enquanto minha mãe tentava animar a ex-vizinha, levantei minha blusa e mostrei meus curativos. Só aí foi que eu me dei conta de que também estava vendo aquilo tudo pela primeira vez. Foi um choque, levei um susto enorme ao ver minha barriga inflada, deformada nas laterais, muito maior do que o normal. Depois fiquei sabendo que a videocirurgia usava injeções de gases em várias cavidades do abdômen, eu ficaria literalmente inflado por várias semanas. A visão da minha barrigona me deixou mudo por alguns segundos, Dona Vera gostou de ver os curativos e, principalmente, meu aspecto geral. Realmente, eu estava muito bem, e feliz, era evidente. Conversei rapidamente com o marido dela, tentei incentivá-lo, cuidei das palavras, parece que consegui alguma coisa. O tumor dele era maior do que o meu, a idade também era maior do que a minha, mas as chances de cura para nós dois eram muito parecidas. Meus avós maternos morreram de câncer no estômago, tardiamente descoberto. "Não tem o que fazer", em ambos os casos, foi duro de mais ouvir isso. Meu diagnóstico foi bem diferente, receber a notícia da doença foi muito difícil, mas meu caso tinha esperança. Eu sabia disso desde o início.

Fiquei internado até meados da tarde do dia vinte e seis de setembro, uma quinta-feira chuvosa, ei esse tempo todo melhorando a cada dia. Um único episódio deu um toque dramático na minha recuperação. No domingo em que eu fui internado, talvez por obra de uma ansiedade inconsciente, dei um mau jeito nas minhas costas. No ato da operação, ainda consciente, lembro-me de ter, eu mesmo, me ajeitado na mesa de cirurgia. Saí da maca para a cama, e me ajeitei como pude, nunca me esquecendo do avental aberto na parte de trás. Acho que

não me posicionei bem, após recobrar os sentidos, notei que tinha ficado uma ferida na minha lombar, grande, com aspecto de um abscesso. Essa ferida incomodou muito, eu simplesmente não conseguia encontrar uma posição confortável para aliviar as dores dos cortes. O resultado disso foi que, na madrugada do dia vinte e quatro para o dia vinte e cinco, as dores da operação se tornaram ináveis, eu me contorcia em cima da cama sem saber o que fazer. Diante do meu suplício, o anestesista foi chamado e tomei uma dose de morfina, aplicada diretamente no cateter ainda enfiado na minha coluna. Uma onda gelada se espalhou imediatamente nas minhas costas, descendo pelas pernas, a dor indescritível foi substituída por um prazer fora desse mundo, eu gemia como um gato no cio.

Tive alta hospitalar na quinta-feira, no final da tarde. Ao atravessar a porta do Hospital, em direção ao carro do meu pai que estava estacionado bem em frente, nenhuma nuvem pesada de chumbo ia junto comigo, só pensamentos leves. Vários profissionais da área de saúde cuidaram de mim naquele período de internação que terminava num dia de garoa. Me despedi de vários deles com aquele misto de alegria e de gratidão que enche a gente de ânimo. Minha vontade de estar na rua e de voltar para casa era maior do que qualquer lembrança ruim dos dias, semanas e meses anteriores. Havia em mim um otimismo sincero, quase uma certeza de que o pior ficava para trás. Por causa da chuva, o trânsito estava ruim, mesmo vivendo no interior, congestionamentos eram normais nessas ocasiões. São Carlos é uma cidade de muitas ruas e de poucas avenidas e vias expressas, com uma frota respeitável de automóveis e intensa circulação. Ziguezagueando, fugindo da lentidão por caminhos de rato, chegamos ao prédio dos meus pais pouco antes das cinco da tarde. Os solavancos causados pelo asfalto irregular me faziam segurar a barriga e rezar todos os salmos. O processo completo de cicatrização, tanto externa quanto interna, levaria quase dois meses, quicar dentro do carro parecia acender uma luz vermelha em algum lugar. Mas foi rápido, quando me dei conta, já estava na varanda do apartamento quinhentos e quatro, confortavelmente sentado em uma poltrona, contemplando a chuva fina e a paz de espírito na forma de pequenas gotas.

Perdi bastante peso na primeira semana fora do hospital, minha alimentação

estava restrita e, a rigor, eu nem tinha vontade de comer. Fazia caminhadas diárias no piso térreo do prédio, importantes no processo de expelir os gases que haviam sido injetados na cirurgia. Para quem tinha o hábito de correr diariamente, no sol ou na chuva, era engraçado caminhar como um velho, devagar, segurando a barriga de vez em quando. Fui a cinco edições da São Silvestre, fiz uma meia-maratona no Rio e ainda participei de outras duas corridas de rua em Vitória (ES), que eu me lembre. A caminhada no hall do prédio era o novo desafio, de meia e chinelo, eu dava voltas e mais voltas, as vezes no sentido horário, outras vezes, no anti-horário. Um hamster tamanho família. Era bom, minha nova filosofia de vida era olhar para frente, e não para trás, meu ado de corredor, dadas as circunstâncias, parecia bem menos interessante do que o futuro livre do câncer. Eu pensava diferente, agradecido pela benção de estar tendo aquela segunda chance. Na fase de descoberta da doença e da luta pelo tratamento, tive muito e de todos na UFSCar. Surpreendentemente, me desliguei das minhas questões de trabalho sem grande sacrifício, os prazos continuaram existindo, as cobranças também, eu tinha alunos sob minha orientação, querendo ser orientados, trâmites do meu afastamento eram uma burocracia danada, mas tudo ganhou tons suaves diante dos meus olhos. Nada mais me estressava, menos ainda, do meu trabalho.

Por falar neles, trâmites burocráticos são isentos de humanidade, mesmo nos casos de licença médica por doença grave. Todos lamentam o infortúnio, se solidarizam e tudo mais, só que normas são normas, regras são regras e resoluções são resoluções. Não pode faltar documento, nem , nem carimbo, nem nada. Ter um tumor maligno não bastava, era preciso comproválo, ar pelo sofrimento do diagnóstico, da correria para a cirurgia, do pósoperatório, nada disso interessava, o que valia mesmo eram os papéis. Somos bandidos e mentirosos até provarmos o contrário. Essa era a cultura latina, o jeito de pensar em que a palavra dita não valia absolutamente nada. A honestidade era sempre contestada, ser desonesto era o padrão moral. Nesse mundo tão estranho da atualidade, a dramaticidade era ainda maior, não existia mais diálogo, as conversas eram virtuais, a política extremista estava dividindo e separando as pessoas, ninguém se entendia, ninguém se importava. O negócio era viver bem dentro do próprio umbigo, procurando conforto e refúgio no isolamento, cada um por si e Deus por todos. Depois que tive o câncer, ei a me sentir mais inserido na sociedade, no sentido de depender mais dos outros, isso tudo muda muito a gente. Tantas dores, tantas lágrimas, tanto desespero,

tanta necessidade, no comparativo, eu não tinha nada disso, problema nenhum, tive a dádiva de descobrir uma doença a tempo e só motivos para agradecer. Superar cada obstáculo do caminho foi muito mais do que uma vitória individual, mas sim, um amadurecimento quase instantâneo, todo ser humano que recebe uma segunda chance de viver, precisa viver diferente.

Em pouco tempo, deixei os incômodos do pós-operatório para trás, a cada dia eu acordava visivelmente melhor do que no dia anterior. Isso me animava enormemente. Minha saúde geral era muito boa, apesar do câncer e das mudanças no funcionamento do meu intestino, eu não tinha nada de mais comprometedor, minha vida era bastante normal. Foi retirado pouco mais de vinte centímetros do meu intestino, a recomendação médica era para que eu me hidratasse bem, comesse alimentação pastosa e fizesse caminhadas diárias. Eu fazia tudo isso, inflado que nem um balão de São João. Gradativamente, eu me convencia de que a cirurgia tinha me livrado do problema e que em mais algumas semanas eu teria alta. Tudo ia bem, a recuperação estava muito acima do esperado, não tinha como não se animar. A questão foi que eu acabei me iludindo, em nenhum momento os médicos me disseram que eu não precisaria ar por quimioterapia, mesmo assim, eu a descartei totalmente da cabeça. A alta do pós-operatório estava prevista para um mês após a cirurgia, até lá, todo cuidado era pouco. Fiz tudo o que o médico me mandou fazer, disciplinado e resignado, na condição de paciente obediente. A palavra "câncer" começava a ser apagada do meu dicionário, eu não tinha medo nenhum dela, os outros é que tinham. Nem os médicos mencionavam esse nome nas conversas comigo, ele ficava subentendido. Mesmo diante da minha insistente negativa sobre a necessidade de quimioterapia, eu nada pude fazer quando a palavra "câncer", de fato, caiu fora do meu dicionário, e da minha vida, e a pavorosa "metástase" entrou em cena.

PRIMEIRO DIA DE QUIMIOTERAPIA

A biopsia do tumor revelou que já havia um princípio de metástase, saindo do intestino pela parede externa e chegando nas vizinhanças, mais precisamente, do meu fígado. Em uma escala de zero à quatro, meu câncer foi classificado de estágio três, ou seja, avançado, mas localizado. Um tumor que se mostrou recente nos exames de sangue, mas bastante agressivo de acordo com a biópsia. Numa amostragem de onze pontos, um único indicava a metástase e, por conta dele, tive que me submeter a um ciclo de quimioterapia, que equivalia a seis meses de tratamento. Entre a recuperação do pós-operatório e o início dos procedimentos para a quimioterapia, ei cinco dias em Belém do Pará, participando de um congresso brasileiro em minha área de pesquisa. Foi muito bom, apesar das restrições alimentares, voltei mais gordinho, com mais reserva para encarar os seis meses que me aguardavam. Tudo muito corrido, cheguei de viagem na madrugada de trinta e um de outubro para primeiro de novembro, início de uma sexta-feira. Como São Carlos não tinha aeroporto, ainda tive que dirigir os mais de cento e cinquenta quilômetros que separavam Viracopos da minha casa, uma correria danada, mas valeu a pena. Valeu tanto que não poderia ar em branco, preciso contar, pelo menos por alto, como foi bom ter quebrado um pouco a rotina de hospitais, exames e consultas, na bela capital do Pará.

A vida de quem recebe um diagnóstico como o meu muda bastante, em um piscar de olhos. É preciso redobrar o cuidado com as armadilhas da mente, qualquer desânimo tem sérias consequências tanto no tratamento quanto, obviamente, na cura. Eu queria ficar bom, voltar aos meus dias normais, plenos, mas tinha que respeitar o tempo de espera, contado em meses, sem parar a minha vida por completo em uma pausa de lamentos. Fui para Belém, como já dito, exatamente na semana anterior ao início da quimio. Viajei com uma grande pulga atrás da orelha, receoso se estava, de fato, fazendo a coisa certa, mas fui mesmo assim, alimentando uma fé em coisas boas que era nova para mim. Sempre fui mais pessimista do que otimista, infelizmente, uma conta cara de pagar. Não dava para continuar assim. Saí de São Carlos no dia vinte e seis de outubro, meu sábado festivo, às quatro e meia da manhã, estavam comigo no

meu carro, os meus pais e uma colega de trabalho. Não é tão raro haver, dentro da família, membros que seguem uma mesma profissão, filhos que buscam a mesma carreira do pai ou da mãe, marido e mulher que trabalham juntos, esse tipo de coisa. Pois eu e o meu irmão nos tornamos professores de engenharia por influência do meu pai, e eu trabalho com ele na UFSCar, dividindo, inclusive, a mesma sala no departamento. Não bastasse isso, meu pai era um pioneiro e seria a grande estrela do congresso em Belém, presidia o comité permanente há anos, nunca tendo faltado a nenhuma edição do evento que tinha praticamente a minha idade.

Fazia tempo que eu não dirigia na estrada, sou apaixonado por carros e por asfalto, os cento e cinquenta quilômetros até Campinas e o aeroporto de Viracopos foram vencidos com enorme prazer, sentia-me nas nuvens, curtindo tudo, até o trânsito que nunca era leve. Nessas horas, a doença ia embora, pelo menos, da cabeça, o nascer de mais um dia, em plena Rodovia Bandeirantes, já nas proximidades de Campinas, foi a pá de cal. Sorria sem me dar conta. Meu pós-operatório havia sido muito bom, eu me sentia bem, sem o desconforto de um intestino que teimava em não funcionar direito. Depois da cirurgia, ei a me sentar no trono como se, de fato, fosse um Rei, sem ter que fazer esforço nenhum, um verdadeiro nobre, e não um serviçal, sem me machucar por conta disso. Já nem me lembrava mais de como era essa sensação, de normalidade. Tão boa que a gente só nota, e dá valor, quando perde. Mas enfim, eu queria ser outro, então, o negócio era olhar para frente, e para mim, adiante estava Viracopos. O grande aeroporto internacional era um velho conhecido meu, nos tempos das vacas gordas, viajei muito por lá, de certa forma, parecia uma extensão do meu trabalho. E era, ou melhor, foi.

O voo para Belém saiu com mais de uma hora de atraso, a aeronave apresentou problemas, mudamos de portão de embarque quatro vezes, e eu nem aí com isso, não esquentava a moringa. Minha felicidade tinha a blindagem dos melhores pensamentos que já habitaram a minha mente, eu tinha vontade de tudo, falar com estranhos, algo que nunca gostei, andar de um lado para o outro, sorrir e cumprimentar, e, principalmente, esquecer por um momento meu primeiro round com o câncer. Parte do peso que eu havia perdido depois da internação estava de volta e Belém me traria mais alguns. Meu aspecto era ótimo, barba feita, cabelo

cortado, sorriso fácil, acima de tudo, eu era um cara feliz, e deixava isso bem claro. O avião demorou para sair, o voo levaria mais de três horas até Belém, mesmo assim, a viagem foi muito boa, eu registrava tudo, vizinhos de poltrona, gente indo ao banheiro, serviço de bordo, crianças choramingando, o zumbido das turbinas, turbulências e instabilidades, nada ou despercebido. Meu olhar era outro, que nem o de um fotografo experiente que vê a beleza onde ela realmente está, guardei belas imagens e singelas lembranças que jamais esquecerei. Vez ou outra, me emocionei sozinho, imerso em introspecções, sereno em minha poltrona, aguardando com alegria, o pouso que se aproximava.

O desembarque no Aeroporto Val-de-Cans de Belém foi relativamente rápido, cheguei ao hotel e saí para comer antes da chuva da tarde. Era diferente estar ali, de certa forma, minha carreira incluiu um certo número de viagens que me deixou um pouco indiferente a elas. Não tenho sucesso profissional, nem um nome de peso no meio acadêmico, mas tanto durante a minha formação quanto no trabalho em si, viajei bastante. Menos do que gostaria, mas mais do que muita gente que eu conheço. Em dois mil e quatorze, ei duas semanas em Manaus cumprindo um compromisso na Universidade Federal do Amazonas, gostei muito da cidade, dos seus costumes e, principalmente, da sua culinária. Tinha ótimas expectativas com relação à Belém, aria longe do tacacá, do tucupi e da maniçoba, mas o açaí com camarão não estava descartado da lista, meu oncologista estava a mais de três mil quilômetros de distância enquanto a rebeldia de um libido gastronômico temperava, com suspiros maliciosos, tentações nos meus ouvidos. Eu estava deslumbrado, a capital paraense era o destino de um novo homem, fazia calor e estava abafado. A baforada de ar quente, já na saída do avião, criou imediatamente uma sinfonia de sensações boas, incríveis, o suor varria-me o rosto, levando para longe o resquício de dúvida que ainda havia sobre a viagem. Meu coração pulava alegre no peito, e era só o começo.

A fome foi uma companheira exclusiva e absoluta nas primeiras horas em Belém, sua presença era tão desagradável quanto inevitável. Levei um tempão para fazer o check-in no hotel Princesa Louçã, na Avenida Presidente Vargas, diante das praças da República e João Coelho. Por unanimidade, e rápido, eu, meus pais e a Maria do Carmo, minha colega de departamento, decidimos por

almoçar na Estação das Docas, um complexo de restaurantes, bares e lojas, em galpões restaurados bem às margens do Rio Guamá. Lá chegando, também de comum acordo, e mais rápido ainda, decidimos que nossa primeira refeição não seria nem em restaurante tipo self-service, nem por quilo. Não precisamos andar muito para encontrar o que queríamos, um canto aconchegante, com um belo menu à la carte e uma vista do rio mais bela ainda, o lugar estava animado, cheio de gente falando e se divertindo. Era tudo o que eu precisava. Logo na entrada do restaurante, ao alcance dos olhos, havia um quadro negro retrô com as sugestões do dia, escritas à giz. Sugestão é sempre bem-vinda. Antes mesmo de encontrar uma mesa para sentar, eu já tinha o meu pedido, arroz com creme de espinafre e camarões. Não sabia exatamente se o prato atendia às exigências da minha dieta pré-quimioterapia, por assim dizer, mas foi amor à primeira vista, não me faria mal.

De barriga cheia, o resto do dia ganhou mais cores, minha felicidade transbordava que nem um rio provocado, descontente com a própria margem. Antes de encararmos, a pé, o caminho de volta para o hotel, tomamos sorvetes típicos da Amazônia, ainda na Estação das Docas, no conforto do arcondicionado. Eu tomei um de tapioca, delicioso. Tão bom que me refrescou bem até do lado de fora das docas, num calor danado, peregrinando pelas ruas do centro de Belém. Estava abafado, já disse isso, e com pinta de chuva, não precisava ter uma bola de cristal para prever que iríamos nos molhar. A famosa chuva da tarde de Belém, que a gente aprendia nas aulas de geografia, ansiava por se apresentar. Alguns meses antes, eu teria ficado certamente ansioso com esse anúncio, tenho medo, quase pavor, de raios, mas vivia uma nova fase da minha existência, foi mais fácil lidar com pensamentos angustiantes que nada contribuíam naquele momento. Sofrer por antecipação era um desgaste desnecessário, ainda mais para um paciente com câncer que precisava otimizar ânimo e energia. A chuva, de fato, despencou sobre a gente, mas em boa hora, exatamente quando ávamos em frente à simpática e convidativa confeitaria Tivoli. Resultado, pausa para um cafezinho, e um gostoso bate-papo, abençoado pelo inigualável cheiro da chuva.

Sofrer por antecipação, à toa, sem necessidade, para depois tudo acabar bem, como tem que ser. Muito antes do surgimento da doença, esse era um mal

consciente e nocivo que eu combatia a todo instante, principalmente depois que ei a assimilar melhor a doutrina espírita. Extirpar algo tão enraizado não era tarefa fácil, nesse sentido, o câncer e sua presença indesejável davam uma mãozinha. Com a chegada da fase adulta, universidade, pós-graduação, trabalho, ei a ter uma relação pouco saudável com o tempo, fazendo projeções em que eu me colocava fisicamente no futuro, imaginando como seria. Nunca era bom. Daria para citar aqui em detalhes inúmeros casos em que eu fiz isso, só os que envolveram a minha profissão seriam suficientes para encher um livro inteiro. Para manter o contexto, entretanto, vem-me à lembrança a primeira ressonância magnética que eu fiz para confirmar um aneurisma cardíaco. Foi em dois mil e dezesseis, ei semanas encafifado com o exame, ouvindo um monte de histórias a respeito da claustrofobia que o equipamento provocava, dos incômodos, do contraste na veia, dos barulhos, da demora, disso e daquilo. Pintei um quadro cinza da situação, fiquei ansioso e angustiado, no dia da ressonância, eu parecia um zumbi. Nada do que eu imaginei aconteceu, ei cinquenta minutos enclausurado no equipamento, preso dos pés à cabeça, tranquilíssimo, não fossem os barulhos e a tarefa comandada de inspirar e expirar, eu teria dormido. O aneurisma foi confirmado, na aorta ascendente, saí da Santa Casa azul de fome, direto para comer um pão de queijo (deve ter sido mais do que um) numa lanchonete próxima.

Eu vou, mas eu volto. O primeiro dia da viagem terminou como começou, com majestosa perfeição, diante dos meus olhos, tudo era bom e valia a pena. Minha percepção de vida mudou muito com a doença, sem que eu me desse real conta, as mudanças vieram devagarzinho, e conquistaram espaço dentro de mim. Era a última semana de outubro, de um ano diferente, ainda faltavam dois meses para o seu fim, mas o único futuro que eu me permitia pensar, ao observar a noite escura pela janela do meu quarto no décimo sexto andar, era o dia seguinte, os demais, que viessem. ei muito tempo e gastei muita energia tentando imaginar o meu futuro, fui assim quase a vida toda, sempre me colocando em situações imaginárias na ficção que eu criava. Minhas previsões pouco me ajudaram, acertei e errei, a gente não escolhe o jeito de ser, eu era assim, não conseguia ser diferente. A cruz que eu tive que carregar nos ombros depois do diagnóstico do câncer, pesada para uns, leve para outros, não me deixava olhar muito para a frente, seguia arqueado, focado no próximo o. Resignado com a caminhada, aprendendo com ela. Um o e depois outro, era só isso que eu tinha que fazer. Apesar dos pesares, havia esse lado da descoberta que era muito

gratificante, do baú trancado à sete chaves que se abria, cheio de coisas boas, todas ao meu dispor. A noite estava um verdadeiro encanto quando fui dormir.

Os demais dias em Belém foram dedicados exclusivamente ao XXXIX Congresso Brasileiro de Sistemas Particulados, organizado pelo Departamento de Engenharia Química da UFPA. Como a abertura do evento só foi no domingo à noite, ainda encontrei tempo para fazer um eio de barco em um trecho do Rio Guamá. Turismo no melhor estilo bate e volta, mas muito bem aproveitado. Como já dito, meu pai era um grande expoente na história do congresso, foi ao primeiro, organizou o segundo e nunca deixou de participar. De certa forma, a carreira de sucesso do meu pai, mais do que merecida, fruto de muita dedicação, seguiu em paralelo com a linha do tempo do Congresso Brasileiro de Sistemas Particulados, ambos cresceram juntos. Entre o jovem professor assistente, só com o mestrado na bagagem, que participou da primeira edição em setenta e três, e o professor titular e emérito da UFSCar, que brilhava na trigésima nona, muita água rolou. Foi bom ter acompanhado o velho, ter compartilhado com ele aqueles dias de agitação acadêmica. Singelamente, minha contribuição minimalista, desta vez, havia sido com seis trabalhos científicos, uma média até que boa e confortável para mim. Voltei da viagem à Belém com uma ótima carga de energia positiva.

Logo pela manhã, na sexta-feira, primeiro de novembro, às nove em ponto, recém-chegado de Belém, em São Carlos, ei por uma rápida consulta com o anestesista e fui habilitado para a cirurgia de implante do portocath, marcada para terça-feira, cinco de novembro, exatamente um dia após o feriado do aniversário da cidade. Pois é, o portocath é um cateter implantado em veia profunda para a istração de medicamentos, no meu caso, ficou posicionado um pouco acima do mamilo direito. O aparato completo tinha ainda um tubinho que ficava por debaixo da pele, ligando o ponto de injeção a uma agulha na altura do pescoço, direto na minha jugular, ou carótida, sei lá. Tudo embutido. Fiquei parecido com uma instalação hidráulica, igual a várias que eu expus para alunos de engenharia em minhas aulas de mecânica dos fluidos. Ironia do destino! O medicamento seria injetado por um infusor na forma de uma rosquinha parruda, que ficaria em uma pochete bem na minha cintura. Temperatura ambiente, altura da coluna de fluido, entre outros fatores,

controlavam a vazão volumétrica ideal de injeção, cinco mililitros por hora, durante quarenta oito horas. Empolguei-me com os detalhes técnicos de funcionamento do portocath, além do medicamento, era também uma injeção de ânimo, um bom exercício para a saúde da cabeça e a higiene emocional. Uma das primeiras coisas que a gente descobre quando tem uma doença mortal como o câncer é que o estado de espírito e o pensamento positivo são poderosos remédios, sem efeitos colaterais indesejáveis e nem contraindicação.

À medida em que se aproximava o início da quimioterapia, menos eu pensava nela. Foi a forma que eu encontrei para lidar com a situação da melhor maneira possível, deixando-a de lado e tocando o barco. O câncer assume uma dimensão na vida da pessoa que pode parecer uma prisão, um cárcere involuntário e agonizante, é uma questão de cabeça, endireitar as ideias para não sofrer. Eu não conseguia pensar na quimioterapia sem que isso me deixasse angustiado, apreensivo, diria até, com um certo medo. A implantação do portocath foi tranquila, fui internado às seis da manhã da terça-feira, dia cinco de novembro, e tive alta no mesmo dia, pouco depois das dez da noite. Para quem havia ado cinco dias internado durante a cirurgia de retirada do tumor, poder dormir em casa foi muito bom. E muito rápido também, no dia seguinte, os cortes ainda latejavam debaixo dos curativos quando fui para a Santa Casa, logo pela manhã. A ala de quimioterapia era ada após um zigue-zague danado, recebi alguns olhares de pena no caminho, prontamente descartados. Guerreiro sim, coitado, não. Sou da teoria de que a gente nunca deve sentir pena de adultos, só de crianças, mesmo assim, se esse sentimento for acompanhado por alguma ação construtiva. Pena e indiferença não levam a nada, não ajudam, deixam tudo como está, no mesmo lugar.

Poucas vezes em minha vida eu recebi tanto amor, carinho e atenção de desconhecidos como na primeira seção de quimioterapia. Pessoas que eu nunca tinha visto antes me pareciam próximas em questão de segundos, uma boa lembrança que levarei adiante pelos anos que ainda tenho pela frente. O ambiente pesado, com os vários casos de câncer que podem acontecer, e diferentes estágios, pacientes em melhor ou pior estado, tudo ficava meio que em segundo plano naquelas horas de contato com enfermeiras e enfermeiros que mais pareciam anjos celestiais, em vestes brancas, mas sem asas. Contive a

emoção algumas vezes, ali não havia lugar para lágrimas, o sorriso, entretanto, era mais do que bem-vindo. Então, eu sorria, por mim e pelos outros. Logo de início, deu para notar que começava para mim o convívio com uma nova família. Todos no mesmo barco, unidos por uma mesma causa, a cura. Igualitarismo democrático, solidariedade, afeto, compreensão, pacientes do SUS, particulares e de planos de saúde, identificados somente pelo nome, siameses perfeitos, diferentes só depois que pisávamos na rua. Tudo era lição, a quimioterapia era um tratamento que assustava, eu tinha meu primeiro contato com ele, de peito aberto, mas preocupado. Sem esperar o pior, torcendo pelo melhor.

Durante a primeira hora, eu fui o garoto, o mocinho de mirrados quarenta e sete anos. Eu era bem mais novo do que os demais. Achei o máximo me chamarem assim, não ouvia essa menção há décadas, principalmente depois que cabelos brancos povoaram a minha cabeça. Eu e um senhor na casa dos setenta anos sentamos lado a lado em confortáveis poltronas, éramos os únicos principiantes, os demais, onze ou doze pacientes no total, já eram conhecidos por lá. O senhor estava mais agitado do que eu, era mais enérgico, mas não parecia preocupado, aliás, nem ele e nem eu tínhamos aquela aparência típica de pacientes com câncer. Ainda me acomodava na poltrona quando ouvi de uma voz próxima:

- Você faz o quê?

Sorridente, meu vizinho, novato como eu, não quis saber outra coisa, nome, idade, que tipo de câncer eu tinha, nada disso, quebrou em questão de segundos o gelo querendo saber, com interesse, ou não, o que eu fazia.

- Sou professor

Levei um livro para ler durante a minha seção, a biografia do Jango, expresidente deposto em sessenta e quatro. Era a segunda vez que eu a lia, na

verdade, levei por levar, meio perdido e fora de lugar naquele primeiro dia. Muitos ao meu redor dormiam, havia pouca conversa, sempre em voz baixa, pacientes em pior estado recebiam as injeções deitados em leitos, apesar de tudo, a calma e a paz amenizavam as coisas.

Sem propriamente vontade de conversar, mas convencido de que seria uma boa ideia, complementei a resposta com dados adicionais sobre o meu trabalho. O homem fitava o livro que eu tinha no colo, questionando-se, sabe-se lá porque.

- Ele era de esquerda, né?

Sim, o Jango transitava bem pela esquerda, caiu justamente por essa razão. Falar sobre política ou sobre câncer e os efeitos severos da quimioterapia pareciam um páreo duro, mas era a minha primeira vez, apesar do tópico, a conversa em si era muito mais importante do que o que era dito. Também, inocência minha, eu era professor de uma federal com dois ex-reitores que foram prefeitos de São Carlos pelo PT, lendo um livro grosso que nem tijolo sobre um presidente deposto por golpe militar, não podia levar a outra conversa. A medida em que o papo rolava, ficou claro que não haveria nenhum debate político, aquele era um espaço imune e segmentado da sociedade, não havia polarização entre a gente, nem esquerda e nem direita, não estávamos divididos, muito pelo contrário, estávamos mais do que unidos.

- Meu amigo, eu não sou nem de esquerda e nem de direta, sou do lado de fora disso tudo!

Muita gente pensava assim. Quem ouviu o que eu disse, achou graça, realmente, era incompatível falar em política brasileira naquele lugar, um verdadeiro santuário dedicado ao tratamento de uma doença tão grave. Logo o papo mudou e, em seguida, veio o silêncio.

A medida em que os medicamentos começavam a atuar, dentro de mim, ocorria uma revolução silenciosa, de sensações inéditas. Eu não tive nada muito drástico, mas em pouco tempo, fiquei com dor de cabeça e sonolência. Era tudo diferente, não sei ao certo se o fator psicológico alterava alguma coisa, mas notei meu corpo mais ivo com relação ao que acontecia, menos combativo. Aproveitei para ler um pouco, mas tinha dificuldades para me concentrar, em parte pela indisposição, em parte porque tudo era novidade demais. De vez em quando, olhava desalentado para os lados, mas sem tristeza. Ver os outros pacientes, alguns deles em estado bem ruim, impressionava, causando-me um certo mal-estar. Nessas horas, logo aparecia uma enfermeira ou um enfermeiro, falando com os que estavam acordados, verificando os tempos de injeção, cuidadosamente controlados, tomando notas, enfim, fazendo o trabalho deles. Eu não sabia como me comportar, estava aprendendo, a leveza no olhar, nas palavras, no sorriso, em tudo, parecia dar o tom certo naquele lugar. A iluminação ambiente era forte, típica de hospitais, gente de branco, leitos e paredes, tudo muito claro, como se o sol estivesse presente lá dentro, num dia de verão com temperatura agradável. Dormitei algumas vezes.

Antes da metade da minha seção, sentou-se ao meu lado, na poltrona em que estava meu colega de assuntos políticos (que foi embora sem eu nem notar), um jovem magro e bastante pálido. Eu já não era mais o caçula do grupo, o garoto era conhecido dos enfermeiros, falava pouco e com dificuldade, via-se debilitado, não sorriu nenhuma vez. Fiquei tentando imaginar o que ele teria, qual seria seu problema, enquanto era instalada a parafernália do kit dele, com os medicamentos e o timer. Os enfermeiros não deixavam de falar com ele, que tinha a mesma cara de muitos dos meus alunos. A juventude parecia estar totalmente fora do contexto em lugares como a ala de quimioterapia de um hospital, não havia crianças por lá, nem eu estaria preparado para vê-las. Seria mais uma prova, dentre as várias que eu estava tendo. Olhar para o jovem ao meu lado, que apagava na poltrona que nem um restinho de vela, não foi fácil, ninguém disse que seria, mas não havia outra alternativa, nem para ele, nem para mim. Tentei ler um pouco mais, cochilei algumas vezes, à exceção da já mencionada dor de cabeça, ei bem pela seção, que durou pouco mais de quatro horas e meia. Assim que terminou minha última injeção, soou o alarme do timer, um bip muito gostoso de ouvir. Apesar de sonolento e sem pique, uma

onda de calor me percorreu dos pés à cabeça, me deixando alerta, eu ainda estava sob os efeitos da cirurgia da véspera, a vontade de sair dali e voltar para casa era enorme, mas tentei dissimular o ímpeto.

Antes de ir embora, pouco depois das três da tarde, instalaram o infusor na minha cintura e me deram uma aula sobre seu uso. Eu teria que ter alguns cuidados, não tomar sol, ficar em ambientes frescos, cuidar da alimentação, do banho sem água, disso e daquilo. Tarefa fácil, que eu tiraria de letra. A grande preocupação da equipe de saúde era com as náuseas e vômitos, perda de apetite e de peso que, no meu caso, nem seria tão ruim. Como tenho uma condição cardíaca, e peso é inimigo do coração, vivo em constante batalha contra a balança e a fita métrica. Os dias seguintes mostrariam que o tratamento me deixaria mais rechonchudo, para alívio dos médicos, minha esperança de perder peso, aproveitando a quimioterapia que eu tinha que fazer, não ou de uma ideia de jerico. De qualquer forma, pensar essas bobagens fazia parte da minha estratégia, unindo tudo que pudesse ajudar, como comer a fruta e chupar o caroço. Mesmo longe do meu estado normal, a vitalidade veio com tudo quando encontrei meus pais na sala de espera, adjacente à de quimioterapia, e fomos para casa. Eu parecia cachorrinho de madame na hora do eio, a respiração ofegante reforçava a semelhança, as horas adas na Santa Casa pareceram semanas, meses. Tudo viraria rotina, seis meses de tratamento, mas naquela primeira vez, os ponteiros do relógio não significavam absolutamente nada para mim, talvez a psicologia soubesse explicar melhor esse caráter objetivo e subjetivo do tempo.

Pergunta sobre conhecimentos gerais e curiosidades: Quimioterapia pode dar soluço? Resposta, pode sim, e eu não sabia disso, até começar o meu, intermitente e interminável, do momento em que saí da Santa Casa. Primeiramente, não dei bola para ele, fiquei quicando de soluço, sempre esperando que logo aria. Mas não ava, ia e voltava sem hora marcada, durou mais ou menos uma semana, chegou e foi embora com a mesma semcerimônia, não foi legal, mas também não foi letal, e nem debilitava, era muito chato, só isso. Aprendi a conviver com ele, sem muito entusiasmo, como fiquei vários dias em repouso, isolado dentro de casa, pouca gente teve contato com esse meu efeito colateral meio tragicômico. Nelson Rodrigues, o genial anjo

pornográfico, em sua A Vida Como Ela É, alimentando uma obsessão criativa sobre traição e morte, criou alguns contos em que o soluço era o prenúncio de doenças graves e de grandes tragédias. Fã inveterado do famoso dramaturgo, leitor de suas obras, peças de teatro, colunas de jornal, etc, virei imediatamente, em minha cabeça, um de seus personagens suburbanos, provavelmente, um corno traído, entrevado, um defunto que esqueceram de enterrar. Só depois que eu googlelizei (do verbo googlelizar, ou seja, procurar no Google), e encontrei vasto material sobre efeitos como o soluço em pacientes sujeitos à quimioterapia, foi que eu descartei o drama rodriguiano e caí fora dessa história.

A caixinha de surpresas não parava de surpreender, um ano que havia começado como outro qualquer, com contagem regressiva e as mesmas expectativas de sempre, seguia misterioso e diferente. Se havia ainda em mim, resquícios da soberba que me rondou na juventude, menos ainda ficou depois da semana de soluços, o ser especial, iluminado, que um dia eu julguei ser, nada podia fazer, a não ser, simplesmente, cruzar os braços e viver. Viver e continuar vivendo, com ou sem soluço, nada mais, nada menos. Fui um jovem arrogante, tracei um futuro grandioso para eu mesmo trilhar, imaginando que o sucesso me traria felicidade. Isso funcionou durante um tempo, fui bom aluno, cheio de mim, tudo dava certo, o que eu queria, eu conquistava. Ao invés de aproveitar os períodos de alta, que não são eternos, para melhorar minha cabeça, queria porque queria mais. Vieram, então, os períodos de baixa, que também não são eternos, a vida me mostrou, por A mais B, que eu era igual a todo mundo, limitado e imperfeito, e que os planos grandiosos que eu havia traçado, não estavam ao meu alcance. Demorei muito para ser aprovado em concurso público, algo que pensei tirar de letra, meus projetos foram indeferidos, minhas contribuições acadêmicas foram nanicas, fui julgado e rotulado por intelectuais de esquina, mesmo assim, encontrei a felicidade no conforto de me conhecer melhor. Depois disso, a cada recaída de arrogância, eu ganhei um soco bem dado, na boca do estômago.

Os dias de repouso começaram com a indisposição inevitável do tratamento, eu não tinha energia para nada. ei boa parte do tempo deitado, lendo, vendo televisão, comendo muito pouco. Meu estômago parecia não querer segurar nada, mesmo assim, não vomitei nenhuma vez. O soluço atrapalhava as refeições, o que era difícil ficava ainda mais difícil. Num primeiro momento, deu

para ver que eu perdia peso a cada dia, a começar pelos quilos ganhos em Belém. O infusor esvaziou por completo às sete e quinze da manhã da sextafeira, enquanto estive com a pochete na cintura, dormia de barriga para cima, roncava que nem um trator, tomava banho de português, à seco, e pensava na vida. O tempo todo. Depois que terminou a aplicação, na sexta-feira, fui à Santa Casa para retirar o infusor, voltei para casa e o bicho pegou. Só largou na noite de domingo, o mal-estar que eu senti teria que ser redefinido no dicionário, era como incorporar um ente obsessivo e diabólico, percebendo tudo, tin tin por tin tin. Cada molécula do meu corpo se manifestou nesse período, a digestão mudou, a sensação de frio e de calor mudou, tive febre, minha pele ressecou e fiquei com aquela ardência de queimadura de sol, o céu da boca ficou áspero, o volume das fezes aumentou, muito, enfim, a lista era longa e variada. Felizmente, durou pouco, na segunda-feira eu acordei bem, comi como se estivesse vendo comida pela primeira vez e rapidamente recuperei meu peso. Verdade seja dita, bochechudo, eu ficava mais simpático.

Desde que eu descobri que tinha câncer de cólon, o período da seção de quimioterapia e dois, três dias depois, foi a primeira pausa em minha vida. Eu não prestava para nada, fiquei entregue em qualquer canto que eu pudesse me deitar e apagar. Seguramente, o preço que eu paguei por me submeter a um tratamento tão pesado, nem foi tão alto assim. Ouvi relatos de gente que ou por efeitos muito mais severos do que os meus, que teve que ser internado, que perdeu muito peso, que não conseguia dormir, que quase morreu. Nada muito drástico aconteceu comigo, felizmente, mas para quem estava acostumado a ser forte e saudável, a falta de vigor assustou. Não me desanimei, fiz um pacto comigo mesmo, antes de me submeter à cirurgia, de que iria manter a serenidade e o equilíbrio acima de tudo, custe o que custasse. iro muito esse tipo de comportamento, não é exatamente o meu, talvez um degrau acima, ou dois, no estágio evolutivo. Com o ar dos dias, os efeitos foram diminuindo, voltei a comer direito, até demais, recuperei as energias e tudo ficou mais fácil. Nasci com quatro quilos e meio, um bom garfo desde o berço, estômago cheio me deixava feliz e otimista. Melhor do que isso, a quimioterapia não era mais uma novidade, eu tinha isso bem claro a medida em que meu organismo se reerguia e eu me sentia melhor.

Após ter ado, com méritos, pelo período crítico da primeira seção de quimioterapia, assim que tive condições, resolvi me dar um prêmio especial. Enchi o tanque do meu fusquinha setenta e quatro com gasolina aditivada, dei um trato na limpeza, e ei uma tarde inteira rodando pela cidade. Estava bastante nublado, nem me lembro exatamente quando foi isso, só sei que me fez bem, como tudo era muito igual e repetitivo na minha vida, perdi um pouco a noção dos dias da semana. Cruzei São Carlos de norte a sul, de leste a oeste, várias vezes, o barulhinho de máquina de costura do motor mil e trezentos refrigerado à ar ressoava em minha alma enchendo-me de ânimo e paz de espírito. Dirigir um carro quarentão era como fazer uma viagem no tempo, dentro dele, o ado estava presente e a memória me transportava de volta para todos os outros Fuscas da minha infância e juventude. A família teve Fusca, aprendi a dirigir nele, fiz prova para tirar carteira de motorista em um Fuscão, ganhei um Fusca amarelo gema quando ei no vestibular, conheci todas as batidas policiais de São Carlos a bordo desse carrinho. As lembranças eram muito boas, e engraçadas também, como a cara de espanto de um colega canadense diante de um fusquinha RP (Radio Patrulha) da Polícia Militar, numa visita à UNICAMP em mil novecentos e oitenta e oito. Costumo dizer que o fusquinha setenta e quatro que eu dirigia, evocando tudo isso, era o traço de materialismo que eu ainda carregava na veia. Sou um cara bastante "despossuído", a ideia de posse e de acumular bens, isso e aquilo, não me é natural. Exceto pelo meu Fusca, uma outra história, contada a seguir.

MEU FUSCA ORIGINAL

Original não só de fábrica, muito além disso, único, cheio de histórias, carismático, fanfarrão, beberrão e barulhento. Brasil de A à Z. Um Fusca, ora bolas. O meu é setenta e quatro, branco, standard, quase tão inteiro quanto muito seminovo da atualidade. Muito mais interessante. Uma máquina do tempo. Com certeza, houve um erro em algum lugar do meu ado, eu era para ter vinte e cinco anos na noite quente de três de fevereiro de mil novecentos e setenta e dois, ao invés de estar nascendo. Eu era para estar cantarolando a recém lançada Brown Sugar dos Stones, e não, berrando no berçário, naquela noite. Nascer com vinte e cinco anos me fez um eterno saudosista, um cara meio fora do contexto, sempre na contramão da minha geração. Acima de tudo, sem sombra de dúvida, nesse verão quente de setenta e dois, na simpática Rio Claro, interior de São Paulo, eu era para estar ao volante do Fuscão azul calcinha que o meu pai tinha, ao invés de estar sendo transportado por ele. Eu tinha vinte e cinco anos quando deixei a maternidade e fui para casa, a bordo do Fuscão, num legítimo feitiço do tempo, um bebê recém-nascido, moreno, vesguinho, grandão e preguiçoso, com um apetite insaciável, primeiro filho, primeiro paulista da família.

O Fusca é um carro cheio de brasilidade, alemão uma ova. Quem tem a minha idade, tem uma história a bordo de um Fusca para contar, eu tenho várias. Fuscas fizeram parte da paisagem urbana na minha infância e na adolescência também, sempre havia um na garagem, na casa de um tio, na rua da escola. Foi na fase adulta, entretanto, que eu ei meu maior momento no valente Volkswagen. Minha grande aventura de fusquinha aconteceu no mesmo ano em que eu tive meu pior revés na saúde, dois mil e dezenove começou sem presságios, sem anúncios, como um ano qualquer. Só que não foi. Ao volante do branquinho setenta e quatro, apelidado de Júlio César, eu quicava que nem cabrito na estrada, dia dez de março, um domingo chuvoso. Saí de Curitiba às seis da manhã, com uma garrafa de água para mim e outra para o carro, um esquentadinho temperamental, dois pacotes de bolachas, um Tupperware com sanduiches de queijo e presunto, além de uma chave de fenda e um alicate, caso uma manutençãozinha fosse necessária. Eu ainda não sabia que tinha câncer de cólon, os sintomas já se faziam presentes, mas na forma de incômodo, não de

dor. Era com grande alegria que eu levava meu fusquinha da capital paranaense para São Carlos, no interior de São Paulo, mal sabia que, meses depois, minha vida viraria de ponta cabeça.

O que tem a ver essa viagem de fusquinha com o meu tratamento? Muita coisa, tem tudo a ver com uma estranha fé que eu tive ao longo dos mais de setecentos quilômetros encarados naquela jornada. Eu ava por uma metamorfose sem saber, só notei o que acontecia comigo depois que me foi anunciado o tumor maligno, antes, tudo era muito sutil e oculto, visível só nas entrelinhas. Não tem como eu não me repetir ao longo do texto, vou bater na mesma tecla várias vezes, na época em que a doença se manifestou com mais clareza, e eu fui fazer os exames, surgia em mim um otimismo e uma confiança inéditos até então. Pensava de forma positiva, ainda timidamente naquela época, mas, aos poucos, ficava para trás o pessimista cheio de cismas que eu sempre fui. Apagado gradualmente da existência, dando lugar ao que eu precisava ser para vencer o câncer. Dentro do fusquinha, cantando e dançando na pista, sob as águas de março, atravessando a Regis Bittencourt, outrora conhecida como Rodovia da Morte, minha vida parecia a de qualquer pessoa feliz, menos a minha própria. Tudo era bom e divertido, leve e gostoso, eu estava relaxado e curtindo, algo novo para mim, um cara preocupado por natureza, muitas vezes, sem razão.

Parece que quem traça os nossos destinos, quero dizer, ELE mesmo, faz com que tudo se encaixe perfeitamente no seu devido lugar. Com inquestionável sabedoria. Lá estava eu, em março, despreocupado, reescrevendo a minha própria história, num Fusca branco com quarenta e cinco anos de estrada. Por falar nele, nosso encontro foi mais ou menos assim. Como já dito, eu e o meu único irmão nos tornamos professores universitários incentivados pela carreira de sucesso do meu pai. Apesar da diferença de idade de quase dois anos, começamos juntos nossas trajetórias em instituições públicas de ensino superior, dois mil e seis, eu na Universidade Federal do Espírito Santo, ele na Universidade Estadual de Maringá. Casado, mas sem filhos, pouco depois de se mudar para Umuarama, no noroeste do Paraná, o Flavio, meu irmão, resolveu comprar um fusquinha para usar como segundo carro. Minha cunhada, a Camila, trabalhava em outra cidade e ficava com o carro principal. Pois bem, sem muito esforço, o Flavio achou o que queria, e podia pagar. Na garagem de um velho

dentista, lá estava o já famoso fusquinha branco setenta e quatro, original de fábrica, muito inteiro, com necessidades aqui e ali, mas bastante sólido no geral. O motor estava um pouco fraco, os freios pouco confiáveis, a folga no volante assustava, mas o carro tinha potencial, era guerreiro.

Dez anos e dois filhos depois, morando em Curitiba e trabalhando na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, meu irmão já não dava mais conta de manter o Fusca, que àquela altura era o terceiro carro da família, muito pouco usado. O carro ficava a maior parte do tempo em um canto da ampla garagem, não raro com a bateria arriada, esperando eu dar umas voltinhas nele. Isso mesmo, com o nascimento dos meus sobrinhos, na sequência, o Caio e depois a Laura, ei a dividir meu tempo entre São Carlos e Curitiba, indo e vindo com frequência, no mínimo, uma vez por mês. Nessas ocasiões, eu andava de fusquinha em São Braz, bairro onde mora o meu irmão e companhia limitada. Às vezes, levava o meu sobrinho a tiracolo. Em pouco tempo, virei o dono do Fusca.

- Fique com o fusquinha, em São Carlos ele será mais útil

Eu namorava o carrinho desde que meu irmão o comprou, procurei um para mim também, mas não encontrei nenhum que valesse a pena. Acabei ficando com o branquinho que eu sempre gostei. Aí, imediatamente apareceu uma questão, um porém, para que essa história tivesse um final feliz, e uma outra começasse, o fusquinha precisava estar em São Carlos, e não em Curitiba. O que fazer para levar um carro antigo de uma cidade para outra, da melhor maneira possível, foi tópico de muitas discussões em família. Opiniões convergindo e divergindo a respeito do destino do fusquinha ocuparam algumas semanas durante o período das férias de fim de ano. Um cobre a cabeça e descobre o pé danado, tudo tinha prós e contras, transportadoras cobravam um absurdo, poucas faziam o trajeto completo de Curitiba até São Carlos, as mais baratas, não eram confiáveis. Enquanto isso, o carro ficava na garagem, empoeirado, sem uso.

- Coloque gasolina naquele Fusca e venha dirigindo até aqui

Meu pai tinha essa reputação, do cara que encontrava uma solução para problemas quando faltavam opções. Parecia simples e óbvio, mas não era. A princípio, não levei a sério o que ele disse, o carro estava parado há muito tempo, raramente saía da garagem, seu motor, com a mais perfeita regulagem possível, só podia oferecer uma cavalaria de quarenta puros-sangues, menos da metade dos equinos disponíveis em um carro popular da atualidade. Além disso, os limites de velocidade na estrada oscilavam em média entre cem e cento e vinte quilômetros por hora, uma verdadeira temeridade para os pneus finos do Fusca. Parecia uma loucura, mas logo ganhou ares de aventura na minha cabeça, era algo que eu tinha que fazer, e que seria muito bom. Eu estava bastante acostumado e me sentia completamente à vontade nas estradas que ligam São Carlos à Curitiba, conhecia todas as curvas, além disso, nunca esqueci dos macetes para a boa condução de um fusquinha. Ele é quem manda, quem dita as regras, a dinâmica é totalmente dele, não adianta ter pressa, não adianta pé pesado no da direita, para frente, adiante, é ele quem comanda. Iríamos nos entender muito bem, a viagem era longa, sinuosa em vários trechos, um desafio até mesmo para carros e motoristas da atualidade, mas, a partir do momento em que eu aceitei a tarefa, deixei claro para mim e para os outros, que se o fusquinha aguentasse, eu aguentaria.

De Curitiba até Registro, já no estado de São Paulo, dava pouco menos de duzentos quilômetros. Lá, fiz minha primeira parada. Gasolina aditivada no tanque do fusquinha e, no meu, café e pão com manteiga na chapa. Durante o planejamento da viagem para levar o Fusca até São Carlos, vários candidatos apareceram para me acompanhar. No final das contas, foi bom estar sozinho, ou melhor, comigo mesmo, na companhia de um cara bacana que seguia confiante, sem receio de que o carro quebrasse ou que algo de pior acontecesse. Eu era outro, cada quilômetro era vencido com alegria e otimismo, a paisagem ava lentamente pelas janelas do Fusca, revelando novidades que eu desconhecia das viagens anteriores, no outro carro, andando bem mais rápido. Consegui me posicionar bem no banco espartano do veículo, o conforto era diferente, tinha que ser conquistado, a experiência tinha um misto de dever e de prazer. A família preocupada recebia mensagens que eu enviava à medida em que os trechos mais

importantes eram vencidos. Havia uma torcida uniformizada me dando apoio enquanto eu seguia no fusquinha. A surpresa inesperada foi que eu fiquei surdo antes mesmo de cruzar a divisa de estados, ainda muito próximo de Curitiba. O barulho do motor dentro do carro me mantinha alerta, judiando do meu tímpano. Tirando isso, era pura diversão.

Chovia bastante, um perigo adicional. Mas, não era assim que eu pensava, a chuva acalmou os ânimos, as temperaturas amenas ajudaram muito. O superaquecimento da bobina do Fusca era notório, falhas na bomba de gasolina também, mesmo na época em que esses carros saíam novinhos das agências. Meus pais, quando recém-casados, sempre tinham a bordo uma garrafa térmica com água fria e panos que eram usados para refrescar o Fusca deles. Com a chuva constante, não precisei de nada disso, pude manter tranquilamente uma velocidade média de oitenta a noventa quilômetros por hora ao longo de todo o trajeto. No primeiro trecho de serra que eu peguei, descendo de Curitiba, quase perdi a traseira do fusquinha uma vez, a pista molhada e os pneus finos não aram setenta quilômetros por hora nas curvas. Logo descobri, por tentativa e erro, que à sessenta eu não levaria sustos. A visão da estrada, dos arredores, o relevo acidentado, tudo recompensava o cansaço que eu sentia por dirigir um carro que eu só conhecia de dar voltas em São Braz. Horas antes, ao deixar o bairro e pegar o contorno da cidade para ar a Regis, pensei comigo mesmo "nunca fui tão longe nesse Fusca". Era só o começo.

Banana, palmito pupunha, queijos e salames artesanais, uma infinidade de barraquinhas de produtos típicos surgia a cada quilômetro da Regis Bittencourt, o trecho entre São Paulo e Curitiba é muito bonito, cheio de ótimas opções turísticas facilmente adas. A deslumbrante Estrada da Graciosa, serrana, que termina no Porto de Paranaguá, é um exemplo, não me animei em fazê-la de fusquinha, descer às custas de quatro freios à tambor para depois subir montado em cavalos alinhados de um velho motor, não me pareceu prudente. Eu não fazia a mínima ideia de quanto tempo levaria até São Carlos, queria chegar antes do sol se pôr. Não me preocupava com nada, o carro parecia querer cooperar e eu me relaxava à medida em que Curitiba ficava para trás e São Paulo ficava cada vez mais próximo. Era bom demais estar naquela estrada, de fusquinha, e melhor ainda lembrar, enquanto escrevo, da aventura que deu certo. Como tinha que ser.

Nunca em minha vida eu senti tão de perto a presença dos meus protetores. Até então. Lá estavam eles, ao meu lado, a cada instante, me auxiliando com o que eu precisava para seguir em frente. Dava para notar, era uma fé empírica, além disso, não havia outra explicação para o que eu vivia, eu não estava me esforçando para ser diferente, estava sob a influência de uma maré favorável. Acreditar sem questionamentos me fazia um bem danado.

Enquanto eu celebrava a vida na outrora Rodovia da Morte, uma verdadeira revolução acontecia dentro de mim. A reação em cadeia mexia com todo o meu corpo, a chuva fina exigiu cuidado redobrado, eu estava completamente relaxado, praticamente afundado no banco do Fusca. O céu cinza mesclava-se com o cinza do asfalto, o pequeno besouro branco da Volkswagen parecia voar solto no ar, sorrindo o tempo todo, papando quilômetros com fome de veterano. A vibração do volante fino, junto com o barulho do motor refrigerado a ar, me levava para um mundo de faz de conta em que eu era uma criança feliz e saudável, brincando de carrinho sem ver as horas arem, despreocupado com a vida. No duelo entre Davi e Golias, o Fusca dava um pau na Regis, curva após curva, lá íamos nós, eu e o meu novo brinquedo, fazia tempo que eu não sentia tanta felicidade na minha vida adulta. Nem UFSCar, nem alunos prepotentes de nariz em pé e ouvidos ligados em forró e sertanejo universitário, nem formulários cheios de carimbos, nem boletos vencidos, nem contas para pagar, muito menos vizinhos barraqueiros, menos ainda a pança do leão, nada, nenhuma encheção de saco cabia dentro do fusquinha, só coisas boas, só pensamentos bons. O carro de formas arredondadas contrastava com tudo, menos com a história que era contada a cada curva fechada da estrada, diante de vales verdes e do relevo irregular que me lembrava o País Basco espanhol.

Poucos quilômetros depois de ar por Registro, subi a Serra do Cafezal no embalo dos caminhões, ultraava uns e era ultraado por outros, vez ou outra, um caminhoneiro buzinava para mim, uma saudação festiva para o tiozinho grisalho e o destemido fusquinha branco. Desde que me tornei professor e ei a orientar alunos, sempre me preocupei com o contexto das coisas. Um bom trabalho acadêmico precisava atender, antes de mais nada, a um contexto específico e bem determinado. A estequiometria no contexto da combustão, a combustão no contexto do aproveitamento energético, o aproveitamento

energético dentro do desenvolvimento sustentável, e por aí vai. No fusquinha, em dois mil e dezenove, indo de Curitiba para São Paulo pela Regis Bittencourt, eu estava completamente fora do contexto. Que alegria! Em décadas adas, Fuscas iam e vinham entre São Paulo e Curitiba, o limite de velocidade era oitenta quilômetros por hora, contexto melhor, impossível. Eu estava rompendo com isso tudo, inclusive, comigo mesmo, ficava pela estrada um lado meu que não valia a pena ser levado adiante. Não me dava conta, mas fazer aquela viagem me preparou para a cruzada contra o câncer, tudo deu certo, eu gostei muito de ter enfrentado o desafio com o pensamento positivo, acreditando sinceramente no final feliz.

Assim que avistei as primeiras placas indicando Embu das Artes, na região metropolitana de São Paulo, comemorei a primeira vitória com um gole de água e o segundo sanduíche de queijo e presunto. Cruzei o Rodoanel, comi mais um sanduíche, era hora do almoço, peguei a alça para a Bandeirantes, sentido interior, paguei os dois reais de pedágio, e sorri aliviado. Já não chovia mais, havia sol, mas não muito forte. Antes de trabalhar na UFSCar, eu morei em Santo André, todos os fins de semana eu fazia essa viagem até São Carlos pela Rodovia Bandeirantes. De olhos fechados, se precisasse. A Bandeirantes é uma rodovia moderna cujo limite de velocidade é cento e vinte quilômetros por hora. Das várias pistas disponíveis para os carros, utilizei as duas da direita, junto com os meus amigos caminhoneiros, que não deixavam de me saudar. Se o tiozinho de Fusca já fazia sucesso antes, na Bandeirantes, então, o sucesso foi ainda maior. Parei no primeiro posto de gasolina para reabastecer o carro, nem fui ao banheiro, entrei de volta e segui viagem. Faltavam duzentos quilômetros para São Carlos, os carros da atualidade avam por mim que nem flechas envenenadas, meu prazer dentro do fusquinha chegava a ser obsceno. Àquela altura eu já não escutava mais nada, estava tão surdo que uma labirintite oportunista fazia balançar a minha cabeça de um lado para o outro, numa onda de vertigem psicodélica. Tirando isso, eu estava inteirão, e o Fusca também.

A missão estava dando certo, nem em meus melhores sonhos eu imaginaria uma viagem tão boa. Criou-se um elo de afeto entre eu e o fusquinha que a razão jamais vai explicar, porque, simplesmente, não tinha explicação. Mas nem por isso, não era real. Ao escrever essas linhas, vejo que meu fusqueta virou para

mim um símbolo dos novos tempos, um divisor de águas entre pessimismo e otimismo, entre não saber viver e viver, simplesmente. Com gasolina suficiente para chegar até São Carlos, ciente de que chegaria sem problemas, comi mais um sanduíche, o último, abri os dois pacotes de bolachas e fiquei revezando, hora doce, hora salgada. Não considero lanche uma refeição, comida no prato é fundamental para mim, mas eu estava tão feliz que traçava o que tinha para comer dentro do Fusca como se fosse um legítimo banquete. No trecho da Bandeirantes que liga Campinas à Cordeirópolis, em um posto da Polícia Rodoviária, havia um comando parando motoqueiros para fiscalizar. Achei que fossem me parar, sem me preocupar com isso, mas ei batido e não fui parado. Tive um Fusca amarelo na juventude e era hábito ser parado pela polícia para mostrar documento do carro e habilitação. ei por Cordeirópolis e logo em seguida, avistei as primeiras placas indicando a distância até Rio Claro, minha cidade.

Dalí em diante, foi como cruzar a sala de jantar da minha casa, o sol brilhava lá no alto, era algo em torno de duas da tarde. Mandei a última mensagem dizendo onde eu estava, ninguém acreditou, tirei uma foto para comprovar e, nesse instante, virei para a família, um verdadeiro super-herói. Meu pai avisou minhas tias em Campo Grande, Matogrosso do Sul, minha mãe avisou meus tios no Rio, primos e amigos ficaram sabendo, meu irmão compartilhou a foto com a galera de Curitiba, enfim, não tinha como deixar isso tudo de fora do livro. Cheguei à São Carlos exatamente às três da tarde, nove horas depois de ter saído da casa do meu irmão em Curitiba. Fui direto ao prédio dos meus pais para mostrar o carro, tiramos fotos e mandamos para Curitiba. Meu irmão era só exclamações, eu também, missão dada, missão cumprida, ninguém imaginava que eu teria perfil para completar aquela viagem, mas lá estava eu, setecentos quilômetros depois, cumpridos em um fusquinha que tinha quase a minha idade. Eu estava completamente surdo, mas feliz. Uma página na minha história escrita com caneta de ouro, era a prova para mim mesmo de que tinha como ser diferente, e de que a vida poderia ser muito melhor, era tudo uma questão de cabeça e de escolhas felizes.

Em pouco tempo, me acostumei com o fusquinha nas ruas de São Carlos e a viagem rapidamente virou ado. Um ado gostoso de lembrar e de reviver.

O carrinho faz enorme sucesso por onde a, flagrei vários marmanjos tirando fotos dele. Certa vez, enquanto eu aguardava o sinal verde num semáforo, bem ao lado de um VW New Beetle amarelo (o novo Fusca americano, caríssimo), notei na calçada o alvoroço de um grupo de adolescentes que olhava para mim, dizendo.

- A gente prefere o seu!

A placa de Curitiba reforçava o apelo, eu sempre gostava de frisar que o carro foi rodando de Curitiba até São Carlos, comigo ao volante. Isso ajudava a reforçar a imagem de descolado, cuca fresca, que tanto me auxiliaria no meu tratamento contra o câncer. O Fusca deixou de ser fabricado no dia trinta e um de outubro de mil novecentos e oitenta e seis, uma sexta-feira treze para os amantes do carrinho como eu. As séries de cores metálicas eram as minhas preferidas. Teimoso como um bumerangue, o Fusca voltou para a linha de produção a pedido do presidente Itamar Franco no dia vinte e três de agosto de noventa e três, uma segunda-feira que jamais esquecerei. Um dia após a vitória do Brasil contra o Equador, com golaço do Bebeto, nas eliminatórias da copa do mundo do Tetra do Galvão. Enquanto o mais do que extravagante, flamboyant Collor encheu as ruas das cidades brasileiras de carros importados, o bom mineiro Itamar deixou a sua marca no governo ressuscitando o carismático e ultraado Fusca.

Depois que retirei o tumor através da cirurgia, começou para mim um período de convívio com a doença que não estava nos meus planos. A perspectiva de ar pelo tratamento da melhor maneira possível, e sair dele curado, sem resquícios da doença, me fez imediatamente mais tolerante, acatei a situação como inevitável e procurei me moldar a ela. Sempre que me ocorre a lembrança da viagem de fusquinha, vejo nela os primeiros sinais claros de mudança em mim, na minha personalidade fria e engessada. Vez ou outra eu me pergunto, como eu tive coragem? Eu não fui eu mesmo, ainda bem, fui o que eu tinha que ser. O pensamento que me acompanhou de Curitiba à São Carlos dentro do habitáculo do valente VW era leve como uma pluma, nele eu buscava refúgio quando o

caldo endurecia. Ninguém disse que seria fácil, ei a acreditar com mais convicção, e mais e também, que eu era auxiliado a toda hora por entes que eu não conseguia ver, mas que estavam ao meu lado. Não havia outra explicação plausível, surgiu em mim uma força interior que eu desconhecia completamente, que me foi revelada, que eu não descobriria sozinho, por conta própria. Uma força que eu julgava não ter. A força para vencer a luta contra o câncer, e os setecentos quilômetros de fusquinha também.

VIDA ANORMAL

Houve o período em que eu já sabia que tinha câncer, mas continuei trabalhando. Foi terrível. Tentando aparentar uma falsa normalidade, os dias demoravam muito a ar, minha cabeça girava perdida enquanto eu vivia um verdadeiro pesadelo de olhos abertos. Eu não rendia absolutamente nada, não via sentido nenhum no trabalho, cheguei a dar praticamente um mês de aula, um verdadeiro fardo. Desde que troquei a UFABC pela UFSCar, deixei para trás o prazer de estar em sala de aula, nunca mais eu tive a empolgação que tanto me alegrava em Santo André. Minha turma de mecânica dos fluidos tinha em torno de quarenta alunos, jovens, saudáveis, e totalmente indiferentes ao meu problema. Não contei para ninguém o drama que eu vivia. Era difícil demais lidar com a situação, não existe um protocolo definido que oriente o paciente a como proceder em casos como o meu, eu descobria a cada instante o que eu deveria, ou poderia fazer. Num primeiro momento, minha doença só era conhecida por mim, óbvio, pelos meus pais e pelo meu irmão. Aos poucos, mais pessoas ficaram sabendo, direta ou indiretamente. Demorei um pouco para itir que o câncer efetivamente mudaria meus dias, achei que levaria uma vida normal, apesar do tratamento. Doce ilusão. Não compartilhar com os outros o que eu estava ando foi duro, talvez tenha sido a fase mais difícil. A UFSCar foi a última a saber.

Lembro-me de minha última aula antes do afastamento como, de longe, o momento mais difícil da minha carreira. Lembrança condenada a uma enorme tristeza. Solta na cronologia dos fatos, descrita aqui sem data no calendário, como um dia triste para mim, uma quarta-feira cinza chumbo que pareceu ser o começo de um fim. Felizmente, a onda de baixo astral durou pouco, assim que eu me afastei da universidade e me concentrei no tratamento, meu ânimo melhorou consideravelmente. Acho que esse deveria ser o padrão no setor trabalhista, o servidor, funcionário, empregado, seja lá quem fosse, doente de câncer, deveria ser imediatamente liberado para buscar a cura. Sem burocracias, sem normas, nem resoluções, sem formulários, sem nada disso. Ninguém está imune ao câncer, nada pode estar acima dessa doença, nenhum trâmite burocrático pode estar no meio do caminho de quem já está condenado a uma

corrida inglória contra o tempo. Saber que algo ruim e mortal cresce dentro de você, a cada dia, é algo pavoroso, inicia-se uma contagem regressiva, silenciosa, sem alarmes, a vitória final é continuar vivo, e bem. A gente não nasce preparado para desafios como o do câncer, cada um responde de um jeito, o histórico de vida não fica de lado enquanto a batalha prossegue.

Nesse dia da minha última aula, almocei rápido, arroz branco, tutu de feijão, bife acebolado e quiabo, tomei meu sagrado cafezinho acompanhado por um pedaço de bolo de frutas secas, e segui para a UFSCar. Eu não sabia que estava indo para a última aula daquele semestre, à uma e vinte e cinco da tarde, estacionei o Fusca no AT5, bloco de salas de aula ao lado do Departamento de Engenharia de Materiais, a grande estrela da universidade. Havia poucos alunos circulando por lá naquele horário, a maioria continuava aproveitando o intervalo do almoço em algum canto do belo campus. Desde que eu peguei o fusquinha e ele se tornou meu carro de uso cotidiano, andar com ele pela UFSCar sempre fazia um grande sucesso, atraía olhares curiosos e eu me divertia com isso. A vontade de entrar em sala de aula e de expor o conteúdo da matéria de duas até às seis da tarde era nenhuma. Se por um lado eu me esqueceria do câncer durante algumas horas, por outro, ele não me daria trégua. Meu intestino funcionava em doses homeopáticas, em função do esforço que eu tinha que fazer para eliminar as fezes, sangramentos tornaram-se mais frequentes. Mesmo assim, eu tinha que dar aula.

Era difícil estar fora de fase com os alunos, eles no ápice da forma física, eu caindo pelas tabelas. O ritual das aulas começava para mim com uma revisão da matéria que, naquele dia, foi feito no período da manhã. Sempre gostei de entrar em sala de aula bem antes dos alunos, ajudava a me concentrar. Com a minha caixinha de giz numa das mãos e minha bolsa tiracolo com as notas de aula, lista de presença, isso e aquilo, o primeiro destino no AT5 foi a sala de istração onde ficavam as chaves e o material de e para as aulas. No segundo semestre de dois mil e dezenove, minhas aulas de mecânica dos fluidos estavam alocadas na primeira sala do corredor, no piso térreo. Dividido entre o dever profissional e o desânimo pessoal, abri a sala, entrei sozinho e depositei minhas coisas na mesa do professor, sem me sentir um representante da classe. A docência exigia, entre outras coisas, paixão, ninguém se tornava professor sem

um mínimo de entusiasmo pelo ofício. Mas, para mim, tudo foi muito protocolar naquele dia, uma obrigação por conta de um salário e de garantir comida na geladeira. Uma peça de teatro em que eu representei um papel e não fui eu mesmo.

A sala encheu rapidamente, a disciplina era difícil, eu havia acabado de disponibilizar a primeira lista de exercícios, o conteúdo da matéria envolvia muita física e muita matemática, os índices de reprovação eram altos, enfim, diante de mim, a plateia nem piscava. Geralmente, levava-se algumas semanas para se estabelecer uma relação de troca e de afinidade com as turmas, eu ainda me sentia pouco à vontade com a minha. Comecei a falar um pouco sobre a aula anterior, fiz algumas recomendações para que os alunos complementassem a teoria com leituras adicionais, indiquei no livro um texto interessante sobre o Princípio de Pascal e terminei a fala doido para ir embora. Eu simplesmente não conseguia me concentrar na matéria, por vezes, tive vontade de contar para os alunos sobre a minha saúde, mas estava desequilibrado demais para isso. Seguramente, eu iria me perder durante a fala, não queria de jeito nenhum fazer cena, um espetáculo com choro, de um problema que era meu, não dos alunos. Nas semanas anteriores, eu havia encarado uma verdadeira via crucis de exames, consultas, autorizações de laudos, ei mais tempo na região da Santa Casa de São Carlos do que em qualquer outro lugar. A normalidade começava a cobrar uma conta que eu, simplesmente, já não conseguia mais pagar.

A aula prosseguiu, aos poucos eu me relaxei, deixei de lado pensamentos que atrapalhavam, e encontrei forças para cumprir mais um compromisso profissional. Era tudo o que eu tinha que fazer. Não foi tão difícil, apesar da tristeza que eu sentia, fazia quase quinze anos que eu dava aulas, pelo menos dez deles dedicados à mecânica dos fluidos. De tanto repetir a mesma ementa várias vezes, ela já fazia parte do meu DNA, bastava abrir a boca para um repertório de conceitos sair sem grande esforço. Em mais um episódio, eu era auxiliado por alguém, ou algo, ou sei lá o que. Eu realmente acredito que benfeitores espirituais cuidaram de mim, não dava para ver, era difícil sentir, mas o empurrãozinho era real demais, não saber explica-lo não significa que ele não existiu. Morro de medo de manifestações espirituais, respeito profundamente o espiritismo, sou kardecista há quase duas décadas, mas minha relação com o

mundo dos mortos é eles lá e eu cá. Aceito, até busco ajuda, qualquer auxílio é bem-vindo, mas nada de visões, nem de arrepios, nem de toques, nem de sons, nada disso. Merecer a consideração por parte dos bons espíritos, para mim, já era um prêmio, quando eu for um espírito também, se der, farei questão de agradecer, pessoalmente. Enquanto eu estiver por aqui, entretanto, no mundo de provas e de expiações, vamos a elas, junto com outros vivos como eu.

Aproveitei a longa aula de quatro horas para contar alguns casos, uns tinham a ver com mecânica dos fluidos, outros não. Parecia que alguém comandava meus pensamentos com um controle remoto, os alunos não davam a mínima para o que eu falava, de fato, sabiam que eu estava enrolando, mas me fazia muito bem. Azar o deles. A sala de aula no piso térreo permitia que eu visse o trânsito de carros do lado de fora. De relance, um carro vermelho cruzou meu campo de visão e me levou para uma legítima viagem no tempo, numa fração de segundos, como um flashback. Tive muita sorte no concurso público que eu fiz para me tornar professor efetivo da Universidade Federal do Espírito Santo, meu primeiro emprego, essa parte da minha biografia tinha um enredo bastante curioso. Naquela última aula, veio a lembrança e a vontade de compartilha-la. Diante dos alunos, à essa altura, eu já estava convencido de que não teria mais condições de continuar, se era ruim para mim, pior para eles. A decisão de comunicar meu adoecimento à UFSCar estava tomada, em respeito à minha profissão e a mim mesmo.

Meu primeiro salário como professor universitário foi integralmente utilizado na compra de um carro usado, um VW Santana vermelhão, com preço depreciado e cinco anos de uso. Nele eu estava na manhã do dia trinta de julho de dois mil e seis, um domingo, cruzando a Via Dutra, exatamente na divisa de estados entre São Paulo e Rio de Janeiro. Naquele dia, ainda de madrugada, eu havia deixado São Carlos com destino à Cidade Maravilhosa, levando a minha vida inteira comigo. Roupas, documentos, livros, um som portátil, minha mudança foi o que coube no carro. Do Rio, seguiria viagem, no dia seguinte, para São Mateus, no litoral norte do Espírito Santo. A cada quilômetro rodado eu me despedia, gradativamente, dos tempos de estudante, longos, edificantes, memoráveis, e iniciava minha carreira acadêmica, mas sem me dar conta disso. Pelo menos, não naquele momento, com as duas mãos ao volante, quicando dentro do Santana,

com o coração ao mesmo tempo triste e ansioso. Seguir em frente implicava deixar algo para trás, ouvi isso em algum lugar Essa era a melhor descrição do meu estado de espírito enquanto eu atravessava a divisa de estados e era imediatamente parado pela Polícia Federal.

- Documento do carro e CNH, por favor - disse o policial rodoviário, inclinandose em minha direção, próximo à janela do carro.

Não era a primeira vez que me paravam no trânsito, nem mesmo a segunda, conhecia bem o ritual, graças ao, ou culpa de um fusquinha amarelo gema setenta e sete, rebaixado e com rodas tala larga, que eu tive na juventude. Mesmo com ares de bom moço, óculos finos, cabelo sempre cortado, camisa por dentro da calça, eu e aquele fusca éramos figuras fáceis nas blitz de São Carlos. Fomos parados em quase todas elas, na primeira metade da década de noventa. Por alguma razão que desconheço até hoje, porém, fiquei bastante nervoso enquanto o policial examinava os documentos, em pé, ao lado do meu Santana. Vivia a realização de um sonho, as primeiras etapas dele, tinha lutado muito para estar seguindo aquela estrada, depois de uma vitória há muito esperada, a aprovação em um concurso público. Mas eu não estava feliz, faltava algo, no mínimo, a coragem de cortar o cordão umbilical e viver fora do ventre.

- O senhor poderia sair do carro e me acompanhar, por gentileza?

Era claro que meu comportamento estranho levantaria fumaça, o nervosismo fazia tremer as minhas mãos. Sem outra opção, soltei o cinto, abri a porta, saí e fiquei ao lado do meu carro, observando o policial revistar o interior. Lamentava o tempo que eu perdia ali, queria chegar ao Rio em torno da hora do almoço, minha avó me aguardava, preocupada como sempre, e eu não tinha celular para alertá-la sobre o atraso. Enfim, nada encontrado dentro do carro, o próximo o foi abrir o porta-malas, lotado de livros. Só livros, muitos deles.

- O que o senhor faz?!

Diante das pilhas de livros, lado a lado, cuidadosamente posicionadas no amplo porta-malas, o policial perdeu, de uma só vez, a cara sisuda com que me abordava até então. Enquanto me indagava, sua expressão era a de quem acabara de presenciar um atropelamento, um misto de surpresa e espanto. A primeira vez a gente nunca esquece, também ouvi isso em algum lugar, ou em vários, diversas vezes, a mais pura verdade. ada mais de uma década, muitos cabelos brancos depois e tantas outras idas e vindas, jamais esquecerei o calor que alegrou meu coração quando enchi a boca e, orgulhoso, respondi:

- Eu sou professor

Era a primeira vez que eu usava oficialmente a palavra, virava professor para mim mesmo diante de um policial, na Dutra, entre São Paulo e Rio. Havia dado aulas como temporário por alguns meses, mas sem vínculo formal com nenhuma universidade, não dava para se sentir, de fato, professor. Com a aprovação no concurso público para o recém-criado curso de engenharia química do campus da Universidade Federal do Espírito Santo em São Mateus, a coisa mudou. Enfim, finalmente o primeiro lugar, num concurso diferente de todos os outros que eu havia feito antes, durante um período estranho aqui no Brasil, dominado pelo terror e pelo medo, decorrentes de ataques aleatórios arquitetados pelo Primeiro Comando da Capital, o PCC. O toque de recolher havia tirado o brasileiro das ruas, o país parou durante aqueles dias de incertezas, ninguém sabia onde seria o próximo atentado. O clima pesado que dominava aquela segunda quinzena de maio de dois mil e seis, quando viajei até Vitória para prestar o concurso, parecia ser o presságio para mais um fracasso. Outro na coleção. Felizmente, não foi o que aconteceu. Muito pelo contrário, por mais cruéis que fossem, os ataques até me deram uma mãozinha e tiveram a ver com a minha aprovação nas provas de issão.

Foi o seguinte, eu geralmente perdia para mim mesmo nos concursos que fazia a

fim de ingressar no magistério público superior. Ficava ansioso, estressado, nervoso, e não ia bem nas provas, pelo menos, não o suficiente para me classificar em primeiro lugar. Batia na trave. Outros candidatos se saíam melhor, pareciam mais bem preparados para lidar com a maratona das provas e, principalmente, a pressão psicológica. Quando fui para Vitória, porém, partindo de São Paulo onde eu havia pernoitado, em dezesseis de maio de dois mil e seis, encontrei ruas vazias, praticamente desertas. Metrô Paraíso, Avenida Paulista, Ponto Chic, Congonhas, por onde eu ava, meia dúzia de gatos pingados surgiam aqui e ali, uma visão inesquecível, que o tempo não apagou. Resumo da ópera, no primeiro dia de provas do concurso, realizado no campus de Goiabeiras em Vitória, de todos os inscritos para a vaga, só eu apareci. Fui candidato único, havia estudado bastante, estava confiante e, dadas as circunstâncias, não teria que ser melhor do que ninguém. A caminho da primeira prova teórica, pelos corredores do Centro Tecnológico da UFES, lembrei-me da célebre frase dita pelo Zagalo em Laz Paz, onde o Brasil havia derrotado a Bolívia por três a um, durante a Copa América de noventa e sete, "vocês vão ter que me engolir". Achei graça, relaxei, fiz as provas e papei a vaga.

Foi assim, então, que começou muita coisa na minha vida, fiz outros dois concursos para mudar de universidade, primeiro para a UFABC de Santo André, em dois mil e oito, e, finalmente, algum tempo depois, voltei para São Carlos para trabalhar, como docente, na UFSCar. Ao longo desses anos, nas três universidades federais por onde ei, tenho a impressão de ter vivido uma grande aventura, com todos os ingredientes de um filme de ação, às vezes, de suspense. Se tenho ressalvas, elas não se devem ao tédio, à falta de desafios ou a uma rotina monótona, reclamações comuns em algumas profissões. A minha era diferente, ou melhor, foi diferente até então. Houve o dia em que eu suei a camisa, literalmente, ajudando a instalar disjuntores no novíssimo laboratório didático de física da UFES de São Mateus, para que os alunos pudessem ter suas aulas. Houve também o dia em que eu fiz, com os meus alunos da UFABC, um viscosímetro de baixo custo, usando lata de óleo descartada e um tubinho capilar doado por uma clínica de Santo André. Que saudade! Nunca fui tão feliz e motivado como docente quanto em Santo André. Mas houve também brindes com champanhe e traje social em congressos internacionais, voos a outros continentes, abraços, apertos de mão e muita curtição.

Mas, com esse zigue-zague no tempo, ando por três universidades em menos de três parágrafos, faltou concluir a conversa com o policial rodoviário em dois mil e seis. De volta à Dutra, imerso em reflexões, concluí que certas profissões tinham a simpatia de todos, ou de muitos, por assim dizer, gozando de um certo carisma universal, acima de questionamentos, como padres de batina preta e bombeiros. Professores faziam parte desse seleto grupo, quem pisou em uma escola tinha uma lembrança boa, ou alguma referência qualquer, dos tempos de ensino, das aulas, dos amigos, do recreio, até do barulhinho gostoso que o giz fazia quando encontrava o quadro-negro. Um bom professor, uma boa professora, um elogio, uma bronca, o "a" com crase no lugar certo, a divisão de fração e o resultado correto, amos boa parte de nossas vidas aprendendo com professores, uma gratidão que segue na fase adulta e que envelhece com a gente. Eu descobri isso diante do policial rodoviário na Dutra, que com um largo sorriso, estendeu sua mão direita em minha direção e, depois de um forte aperto, me desejou "boa viagem, professor, siga em paz". E lá fui eu, mal sabia o que me esperava. Foi bom, fui feliz.

Me acompanhar, não é tarefa fácil. Vamos lá, recapitulando, a viagem no tempo começou na minha última aula do semestre de dois mil e dezenove, dramática, triste, eu sabia que tinha câncer. De lá, a bordo do meu carro vermelho, fui parar no dia trinta de julho de dois mil e seis, um domingo, na Dutra, entre Rio e São Paulo. Aproveitei o embalo e segui diretamente para dezesseis de maio de dois mil e seis, no fogo cruzado entre o concurso público e os ataques do PCC. Depois, voltei para a Dutra, dei tchau para o policial rodoviário e, finalmente, estava, de novo, em sala de aula, no AT5, prestes a dar uma pausa forçada na minha tão sonhada carreira de professor. Não tinha outro jeito, a doença ocupava um espaço na minha vida que já não podia mais ser divido com as atividades do meu trabalho. Eu não tinha estrutura emocional para guardar segredo sobre o meu estado de saúde, foi uma decisão errada não compartilhar com os outros o problema que eu tinha. De todos na UFSCar, sem exceção, só tive apoio, compreensão, solidariedade e a torcida para que eu me recuperasse. Ninguém estava imune ao câncer e todos tinham consciência disso. Pouco antes do início do meu tratamento quimioterápico, havíamos perdido um querido colega, vítima de câncer no estômago. O departamento de engenharia química estava bastante sensibilizado, havíamos acompanhado o drama de perto, do câncer tardiamente descoberto. Havia uma expectativa no ar para que eu me recuperasse.

Saí da sala de aula junto com o fluxo de prepotentes alunos de engenharia, candidatos ao Prêmio Nobel. Se eu morresse dali a alguns dias, na cirurgia, seria lamentável ter dado aquela última aula tão contrariado. Felizmente, eu não morri. A última aula do semestre não seria a última aula propriamente dita. Havia a expectativa. Quem teve câncer uma vez tinha mais chance de ter câncer novamente, eu sabia disso, minhas projeções para o futuro, quando eu voltasse a fazê-las, seriam diferentes. Acho que vou aproveitar melhor o dia, quando meus dias voltarem ao normal. Acho que perderei menos tempo com bobagens, como fechadas no trânsito, beicinhos no trabalho, cobranças, prazos, quem sobrevive a um câncer não pode desperdiçar energia com essas coisas. Acho também que terei pensamentos mais construtivos, mesmo nas adversidades do cotidiano, serei menos assombrado pela tempestade de perturbações do dia a dia. Acho que terei mais paz de espírito para viver. Ainda no AT5, dentre mortos e feridos, uma coisa ficou clara, eu não tinha mais condições de trabalhar. Entrei cabisbaixo no fusquinha, infeliz com a aula, mas aliviado pelo dever cumprido. Feliz pela decisão tomada. Foi um momento de profunda solidão. Voltei para casa e, de lá, comuniquei ao departamento que eu havia descoberto um câncer de cólon.

MEU DIA DE REI

Há muito eu tenho um respeito danado por trabalho voluntário, acho extremamente nobre essa iniciativa de desprendimento, de olhar para o próximo com vontade de ajudar. Na fase madura da minha vida adulta, participei de três operações do Projeto Rondon através da UFSCar, foi muito bom, fomos as três vezes para o interiorzão do Nordeste, mais precisamente, Pernambuco, Paraíba e Alagoas. Não sou, nem nunca fui, candidato a Santo, não serei canonizado, mas durante as operações do Rondon eu curtia bastante o meu lado bom que era revelado, sentia realmente prazer em ajudar sem esperar nada em troca. Mesmo assim, o retorno era imediato, ação e reação, causalidade na física de Newton e na vida de todo mundo, o sorriso e a gratidão das pessoas com as quais eu tinha contato enchiam-me de ânimo e de boas energias. De efeito a longo prazo. Sempre voltei diferente dessas viagens, feitas em conjunto com as Forças Armadas, uma verdadeira aventura, com transporte em aviões da Força Aérea, alojamento em quartéis e batalhões militares, comida de rancho, permanência improvisada em creches, asilos de idosos, escolas infantis, enfim, um mundo muito diferente do meu.

Pois durante a minha segunda seção de quimioterapia na Santa Casa, dia vinte de novembro, em algum momento, recebemos a visita de voluntários da clínica de estética Fisioforma, uma invasão de gente sorridente que melhorou imediatamente o astral do lugar. A ideia era fazer o sorteio de um tratamento estético para homens, um dia de Rei, como diziam, parte das atividades do novembro azul e da campanha de prevenção contra o câncer de próstata. O meu não era na próstata, mas não precisava ser, a cortesia era estendida para todos os homens da ala de quimioterapia. Apesar do belo gesto e da animação dos voluntários, a princípio, eu não me empolguei muito com o tratamento estético, nunca me imaginei fazendo nada disso. Mas, minha vida estava diferente, se por um lado eu não me empolguei, por outro, não descartei a possibilidade de mais essa nova experiência, num período de mudanças tão intensas. Por fim, fui sorteado, para a minha surpresa, ganhei a cortesia, recebi de maneira mais ou menos solene o convite com o símbolo do novembro azul, um laço com um bigodinho preto no meio, em alto relevo, e confirmei meu interesse em ar

pelo tratamento estético. Eu ria internamente, virei uma celebridade entre os pacientes, sempre fui muito discreto e até certo ponto, meio apagado, um bicho do mato em ambientes que desconhecia. Nascia um novo homem.

No dia vinte e cinco, às dez da manhã de uma segunda-feira com tempo nublado, e um friozinho fora de época, estacionei meu carro diante da Clínica Fisioforma, na rua Dom Pedro II, bem próximo de onde eu morava até me mudar para o apartamento dos meus pais. Minha mãe me acompanhava, mas eu fui dirigindo, se estou num carro, só me sinto à vontade ao volante. Eu já me sentia melhor, sem os efeitos mais evidentes da seção de quimioterapia da semana anterior. Tirando o soluço, que era mais persistente, a fraqueza, a sonolência e eventuais náuseas, sem vômito, não incomodavam tanto. Sair de casa virou um evento esperado e que me deixava muito feliz e animado. ei a dar muito mais valor a essas coisas que eu julgava banais, gratuitas, tão minhas que eu jamais teria que conquistar, ou reconquistar. Estar na rua, calmo no trânsito, gentil nas manobras, sem pressa, era muito bom, o tempo ava melhor. Procurei um trajeto bem central para chegar até a clínica, ando pela Praça XV, próxima à USP, onde fiz minha graduação e por onde circulei quase que diariamente por longos cinco anos. Jovem, arrogante, cheio de sonhos e com muita ambição. Um enorme contraste com o que eu era ao ar por aquela mesma região da USP a caminho do meu dia de Rei.

Lá chegando, nem precisei me identificar na recepção da clínica, as moças que atendiam logo me reconheceram, fiz um rápido cadastro e fiquei muito feliz ao saber que a cortesia da limpeza de pele seria estendida para a minha mãe, que estava comigo. O tratamento estético foi muito bom, tudo o que era feito e todos os produtos usados no meu rosto vinham junto com uma explicação. As meninas que nos atenderam tinham bom papo, sabiam cativar, foram solidárias ao nosso momento, mas sem dramas, sem aquele sentimento de pena que só atrapalhava. Cada um com a sua cruz, se lidar com um câncer nunca é fácil, tive privilégios que amenizaram bastante o baque de ter que conviver com uma doença tão mortal e monstruosa. Perder o emprego, um ente querido, a liberdade, eram cruzes no mínimo tão pesadas quanto a minha. No inevitável comparativo, eu tinha muito a agradecer, muito mais do que lamentar. Meu caso, a princípio, tinha cura, foi detectado a tempo, não havia sofrimento, pelo menos, até aquele

momento. Eu nunca fiquei debilitado a ponto de entregar os pontos. Não sabia se continuaria assim. Meu plano de saúde cobriu todas as despesas do meu tratamento, fiquei sempre internado em quarto individual, com conforto, tudo aconteceu sem muita espera. Quantos brasileiros podem ar por tudo isso dessa maneira?

Voltei para casa, de fato, me sentindo um Rei, de cara limpa, com um gostoso frescor na pele. A quimioterapia alterava significativamente o teor da pele, principalmente depois da segunda seção, fiquei permanentemente com a sensação de que estava com queimadura de sol, em especial no meu rosto. Eu tinha, inclusive, um verrugão na minha mão direita que rapidamente desapareceu. Mesmo fugindo do sol, não cheguei a ficar pálido, minha aparência escondia todo o processo que eu vivia, tirando a cautela de usar máscara hospitalar em lugares com muita aglomeração, nada indicava que eu estava, por assim dizer, doente. O interior paulista vivia um surto de sarampo, a indiscretíssima máscara hospitalar me incomodava, mas também me deixava mais tranquilo. Chegando em casa, já próximo da hora do almoço, uma refeição de rei me esperava, abóbora moranga com charque e queijo catupiry. Minha digestão ainda não estava totalmente recuperada dos fortes medicamentos, mas comi devagar, degustando cada garfada, mastigando bem, e foi muito bom. Fiquei com aquela impressão de um congestionamento nas vias digestivas, o vulgo refluxo, o soluço veio, mas a vontade de continuar comendo foi maior. De sobremesa, ainda tracei um pedaço de bolo de canela com as, acompanhado por um cafezinho quente que eu adorei. Quem parecia se divertir tanto quanto eu era o soluço, implacável, sem dó nem piedade, mas quem foi rei, não perde a majestade. Nem que seja, por um dia.

Por falar em dia, foi então que chegou a famigerada terceira seção de quimioterapia. Não pretendo fazer aqui um diário de bordo, descrevendo o tratamento do primeiro ao último dia, mas, desde o começo, ouvi muito sobre a terceira seção. Segundo o relato de profissionais da área de saúde e de meus colegas mais experientes da Santa Casa, era a partir da terceira seção de quimioterapia que os efeitos perceptíveis dos medicamentos ficavam mais evidentes. De fato, foi diferente. O ritual das seções na Santa Casa de São Carlos começava com a apresentação na antessala, às oito da manhã. Munido de

caderneta de aplicação (semelhante às de vacinação), carteirinha do plano de saúde, identidade e, acima de tudo, de resultado dos exames de sangue periódicos, lá ia eu para a minha nova rotina. Dentro da ala, antes de me acomodar nas poltronas, checagem do peso, batimentos cardíacos, temperatura e pressão arterial. Eu sempre recebia nota dez, com louvor. Principalmente quanto ao peso, me acostumei com a indigestão, fiz cara de paisagem para ela, e segui comendo no ritmo de sempre, com mais fome do que nunca. Era quatro de dezembro, quarta-feira.

Nessa ocasião, eu levei para ler um livro sobre a história do Fusca, mas logo percebi que havia sido em vão. Já nos primeiros minutos de aplicação, fiquei bem debilitado, não tive dor de cabeça tão forte como antes, mas a fraqueza foi maior. Geralmente, durante as cinco horas em que eu ficava na ala de quimioterapia, ia ao banheiro de duas a quatro vezes. Dessa vez, sentia as pernas bambas no trajeto, principalmente, ao me levantar. Fui amparado pelas enfermeiras. Tirando isso, nada de efeitos mais severos, pelo menos, não durante a seção. Meu raciocínio ficou estranho, menos lógico e mais criativo. Entorpecido por um cansaço induzido pelas circunstâncias, desisti do livro e mergulhei em mim mesmo, numa introspecção profunda, em busca da origem da vida. Da minha vida. Recuperar o ado bom, nas horas difíceis, fazia muito bem. Houve bastante estímulo naquele dia, era a famosa terceira aplicação, bem diante de mim, havia uma senhora com câncer em estágio avançado, o desalento do marido e do filho que a acompanhavam me fez desejar uma outra realidade. Longe dali. Nunca em minha vida eu estive tão fora da minha zona de conforto. Ver o sofrimento de uma família, sem nada poder fazer, era duro demais, mesmo me sentindo mais forte com essas questões, mais evoluído até, fiquei meio louco e perdido. Não me revoltei, nem tinha razão para isso, mas fiquei paralisado de espírito.

Apesar da prostração em que eu me achava, afundado na poltrona, de olhos sempre fechados, parti dali em pensamento, voando alto no tempo, percorrendo o meu ado. Foi fácil chegar até a mudança para São Carlos, nas férias de verão de oitenta e um. Eu tinha nove anos. O período de quase trinta e nove anos vividos em São Carlos teve um pouco de tudo, drama, suspense, romance, comédia e, principalmente, aventura. Afinal de contas, ei a adolescência e a

juventude na cidade, com a saúde de touro premiado. Depois me formei, arranjei emprego, envelheci e adoeci. Mais adiante no ado, a fase de Rio Claro foi curta, mas deixou boas lembranças, como o dia em que eu aprendi a andar de bicicleta sem rodinhas. Um marco! Antes disso, teve a infância no Rio de Janeiro, numa época em que a cidade merecia o título de Cidade Maravilhosa. O Rio realmente era maravilhoso, foi palco do meu primeiro desfile de sete de setembro, o Geisel era presidente. Nesse dia, levei uma bronca inesquecível por ter feito um aviãozinho de papel com a bandeira do Brasil. Teve também a visita ao zoológico em que um macaco, conhecido como Tião, jogou casca de banana na gente, acertando, em cheio, o meu pai. Bondinho de Santa Teresa, que quase pegou fogo com a gente dentro, Corcovado, Pão de Açúcar, São Cristóvão, Aterro, lembro-me de tudo, imagino como deve ter sido viver aqueles tempos sob o olhar de uma criança. A lembrança mais antiga de todas, porém, não foi boa. Foi quando fiquei preso em um dos banheiros do nosso apartamento na Ilha do Governador. Eu devia ter entre quatro ou cinco anos de idade. Mesmo assim, teve final feliz, depois que me resgataram.

A luta pela primeira lembrança da minha vida virou a marca registrada da terceira seção de quimioterapia. Os efeitos foram mais perceptíveis, nas semanas anteriores eu havia notado uma micose oportunista na unha do dedão da minha mão esquerda. Devido à baixa resistência imunológica, peguei essa micose muito provavelmente por um descuido na higiene, no período de tratamento, deve haver mais cuidado com a limpeza das mãos, nariz, boca, rosto, e por aí vai. Após a terceira seção, a unha ficou bem mais feia, como eu não podia usar medicamento para combater isso, ficou o registro e nada mais. Em pouco tempo as demais unhas da mão também ganhariam a tal da micose. Não cheguei a perder grandes volumes de cabelo, mas foi o período em que mais notei queda, principalmente, observando os fios no meu travesseiro, logo de manhã. Os pelos diminuíram significativamente. Tive muito soluço, mas isso não era novidade, nem foi exclusividade da terceira quimioterapia. O apetite foi grande, a vontade de comer e a falta de vergonha na cara me faziam driblar a indigestão com a malandragem de quem não sabia ficar sem mastigar alguma coisa. Ficou mais difícil, mas não seria a terceira seção que mudaria o meu instinto glutão. Tive mais sonolência, mais fraqueza, mas não fiquei muito abatido. Talvez, com menos vitalidade. Toda vez que eu saia da Santa Casa, às quartas-feiras de tratamento, minha cor tendia para um alaranjado, depois voltava para o tom normal. Não fiquei com a pele pálida, acinzentada ou esverdeada como a de

muitos dos meus colegas da ala de quimioterapia.

Mais uma vez, houve uma conspiração dos astros a meu favor, do momento em que eu saí da Santa Casa de São Carlos, até a retirada do infusor na sexta-feira, dois dias depois da terceira seção de quimioterapia, choveu o tempo todo. As temperaturas mais amenas fizeram com que os medicamentos fossem istrados de maneira mais lenta, mais suave no meu organismo. Fiquei mais tempo recebendo os quimioterápicos, com mais dor no braço direito, a rigor, uma dor que ia do tórax ao omoplata, próxima à região onde havia sido implantado o cateter, mas, seguramente, foi melhor assim. Chovia e parava de chover quando fui até a Santa Casa retirar o infusor, às três da tarde, uma hora antes de fechar a ala de quimioterapia. Havia permanecido pouco mais de quarenta e oito horas com a bombinha de medicamentos que eu levava para casa na cintura.

- Caramba, dessa vez eu fiz bodas de prata com essa pochete!

Meu protesto bem-humorado foi bem recebido pelas enfermeiras que me atenderam naquela tarde chuvosa. Nas duas outras vezes anteriores, de aplicação dos medicamentos, logo pela manhã, na sexta-feira, o infusor já estava vazio e eu seguia, feliz, para retirá-lo na Santa Casa. Feliz por uma simples razão, o infusor incomodava muito. Recapitulando, semana sim, semana não, eu fazia quimioterapia. Fazia uma semana, folgava outra. Meu horário de tratamento era de quarta às oito da manhã. Eu ficava na Santa Casa até às duas e pouco da tarde, recebendo os quimioterápicos por lá, depois instalavam a bombinha em mim e eu ia para a casa. Com a pochete do kit na cintura. Quarenta e oito horas depois, ou mais ou menos isso, terminava o líquido da pochete, ela ficava leve e eu também. Bom, até o final do livro, isso tudo vai ficar bem claro.

- Que bom, Seu Fábio, melhor assim!

Quanto mais próximo das quarenta e oito horas, melhor, era isso. Havia somente duas senhoras em tratamento quando entrei, esbaforido, na ala de quimioterapia. Eu falava alto, mas ninguém parecia se incomodar com isso. Meu braço direito doía bastante, assim como das vezes anteriores. Tirar o infusor da cintura e os tubinhos que injetavam os medicamentos no cateter, uma parafernalha danada, era alívio imediato. Era como tirar um sapato apertado, e sorrir gostoso logo em seguida. Enquanto a enfermeira se livrava dos quilos e mais quilos de micropore usados para prender os tubinhos ao meu corpo, eu fazia brincadeiras com a cor da pochete. Das outras vezes, a pochete com o infusor cheio de medicamentos era preta, mas dessa vez, eu havia recebido uma azul clarinha. Chamava a atenção, era bem diferentona, brega para quem não sabia ver a beleza nas coisas, simpática para mim que estava aprendendo a viver.

- Fique com ela, pode levar para casa, é um presente da Santa Casa para você!

Ganhei a pochete azul clarinha, um prêmio pelas quarenta e oito horas de injeção com precisão quase suíça. A Santa Casa já estava em clima de Natal, as diversas alas tinham enfeites natalinos pendurados pelas paredes, na quarta-feira daquela semana, havíamos ganho pequenos panetones de presente, cortesia de uma padaria da cidade que não quis se identificar. Mini e delicioso panetone, com gotas de chocolate e o ingrediente especial de um gesto grandioso. O lado bom do mundo, e do Brasil que dá certo. O pequeno panetone só não foi protagonista naquela terceira seção de quimioterapia porque o meu cárcere no banheiro da Ilha do Governador falou mais alto. Ecos do ado!

Na noite de sexta-feira para o sábado, sentindo os já descritos efeitos da quimioterapia, sonhei com duas crianças pequenas. Fui dormir cedo, entregue ao sono, com a sensação de ter perdido uma batalha, ou todas elas. Meu corpo não reagia, não adiantava buscar forças. Deitei pesado na cama e logo apaguei. Daí, veio o sonho, num primeiro momento, associei as duas crianças, uma menina e um menino, aos meus sobrinhos, mas as idades estavam invertidas. A menina era mais velha do que o menino, não tinha como ser o Caio e a Laura. Sonhos são sempre confusos, viver algo que não aconteceu de verdade era assim mesmo,

mas eu tenho uma relação diferenciada com eles. Eu acho, ou melhor, estou quase convencido de que alguns dos meus sonhos foram episódios mais completos do que uma simples manifestação inconsciente. As duas crianças interagiam comigo, me fazendo pedidos, não saíam do meu lado. Durante o sonho, eu me julguei tio delas, era o que eu sabia ser, elas estavam assustadas com alguma coisa, queriam estar próximas. Estávamos de mãos dadas, dava para sentir o contato, a impressão que eu tinha era a de ser enorme, transitávamos por uma casa em que tudo parecia pequeno para o meu tamanho. Eu era desproporcional, as crianças pareciam de brinquedo, mas não eram. Meus sonhos acontecem em ambientes escuros, sombrios, não sei o que isso significa, ou se isso significa alguma coisa, lembro-me de muitos detalhes depois que eu acordo. Era a primeira vez que eu sonhava com aquelas crianças, pelo menos, que eu me lembrasse. No ado, outros sonhos me acompanharam durante muito tempo.

Já contei sobre o sonho recorrente com os relógios em um hangar, e a lembrança de me deparar com um reho infantil que eu tive quando pequeno. Sonhar mais de uma vez o mesmo sonho não era novidade para mim. Talvez a experiência mais completa e marcante que eu tive, entretanto, foi com um velho sobrado, cenário de vários dos meus sonhos na adolescência e na juventude. Não havia repetição, eu ia dormir e o sono me levava para essa casa antiga de dois andares, grande, empoeirada, até meio abandonada, cheia de cômodos. A casa era muito ampla, mas não chegava a ser uma mansão, tinha pé direito alto, mobília da época, tapetes, cortinas, grades pretas, janelas grandes, e vários ambientes com duas portas. A cada sonho, de um ambiente eu ia para o outro, atravessando misteriosamente salas, uma biblioteca, com a ajuda de um desenhista eu seria capaz de recriar essa casa. Sei, por exemplo, que o sobrado era de esquina, estive do lado de fora algumas vezes. Nada acontecia, eu simplesmente andava pelo sobrado, reconhecendo os vários cantos, com a sensação de ser um proprietário ou herdeiro. Era bom, eu gostava, mesmo depois que eu acordava, estar de alguma maneira naquela casa me fazia bem. Ela não era contemporânea, lembro-me muito bem desses sonhos na década de oitenta, a casa seguramente era, na melhor das hipóteses, do começo do século, dos primeiros anos. Nunca tentei entender ou interpretar esses sonhos, tive medo de buscar alguma explicação e acabar me assustando com ela.

Eu gostava da casa, tinha uma relação muito boa com todos os cômodos, estive na cozinha mais de uma vez, subi e desci duas escadas diferentes, eu sempre acordava bem depois dos eios no antigo sobrado. Era o que eu fazia, só isso, durante o sono, eu não escolhia para onde ia, entrava por uma porta em um quarto, saía por outra, já dentro de outro ambiente. Algumas vezes, nem de portas eu precisei para entrar e sair. Havia um corredor comprido no piso térreo e outro no piso superior, mas havia também esses cômodos conjugados bem diferentes das casas atuais. Uma das vezes eu me vi no que julguei ser um jardim de inverno, com aquelas cadeiras de praça em aço, como num filme antigo. No térreo, lembro-me de áreas envidraçadas que davam para um jardim externo, do lado de fora, onde até um vento suave poderia ser percebido no sonho. Se, por um lado, explorar o interior daquela casa trazia sempre uma novidade, um detalhe novo, por outro, eu me sentia completamente à vontade dentro dela. Tanto que eu ficava horas pensando no sobrado depois que acordava. Do banheiro, eu não guardei nenhuma imagem, mas tenho certeza que estive nele também. Só não valeu a lembrança. Outra certeza que eu tinha depois que acordava era a de estar sozinho durante o sonho, ninguém me acompanhava. Era eu, e a casa.

Quando fui para a França durante o meu doutorado, por vezes eu me senti no contexto daquele velho sobrado, perambulando por bairros residenciais de Lyon, onde eu morava. Nessa época eu já não sonhava mais com a casa, só tinha a lembrança. Essa sensação de familiaridade era mais evidente nas cercanias do Parque da Tête d'Or, próximo ao centro da cidade. O sobrado do meu sonho era ornado na frente e na lateral por um pequeno e estreito jardim, a vegetação não era muito brasileira. Assim que eu voltei para o Brasil, me convenci de que meus sonhos dentro da casa antiga aconteciam na França, eu ia para lá enquanto dormia. Essa convicção durou até eu ar a dividir meu tempo entre São Carlos e Curitiba. O sobrado dos meus sonhos poderia ser em Curitiba também, ou em qualquer outra cidade no sul do país. Nunca vi ninguém dentro da casa, como já dito, nem animal de estimação, nem nada, só móveis antigos, coisas velhas e ambientes estranhamente distribuídos em um espaço por onde circulei durante vários anos. Quando descobri que estava doente, li alguns livros espíritas sobre desencarne que tratavam de interpretar sonhos, premunições, visões, essas coisas. Pode ser que a casa tenha sido uma antiga moradia minha, ou um lugar que frequentei em uma vida ada. Jamais faria uma regressão para me aprofundar no tema. Honestamente, não sei o que dizer, me faltam argumentos e

conhecimento para concluir algo. Se for isso mesmo, se de fato a casa evocava memórias de uma vida ada, posso afirmar categoricamente que devo ter sido muito feliz nela.

MEUS PECADOS

Eu nunca achei que fosse morrer por causa do câncer de cólon. Desde o primeiro exame, dia dezenove de julho, até as primeiras seções de quimioterapia em novembro, algo me dizia que não seria disso que eu morreria. Minha preocupação sempre foi a de não sofrer, Deus, por favor, me poupe disso. Não pude evitar, entretanto, a ideia de que eu poderia não ter uma vida muito longa pela frente, o tumor relativamente precoce e, de certa forma, agressivo, me fez repensar e refazer meus planos. Era evidente que eu tinha propensão a essa doença, muitos dos meus amigos da ala de quimioterapia estavam em tratamento pela segunda ou terceira vez. O câncer ia embora, e voltava depois da quimio, às vezes no mesmo lugar, às vezes, em outro. Conheci uma mulher, seguramente mais jovem do que eu, que teve câncer nos seios, retirou ambos, fez quimio e radioterapia, perdeu os cabelos, sofreu bastante, e se recuperou. ado algum tempo, lá estava ela de novo, dividindo a mesma seção de quimioterapia comigo, dessa vez, para tratar um câncer de pulmão, que havia começado em um lado e ado para o outro. Detalhe desse caso, ela nunca fumou. Apesar de tudo, era uma pessoa sorridente e otimista, conversava com todos, achou graça quando compartilhei com o grupo minha batalha contra o soluço e o aumento num apetite que nunca foi pequeno. O astral da mulher era contagiante.

- A gente vence o câncer por aqui - dizia isso repetidas vezes, apontando para a cabeça com a ponta do dedo indicador

Eu vou além, a cabeça no devido lugar era fundamental, de todos os envolvidos, doentes, familiares, amigos, mas o amor era tão importante quanto. Nunca me senti tão amado por todos, quanto no período em que eu adoeci. Pessoas próximas e distantes eram capazes de me amar, demonstrando esse amor das mais variadas formas. O sentimento de pena, como eu já disse e não cansarei de repetir, não servia para nada, muito pelo contrário, era nocivo, atrapalhava ao invés de ajudar. O amor era bem-vindo, acho até que eu aprendi a amar verdadeiramente depois do câncer. Na UFSCar, em todos os setores que tive contato por conta da minha doença, as pessoas que falavam comigo

demonstravam mais humanidade do que eu. Demorou para eu perceber que o meu câncer era grave, um tumor jovem que aumentava a uma taxa assustadora. Logo no início, eu não quis me desligar completamente da universidade, lamentavelmente para mim, era mais importante pensar no que eu deixaria de fazer por estar afastado, os pontos que eu deixaria de obter para a minha progressão funcional, enfim, uma legítima inversão de valores. Sempre ao telefone, da chefia e coordenações do DEQ ao setor de pessoal e de saúde da universidade, de ramal em ramal, as pessoas do outro lado da linha tinham preocupação e eram solidarias comigo, em nenhum momento aceitaram manter no campus um servidor doente de câncer. "Cuide-se, professor, o resto é com a gente". E, assim, eu fui afastado da UFSCar, para o meu próprio bem. Como já dito, a decisão de comunicar a universidade foi tomada depois de uma aula desastrosa de mecânica dos fluidos.

Bem depois disso, numa sexta-feira, véspera de feriado, dia quatorze de novembro, já me recuperando da primeira seção de quimioterapia, dei um pulo no departamento de engenharia química para atender meus alunos de mestrado. Um ato de rebeldia que eu tinha que fazer. Eu sofria uma crise de abstinência, estava ficando louco em casa, tomei os devidos cuidados e ei a tarde toda atendendo a garotada. Além de ser véspera de feriado, começava o famoso TUSCA naquele dia, um evento que reunia alunos universitários de todo o país, mais de trinta e três mil pessoas de fora de São Carlos participaram da edição de dois mil e dezenove. A UFSCar estava vazia, melhor para mim. Houve menos flagrantes da minha desobediência institucional. Todos os colegas que estavam no departamento, fora dos horários de aula, foram falar comigo, com a felicidade sincera de me rever. Como já comentei, havíamos perdido há pouco tempo um professor antigo e querido do DEQ, vítima de câncer no estômago, todos estavam bastante sensibilizados, coincidentemente, descobri minha doença poucos meses antes dessa morte. O susto foi geral, todos sabiam que eu corria diariamente, comia bem, até demais, vivia pra cima e pra baixo com os meus alunos, checando experimentos no laboratório, vendo simulações, corrigindo textos, nunca fui muito fanático pelo trabalho, mas mantinha-me confortavelmente na média. A tarde ada no DEQ foi muito boa, pena que me senti mal depois do expediente forçado, eu ainda não me dava conta das minhas limitações. Mesmo assim, valeu a pena.

O adesivo dizia "o segredo do meu sucesso é Jesus", assim mesmo, desse jeito. Estampava com letras garrafais o vidro traseiro de um velho Fiat 147 verde escuro, caindo pelas tabelas. O carro andava lentamente, se arrastando, sem ninguém ao volante, sorridente, o motorista seguia do lado de fora, enquanto empurrava a máquina enguiçada, cantava alegremente. Chovia torrencialmente, eu assistia à curiosa cena abrigado na entrada de um hipermercado, esperando o toró ar. Meu carro estava no estacionamento, não muito distante, mas eu iria me molhar todo se tentasse encarar o aguaceiro de verão que despencava em cima de Magalhães Bastos, subúrbio do Rio de Janeiro. Eu diria que isso aconteceu há uns dez anos. Não tenho certeza. O homem parecia não se importar com a forte chuva, era como se ela só caísse na cabeça dos outros, não na dele. Feliz ele seguia, empurrando o surrado 147, "o segredo do meu sucesso é Jesus", o cara estava encharcado, chamando a atenção de todo mundo. Parecia coisa de desenho animado, a princípio, achei graça da situação, que sucesso era aquele? Carro quebrado, um baita toró e um provável resfriado aguardando a noite chegar, honestamente, eu não entendia tamanha felicidade. Não havia, entretanto, encenação, o homem estava feliz, e deixava isso bem claro. Sentiame atraído pela cena.

- O cara ainda diz que o segredo do sucesso dele é Jesus?

Intrigado com o que via, acabei pensando alto demais, o comentário saiu sem querer, sem eu nem perceber. Não sou do tipo que curte bater papo com estranhos, muito pelo contrário, "o segredo do meu sucesso é Jesus" e o cara empurrando o carro na chuva, entretanto, mexeram comigo. Tive que transbordar.

- Você não acha que ele é um homem de sucesso? - disse uma senhora plantada ao meu lado, refém da chuva como eu.

Hoje, em tratamento oncológico, relembrando mais essa anedota da minha vida, vejo claramente o sucesso daquele homem, talvez das pessoas mais bem-

sucedidas que eu já encontrei, dono de uma alegria contagiante, espontânea e à prova d'água. Vitamina C contra o resfriado que provavelmente ele não teve à notei. Quisera eu ter um delta do sucesso daquele feliz e ensopado proprietário do velho e inerte Fiat 147. Inveja é uma falta imperdoável e eu não pretendo somar mais pecados à minha longa lista, vai aqui, então, um pedido de perdão, pela inveja que eu sinto ao descrever os fatos, e não consigo evitar.

Senhoras e senhores, vamos lá, eu pequei, e muito. Pequei como homem, pequei como cidadão, fiz julgamentos equivocados, tomei decisões erradas, falei no celular enquanto dirigia, ou seja, no meu currículo de pecador, tinha de tudo um pouco. Minha vida íntima nunca teve graça nenhuma, afinal, já nasci com vinte e cinco anos, não trocava nem de meia na frente dos outros. Na intimidade, eu era um típico solteirão, que dirigia um fusquinha branco setenta e quatro e que dava aulas para seres alambicados numa universidade federal. Tirando isso, nas horas de folga eu, simplesmente, não fazia nada muito especial. Meu lazer era cair na estrada, comer bem, ia muito ao cinema, sempre sozinho porque eu gostava mais. Desde pequeno, eu era assim, minhas professoras do jardim da infância frequentemente anotavam na minha agenda essa tendência ao isolamento. De minha parte, nunca me fez mal. Esse meu lado mais pessoal não foi isento de profanação, solteiro sim, casto, não, mas era bem menos condenável do que as falhas que cometi em outros quesitos da minha vida. Fui arrogante, ambicioso, egoísta, desejei mal aos outros, a ira me deixou irracional algumas vezes, xinguei no trânsito, meu prontuário no DETRAN era uma vergonha, sou glutão, sou diabético mas como doce escondido e, o que é pior, fiz e faço tudo isso sabendo que estou errado. Medo do umbral? Tenho, e muito!

A soberba foi o meu pior pecado, eu não tinha dúvidas. Minha fama de arrogante foi maior durante a graduação. Pode-se dizer que a empáfia, a prepotência, a vaidade, e mais um monte de sinônimos e outros adjetivos do gênero do meio acadêmico me seduziram naquela época. Tive muitos professores figurões, que iniciaram a carreira na década de sessenta, havia bem menos universidades e quem tinha diploma era coisa pra caramba. Muitos dos meus professores foram ativos no CNPq, na CAPES, na FAPESP, no MEC, além de instituições importantes fora do Brasil. Eu queria ter destaque, fazia um esforço danado para ficar ligeiramente acima da média, conseguia isso à custa de muito sacrifício.

Enquanto meus colegas curtiam a vida, eu estudava, só para ficar um pouquinho acima da média. Aguentei esse fardo até o início do doutorado, quando me saturei e desci para a média. Felizmente, não tive destaque em nada, acho que seria pior, eu não teria cabeça para isso. Vivi uma parte da minha juventude preocupado com índices de desempenho, em busca de status social. Não enxergava as minhas próprias limitações, me formei em engenharia pela USP de São Carlos com vinte e três anos, depois, apanhei muito, de tudo quanto foi lado. Acho que já paguei integralmente essa conta.

Mas tinha o lado bom também. Procurei ser correto e honesto, contestei, mas sempre respeitei leis, normas, regras, resoluções, obedeci mesmo descordando de uma ou de outra. O que eu tinha era fruto do meu trabalho, não fui invejoso, nem materialista, tirando o Fusca, abriria mão do que fosse necessário. Já ajudei, já fui solidário, na juventude, salvei um filhotinho de vira-lata marrozinho, de focinho preto, que se afogava em um córrego perto da antiga casa dos meus avós maternos, no Rio, num ato de coragem e de desprendimento bem atípico para um tipo como eu. Sempre detestei ostentar ou aparecer, se eu estivesse em um ambiente, procurava me mesclar a ele, sendo discreto. Nem sei se isso era uma virtude, mas nunca critiquei quem agisse diferente. Isso era uma virtude. Fui bom filho, bom irmão, bom cunhado, bom tio, bom primo, bom sobrinho, bom neto, bom vizinho, pelo menos, nunca ouvi reclamações. Nunca me revoltei contra a doença, em nenhum momento eu lamentei o câncer em mim e não nos outros, seguramente, foi um alívio quando os meus pais e o meu irmão fizeram a colonoscopia e o resultado foi ótimo. Não faço dramas, não me coloco no papel de vítima, lutei e vou lutar até o fim para viver da melhor forma possível, desejei a vida acima de tudo, quero chegar à velhice com saúde, ultimamente, tenho trocado tudo pela felicidade de cada dia.

Ao adoecer e perceber que a vida na Terra não era eterna, fiz várias autoanálises, buscando me classificar como um bom candidato para a existência AlémTúmulo, com direito ao descanso em um cantinho aconchegante do céu. Tentei não ser tendencioso comigo mesmo, foi a parte mais difícil. Eu sinceramente não me considerava um monstro, mas estava longe de ser um Santo. Minha profissão me ensinou a estudar, foi o que eu fiz quando ei a me preocupar com essa batalha entre o céu e o inferno para me receber com tapete vermelho (comentário

do autor, não gosto de vermelho, só topo o da Ferrari). Propus para mim mesmo alguns critérios de avaliação tentando revelar o quanto eu me afastei dos dez mandamentos nos últimos cinco anos. Parecia bastante lógico. Era assim que a gente costumava ser pontuado no meio acadêmico, de acordo com a produção dos últimos cinco anos. Pensei que transgressões muito antigas não seriam o caso, nunca fiz nada muito grave, achei que cinco anos seria um bom prazo de validade para as minhas falhas. Para mim, nada era pior do que a intenção de errar. Acho também que o reconhecimento de um erro, intencional ou não, merecia pontos preciosos. No geral, a gente tem que seguir os dez mandamentos, cabem nos dedos das mãos. Se faltarem dedos nas mãos por alguma razão, tem como completar com os dos pés.

Adorar a Deus e amá-lo sobre todas as coisas. Eu acredito em Deus, já tive provas de sua existência. Foi dele a iniciativa que me levou a procurar um médico para fazer a colonoscopia que detectou o meu câncer. Me convenceu em dois tempos. Temos uma relação informal de confiança, eu confio cegamente nele e ele faz o que é bom para mim. Tenho essa certeza no coração. Viajei com um fusquinha velho de Curitiba até São Carlos, em nove horas, só Deus! Nos últimos cinco anos, acho que essa relação só melhorou, então, fico tranquilo com o primeiro mandamento. Deus acima de tudo, isso mesmo, não sou de aceitar numa boa tudo o que acontece comigo, mas nunca descarrego na conta de Deus o que dá errado. Ou eu me culpo, ou culpo os outros, nunca Deus. Em dois mil e dezenove, eu amadureci ainda mais nessa questão, vejo Deus como um amigo, um confidente, converso diretamente com ele, sei que ele me escuta, e me atende dentro de sua sabedoria infinita. Não contesto seus métodos, quem sou eu, tenho noção disso. ar pelo primeiro mandamento foi um alívio, principalmente no último ano, posso afirmar categoricamente que coloquei a minha vida e o meu destino nas mãos de Deus, confiante em minha decisão.

Não usar o Santo Nome de Deus em vão. Segundo a minha interpretação, não vai ser aí que eu não vou entrar pelo portão da frente no reino dos céus. Santificar os Domingos e festas de guarda. Idem, fico mais centrado nessas ocasiões. Mais santificado, santificando com mais convicção. Mesmo em engarrafamentos. Dentro dos meus limites, acho que nos últimos cinco anos, não corro risco de perder muitos pontos por causa do terceiro mandamento. Vamos

para o quarto. Honrar pai e mãe (e os outros legítimos superiores). Sempre, se não sou nota dez, não fico longe disso. Não matar (nem causar outro dano, no corpo ou na alma, a si mesmo ou ao próximo). Nos últimos cinco anos, se matei, foi só inseto. Atropelei dois cachorros sem querer, fiquei acabado de tanta tristeza, mas já fui perdoado. Fazia muito tempo, eu não estava correndo, aliás, quase sofri um grave acidente na Rodovia Washington Luís tentando desviar de um deles. O primeiro, eu atropelei em São Carlos com o Fusca amarelo gema e o segundo eu atropelei com o Santana vermelho, na altura de Rio Claro, voltando de Campinas. Nunca cogitei nada de ruim contra mim mesmo, já pensei algumas maldades contra os outros, mas, sou péssimo com maldade. Meio patético, até.

O sexto mandamento assusta. Guardar castidade nas palavras e nas obras. Meu grau de pureza aumentou significativamente depois que iniciei o tratamento oncológico, antes disso, minha vitalidade era alta demais para atender minimamente esse mandamento. Se o entendi corretamente, eu, a mulher do próximo e toda a torcida do Flamengo ficamos devendo nesse sexto mandamento, mas a lista ainda tinha outros quatro. Vamos ao sétimo. Não furtar (nem injustamente reter ou danificar os bens do próximo). Fácil, nunca roubei nada, já peguei e esqueci de devolver, mas nunca fiquei intencionalmente com nada que não fosse meu. Nos últimos anos, me tornei um cara mais avoado, mais esquecido também, acho que não sou bom em fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo, algo comum no meu ambiente de trabalho. Mas roubo, no sentido de roubar, não, não sou assim. Não levantar falsos testemunhos (nem de qualquer outro modo faltar à verdade ou difamar o próximo). Mais ou menos, de zero a dez, eu me daria um oito, raramente eu falto com a verdade, às vezes me falta coragem para me comprometer integralmente com ela. O que eu chamaria de mentira santa. Quanto a difamar o próximo, as vezes eu perco a batalha, caio em tentação, até me arrependo depois. De repente, sete e meio já estaria bom. Ou talvez, sete, e não se fala mais nisso. Guardar castidade nos pensamentos e desejos. Nota zero, até dois mil e dezenove, antes do câncer. Depois do câncer, conquistei mirrados pontinhos nesse mandamento, por força maior, não sei se vale. Não cobiçar as coisas alheias. Para mim, isso não é, nem nunca foi difícil.

Confesso que, com base nos dez mandamentos, meu desempenho geral, principalmente nos últimos cinco anos, não foi tão ruim. Eu corrijo as provas dos

meus alunos fazendo um comparativo, acho importantíssimo antes de emitir uma nota final. Muitas vezes, um aluno que tirou nove na prova, mas comparativamente, suas resoluções foram melhores do que as dos demais alunos, recebe dez. Faço isso com frequência, especialmente em mecânica dos fluidos, que é difícil e reprova muito. Se rolar esse comparativo quando eu morrer, acho que a minha pontuação vai melhorar. O mundo em que estamos vivendo está muito estranho, parece que amos por uma fase complicada de transição. Lembro-me de dias mais leves quando eu era jovem, havia muita loucura, muita maldade, mas nada que lembrasse uma epidemia ou coisa parecida. No contexto da atualidade, não me considero um cara nocivo, além disso, sei que estou melhorando, e que já fui pior. Isso deve valer pontos. A intransigência, a intolerância, a falta de caráter, a corrupção, a boçalidade, a ignorância, o destempero, a agressividade, e rios de deméritos, parecem assombrar os nossos dias, o desafio é achar o lado certo, do bem, eu procuro isso. Tento, faço das tripas coração para não ser conivente com esse mundo errado, indiferente ao sofrimento alheio. Olho por olho, dente por dente, cada um por si e Deus por todos, essa guinada mundial assusta. No comparativo, diante de tanta assombração, pode-se dizer que eu seja um cara do bem.

Havendo escolha, de acordo com a minha pontuação, meu mérito, eu gostaria de ser recebido no céu, tranquilamente, por pessoas conhecidas. Não existe a opção, não sou eu quem decide, mas preferiria chegar no andar superior antes do que a minha família próxima, sofrerei menos, isso é um fato. Acho que sou bastante qualificado para receber minha família lá em cima, sei lá, parece ser um papel que eu faria muito bem. Enfim, quero viver bem, e morrer bem também. Já disse, e repito, acredito em vida após a morte e em reencarnação, ei a me cuidar e a me preparar melhor para ambas. Minha existência atual era muito boa, cheia de privilégios, acho que mandei bem em vidas adas. Muita coisa ainda podia acontecer, minha trajetória na Terra não terminou, mas, até então, foi tudo muito bom e tranquilo. Principalmente depois que eu adoeci, ei a pensar com mais afinco em ajudar os outros de forma mais intensa, talvez, me dedicando mais a causas humanitárias. Vamos ver. Vi outro dia na televisão a história de um taxista de Ribeirão Preto que dedicava um dia da semana, integralmente, para transportar pacientes de câncer ao Hospital das Clinicas da USP. De graça. Essa era uma questão crucial para quem precisava fazer quimioterapia, no meu caso, meu pai me levava de manhã e depois me buscava à tarde. Eu seria capaz de ir e de voltar dirigindo, mas isso não era recomendável.

Muitos não tinham condições, garantir os deslocamentos para o hospital seria um problema a menos.

Em todas as cidades, um mutirão de voluntários poderia viabilizar o transporte de quem precisasse. Essa demanda poderia ser suprida diariamente, levar e buscar pacientes, cada voluntário contribuindo em um turno. Uma mãozona muito bem-vinda para quem já estava sofrendo e carente de assistência. Reclamar e cruzar os braços, não resolvia. Apesar da minha vontade de cooperar, naquele momento, eu ainda estava muito debilitado para me qualificar como candidato a voluntário, mesmo sendo bem assistido e tendo um bom prognóstico. Meu futuro ainda estava muito astigmático para planos e projeções. Mesmo assim, eu me via fazendo esse tipo de transporte com o meu fusquinha, um carrinho simpático e carismático. Muitas famílias se sacrificavam para levar e trazer os doentes, sendo obrigadas a faltar ao trabalho, fechar um comércio por algumas horas, um caso sério. A região da Santa Casa de São Carlos ficava sempre lotada de carros nos horários de atendimento, era muito difícil achar uma vaga para estacionar. A ajuda e a participação de estacionamentos particulares, cedendo algumas vagas para esse tipo de serviço voluntário, facilitaria enormemente o lado do paciente. Talvez, um incentivo do governo faria bem também. Doce ilusão.

Melhorar gradualmente como ser humano era o resultado mais nítido do período de tratamento. Ao reavaliar meus valores e prioridades de vida, todas as coisas materiais desciam na escala de importância. Em São Carlos, havia o Museu Asas de um Sonho, com um belo acervo de aviões e itens relacionados à aeronáutica. Nele, conheci a triste história de Milton Terra Verdi, um jovem rio-pretense que partiu da cidade de São José do Rio Preto rumo a uma tragédia não anunciada em um pequeno Cessna140, no dia vinte e nove de agosto de mil novecentos e sessenta. Dentro do avião pilotado por Milton Verdi, com destino à Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, ia também seu cunhado de apenas vinte e cinco anos. Ao tentar cumprir o trecho Corumbá-Santa Cruz, Milton se viu com combustível insuficiente e foi obrigado a pousar em uma clareira no meio da mata densa. Começava um longo martírio que duraria cerca de setenta dias, em que Milton foi obrigado a superar todos os tipos de privações que se possa imaginar. O cunhado sucumbiu em sete de setembro, alguns dias após beber combustível de

avião num ato de desespero frente à sede extrema. Enquanto tentava sobreviver, Milton fazia diariamente anotações em folhas de papel avulsas, soltas aqui e ali, buscando descrever as linhas gerais da experiência que ele vivia. Seu último registro foi "Hoje faz 70 dias que sofro aqui, minhas forças se acabaram por completo, minhas carnes e minhas reservas de energia se esgotaram e minha pele está ficando roxa, creio que está chegando o fim, lutei e sofri muito para resistir, mas tudo tem seu dia".

Em O Diário da Morte, livro editado pelo tio de Milton Verdi com base nas anotações feitas durante o período ado na clareira, desenrola-se a narrativa angustiante da tentativa de sobrevivência no meio da selva. Para quem acha que a vida é dura demais, vale a leitura. Nota-se claramente a mudança de pensamento do jovem Milton ao longo dos dias, sua obsessão mais do que justificada por água e a vontade de estar com a família assumem uma dimensão cada vez maior no texto. Em vários trechos, Milton Verdi ressalta que a cabeça no lugar era resultado de sua fé inabalável em Deus, na certeza de que ele não estava sozinho na luta pela vida. Pouco antes dos últimos parágrafos, Milton demonstra tremenda humildade e resignação diante do infortúnio que o assolava. Até morrer, ele teve tempo suficiente para ver a verdadeira essência da vida, por vezes oculta nos pequenos detalhes, redimindo-se de alguns de seus pecados. Esgotado, sem forças, morreu serenamente, seu corpo foi encontrado como se estivesse dormindo no banco da frente do pequeno avião. Era véspera de natal. Durante várias décadas, peregrinos levaram copos de água ao túmulo do jovem aviador, na cidade de São José do Rio Preto, atendendo às várias súplicas pelo líquido precioso. Isso aconteceu até a década de noventa, quando o controle da dengue impôs restrições a esse tipo de demonstração de fé. Não pretendo estabelecer aqui um paralelo entre este famoso acidente e o meu tratamento de saúde, mas, ainda que os casos não compartilhem da mesma dramaticidade, existe o elo da metamorfose humana, da mudança de valores e da fé em Deus.

Bom, quem leu a minha saga pela cura até esse ponto, de certa forma, já virou meu próximo. Isso facilita as coisas, deixa tudo mais frouxo e informal, não faço aqui literatura, mas sim, um relato com cara de depoimento. A doença me assustou bastante, não tem como não se assustar, mas acho que tenho melhorado a cada dia, do câncer e de outras falhas e desvios pessoais. Desde o começo, ao

digitar a primeira linha, do primeiro parágrafo, numa tela em banco, quis compartilhar o que eu estava ando. Me fazia bem. Escrevi sem compromisso, botei no texto o que me deu vontade, sem me preocupar com estética, forma ou público alvo. Daqui em diante, escrevo para você, é você quem me ouve, independentemente do motivo para continuar lendo, um parente enfermo talvez, ou um gesto de solidariedade comigo, por sinal, muito bemvindo. De certa forma, já tenho por você uma gratidão que só vai aumentar, por me ouvir. Nesse misto de escrita com cara de fala. Qualquer coisa a mais, torcida, orações, engajamento nessa luta contra o câncer e o sofrimento que ele causa ao próximo, é lucro. Manterei o ado nas minhas lembranças, mas trocarei pelo presente em nossos bate-papos unilaterais, acredito que assim, meu monólogo com você ficará mais direto. Independente de gênero, faixa etária, crença religiosa, inclinação política, time de futebol, hobbies e gostos pessoais, acredito que chegamos a um ponto em que atingimos um estado de troca interessante, só de coisas boas e nobres.

Prometi para mim mesmo que só voltaria a escrever aqui na época do Natal. Engrenei algumas atividades do meu trabalho que eu conseguia fazer em casa e resolvi dar um gás nelas antes do recesso. Mas a quarta seção de quimioterapia reservaria uma grata e inesperada felicidade que não poderia ar em branco, sem algumas linhas. Fui para a Santa Casa como quem vai para uma aula de Pilates, com o mesmo grau de entusiasmo. Iria rever pessoas conhecidas e queridas, levei um livro do Dráuzio Varella para ler, Prisioneiras. Os resultados dos meus exames de sangue estavam razoáveis para quem fazia quimioterapia, as oscilações nos meus níveis de DHL, TGO e TGP (sugestão, googlelize para saber do que se tratam esses índices) já não assustavam mais, enfim, eu vivia mais um dia de rotina do meu tratamento. Depois de muita turbulência, lá estava eu, de volta à uma rotina totalmente diferente da anterior. A balança revelou um aumento de meio quilo no meu peso, nenhuma novidade, a pressão estava doze por oito, logo me acomodei em uma poltrona vaga, dentro da ala sempre lotada, e as injeções começaram.

Estava bastante nublado, era dia dezoito de dezembro e já havia aquela agitação típica do recesso de fim de ano. Na universidade, alunos de engenharia, desesperados para atingir a média de aprovação, choravam rios de lamentos

pelos corredores dos departamentos, com ênfase ao de Matemática. Professores, os doutores da tristeza dos estudantes, se defendiam como podiam, esse era o astral pré-natalino, pelo menos, era assim quando eu estava na ativa. Enquanto isso, na Santa Casa, os Doutores da Alegria corriam de um lado para o outro com bexigas coloridas, apitos e buzinas, muita cor e fantasia, buscando, principalmente, onde estavam as crianças. Com eles, ninguém reprovava! Nesse dia, fomos agraciados com uma belíssima apresentação de músicas natalinas, o coral da Igreja São Sebastião entoou cânticos clássicos acompanhados por dois violinos e um violoncelo. Foram um total de cinco músicas, duas eu conhecia. Não sou muito ligado nessas coisas, gosto de rock internacional dos anos setenta e uma coisa ou outra de new ave anos oitenta. Eu já nasci com vinte e cinco anos, não tinha como ter gosto diferente desse. Mas a surpresa ainda melhor desse dia foi ver um colega do departamento, magrinho e pálido, soltando graves em altos decibéis entre os músicos do coral. Fiquei com aquela felicidade típica de Jardim da Infância ao reconhecê-lo, quando a gente encontrava o coleguinha na rua e não escondia o sorriso.

A segunda surpresa do dia foi saber que minha quinta seção de quimioterapia seria no dia trinta e um de dezembro, às sete da manhã. Como já comentei aqui, meu caso não era bolinho, apesar do meu estado geral, o tumor que eu tive era jovem e crescia rapidamente, a probabilidade de ter câncer outras vezes não era pequena. Em pouco tempo, o tumor atravessou a parede do intestino e chegou até o meu fígado. Eu não poderia ficar mais de duas semanas sem o tratamento, dessa forma, faria excepcionalmente a quinta seção numa terça-feira, um dia antes da programação normal. Já viajei uma vez no dia trinta e um de dezembro, à noite, e ei o réveillon a onze mil metros de altura, a caminho dos Estados Unidos. Foi diferente. Já ei também uma virada de ano gelada na ChampsÉlysées de Paris, não me lembro se foi de noventa e nove para dois mil ou se foi de dois mil e um para dois mil e dois, só tenho certeza que não foi de dois mil para dois mil e um, pois esse eu me lembro bem, ei em casa, na também gelada Lyon. Nos últimos réveillons, virávamos o ano na casa do meu irmão, em Curitiba, além da festa em família, éramos mais ou menos úteis na hora de acalmar os cinco cachorros e quatro gatos de estimação que viviam bem cuidados por lá. Dessa vez, em dois mil e dezenove, o começo da celebração seria na ala de quimioterapia da Santa Casa de São Carlos.

Esses eram os novos ecos da minha nova vida, que começaram oficialmente de forma protocolar no dia oito de agosto quando eu descobri que o incômodo no meu intestino era causado por um tumor maligno. Com pressa para acabar comigo. Se a conclusão era a de que eu não havia pecado tanto assim, de acordo com a minha análise fundamentada nos dez mandamentos, segundo a minha crença, eu estaria pagando uma dívida de alguma vida ada. Pensando na vida futura, num tempo distante, talvez, procurei encarar a jornada do câncer como um processo de cura num aspecto muito mais amplo do que simplesmente o imposto pela doença. Eu tinha mesmo que me ajustar aqui e ali, dava muita importância ao que não tinha importância, perdia muito tempo com o que não valia a pena, querendo um futuro para mim que não acrescentava em nada. Nunca em minha vida, eu estive em tão boa sintonia com valores nobres, quanto na atualidade. Minha fé dizia que eu estava sendo amparado pelo plano superior, só isso explicava a rápida mudança pela qual eu ei em tão pouco tempo. Torcia para que elas fossem duradouras, espero que quando eu estiver melhor, continue pensando de forma mais centrada, como a que me ajudava a vencer diariamente, um câncer teimoso que me encontrou no caminho.

NATAL EM CURITIBA

Acontecia o seguinte comigo, eu cansava muito rápido, de tudo. Minha energia ia embora num piscar de olhos, ou estalar de dedos. Cansava de ficar em pé, de ficar sentado, de conversas longas, mesmo quando o assunto me interessava, a rigor, eu cansava até de descansar. Desde a cirurgia até as primeiras semanas de quimioterapia, fiz pouquíssimas atividades vinculadas ao meu trabalho, meu foco no tratamento não tinha concorrentes. Duas semanas antes do recesso natalino, entretanto, voltei a trabalhar diariamente, mais especificamente, num artigo com um dos alunos de doutorado do meu pai. Queria aproveitar o tempo longe das salas de aula para render um pouco na pesquisa, nada melhor do que um artiguinho internacional para esquentar os motores. Internacional, isso mesmo, escrito em inglês, prática muito comum na engenharia química, em que os meios de divulgação científica eram na língua dos gringos. Como o meu inglês era mais razoável do que o do aluno, coube a mim a tarefa de redigir o artigo. Tinha como meta escrever no mínimo um parágrafo por dia. A os lentos, não tinha outro jeito, era isso ou nada. Sempre respeitando o ritmo e a dinâmica do meu corpo, e os intervalos para um descanso.

Nessas horas de pausa, eu corria para a televisão ou para o youtube. Adoro automóveis, quando pequeno, minhas primeiras palavras ditas foram nomes de carros da época, Fusca, Corcel, Opala, Maverick, Kombi, tinha memória boa para essas coisas. Meus programas preferidos envolviam automobilismo, restauração de carros, biografias de pilotos, até corrida de carrinho de rolimã eu parava para ver. Nos momentos de repouso, principalmente para descansar a cabeça, eu assistia a escola de pilotos da Suzane Carvalho, acho até que vou me inscrever no curso dela assim que eu tiver alta e dinheiro para tanto, a esperança é a última que morre. Deve ser bem caro. A Suzane foi atriz, modelo, consagrouse como piloto na década de noventa e, desde então, nunca deixou de acelerar. Já ou por várias categorias do automobilismo, do Kart às diversas modalidades de fórmula, era bastante intuitiva, ganhou pencas de corridas e colecionava títulos importantes. Nossa versão brasileira da Penelope Charmosa! Daria para eu ar o resto do livro falando nela, mas vou controlar a empolgação e ficar por aqui. Ainda corria profissionalmente, mas era com seus alunos que ela fazia

grande sucesso nos últimos tempos. Além do legado como corredora, a Suzane estava escrevendo também uma outra história no automobilismo, qualificando apaixonados por velocidade e competição.

Um canal que eu acompanhava diariamente no youtube era o do Alexandre Badolato, um paulistano muito figura, que transformou uma paixão de infância pelos possantes Dodges, em um verdadeiro oásis automobilístico no interior paulista. Ainda não fui, mas irei ao belo museu que ele mantém em Arthur Nogueira, não muito longe de Limeira. O Badolato era uma autoridade em Dodges nacionais, sabia tudo e mais um pouco sobre esses carros. Não tinha para ninguém. Somos praticamente da mesma idade, seus vídeos eram instrutivos e divertidíssimos, muitos sem edição, de certa maneira, nos incluindo em cena. Quando eu ficava mais debilitado no tratamento, esses vídeos me faziam um bem danado. Os carros apareciam na tela, cachorros latiam na vizinhança, gatos davam o ar da graça, e o gló gló gló dos V8 fazia a festa de fanáticos como eu. O museu tinha outros itens colecionáveis, carros de outras marcas também eram exibidos por lá, até um Fusca Itamar, por ser preto e conservado, fazia parte da imensa coleção, exposta em um ambiente com ares de haras. Aprendi que meu fusquinha setenta e quatro me qualificaria como colecionador, se eu não o usasse diariamente.

Também já tive uma grande paixão por banheironas, em especial, pelo Dodge. Em setenta e nove um colega de trabalho do meu pai apareceu diante da nossa casa em Rio Claro, num fim de tarde, com um belo Dodge Dart coupé, amarelão, que não ava despercebido. Ele havia acabado de comprar o carro, ei meses de queixo caído com a imagem daquele Dodge na cabeça. Meu pai sempre foi muito racional ao trocar de carro, fazia contas e não abria mão da melhor relação custo-benefício. Ou seja, nunca tivemos uma banheirona. Para o meu total desespero, ao longo da primeira metade da década de oitenta, esses carros saíram de linha e despencaram de preço, dava para comprar um inteirão a preço de banana. Infelizmente, só fui ter dinheiro para comprar um carro na segunda metade da década seguinte, quando já era raríssimo encontrar um Dodge à venda. Não me lembro com precisão, mas em algum momento de oitenta e quatro ou de oitenta e cinco, acompanhei meu pai em uma verdadeira peregrinação por concessionárias de carros usados em São Carlos. amos

alguns finais de semana visitando as várias revendas que haviam, lado a lado, na Avenida São Carlos, próximo da Praça Itália. Meus tios que moravam no Rio frequentemente pediam para que a gente desse uma olhada em carros usados por aqui, não se compara o estado de conservação de um carro que roda no interior com um que circula pelas capitais, em condições muito mais abrasivas. Na cidade maravilhosa, então, com direito a maresia, nem se fala.

Numa das concessionárias, lembro-me como se fosse ontem, havia num canto do grande galpão, um Dodge coupé, bege claro, com teto de vinil e umas faixas laterais. Era simplesmente lindo, tinha dez anos de uso, dividia atenções com vários Fuscas, Fiats 147, Chevettes, Corcéis, sem merecer nenhum suspiro. Só exclamações.

- Esse aí, de jeito nenhum!

De cara fechada e testa franzida, a jovem mulher puxava o braço do jovem marido, que parecia estar balançado pelo Dodge. Não fosse o jovem casal ao lado do carro, visivelmente com poucos meses de matrimônio, o Dodge não teria outros interessados.

- Esse bebe muito!

Talvez a mocinha tolerasse um marido beberrão, mas não um carro. Eu seguramente teria comprado o carro e devolvido a esposa. Mas, não sou parâmetro. Assim que o Dodge foi, finalmente, abandonado por todos no galpão da concessionária, entrei nele. Enquanto meu pai discutia os preços de todos os outros carros e fazia contraofertas, fiquei no interior do Dojão, contemplando o imenso , sonhando em sair dali ao volante daquele belíssimo automóvel. Como eu havia nascido com vinte e cinco anos em setenta e dois, naquela ocasião, eu já me aproximava dos quarenta, idade suficiente para tomar decisões

financeiras. Pena que o mundo ainda me via como um pré-adolescente sem graça e sustentado pela família. Esse sempre foi meu drama, não ter a idade certa, na hora certa. Ou ter a idade errada, na hora certa, câncer de cólon aos quarenta e sete anos de idade!

- Pai, esse carro custa bem menos do que aquele fusquinha e tem a mesma idade!

Naquela época, o Fusca ainda era onipresente nas ruas, pipocava nas esquinas. O preço do Fusca era quase uma segunda moeda, um importante índice da economia. O Dojão era o carro mais barato da concessionária, mesmo assim, fazia meses que estava por lá. O brasileiro preferia carros à álcool, no caso dos mais novos, zero quilômetro ou com poucos anos de uso. Os mais antigos, à gasolina, tinham que ser econômicos. O Dodge era um notório bebedor do derivado de petróleo, tinha uma sede insaciável, era a alegria de gente como eu, e de donos de postos também. As fortes oscilações da economia brasileira colocaram um fim no glamour das banheiras sobre rodas, elas não valiam mais nada no mercado de automóveis, e eu não tinha dinheiro, nem garagem, para ficar com uma para mim.

- Esse bebe muito!

Meu pai falou igual à mocinha, nem quis chegar perto do Dodge. O interior do carro estava impecável, tudo no devido lugar, ele parecia seminovo, mesmo não sendo. Talvez encontrasse compradores na capital, mas em São Carlos, estava difícil para ele. Vez ou outra, ao assistir o canal do Badolato, me vinha essa lembrança dos anos oitenta, e aquela dorzinha no coração por não ter ficado com o Dojão bege. Seguramente, seria meu carro de uso na estrada, um homem solteiro com emprego estável podia se dar esse luxo, cruzar as estradas em um beberrão imponente com cara de poucos amigos. Seria com ele que eu iria ar o Natal em Curitiba, minha primeira viagem depois do início da quimioterapia.

Você deve estar pensando que eu viajo demais, só que na maionese. Gastar todos esses parágrafos para falar sobre programas de carro e um Dodge quarentão que nunca saiu da minha cabeça, pode parecer totalmente fora do contexto desse livro. Mas não está, com mais tempo livre e menos disposição, o pensamento viajava solto, que nem arinho no céu. Tanto a escola de pilotagem da Suzane quanto os carrões do Badolato me faziam uma massagem mental, me devolvendo o ânimo que eu precisava quando eu mal conseguia me ajeitar no sofá ou na cama, de tão cansado. Quando o corpo adoece, a cabeça a a exercer um papel importantíssimo na vida da pessoa, eu conseguia olhar para esses vídeos e viver como se fizesse parte deles. Se estava enfraquecido, eu não gostava de dormir, para mim, isso não funcionava, acordava ainda pior. A doença foi um grande desafio, pessoas mais velhas conhecem melhor suas limitações, esse não era o meu caso. Até aparecerem os primeiros sintomas, eu vendia saúde. Mesmo com os incômodos intestinais, nunca fiquei debilitado a ponto de ter limitações na minha vida. O câncer e o tratamento mudaram esse cenário, vieram as limitações e eu tive que aprender a conviver com elas.

A cabeça, por outro lado, estava melhor a cada dia, mais bem resolvida e muito mais criativa. Compensava o resto, que ficou um bagaço depois da terceira seção de quimioterapia. No Dojão bege, eu ia e voltava de Alfa Centauro, de olhos fechados, nas asas da imaginação, sem gastar nenhuma gota de combustível, mas para Curitiba, a fantasia de nada servia. O Voyage da minha mãe, com mirrados vinte e três mil quilômetros rodados, faria o nosso transporte pelas estradas reais, de asfalto de verdade, na sequência, Washington Luiz, Bandeirantes, Rodoanel, Regis Bittencourt, Contorno e, já a caminho da casa do meu irmão, avenida Toaldo Túlio, rua Carlos Benato, curva à direita na Nicanor Rivas, parada final na última casa à esquerda. Setecentos e poucos quilômetros, de porta a porta, começando em São Carlos, terminando em Curitiba. Meu fusquinha seguramente daria conta do recado, mas juntar num carro velho, dois ageiros idosos e um motorista com câncer, talvez fosse abusar da sorte. Cheguei a fazer a proposta, mas, com jeitinho, minha mãe me convenceu que no Voyage a gente viajaria melhor.

- O porta-malas do Fusca é muito pequeno

Era mesmo, fim de papo. Meu infusor com os medicamentos da quarta seção de quimioterapia foi retirado no dia dezenove, sexta-feira, data em que a minha avó materna, a guerreira Dona Olga, completaria noventa anos. Chegaria aos cem, não fosse o câncer apressado que a levou embora em dois mil e dezesseis. Eu, de minha parte, não tinha mais pressa nenhuma, para nada, muito menos para vestir paletó de madeira. Seguia à risca as recomendações médicas torcendo pelo sucesso da quimioterapia. A quarta seção terminou às duas e meia da tarde, chovia em São Carlos. Ir à Santa Casa para retirar o infusor era muito bom, não só pelo alívio proporcionado, mas também, para rever pessoas que eu gostava.

- Que camiseta é essa, Seu Fábio?

Ué, essa era a camiseta que só um cabeça oca usaria para ir à ala de quimioterapia. O fato é que eu vivo no mundo da lua, não consigo ser diferente, a camiseta preta da banda Sepultura, que já fui mais fã do que sou hoje, seria apropriada para um jovem tatuado no auge da forma física, em qualquer lugar do mundo, menos em um hospital. Eu destoava de tudo com aquele figurino, todos lutando para não ir para a sepultura e eu com Sepultura estampada no peito. Rapidamente mudei de assunto e mentalmente prometi aposentar a camiseta enquanto durasse o tratamento, nada de sepultura! Minha rotina de idas e vindas à Santa Casa me fez acostumar com o ambiente hospitalar, algo inimaginável na minha cabeça alguns meses antes. Era a metamorfose em sua fase intermediária. O câncer já me assustava menos do que a fome do leão no contracheque de novembro. Pagar imposto no Brasil doía muito, metiam a mão na nossa conta como se fôssemos a Dinamarca, e ofereciam de volta a República do Congo, menos belga do que nunca. A dor no bolso, entretanto, tinha jeito, eu estava vivo, e bem. Os dados continuavam rolando. O Natal estava chegando!

Precisamente às quatro e quinze da manhã, do dia vinte e dois de dezembro, um domingo, embiquei o Voyage na alça de o à rodovia Washington Luiz, na altura do quilômetro duzentos e quarenta, sentido capital. Estava escuro, ao contrário da viagem para Belém, dois meses antes, dessa vez eu me sentia

debilitado, afundado no banco do carro. O prazer de dirigir, porém, foi maior do que tudo, era como estar de volta à sociedade, em grande estilo, com um pouco de febre, indigestão, indisposição, mas vivo e acelerando no meio do trânsito que, como já dito, nunca era leve. Os efeitos chatos do tratamento ainda estavam a meio caminho, mas eu queria muito fazer aquela viagem, não dava ouvido para o mal-estar. Um sintoma que me preocupou um pouco na viagem foi a leve incontinência que ei a ter, mas, felizmente, havia ótimas opções de parada ao longo do caminho. Além disso, eu usava absorvente masculino. Quer dizer, uma preocupação a menos. Dessa vez, tínhamos no carro pães de queijo, bolo diet caseiro, bolachas, água e café. Petiscos também. A medida em que os quilômetros eram vencidos, sentia-me melhor e mais animado. O câncer me deixou mais vulnerável, sair de casa tinha sempre um quê de desafio, que eu encarava com otimismo e precaução. Curitiba ainda estava distante, muitas curvas adiante, mas a alegria já pulsava, contagiante.

Várias famílias tiveram a mesma ideia e também partiram para o Natal naquele domingo, havia mais movimento de carros do que o normal. Nas inúmeras vezes em que fiz aquela viagem, o trânsito aos domingos era predominantemente de caminhões. Mesmo assim, o fluxo estava bom, não havia lentidão nos postos de pedágio e, pouco antes das sete e meia da manhã, já havíamos deixado a grande São Paulo para trás. Foi então que no pedágio de São Lourenço da Serra, logo após Itapecerica da Serra, a tranquilidade deu uma trégua.

- O senhor vai encontrar lentidão em poucos quilômetros.

A bela mocinha do pedágio não disse o motivo da lentidão, contou apressadamente o troco para a nota de cinquenta reais e me desejou boa viagem. Meu histórico na Regis tinha de tudo, todos os tipos de engarrafamentos, de todos os possíveis feriados, mas diante de um homem renascido, mais ciente dos altos e baixos da vida, o acidente fatal chocou bastante. Realmente, em poucos quilômetros o trânsito parou. Levei mais ou menos vinte minutos para chegar até o local onde um carro havia colidido, de frente, com outro. O acidente era recente, havia acabado de acontecer. A polícia estava chegando quando

amos ao lado de um dos carros acidentados, bem próximo a ele. Uma lona preta cobria a parte em que o motorista morto, preso às ferragens, aguardava o resgate de seu corpo. Mil pensamentos atravessaram a minha cabeça no momento em que vi se afastar no retrovisor, a forte cena de sangue no asfalto. Sabe-se lá porque, um dos carros ou a pista pela contramão, acertando em cheio o outro que ia no sentido correto. Que tristeza! De um segundo para o outro, lá se foi uma vida, alguém que jamais imaginou ter um fim daquele jeito. Indo ou voltando de algum lugar, por uma estrada ainda bastante vazia, num trecho bem urbano, na época do Natal. O motorista morto tinha uma biografia, uma data de nascimento, uma história completa, e um ponto final, na manhã do dia vinte e dois de dezembro de dois mil e dezenove.

Para os três ocupantes do Voyage prata ano dois mil e quatorze da minha mãe, no entanto, e felizmente, a viagem continuaria por mais vários quilômetros. Paramos em Registro para reabastecer o carro, fizemos um piquenique improvisado no estacionamento de um posto de serviço, e seguimos em frente. Geralmente, em viagens anteriores, comíamos em algum restaurante ao longo da rodovia, mas por receio que algo me fizesse mal, e para evitar aglomerações, dessa vez, levávamos a nossa comida no carro. Meu irmão faria, e fez, um churrasco logo após a nossa chegada à Curitiba, sabíamos disso. Então, o melhor foi enganar o estômago com alguma coisa e não pesar demais nas refeições, ainda mais porque eu seguia no ritmo da quimioterapia. A essa altura eu já estava totalmente inserido no cenário da estrada, era um motorista indisposto, mas feliz e agradecido. O câncer e a quimioterapia não me tirariam de circulação, algo importante para mim. Deixaria de fazer muita coisa enquanto estivesse me tratando, mas a Regis Bittencourt estava sendo legal comigo, forças vinham não sei de onde e me mantinham firme ao volante. Festejaríamos o Natal em família dali a dois dias, era mais normalidade do que eu sonhava naquele final de ano. Uma verdadeira injeção de ânimo para continuar a minha luta contra o câncer e, principalmente, uma eventual recaída nas garras dessa doença.

Da divisa de estados até a casa do meu irmão dava um pouco mais de noventa quilômetros. Menos do que cem. A estrada tornava-se bastante sinuosa no lado do Paraná, a paisagem ao redor parecia um cartão postal, dominada por um relevo irregular e muito verde, de vales com cara de Europa. Um pouco antes de

Barra do Turvo, no zigue-zague da serra, paramos para comprar bananas e mamão, fartamente oferecidos naquela região. Cheguei ao Contorno Viário de Curitiba, para ar o bairro de São Braz, com sorriso de orelha a orelha, havia vencido a Regis de ponta a ponta. Era diferente fazer aquela viagem depois de tanta correria e de mudanças tão profundas na minha vida, meus valores realmente eram outros. Sempre fui perdidamente apaixonado pelos meus dois sobrinhos, desde que nasceram, mas a proximidade de reencontrar os pequenos naquele dia me enchia de uma emoção quase incontrolável. Sabia que o tempo ado com eles seria medicinal para mim, o Caio com sete anos e a Laura com quatro me fariam um bem danado. Tínhamos uma relação bastante equilibrada, meu xodó por eles era igual ao deles por mim. Vivíamos grudados. Desde que descobri o câncer, compartilhar a notícia com os outros sempre envolveu sentimentos fortes e definidos, ninguém ficava indiferente ao meu problema. As crianças tinham noção de que eu estava doente, mas na idade deles, tudo era perfeito, e acabava bem. Era só querer.

A casa do meu irmão e sagrado lar de sua família parecia uma escolinha maternal, pintada de laranja, com janelas azuis. Uma combinação de cores que caiu muito bem. Ocupando uma esquina em que uma rua de asfalto encontrava uma outra de paralelepípedo, a casa se destacava por sua personalidade forte, em meio a árvores frondosas e muito verde. Além dos meus sobrinhos, a ampla casa abrigava ainda cinco cachorros e quatro gatos. Todos haviam sido resgatados das ruas, aram por tratamento e encontraram carinho e cuidados naquela esquina de São Braz. Em especial, para me receber, meu irmão havia preparado um quarto isolado, onde eu dormiria de porta fechada, evitando, assim, a visita noturna dos gatos e de duas viralatinhas que circulavam livremente dentro da casa. Se por um lado isso não era bem o que eu queria, preferiria o contato com os bichinhos de estimação, por outro, não tinha outro jeito, minha imunidade estava muito baixa. O melhor do quarto, porém, foi o cartaz pendurado na porta que os meus sobrinhos fizeram para mim. Metade de uma folha A4 com desenhos do Caio e a outra metade com desenhos da Laura. Na metade do Caio, havia o símbolo do São Paulo, meu time, uma estrela (ele é botafoguense), um coração, uma árvore e um "Bem-vindo Tio Fábio". A contribuição da Laurinha era bem mais colorida, depois ela me explicou cada ilustração, havia duas cidades, um avião entre elas, uma floresta, pingos de chuva, enfim, uma arte completa, com vários elementos.

Ao chegarmos, meu irmão aguardava sozinho na garagem, emocionado ao me ver dirigindo o carro. Nos abraçamos longamente, sempre fomos muito amigos, só naquele momento eu percebi o quanto estava sendo difícil para ele, lidar com a minha doença. Os dias em Curitiba serviriam para tranquilizar a todos, para quem ava por um tratamento pesado, depois de detectar um câncer com direito à metástase, eu estava muito bem. Desde a cirurgia, meu peso havia aumentado sete quilos, em parte pela corrida diária que eu deixei de fazer, em parte, pelo apetite fora do normal que ei a ter. Mesmo sem tomar sol, mantive o tom moreno de sempre, meu cabelo não caiu, nada mudou muito, externamente. Minhas maiores restrições e mudanças eram internas, citando algumas, de um segundo para o outro a minha energia ia embora, a leve febre vinha do nada e o calafrio me fazia bater o queixo, em pleno verão, a vontade de ir ao banheiro não era clara, muitas vezes eu nem sabia direito o que ia sair de mim, a sensibilidade geral era outra, em suma, eu funcionava diferente. Vivia cansado. Tanto para mim quanto para a família, amigos e colegas, o câncer foi um grande susto, uma surpresa daquelas que fazem o queixo cair. No meu caso, a necessidade de quimioterapia devido ao princípio de metástase foi talvez o maior revés de todos, maior inclusive do que a retirada do tumor maligno. A gravidade e risco da situação foi sendo revelada aos poucos, foram necessários alguns meses para eu entender o que, de fato, acontecia comigo.

Meus sobrinhos não estavam em casa quando eu cheguei, haviam ido almoçar com a minha cunhada na casa dos pais dela. Assim que chegaram e me viram, foi uma festa, ganhei abraços, ouvi um monte de histórias sobre a escola, o eio na região rural, os preparativos para o Natal, tive que me dividir em mil para acompanhar os dois. Sabiam o que todo mundo iria ganhar de presente, incluindo eles próprios. Levei dois piões de madeira para brincar com eles, mas acabei descobrindo que o cateter atrapalhava movimentos rápidos do meu braço direito, limitando meus lançamentos. Mesmo assim, me divertia como se fosse uma criança da idade deles, rindo de tudo. Agora, risada mesmo, eu dei num dado momento em que a Laurinha me olhou de cara feia, fula da vida, e, com dedo em riste, me repreendeu.

- Arrotar é muito feio, você tem que pedir desculpas!

Criança não perdoa, meu soluço parecia de desenho animado. Eu nem notava mais, mas a novidade do tio quicando que nem britadeira, emitindo grunhidos estranhos, deixou a pequena Laura confusa com uma eventual falta de educação, justo de um adulto que deveria dar o exemplo. Irmão mais velho do pai dela! Nem tive chance de esclarecer os fatos, pedi desculpas e ei o resto do dia rindo da lembrança. O Caio e a Laura são bem diferentes, ele, reflexivo, ela, espontânea. Os dois são muito espertos, crianças estimuladas a pensar, questionam tudo, as vezes têm tiradas de arrepiar os cabelos.

Os dias ados em Curitiba foram muito bem aproveitados. O cardápio da ceia de Natal teve um delicioso bacalhau como prato principal, e pratos coadjuvantes merecedores de um Oscar. Ou, pelo menos, uma indicação. Muitas frutas e quatro tipos de doces foram as opções de sobremesa para os sete adultos e duas crianças. Nessas reuniões, eu era o responsável pelo número ímpar. Três casais, mais precisamente, meus pais, meu irmão e minha cunhada, e os pais dela, sogros do meu irmão, acompanhados por três solteiros, eu, o Caio e a Laura. Consegui permanecer acordado até pouco depois da meia noite, mas acabei ficando um bagaço por conta disso. No dia seguinte, vinte e cinco de dezembro, a casa encheu de gente, o número de crianças duplicou com a chegada dos priminhos, perdi a conta de quantos adultos apareceram por lá. Fiquei mais perdido do que surdo em bingo. Resisti por algum tempo, mas um pouco antes do almoço, joguei a toalha, saí de fininho e me fechei no quarto, caindo pelas tabelas. Minha resistência física me deixava na mão com frequência, eu me empolgava, daí ficava cansado e ia à zero. Todos entenderam e apoiaram a minha saída à sa, na maior discrição, não tinha como estar no meio daquelas pessoas, completamente fora de fase. Aproveitei o exílio do quarto para ler e dormir, por várias horas, até o começo da noite.

Voltamos para São Carlos no dia vinte e sete, uma sexta-feira. O trânsito estava pesado e ficaria bem pior no dia seguinte. Assim como na ida, na volta eu também dirigi os setecentos quilômetros com enorme prazer. Fizemos algumas

paradas não programadas para eu ir ao banheiro, e outras para comprar palmito pupunha, queijos e bananas, curtimos bastante a viagem, chegando em casa em torno das três da tarde. Fazia muito calor, o desgaste foi grande, mas cheguei inteiro e satisfeito com o Natal ado em Curitiba. Eu ainda não havia feito nem um terço do tratamento, mas, enquanto isso, a vida seguia do jeito que dava, muito melhor do que eu imaginava. Estava feliz com as mudanças na minha forma de pensar, sempre buscando o lado bom das coisas, as boas lembranças, valorizando ao máximo os momentos felizes. A gente nunca sabe o dia de amanhã, de repente, tudo muda, parecia que eu finalmente estava aprendendo a viver. Do futuro, eu não esperava mais nada, só queria estar bem no dia seguinte para aproveitar mais um pouco. Meus pensamentos eram todos positivos, vetei qualquer tipo de expectativa e ei a viver melhor. Em compensação, meu ado parecia soprar fortes ecos nos meus ouvidos, lembrei-me de fatos adormecidos, distantes, esquecidos por várias décadas. Minha infância no Rio e em Rio Claro aflorou como o VT de um filme, em cores vivas. A adolescência veio logo em seguida, martelando na minha cabeça um período específico, de tremenda curtição, o memorável verão de mil novecentos e oitenta e cinco.

VERÃO DE OITENTA E CINCO

Nunca fui supersticioso a ponto de incorporar excentricidades na minha vida por conta de crendices populares. Não sou assim. Mas não deixo chinelo virado no chão, me incomoda e eu não consigo desligar. Já saí debaixo de edredom em noite fria de inverno para desvirar chinelo no meio da sala, se algo acontecesse com a minha mãe eu jamais me perdoaria. Na minha infância, uma vez me disseram que brincar de esconde-esconde à noite poderia levar a gente para outro mundo. Um lance meio Caverna do Dragão. Ouvi isso de descendentes de japoneses, numerosos no meio acadêmico em que nasci, cresci e sempre vivi. O receio funcionou só por uns tempos, depois, brinquei muito de esconde-esconde, principalmente à noite, que era mais fácil de se esconder. Por curiosidade, ei embaixo de escada algumas vezes, desafiando o perigo e quebrando um tabu de forma ostensiva. Todas as vezes eu tive um dia ruim, no mínimo, mais ou menos, e fiquei sem dormir direito à noite, de tanta preocupação. Não o mais embaixo de escadas. E o número treze? Meu número preferido é o quinze, tive que escolher um porque, em certa ocasião, o Caio me perguntou. Acabei acertando na mosca, parece que existe um monte de coisas boas e positivas em torno do número quinze. Mas, e o treze? Ele é mesmo o bicho papão que pintam?

A Bíblia diz que o número treze está ligado ao sofrimento de Jesus, que foi crucificado no dia seguinte, de acordo com o calendário judaico. Essa herança cármica, porém, não explica o medo das pessoas com relação ao número. Alberto Ascari, bicampeão mundial de Fórmula 1 pela Ferrari, foi um notório supersticioso que se esforçou ao máximo para evitar o número treze, e gatos pretos também. No dia vinte e seis de maio de mil novecentos e cinquenta e cinco, quinta-feira, ele foi até Monza, na Itália, para assistir seu amigo Eugenio Castellotti testar um carro esportivo da Ferrari. Ascari não deveria dirigir naquele dia, mas não resistiu à tentação e decidiu dar algumas voltas. Ao sair de uma curva rápida, na terceira volta, o carro derrapou inexplicavelmente na pista, rodopiou e capotou várias vezes. Lançado para fora do carro, Ascari sofreu vários ferimentos e morreu logo em seguida. O treze não teve nada a ver com isso. Difícil achar uma combinação de números com a data de sua morte que

leve ao treze. Bom, treze é a metade de vinte e seis, só isso. Se foi culpa de gato preto, nunca saberemos. Bom, mas eu sou mais do time do Zagallo, talvez o maior apaixonado pelo treze que o Brasil já conheceu. Tenho, e sempre tive, grande simpatia reservada pelo número.

Pois na manhã do dia vinte e dois de abril de mil novecentos e oitenta e cinco, eu era um adolescente de treze anos e tinha praticamente a altura que eu tenho hoje. Estudava bastante, era bom aluno, sabia tudo sobre EPCAr (Escola Preparatória de Cadetes do Ar), Barbacena, aviação militar, alimentava o sonho, ou melhor, tinha o objetivo de ser piloto da Força Aérea Brasileira. Três graus de astigmatismo me afastariam desse sonho dois anos depois, e me aproximariam da engenharia, mas isso era uma outra história. Naquela manhã de segunda-feira, eu não tive aula, saí para andar de bicicleta achando tudo muito estranho na rua. São Carlos parecia uma cidade fantasma, crianças brincavam fora de casa, havia circulação de gente e trânsito, mas o ritmo da cidade era outro. Nem poderia ser diferente, Tancredo Neves havia falecido no dia anterior, vinte e um de abril, dia de Tiradentes. Uma tristeza danada, havíamos acompanhado por mais de um mês a longa agonia do primeiro presidente civil, eleito por voto indireto, após vinte e um anos de regime militar. A televisão só mostrava isso, os frequentes boletins médicos sobre o estado de saúde de Tancredo Neves haviam começado em meados de março, quando ele foi internado no Hospital de Base de Brasília, aparentemente com problemas intestinais. Naquela época, toda e qualquer informação era questionável, havia muita mentira e manipulação, e um medo generalizado da permanência dos militares por mais tempo no poder.

Começava a redemocratização, após vinte e um anos de ditadura militar, como já dito, um civil voltava ao poder, sob protesto de alas radicalizadas das Forças Armadas e um ou outro setor da sociedade civil. Os anos oitenta, a década perdida, foram de profunda crise econômica em quase toda a América Latina, a do Brasil era grande que nem o país, os militares mais espertos abandonavam o navio antes do naufrágio, mas nem todos pensavam assim. Desdicionarizada, oposição era uma palavra, e um conceito, que a geração mais jovem desconhecia. Falou, tá falado, era assim que funcionava. A farda verde oliva ainda impunha ordem e dava medo. Havia bastante tensão no ar, mas eu era novo demais para assimilar tudo isso, vivia a grande festa que havia sido aquele

começo de ano no Brasil. Aliás, vivi vários anos nos primeiros meses de oitenta e cinco. Eu só tinha treze. Treze! Tancredo morreu no mesmo dia em que um tal de Ayrton Senna ganhou sua primeira corrida de Fórmula 1, no GP de Portugal, em Estoril. Vitória sob chuva torrencial, sua marca registrada, na belíssima, estonteante Lotus John Player Special preta. Louco por automobilismo, ei a segunda-feira inteira divido entre a felicidade de ver mais um brasileiro vencendo na Fórmula 1, e a tristeza do luto cívico pela morte do presidente. Apesar dos pesares, oitenta e cinco estava sendo tão bom para mim, tão intenso, que a dor pela morte do Tancredo foi logo terceirizada para os adultos, e eu continuei pedalando, sozinho.

O verão tinha sido perfeito, eu ainda estava azul marinho de tanto sol e praia. Nossas férias eram sempre no Rio de Janeiro, assim que começava o recesso escolar, íamos para a cidade maravilhosa de carro com os meus pais, e só voltávamos para São Carlos no início das aulas. Dava tempo até para pegar um pouco do sotaque de lá. Eu não tinha câncer, nem nada, era saudável que nem um touro premiado, sem alergias, sem restrições, nem resfriado eu pegava. Ficávamos, eu e o meu irmão, com os nossos avós maternos, Ayr e Olga, na companhia de tios e primos. Nossos primos mais próximos estavam vivendo uma temporada em Roma, na Itália, se por um lado, a saudade deles era grande, por outro, eu e o Flavio reinamos sozinhos naquelas férias. Éramos conduzidos pelos quatro cantos da cidade, levaria décadas para fazer tudo o que eu fiz no verão de oitenta e cinco. Foi muito intenso. Minha tia caçula recém começara a namorar um funcionário da Rede Globo, que logo nos adotou como sobrinhos dele também. Fazia um monte de coisas legais que nos agradavam bastante. Valeu o investimento, ele e a minha tia se casariam dois anos depois, teriam um casal de filhos e viveriam vários anos juntos. Viveriam vários outros, muito mais, não fosse sua morte precoce, justo na véspera dos meus quarenta e um anos. Mas, em oitenta e cinco, no verão, era proibido morrer, quase um pecado, pelo menos, no Brasil. A vida estava pendurada no trifásico, faíscas brilhavam em dia claro, tudo era bom.

Os eios e diversões foram tantos que tive medo de descrevê-los em detalhes aqui, correndo o risco de não ter tempo suficiente para chegar até o final. Sei lá, você aí, ainda não estou curado, nem tive alta. O bom desse livro seria terminar

vivo para contar a história. Toda. Enfim, meu gosto por escrever começou justamente nessa época narrada. Foi o seguinte, esse namorado da minha tia, que viraria marido tempos depois, levou numa noite, até a casa dos meus avós, uns scripts da novela Vereda Tropical, bem chatinha, com humor meio pastelão e música de abertura do Ney Matogrosso. Eu detestava novelas, tirando Roque Santeiro, que estrearia em meados daquele mesmo ano, nunca assisti uma novela do primeiro ao último capítulo. Roque Santeiro foi a exceção, era do Dias Gomes, ora pois, mesmo autor de O Bem-Amado, que eu assistia na televisão e adorava. Não me lembro se ava em oitenta e cinco, mas só acompanhei Roque Santeiro por causa de O Bem-Amado. Acho que Vereda Tropical estava chegando ao fim, foi divertidíssimo acompanhar as falas dos atores através dos scripts que tínhamos em mãos. A esmagadora maioria seguia à risca o texto, que eu e meu irmão repetíamos na sala dos meus avós. O texto ganhava vida, virava uma situação, fazia rir, depois disso, dessa experiência com scripts de uma novela água com açúcar, tomei gosto pela escrita, algo que sempre me ajudou na minha carreira.

Ainda no embalo da Rede Globo, e de ter um conhecido lá dentro, fui pela primeira vez ao Sambódromo, que era novinho naquela época. Sem pagar nada, infiltrado! Nem me lembro quais foram os desfiles que eu assisti logo no primeiro dia do Carnaval, sei que não ouvi ao vivo o famoso Ziriguidum, que estava na boca do povo e fazia estrondoso sucesso. Meus carnavais de infância eram no Clube da Vila Militar, próximo de onde moravam os meus avós. Havia também blocos de rua que eu frequentei, mas, verdade seja dita, nunca fui fã de Carnaval, não tinha nada a ver comigo. Sou um cara bem sem graça. Estar no Sambódromo era diferente, todos olhavam para os carros alegóricos e curtiam os sambas, a bateria, mas esse rioclarense, naturalizado sãocarlense, com sotaque meio carioca, só tinha olhos para a Sapucaí em si, a iluminação perfeita, a parafernália tecnológica para transmitir aquelas imagens em tempo real. Peitos e bundas brilhavam de longe, uma tremedeira cheia de ginga que assanhava até a mais pura alma, a furiosa tempestade de hormônios da adolescência ganhava um ingrediente impiedoso naquela noite. Voltamos para casa altas horas da madrugada, vendo de tudo nas ruas, gente bêbada, doidos varridos, foliões fantasiados, blocos de rua, semáforos fechados e motos e Fuscas avançando os sinais vermelhos. Caetano Veloso tinha razão.

No calor impiedoso das noites quentes do verão carioca, ainda mais intenso na Zona Oeste, o jeito era ficar na rua aproveitando um pouco de conforto térmico, longe de tetos e de paredes. Quando eu e o Flávio não estávamos nos divertindo em algum lugar do Rio, era gostoso sentar com os nossos avós, vizinhos e conhecidos, na calçada diante da ampla casa da Rua Major Parentes, número sessenta, em Magalhães Bastos. Seu Ayr e Dona Olga viviam naquele mesmo endereço desde a primeira metade da década de cinquenta, conheciam todo mudo, criaram cinco filhos por lá, minha mãe era a mais velha. Meu avô era loroteiro, contava histórias baseadas em fatos reais, esticando-as para todos os lados, fatos corriqueiros ganhavam dramaticidade e dimensão de aventura, suspense. Aos treze anos eu já notava o exagero que o meu avô incorporava nas narrativas, mas escutava com atenção o que ele tinha para contar. Nos dias de Carnaval, os Clóvis, também chamados de Bate-bola, foliões mascarados com bexigas de plástico e vestes de palhaço, invadiam as ruas. Eu morria de medo, me fantasiei uma única vez, assim mesmo porque fui escoltado pelo meu pai.

- E aí, Seu Ayr, o Flamengo vai ser campeão esse ano?

Não, não foi. O barato era tentar adivinhar quem estava por trás da máscara, mexendo com o meu avô. O disfarce escondia um conhecido que desafiava Seu Ayr e Dona Olga. Meu avô ficava numa alegria de criança, contagiante, dialogando com o folião que ele conhecia, mas que não se identificava.

- Você é filho da Fulana com o Beltrano, mora na rua tal, numa casa assim assim,..

Minha avó era danada, tinha uma habilidade tremenda para reconhecer esses Clóvis, uma vez, o mascarado era uma mascarada. Dona Olga sacou de cara que era a Beltrana, prima de uma outra Beltrana, amiga da Sicrana, vizinha do Seu Não Sei Quem, que morava em frente à birosca da Dona Fulana. Diante de tamanha precisão, restava à foliã retirar a máscara e se revelar, para a alegria dos meus avós. Bom demais lembrar esses momentos com a seguinte certeza, eu fui

feliz. Muito feliz.

Nada do que aconteceu no verão de oitenta e cinco, entretanto, superou o agito que foi o Rock in Rio, na segunda quinzena de janeiro. Só quem viveu aqueles dias tem a real dimensão do que foi aquele evento, único, inigualável, jamais superado. O Brasil não fazia parte do circuito internacional do rock, bandas e artistas estrangeiros não se apresentavam por aqui. O único grande show que eu me lembro antes do Rock in Rio foi o do Frank Sinatra, cinco anos antes. Por sinal, minha tinha caçula tinha ido a esse show do cantor ianque, e ao Rock in Rio também. A área disponível para as apresentações era imensa, um sítio enorme em Jacarepaguá, a Cidade do Rock virou um tremendo lamaçal escuro com as fortes chuvas de verão que não estavam nem aí para o som pesado, verdadeiro umbral para uns, céu angelical para outros. Imagine você, foi possível juntar, durante dez dias, Iron Maiden, Whitesnake, James Taylor, Rod Stewart, Ozzy Osbourne, AC/DC, Yes, Scorpions e, acima de tudo, principalmente, Queen. Eu só ouvia Queen naquela época, era a única banda no mundo que eu gostava. Não pude ir aos shows porque era menor de idade, não de tamanho, mas, de certa forma, vivi o agito do mega evento, do lado de fora. Estando no Rio de Janeiro, com vinte e cinco anos a menos do que eu deveria ter.

As praias foram invadidas por estrangeiros nos dias do Rock in Rio, era fácil esbarrar em jovens do mundo todo, na zona sul, na Barra, no Recreio, uma tremenda novidade. Não me lembro se foi a Gloria Maria ou outra repórter da Globo que abordou um trio de branquelos com cútis avermelhadas, na praia, perguntando:

- Where are you from?

Sim, isso mesmo, em inglês e ao vivo. A imagem falava por si, Glória Maria, ou não, novinha, com o microfone da Globo na boca do brancão, bem mais alto do que ela, na orla de alguma bela praia do Rio, com muito sol, areia branca e o mar verdinho ao fundo. No melhor estilo de produção tabajara, o número de gafes da

TV brasileira com os artistas de fora e estrangeiros em geral chamou a atenção até do Guinness, era uma atrás da outra.

- I am from Porto Alegre, tchê!

Também em inglês! O gaúcho parecia tudo menos brasileiro, o trio era como uma muralha branca diante da repórter, talvez, a Glória Maria. Só não contrastavam entre si, estavam mais enxertados e fora do contexto naquele cenário do que o meu Fusca à oitenta por hora na Bandeirantes. Uma história já contada, com final feliz. Se estivessem com cuia de chimarrão na mão, ou vestindo as tradicionais bombachas, vá lá, mas, de óculos escuros, bermudas e chinelos de dedos, como não confundir? Foi engraçado, à noite, ou de novo no Jornal Nacional, se não me engano. Ou antes, no Jornal Hoje.

Numa das tardes de show, fomos à Cidade do Rock com o então namorado da minha tia, ele era chefe de segurança da Globo e precisou fazer não sei o que por lá. Eu e meu irmão não entramos na região onde havia público, mas pudemos ver parte dos bastidores de onde ocorriam as transmissões ao vivo. Lembro-me que estacionamos longe da entrada, devidamente ada após uma longa caminhada. Na volta para o carro, fizemos um lanche num trailer afastado, em meio a carros estacionados, barracas, muita circulação e chuva também. Tenho ainda viva na retina a imagem de uma Brasília azul, da VW, cheia de jovens dentro, parada entre vários outros carros. O carro fazia um ruído curioso, que se escutava de longe, mas que não era barulho de motor. O ronco da Brasília era na verdade o ronco dos ocupantes, dormindo de boca aberta, muito provavelmente depois de uma madrugada inteira de muito rock e lama. Os caras estavam apagados, mas vivos, grunhindo como ursos polares. Eu sempre ronquei muito também, desde pequeno, dormindo de barriga para cima, eu consigo despertar várias vezes com o meu próprio ronco. Mas a molecada da Brasília azul estabelecia um recorde, ressoando em minha memória por vários anos.

Poucos dias após o encerramento do Rock in Rio, ainda nas férias, visitei o que

sobrou da Cidade do Rock com o meu irmão. Mais uma vez, de carona no diluído grau de parentesco com a Rede Globo, foi possível conhecer o palco e o espaço onde tudo aconteceu. Dias antes, pela TV, eu e a torcida do Corinthians havíamos assistido Freddie Mercury regendo um coral de quase trezentas mil vozes durante a romântica Love Of My Life, momento antológico que o vocalista do Queen frequentemente destacou em suas entrevistas, até próximo de sua morte. Realmente, foi muito bonito, a juventude soube aproveitar bem e curtir aquele evento, sem confusão, com muita paz e amor, cachorro-quente, cerveja Malt 90 y otras cositas más. Quando fui com o meu irmão, ainda se viam muitas barracas de gente que acampou do lado de fora da Cidade do Rock, e que, simplesmente, não conseguia ir embora. Se bobear, de repente, cinquentões e sessentões podem ser vistos até hoje, vendendo artesanato e balangandans, acampados em Jacarepaguá, desde o primeiro Rock in Rio. De minha parte, aquele estava sendo o melhor verão da minha vida, aos treze anos, pouco antes de começar a sétima série do ensino fundamental. Eu ainda achava que seria piloto da FAB, não enxergava direito, não entendia de política, os dias eram felizes, oitenta e cinco prometia.

O tempo ou, a vida continuou, fiquei andando de bicicleta o dia vinte e dois de abril inteiro, explorando livremente a cidade e os arredores, eu era apaixonado pela minha Caloi 10, verde metálico. A comoção nacional pela morte do Tancredo foi grande, o otimismo dos brasileiros foi à zero, mas logo a poeira baixou, ou melhor, levantou de vez. Instaurou-se o caos, pintou em cena um negócio chamado hiperinflação, uma loucura, o dinheiro não valia nada, salários eram devorados no início do mês, provávamos mais uma vez que éramos os heróis da resistência. Ginga pra lá, ginga pra cá, e o Brasil seguiu em frente, sobrevivendo a cada round. Lembro-me de ouvir, aqui e acolá, cidadãos arrependidos dizendo, "eu era feliz e não sabia", com referência aos militares no poder. Mas era da boca para fora, a crise financeira dos anos oitenta foi democrática, um legítimo abraço de afogados, principalmente para a gente y nosotros tambien. Eu era feliz e sabia disso, São Carlos tem muitas subidas e descidas, as ruas estavam tranquilas, muitos anos ariam até que eu tivesse, de novo, um momento parecido com aquele. Mais precisamente, trinta e quatro anos depois, eu parecia o adolescente de treze anos, só que a bordo do fusquinha, rindo à toa, na Regis Bittencourt. Outra história, já contada.

Freddie Mercury morreu no final de noventa e um, continuei e continuarei gostando de Queen até o fim. Os jovens que se uniram para cantar Love Of My Life envelheceram, mas ficou para sempre a bela atitude de uma geração que fez muito bonito no primeiro Rock in Rio, reforçando a esperança de liberdade, de dias felizes, e de muita curtição. O verão de oitenta e cinco não teve concorrentes na minha vida, uma felicidade espontânea que atravessou o tempo, uma lembrança gostosa demais. Você já deve ter notado que eu deixei o câncer um pouco de lado. Era preciso, meu tempo presente era o câncer, mas apesar dele, enquanto isso, chegava ao fim o ano de dois mil e dezenove, hora de renovar as expectativas. Pensar no futuro ainda era esquisito demais para mim, preferia olhar para o ado, em busca de lembranças boas. Felizmente, tinha um monte delas, diferentes, talvez, menos empolgantes, em menor escala do que o verão de oitenta e cinco, mas boas mesmo assim. Teve a aprovação no vestibular, tirando o da UNICAMP, que bombei logo na primeira fase, papei vagas nas universidades públicas que eu queria. A viagem até Foz do Iguaçu, em noventa e três, para conhecer a hidroelétrica de Itaipu com a minha turma de engenharia elétrica foi sensacional. Ter dado uma esticadinha até o Paraguai para fazer compras, então, foi ainda mais legal. No embalo da graduação, me formei, aos vinte e três anos, pela USP de São Carlos! Eu me achava o tal, mas não era, descobriria isso pouco tempo depois. Sem eu notar, minha felicidade ou a ser as minhas conquistas acadêmicas, por sinal, bem mixurucas. Essa alegria condicionada, nada espontânea, mudou a minha vida, para pior. Por incrível que pareça, neste sentido, o câncer aparecia como um bom antídoto.

Voltando para a Caloi 10, em busca de um ponto final nesse capítulo que me fez rir sozinho, eu tinha treze anos e pedalava feliz, num dia triste. Não fui indiferente à morte do Tancredo, longe disso, mas não entrei na onda do luto nacional, o adolescente também é meio criança, eu me permiti aquele momento infantil, andando de bicicleta. Escondendo o sorriso. Talvez houvesse tristeza no dia vinte e dois de abril, com direito a lágrimas até, não fossem os ecos do Rock in Rio, daquele belo coral de quase trezentas mil vozes no show do Queen, ou da overdose de testosterona no Sambódromo do Rio, ou de sorvete Sem Nome, ou de sol, praia e calor. Vereda Tropical já havia acabado, nunca mais tive um script nas mãos para acompanhar os diálogos dos atores, e me divertir com isso, mas crescia o gosto pela escrita. Firme nas pedaladas, subindo devagar ou descendo a todo vapor, sem medo de cair, o garoto de treze anos que eu era, que eu fui, tinha nele, naturalmente, a alegria sincera que eu tanto queria ter de novo, aos

quarenta e sete anos, galopando rápido para os quarenta e oito. Depois daquele dia em que o Brasil chorou pela morte do Tancredo Neves, enquanto eu pedalava, vivi mais de trinta e quatro anos, tive minhas conquistas, vieram rugas e cabelos brancos e, pouco antes de terminar dois mil e dezenove, eu desejava ser, de novo, aquele moleque feliz, de treze anos. Razão do meu afeto pelo número do azar.

FELIZ ANO NOVO

Como já dito, minha quinta seção de quimioterapia, a princípio, um terço do tratamento, seria, e foi, no dia trinta e um de dezembro. Pela primeira vez, na terça-feira. Para mim, a rotina de ir até a Santa Casa e ar a manhã inteira por lá já fazia parte da minha vida. Eu não questionava nada, ia para o meu tratamento com a esperança de me livrar daquele e de um futuro câncer oportunista. Esse era um risco que eu corria consciente, o de voltar a ter câncer, talvez, mais agressivo. Seguiria à risca as recomendações médicas, faria a minha parte, mesmo no festivo trinta e um de dezembro. A seção começou mais cedo, às sete da manhã, em ponto. Sete pacientes seriam atendidos, casos três (o meu) e quatro. De praxe, contra a minha vontade, meu pai me levou e depois foi me buscar. Eu sempre tive plenas condições de dirigir, o único inconveniente era posicionar o cinto de segurança depois que a bombinha de injeção era instalada em mim. Problema este que não se resolvia no banco do ageiro. Mas, meus velhos cuidavam de mim com o maior carinho, então, eu ia sem reclamar. Aliás, os quilos que eu acabei ganhando, e que não foram poucos, eram o resultado do zelo da minha mãe, sempre garantindo um cardápio que driblava a indigestão e matava a fome com gol de placa.

A ala de quimioterapia estava muito mais vazia do que de hábito, escolhi uma poltrona próxima à televisão para assistir a São Silvestre. Queria acompanhar a sequência de largadas das diferentes categorias de corredores, na corrida de rua mais charmosa do Brasil. Naquele ambiente pesado, com os piores casos da doença, era bom poder viajar nas imagens que a TV mostrava, de gente feliz, se divertindo no último dia do ano.

- Já fui a cinco edições da São Silvestre

Não contive o comentário, ninguém podia imaginar que eu era, por assim dizer, um veterano da corrida. Falei muito sobre a São Silvestre, minha primeira

participação foi na última vez em que a largada não foi de manhã, corremos debaixo de chuva, inesquecível. As duas últimas foram em dois mil e dezesseis e dois mil e dezessete, acompanhado pela minha mãe. A minha mãe! Dona Luzia tornou-se corredora no período em que eu trabalhei no Espírito Santo. Aliás, parece que eu inspirei a minha mãe e o meu irmão a correrem. Eu sempre gostei, nunca prestei para esportes coletivos, correr era um prazer individual que tinha tudo a ver comigo. Não dava para correr durante a quimioterapia, mas esporadicamente eu conseguia fazer caminhadas curtas que, de certa forma, me agradavam.

A nonagésima quinta corrida de São Silvestre teve a chegada do masculino mais espetacular de todas. Uma ultraagem inesperada nos metros, quase centímetros, finais da prova masculina roubou do estreante de Uganda, Jacob Kiplimo, a vitória e o recorde da prova. O autor da façanha foi o queniano Kibiwott Kandie. Numa arrancada quase mística, Kandie esquivou-se do oponente e cruzou na frente com o tempo de quarenta e dois minutos e cinquenta e nove segundos, novo recorde. Uma imagem que correu o mundo todo. Ao ver toda aquela gente sorridente pela TV, participando da São Silvestre com empolgação, alguns fazendo de tudo e mais um pouco para aparecer, lembrei-me das cinco vezes em que estive no meio daquela massa. Meu tempo médio na corrida era de uma hora e cinquenta minutos, geralmente quando eu cruzava a linha de chegada, tinha acabado de acontecer o pódio. Era divertidíssimo, mais de trina mil pessoas espremidas na Paulista na hora da largada, gente de todos os cantos do país, um astral maravilhoso, realmente, foi bastante nostálgico assistir a São Silvestre na Santa Casa. Viver de ado nem parecia tão ruim assim, por vezes, só meu corpo permanecia no hospital, o resto estava em algum outro lugar, bem, fazendo alguma coisa legal para fechar o ano com chave de ouro.

Final de ano era tempo de retrospectiva, a minha própria, personalizada, teve ingredientes novos em dois mil e dezenove, a descoberta do câncer mudou o curso da minha vida. Meu ano começou em Curitiba, pela primeira vez. A melhor lembrança foi a de estar com o meu sobrinho do lado de fora da casa, vendo os fogos de artifício brilharem na escuridão da noite. A Laurinha já estava no décimo sono na hora da virada. A alegria do Caio diante dos fogos ficou marcada na minha memória. Trabalhei boa parte de janeiro, no mês seguinte,

ei uns dias de férias em Florianópolis, cidade que está permanentemente no meu roteiro de escapadas sem muito planejamento. O início das aulas do primeiro período letivo de dois mil e dezenove foi no dia quatorze de março, uma quinta-feira, pouco depois que peguei o Fusca em Curitiba. Dei aula de mecânica dos fluidos já no dia seguinte, pela manhã. Meu intestino dava mostras de que havia algo de errado com o funcionamento geral, aparentemente, sem gravidade. Ao longo do semestre, porém, a dificuldade para ir ao banheiro logo de manhã começou a me preocupar. Cheguei a dar aulas me contorcendo de dor em função do acúmulo de fezes, mesmo assim, não desconfiava de nada mais sério, tanto que esperei o recesso de julho para me consultar com um médico.

Quase virei fumante nesse período, acho que nunca vou entender a origem do revertério que me levou a pensar tanto em cigarro. Por duas semanas, ou um pouco mais do que isso, senti uma vontade danada de acender um cigarro na boca, como já dito antes. Ninguém fumava na minha família, não tinha nem amigos e nem colegas próximos que fumavam, mas a dinâmica do fumo me pareceu algo familiar por uns tempos. Felizmente, entrava em ação a ajuda celestial que me faria superar os desafios da doença no semestre seguinte, sempre que essa vontade de fumar ava dos limites. Boa parte da galera que eu conheci na ala de quimioterapia tinha alguma relação com o cigarro, dava medo. E os sonhos? Era deitar para dormir e sonhar, uma novidade de dois mil e dezenove, acho que até acordado eu sonhei, quando abri os olhos logo após a cirurgia e senti um cigarro aceso na minha mão. Um lapso de segundo, não mais do que isso, mas ficou na memória. Sem explicações, nem questionamentos, só a confusão na cabeça. Por falar nela, o lado consciente da cabeça funcionava cada vez melhor, pena que só ei a cuidar disso depois que eu adoeci.

Assim que soube que estava com câncer, tudo o que eu havia previsto para o ano foi descartado da minha cabeça, já não valia mais nada. O roteiro de idas a médicos, os diversos exames, os pedidos de autorização junto ao meu plano de saúde, a angústia e a ansiedade por não saber qual seria o próximo o, a falta de opção, tudo isso mexeu muito com o meu tempo, minha energia e a minha disposição. A cada etapa, havia sempre o suspense do inesperado, um envelope lacrado que era aberto, revelando um cenário mais assustador do que eu imaginava. Uma situação completamente fora do meu controle, talvez tenha sido

essa a maior lição do ano, lidar com reveses que eu nada podia fazer. Viver sem poder pensar no futuro era uma novidade para mim, eu só queria ficar bom e curado, ando pelo presente da melhor maneira possível. Principalmente, eu não queria sofrer, tinha verdadeiro pavor. O único futuro bom, que me importava, era o livre da doença grave, cheio de saúde, mais evoluído como ser humano, menos susceptível às turbulências do cotidiano, que não podiam abalar quem havia vencido um câncer. Esse era o futuro que eu queria para mim.

Lá estava eu, na Santa Casa, recebendo medicamentos fortíssimos pelo cateter implantado no meu corpo, no último dia do ano que me revelou o câncer. Os casos atendidos naquele dia eram os mais graves, dentre eles, havia um exprofessor da USP de São Carlos que eu conheci na minha graduação. Bastante debilitado, magérrimo e balbuciando palavras incoerentes ao meu lado, o professor não era nem sombra do que foi nos meus tempos de estudante. Tive que fazer das tripas coração para não me abalar além do necessário, eu também tinha a minha batalha e precisava estar forte. Por mais que eu me esforçasse, a quinta seção estava sendo difícil, diante de mim, uma senhora ou mal e precisou de atendimento emergencial, com direito a balão de oxigênio e tudo mais. Foi terrível, ela começou a ficar vermelha e sem ar, logo vieram os enfermeiros, isolaram a poltrona dela com um biombo, mas era possível escutar o drama. O médico oncologista chegou logo em seguida, a situação foi contornada, mas não dava para relaxar. Fiquei sobressaltado o tempo todo, com um desconforto na alma que só ou quando ganhei de presente um pequeno Panetone, antes de ir embora.

Quando voltei para casa, já com a bombinha instalada, chorei compulsivamente pela primeira vez, desde que começou o tratamento. Quis contar como foi a seção e mal consegui começar, caí num choro doído, até meio escandaloso, que pegou meus pais totalmente de surpresa. Foi bom extravasar, um alívio, mas foi também muito duro, fiquei bastante desanimado. Levantar o meu astral foi uma tarefa cumprida em equipe, minha mãe preparou uma ceia deliciosa, à noite, tiramos fotos para mandar para a família, enfim, na hora da virada eu já estava mais positivo, com o pensamento endireitado. Ficar acordado até mais tarde era difícil, ei a dormir em torno das oito e meia da noite, nove e pouco, no máximo. Assistimos pela TV à chegada de dois mil e vinte, um número bonito,

vinte e vinte, lado a lado, como patinhos na lagoa, e um zerinho para cada um. Uma simetria simpática, de dígitos repetidos com graça, quem sabe dois mil e vinte seria para mim a repetição de algum ano bom, ou de coisas boas, como o verão de oitenta e cinco, aquela alegria espontânea e sincera, que não precisava de mise en scène. Que não dependia de nada, só de mim mesmo, com um pequeno estímulo, sem custar muito caro. Diplomas me deram muita felicidade, efêmera, depender de conquistas para ser feliz era fogo, a fila andava e não terminava nunca. Terminava uma e já vinha outra, só assim eu era feliz.

A áurea estranha da quinta seção de quimioterapia, no último dia do ano, teria reflexos ainda mais cruéis no meu tratamento. Eu mal sabia o que me aguardava. As quarenta e oito horas com o infusor dos medicamentos custaram a ar. Meu braço direito incomodou bastante, uma dor que se refletia na axila, no omoplata, e na região onde ficava o cateter. Na quinta-feira, dia dois de janeiro, em torno das duas da tarde, fui até a Santa Casa para a retirada do kit de quimioterapia. A dor era grande, maior do que antes. ei o dia entrevado, tentei trabalhar no computador e tudo piorou. Até esse ponto, não cheguei a me preocupar com a dor, sabia que ela ia e vinha, não entendia muito bem a sua dinâmica. À noite, a dor foi simplesmente inável, não dormi nada, fiquei boa parte do tempo sentado na cama, sofrendo, só isso. O ano começava com esse ingrediente novo, muito comum entre os pacientes de câncer, que eu temia enormemente, o sofrimento. Pedi a Deus com toda a minha fé, desejei mais do que tudo, aceitava qualquer desfecho para o meu destino, menos o sofrimento da dor. ar pela cirurgia, pelo tratamento, mudar a cabeça, evoluir, tudo parecia valido, uma conta que eu estava disposto a pagar. Sofrer, não, eu não entendia o propósito da dor na conjuntura que eu enfrentava.

No dia três de janeiro, logo pela manhã, sexta-feira, fui à ala de quimioterapia da Santa Casa em busca de ajuda. O sofrimento havia paralisado a minha vida, eu só vivia a dor. Uma primeira análise indicou possível trombose na região do cateter, onde eu reclamava de dores. Fui encaminhado para fazer uma tomografia urgente do membro superior, crente que estava próximo de um colapso, mas, de certa forma, aliviado com o atendimento. Saí voando da Santa Casa em direção ao hospital onde eu havia sido operado, enfrentando o trânsito como um piloto de competição, só para descobrir, ao chegar no destino, com profunda frustração,

que o equipamento disponível só servia para análise de membros inferiores. Quem sofre com uma dor excruciante não tem tempo de se revoltar, voltei para a Santa Casa, desconsolado, quase sem chão. Bastante perdido. Fui, então, reavaliado, me aram uma receita para a compra de medicamento forte para a dor, a base de ópio, gastei mais de trezentos reais numa farmácia e voltei para casa. Faria a tal tomografia de urgência no dia seguinte, sábado, às oito da manhã. Urgência nos trópicos tinha outra conotação, absurda e tragicômica. Eu pagava plano de saúde há mais de quinze anos, fiquei imaginando como seria uma urgência no SUS. Ficar doente em país subdesenvolvido, mesmo que outrora emergente, era um fardo difícil.

Em casa, refeito e conformado, tomei o remédio caro e forte, deitei-me na cama e dormi algumas horas, completamente exaurido pela noite em claro. A dor ainda era barra pesada, eu morreria aliviado naquele momento. Apaguei por completo, procurava não pensar em nada, pensamentos não ajudavam, sentia-me totalmente abandonado, à mercê da situação. Infelizmente, não tive tempo de me recuperar minimamente, acordei no meio da tarde para viver, então, um novo pesadelo. Dois dias sem ir ao banheiro cobravam a sua conta, meu intestino travou a ponto de nem dois supositórios funcionarem. Muito antes de recobrar o ânimo, o otimismo, ei horas no banheiro, desesperado, não muito longe de entregar os pontos. A dor no ânus era inável. Era muita coisa ao mesmo tempo, eu não estava preparado para tanto. Por fim, meus pais me levaram para o hospital de atendimento vinte e quatro horas, o mesmo da cirurgia, fui internado às seis da tarde, ei por uma lavagem intestinal e só tive alta às onze e meia da noite. Dois mil e vinte começava para mim da pior maneira possível, com o sofrimento que eu tanto temia. Tentei não me revoltar, para tanto, parei de pensar, foram mais de quarenta e oito horas lidando com dor e angústia, nunca me senti tão só em toda a minha vida. Nada e nem ninguém para me ajudar. Tudo na vida tem um sentido, às vezes ele não é muito claro, procurei não dar muito ouvido aos meus próprios lamentos, principalmente nos momentos em que o sofrimento ocupava a minha cabeça. Diante do desconsolo, mais de uma vez, desejei que tudo acabasse. Só queria descansar e não continuar sofrendo.

ei o sábado e o domingo me recuperando, pouco a pouco, do triste começo

de ano. Quando muito, saía da cama para o sofá e do sofá para a varanda, sem energia para nada além disso. Não li, não escrevi, assisti TV e fiz refeições ricas em vibras, bebi muita água, tomei muito medicamento, nenhum pensamento bom ava pela minha cabeça. Levaria dias até eu voltar ao meu ânimo de antes, em sintonia com os meus guias que eu nunca deixei de acreditar. Nos momentos mais difíceis dos dias anteriores, fiz força para tentar de alguma maneira enxergar uma tênue luz no fim do túnel, altos e baixos não são eternos, depois da tempestade, vem a calmaria. O susto foi grande e deixaria marcas, mas, de fato, ou. Fui melhorando, me recuperando e as ideias tornaram-se mais claras na minha cabeça. O sentimento de ter sobrevivido à uma tormenta não deixava de ser bom, no duelo de forças, eu ganhei, eu venci, ei, aos trancos e barrancos, por dores fortíssimas e uma lavagem intestinal, mais precisamente, dois litros de glicerina no traseiro até as fezes saírem. Durante várias horas! Para quem já se achou a última batatinha do pacote, o tubinho no fiofó e a glicerina entrando lentamente foram, definitivamente, a pá de cal no meu ado de arrogância. No sentido mais amplo possível. Eu não valia absolutamente nada e descobria isso, minha empáfia tinha então uma lápide para o repouso eterno.

Dois mil e vinte chegou assustando, a esperança de dias melhores escorria pelo ralo. Havia algo de estranho no ar, eu não sabia dizer o que era, mas surgiu em mim um sentimento pesado com relação ao ano que acabava de começar. Talvez sob a influência da dor e do sofrimento, o pessimismo crescia como uma bola de neve, não adiantava lutar contra ele. Os primeiros dias de janeiro foram duríssimos, uma verdadeira prova de fogo para a minha fraqueza humana. O mundo vivia um período muito estranho, queria me apoiar em algo bom e concreto, para me reerguer, mas não dava. A marcha da extrema direita no Brasil me assustava, simpatizantes do governo pareciam, aos meus olhos, fugitivos da ala dos esquizofrênicos. A tensão da guerra fria, tantos anos após a queda do muro de Berlim, voltava à tona em pronunciamentos contra o comunismo, a liberdade plena de imprensa e os direitos do cidadão. Vivíamos a difusão do ódio num país conhecido internacionalmente pela alegria do carnaval e a simpatia do povo. Eu não fazia previsões como Nostradamus, nem tinha a sabedoria dos espíritos de Xangô e Oxum, mas percebia uma nuvem escura se aproximando, o anúncio de uma tempestade sob as nossas cabeças.

UMA PAUSA

Enquanto eu sobrevivia à traumática quinta seção de quimioterapia, Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, matava Qassem Soleimani, um dos homens mais poderosos do Irã. Uma loucura, mais um lance inesperado em um mundo cheio de surpresas desagradáveis. No momento em que eu vivia meu inferno astral, abria-se a Caixa de Pandora no Oriente Médio. Tecnologia de última geração dos americanos foi usada para matar o major-general Soleimani da Guarda Revolucionária Islâmica. No Iraque! Drones lançaram mísseis acertando precisamente três carros próximos ao aeroporto de Bagdá, dia três de janeiro de dois mil e vinte. Eu continuava achando o número dois mil e vinte muito bonito, mas começava a desconfiar do novo ano. Ruim para mim, péssimo para a paz. O mundo teria tremido menos com um abalo sísmico de grande magnitude, manchetes do dia seguinte estampavam em letras garrafais o risco de uma terceira guerra mundial. Um verdadeiro dejá-vù. Estar no mesmo planeta que os Estados Unidos, tinha dessas coisas, a tensão não ia embora nunca. Não era a primeira e nem seria a última vez que haveria uma ameaça global envolvendo os gringos.

Certa vez, em um diálogo descontraído com colegas estrangeiros, ouvi o seguinte de um mexicano:

- O problema do México é porque fica muito perto dos Estados Unidos

Um comentário legítimo de quem tinha os vizinhos mais preocupantes de todos, como morar ao lado da família Manson, dividindo muro com o perigo incessante.

- O problema do mundo é porque fica muito perto dos Estados Unidos

Retruca o colega inglês, com o típico sarcasmo britânico, tão famoso quanto a Rainha, o Sex Pistols e Fish 'n' Chips. Pura verdade. Todos rimos, era o ano dois mil, eu tinha vinte e oito anos.

Minha geração viveu sonhando com o ano dois mil, que representava o futuro moderno, diferente, sei lá. Não foi. Bom, na verdade, para mim foi sim. Eu fazia meu doutorado nessa época, estava em Lyon, na França, desenvolvendo parte da minha pesquisa, curtindo a vida de bolsista na Europa. Estar no Velho Continente no ano dois mil foi sensacional, eu era jovem, não tive grandes dificuldades para aprender a falar razoavelmente o francês, conheci gente interessante e lugares legais. Ainda não havia o euro, na França eu pagava tudo em francos, na Itália, em liras, na Espanha, em pesos, viajei muito. Estudei muito também. Voltei para o Brasil no início de dois mil e dois, às vésperas da estreia do euro, a nova moeda de uma Europa mais unida. O tempo ou, meu francês enferrujou, mas nunca esqueci a língua. Fui bolsista no exterior outras duas vezes, já como professor, experiências extremamente válidas na minha vida. Fiz e desfiz as malas algumas vezes, gostaria de ter feito muito mais, mas sou grato às oportunidades que eu tive. Da França, ficou a lembrança de um tempo bem aproveitado, em que eu ainda era jovem, com cara de aluno, fui para lá com vinte e sete anos e voltei pouco antes de completar trinta, tinha cabelos pretos, era magrinho e muito saudável.

No dia onze de setembro de dois mil e um, uma terça-feira, havia terminado para mim, a pouco tempo, meu segundo verão em Lyon. Já era outono, mas o dia até que estava especialmente claro e bonito, para a estação do ano. Eu morava perto da Université Claude Bernard e ia a pé para lá, bem cedo. Meu velho citroën AX era pouquíssimo usado, uma compra seguida de um arrependimento quase imediato, mas que eu curtia mesmo assim. Naquele dia, trabalhei a manhã inteira em simulações para a minha tese e, pouco antes do meio dia, fui almoçar com colegas do laboratório. No ano anterior, eu havia estreitado fortes laços de amizade com espanhóis que participavam do programa Erasmus de intercâmbio. Fazia tudo com eles, um grupo grande e divertido. Lamentavelmente, todos já estavam de volta à Espanha, minhas companhias no almoço do dia onze de

setembro eram outras. Estava atolado de trabalho, eu ainda não havia conseguido bons resultados para o meu doutorado, isso me preocupava, intensifiquei meu ritmo de estudo, viajei menos, mas estava bastante feliz em meu segundo setembro francês.

Pouco depois do ritual do almoço, segui diretamente para a sala que eu dividia com o engenheiro do laboratório, um senhor de meia idade parecido com o Valéry d'Estaing, ex-presidente da França. Sempre sereno, Monsieur Christian Graillat não esboçou nenhuma grande reação ao me anunciar a novidade da tarde.

- Parece que houve alguma coisa nos Estados Unidos

Realmente, não tinha como saber, mas o mundo de antes do almoço já era bem diferente do de depois do almoço. Conversa vai, conversa vem, ficou claro para mim que havia acontecido algo muito grave nos Estados Unidos. A princípio, a informação de que um avião havia se chocado contra um edifício em Nova Iorque não me surpreendeu tanto, era triste, mas parecia um acidente. Antes do final da tarde, porém, o clima pesado no instituto onde eu estudava deixou claro que o buraco era bem mais embaixo. Os atentados de onze de setembro me foram revelados como o meu câncer, em doses graduais de dramaticidade.

Até o meu retorno ao Brasil, meses depois, não tive tranquilidade na Europa. A força aérea sa manteve, por alguns dias, aviões militares sobrevoando as diversas centrais nucleares espalhadas pelo país. Algum tempo depois dos atentados, não me lembro exatamente quanto, uma grande explosão numa fábrica de fertilizantes de Toulouse acendeu o alerta máximo. Lógico que a primeira hipótese de tudo o que acontecia de trágico naquela época era sempre o terrorismo. No caso de Toulouse, foi acidente mesmo. Eu estava meio desbotado por conta dos estudos, fiquei meio pálido, pesava quinze quilos a menos do que o peso atual. Cabelo preto duro, narigudo, estudante, eu era o estereótipo perfeito do terrorista árabe. Senti na pele o preconceito que se intensificou depois

daquela data. Fui revistado em loja de departamento, fui xingado por um garçom por me abrigar da chuva na marquise de um restaurante, enfim, perdeu a graça estar na França. Meus amigos espanhóis tinham ido embora, meu trabalho não estava dando muito certo, a vontade de voltar para o Brasil foi crescendo, crescendo, melhor assim. Quando, tempos depois, desembarquei em São Paulo, não levei nem meia hora para me sentir bem e completamente integrado ao caos dos trópicos.

Antes de voltar, porém, vivi duas situações que não poderiam ar em branco, mereciam a lembrança. Alguns finais de semana após os atentados, peguei meu carro e fui ao centro de Lyon com um casal de amigos. Como sempre, levei um tempão até achar uma vaga. Por fim, encontrei um canto pequeno, ao lado de uma pracinha, onde cabia o compacto AX e, no embalo, embiquei com tudo para estacionar. O problema foi parar o carro, os freios eram péssimos e eu acabei subindo na calçada, assustando duas velhinhas que conversavam alegremente. O que aconteceu em seguida foi hilário, saí do carro afoito para me desculpar, com peso na consciência pela barbeiragem, cheguei a ver a cara de indignação das anciãs, parecia que elas iriam me matar. Eu vestia uma jaqueta de couro preta, posteriormente doada, anos mais tarde, quando me tornei mais consciente sobre a questão da proteção aos animais. Sei dizer que as velhinhas surtaram de medo quando me viram, esbaforido, indo ao encontro delas. Temendo um atentado, cada uma correu para uma direção, deixando de lado prováveis limitações como hérnias de disco, artroses e problemas cardíacos. Ao invés de uma bengalada na testa, ganhei de presente uma cena cómica e inusitada, que me divertia sempre que eu me lembrava dela.

Meus dias de terrorista árabe não pararam por aí. No início de outubro daquele ano, fui para Hamburgo, na Alemanha, apresentar um trabalho num congresso internacional na minha área. A cidade portuária alemã tinha sido, por assim dizer, berço dos jihadistas da Al Qaeda que haviam atacado os Estados Unidos. Lá estava eu, um mês após os atentados. Os embarques e desembarques nos aeroportos eram demoradíssimos, eu não conseguia dar dois os sem ser abordado por um agente de segurança. Meu desconforto com a situação obviamente aumentava as suspeitas em cima de mim. Enfim, ei algo em torno de cinco dias na Alemanha, aproveitei o congresso, conheci a cidade e

cercanias, sempre tentando esquecer o estresse do aeroporto. Chegou então a hora de voltar para a França. Em viagens, eu vestia com frequência calças cargo cheias de bolsos, muito práticas. Em algum momento durante o congresso, coloquei tachinhas em um desses bolsos, e esqueci de retirá-las. Essas tachinhas foram usadas para fixar em um , o pôster com detalhes da minha pesquisa. As que sobraram, eu enfiei no bolso. No retorno à Lyon, além da pinta de árabe, eu tinha também tachinhas metálicas no bolso da calça, que me acompanharam despercebidamente ao aeroporto, até o raio-X. Prefiro deixar para você imaginar o que aconteceu comigo quando a luz vermelha acendeu, o alarme tocou, e o guardinha achou tachinhas no meu bolso, prontas para serem embarcadas com destino à França.

O mundo deu muitas voltas, minha vida virou um dente de serra com altos seguidos de baixos, uma interminável repetição de coisas boas e ruins. Nada muito sério, até a chegada do câncer. O câncer mudou tudo, me envolveu por completo em uma batalha duríssima, assumindo prioridade máxima na minha vida, não dava para eu dividir com nada. Nunca havia ado por uma situação parecida, uma exclusividade que me deixava à margem da sociedade, temporariamente de molho, numa convivência longa com a doença. Abrir essas janelas de volta ao ado me fazia muito bem, ajudava a alimentar um futuro bom, sem as limitações do câncer. Ao ver na imprensa mundial a cara do Donald Trump e as manchetes de terceira guerra mundial, lembrei-me imediatamente do onze de setembro. Cheguei a comprar na França uma revista com uma capa que dizia Terceira Guerra Mundial. Ao invés de Trump, George W. Bush era o presidente do país, o homem que apertaria o botão vermelho, ou verde, sei lá. A revista se perdeu em alguma mudança, bem como outros itens da minha agem pela Europa. Em dois mil e vinte, a experiência de reviver uma tensão internacional, de menor proporção, mas ameaçadora mesmo assim, foi bem diferente. Eu fazia lavagem intestinal, num quarto privativo, com a TV ligada, enquanto me informava sobre o ataque americano. Foi impossível não voltar para o ado, cadê a máquina do tempo quando a gente precisa dela!

O impressionante em dois mil e vinte foi a sofisticação do ataque, coisa de ficção científica. Só que não era, o negócio foi real. Drones de última geração haviam sido comandados por controle remoto e executaram a tarefa com uma

precisão jamais vista. Todo mundo ficou com medo do comportamento totalmente imprevisível do Trump, o poderio bélico americano ultraava qualquer expectativa, havia muito poder nas mãos de uma figura que assustava bastante. O presidente brasileiro era seu maior fã. Pouco antes dos atentados do onze de setembro, meu irmão havia me visitado na França, curtimos muito o mês que ele ou comigo. Em pleno verão, viajamos o tempo todo, parei quase tudo para ficar com ele. Quando fui com o Flavio até Paris, de TGV, Trem de Grande Velocidade, vulgo trem bala, aproveitei para perambular pela cidade luz de forma mais descontraída. O Flavio é cuca fresca, não estava nem aí para a frescura dos ses, foi muito divertido. Na visita ao grande arco de La Defense, no centro financeiro e comercial de lá, a vontade de fazer xixi superou qualquer inibição minha, achei um canto ornado por trepadeiras, próximo a uma longa escadaria, e esvaziei a bexiga. Sabia que um colega brasileiro havia sido multado, no acostamento de uma estrada, por fazer xixi em via pública. Eu morria de medo de piscar os olhos fora das leis ou dos códigos de conduta, mas não teve jeito. Muito tempo depois, quase vinte anos, durante a lavagem intestinal, lembrando disso tudo, agradeci o fato de La Defense não ser em Washington, Los Angeles ou Chicago, ainda mais com esse nome. Seguramente, os gringos teriam acertado um míssil no meu pinto.

Já quase que completamente recuperado da traumática quinta seção de quimioterapia, temendo a sexta, em plena sexta-feira, dez de janeiro, foi aniversário do meu pai. Aos setenta e oito anos, meu pai esbanjava vitalidade, mesmo com as limitações da idade, ainda trabalhava e rendia como poucos na universidade. Para mim, o importante sempre foi manter o máximo de normalidade possível durante o tratamento contra o câncer. Principalmente, evitava comparar minha vida antes e depois da doença. Com isso em mente, fomos almoçar no Iguatemi Shopping de São Carlos, no Mousse Cake, exatamente como havíamos feito no ano anterior. Sair de casa na semana de folga da quimioterapia tinha gosto de liberdade, o câncer aprisionava, impondose na minha vida, mas, como já dito, não me tirava completamente de circulação. O perrengue da primeira semana de janeiro balançou minha nova fé, colocando em prova os novos valores que eu tanto bradava. Confesso que houve um certo recuo, mas a recuperação e os dias bons que vieram depois, mostraram para mim que, de fato, aguentar a tormenta fazia parte do pacote. Curiosamente, a partir da quinta seção, voltei a ter futuro. O período de calmaria seria esse futuro sempre que o bicho pegasse para o meu lado.

Por falar nisso, vendo a história se repetir, como no ano anterior, o restaurante também parou para cantar parabéns para o meu pai, que sorria feliz que nem criança, diante do bolinho de cortesia, com uma pequena vela em cima. Achei pouco a comemoração, no dia seguinte, levei meus pais à Porto Ferreira e depois esticamos até a Cachoeira de Emas, em Pirassununga. Estrada me fazia muito bem, nada mais revigorante do que curtir alguns quilômetros num sábado de céu nublado. Minha mãe queria comprar uns quadros para a sala, e louças também, Porto Ferreira ficava a menos de cinquenta minutos de carro, tínhamos que aproveitar. Eu conhecia todas as curvas da rodovia, a paisagem em volta era muito bonita, verde, com pastagens, tudo muito bem aproveitado. A primeira cidade no trajeto era Descalvado, terra de ótimos açougues e frigoríficos, carne de primeira, depois, o caminho era dominado por uma região rural de primeiro mundo, até chegar à Porto Ferreira. Eu estava bastante cansado, mas o prazer compensava, essas escapadas eram importantes para a mente, que comandava tudo. Era a enésima vez que eu ia para Porto Ferreira, não havia limitação que me impedisse de escancarar um imenso sorriso, de rir e de falar alto dentro do carro, enquanto as várias curvas eram vencidas. Chegamos à cidade pouco antes das onze, alguns raios de sol venciam as nuvens carregadas.

Porto Ferreira é a capital brasileira da cerâmica, uma cidadezinha muito interessante, de gente simpática e comércio dinâmico. Fica às margens da rodovia Anhanguera. Estava lotada, para evitar aglomerações e um desgaste desnecessário, fomos direto às lojas em que meus pais sabiam que iriam encontrar o que buscavam. Em pouco mais de uma hora, as compras foram feitas. Aproveitei para comprar quatro copos americanos, num ímpeto saudosista dos meus tempos de pingado com pão na chapa. Acho que foi a primeira vez que eu comprei copos na vida. Nunca me lembro de ter comprado louças, nem pijamas, eles apareciam na minha vida como um toque de mágica. Por vezes, no eio, esqueci totalmente do câncer, apesar da falta de vigor, o agito das pessoas e a felicidade do sábado mexiam com a minha química, a injeção de ânimo era sentida em cada molécula do meu corpo. Saímos de Porto Ferreira, em direção à Pirassununga, pouco depois do meio dia. A distância de dezessete quilômetros foi cumprida quase como um teletransporte, chegamos ao nosso destino num piscar de olhos. Andar de carro pelas estradas de São Paulo implicava em pagar pedágio o tempo todo, entre São Carlos e Porto Ferreira

havia um, entre Porto Ferreira e Pirassununga havia outro. Os combustíveis estavam mais caros, janeiro era o mês do IPVA e do IPTU, mas eu não reclamava. Nem comentava, nem criticava, pagava e seguia em frente. Diferentemente de anos anteriores, dois mil e vinte começava para mim com menos protestos de minha parte. Fazer o quê?

Cruzamos Pirassununga em dois tempos, levamos poucos minutos para chegar à região da Cachoeira de Emas. Meus pais queriam almoçar um peixinho num restaurante em que minha mãe ou mal durante a minha gestação, em setenta e um. Segundo relados, Dona Luzia teve uma forte hipoglicemia pela demora do prato, eu era um bebezão de vinte e cinco anos que nasceu com quatro quilos e meio, havia uma demanda altíssima que não estava sendo atendida. Por fim, almoçamos em um outro restaurante, mais reservado, e mais caro também, com ar-condicionado e estacionamento privativo. Foi bom, não sou o maior fã de peixe de rio, mas comi com gosto a sugestão do chefe, lombo de dourado no azeite extra virgem. O eio estava sendo ótimo, havia muita gente por lá, aproveitando a trégua das chuvas para tomar banho e curtir a bela orla do rio Mogi. Voltei para São Carlos bem animado, precisava disso antes da sexta seção de quimioterapia. Desde o início, eu sabia que não estava preparado para o sofrimento, resignar-me às limitações do tratamento era uma coisa, ter dores fortes durante dois dias era outra. Os percalços da quinta seção tinham deixado marcas, lições foram aprendidas, mas eu não queria reviver tudo aquilo de novo. Evitava pensar no assunto para não ficar pessimista, nesse sentido, o eio de sábado foi um antídoto poderoso.

Esqueci de contar, mas no dia anterior, sexta-feira, eu concluí o artigo científico que vinha me ocupando. Nunca levei tanto tempo para escrever, mas era o jeito, eu tinha que respeitar a minha nova dinâmica. De certa maneira, a missão foi cumprida com enorme satisfação, era mais uma prova de que a doença não tinha me tirado totalmente de cena. O trabalho era longo, verdade seja dita, e novo para mim. Tratava-se de um equipamento bastante modificado, uma inovação cheia de detalhes de operação, com fundamentação teórica em que tudo era função de tudo. Minha área na engenharia química tinha a ver com a física envolvida no contato entre partículas e fluido. Com base nisso, equipamentos que promoviam esse contato, processando, assim, alguma coisa, eram

desenvolvidos e estudados. Minha ênfase sempre foi a automação, mas não tinha como fazer isso sem entender bem o funcionamento de cada equipamento, cada reator. Apesar da minha formação em engenharia elétrica, tornei-me um híbrido ao longo dos anos, minha carreira seguiu rumos inesperados, mas muito bemvindos. Juntamente com o eio, o dever cumprido através do artigo completamente escrito somava benefícios num momento em que eu realmente precisava me sentir melhor. Funcionou, voltei a acreditar na ajuda que eu não via, com mais convicção. Do total abandono ao auxílio pleno, bastaram alguns dias. Isso era bom.

Por que então eu ei por um episódio tão traumático, no início do ano? Senti o sofrimento pela primeira vez, pedi para não sofrer, mas não fui atendido. Aceitava tudo, menos a dor. Mesmo assim, senti muita dor. Fui hospitalizado, tomei até analgésico opioide para conter a dor, isso sem contar o inevitável estresse emocional por não saber o que estava acontecendo. Não foi um episódio terminal, longe disso, mas mexeu profundamente comigo. Havia a explicação terrena, que eu ouvi dos médicos e entendi, mas, segundo a minha crença, havia também a questão espiritual, das provas e das dívidas de existências anteriores. O fato foi que eu não mereci ser atendido no meu pedido contra o sofrimento, que para mim foi bem difícil. Cada um é cada um, diante da dor forte, eu sofri. Não me desesperei, nem culpei ninguém, só sofri. Nada na vida era por acaso, eu sabia disso, não restava dúvida de que minha conta era maior do que eu imaginava. Seguramente, ar por tudo aquilo, quase sem revolta, o mais serenamente que eu consegui, foi mérito e valeu pontos preciosos no meu processo evolutivo. Quando meus dentes do siso nasceram, todos tortos e de uma só vez, doeu pra chuchu, mas eu não estava debilitado por nada. Eu era fortão, aguentei firme. Além disso, não tinha o fator psicológico, pois eu sabia bem o que estava acontecendo. O pior da dor que eu senti depois da quinta seção de quimioterapia foi não conseguir reagir contra ela.

Essa novidade na minha vida, me fez refletir. E muito. O tratamento contra o câncer era pesado, mexia com o meu vigor. Minha energia vital, mesmo na semana de folga do tratamento, era muito menor do que a que eu tinha quando estava bom. Sem pique, tudo ficava mais difícil. No dia em que eu chorei assistindo Patrulha Canina com os meus sobrinhos, em Curitiba, só porque o

cachorrinho não conseguia voltar para casa, ficou claro que eu não era mais o mesmo. Perdia batalhas sem importância, respirava fundo e suspirava sem forças. Seria isso uma purificação da minha alma? Era de certa forma um consolo pensar que minha existência além-túmulo ganhava uma estrela, ou duas, a cada etapa vencida. Mesmo nos momentos difíceis, em que eu me senti entregue à minha própria sorte, algo ou alguém me fazia ver a luz no fim do túnel. Na hora do aperto, o ado bom e gostoso de lembrar soprava ecos nos meus ouvidos. O desânimo não ia embora imediatamente, mas ficava bem mais fácil aguentar a dor. Enquanto isso, a vida continuava seu curso, sem pressa, o futuro podia esperar um pouquinho. Nunca pensei tanto no meu ado.

TORMENTA E CALMARIA

A semana da minha sexta seção de quimioterapia começou com ruas imundas de barro, carros enlameados virados de ponta cabeça, assim estava São Carlos quando, na manhã do dia treze de janeiro, segunda-feira, eu fui fazer meus exames de sangue. Lembrando, antes de cada seção de quimioterapia eu tinha que fazer um exame de sangue. São Carlos é uma cidade de relevo irregular, ocupa montes lado a lado e é cortada por pequenos rios. Em baixadas, era comum ocorrerem enchentes no período de chuvas fortes, mas em janeiro de dois mil e vinte, o volume de água estava além do normal. Dois mil e vinte, um número bonitinho, mas ordinário. Que começo de ano! Levei vinte e cinco minutos para fazer um trajeto que eu normalmente faria em menos de dez. Se você for de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, ou de alguma outra grande cidade, deve estar rindo de mim. Mas o negócio era o seguinte, o interior paulista é conhecido pela alta qualidade de vida, se por um lado, faltavam as boas opções dos grandes centros, nos serviços, nas artes, no comércio, na gastronomia, por outro, sobravam vantagens nos deslocamentos, na moradia, nos custos. A vida confortável que eu levava em São Carlos seria bem mais apertada, mantido o meu salário de professor, se eu morasse em São Paulo. Mesmo em Santo André, onde morei por uns tempos, financeiramente falando, eu levava uma vida bem mais modesta. Dar aulas na UFABC compensava, eu era feliz.

A novidade nessa manhã de exame de sangue, além do cenário devastador das ruas depois da enchente, foi encontrar um velho conhecido de longa data. O Juca, também docente na UFSCar, foi meu professor de voleibol de oitenta e quatro a oitenta e seis, tinha um projeto de inclusão social e eu e o meu irmão fizemos parte dele. Meus pais davam muita importância em não elitizar a nossa formação, felizmente para mim, fui criado num ambiente bastante variado e muito bom, convivendo bem com classes sociais acima e abaixo da minha. Sempre fui uma negação em esportes, principalmente, coletivos, mas foi um período bom, de convívio com pessoas legais. Muito tempo ou, encontrar o Juca era sempre o mesmo prazer.

- Vou ar por uma cirurgia assim, assim...

Enquanto ele me contava as linhas gerais da cirurgia no quadril que iria fazer, na sala de espera, o noticiário da TV mostrava os estragos causados pelas chuvas, pela segunda vez em janeiro. Não estávamos nem na metade do mês! Para quem estava acostumado a praticar e ensinar esportes, técnicas e estratégias de jogo, as limitações impostas pelos problemas de locomoção judiavam do Juca, mas foi bom constatar que ele ainda mantinha o espírito guerreiro de quando o conheci.

O Juca era uma daquelas figuras que o Brasil precisava em abundância. Sempre lutou pelo social, nunca deixou de trabalhar em prol dos que precisavam de uma forcinha. Uma penca de adolescentes seguiu o bom caminho depois que ou por um dos vários projetos do Juca. Em oitenta e quatro o Juca tinha uma velha Brasília branca apelidada de Jabiraca. A Jabiraca vivia transportando a gente de um lado para o outro em São Carlos, de ginásios aqui e ali, até uma porteira ou outra na zona rural. Certa vez, ele organizou uma trilha de bicicleta de São Carlos até Ibaté, uma cidade vizinha. Na volta, fiquei um pouco para trás eu me perdi no canavial. Não me lembro exatamente quanto tempo fiquei perdido, mas a imagem do Juca voltando para me resgatar, e me xingando de tudo quanto foi nome, em seu melhor estilo, foi inesquecível. Como não ter gratidão? Até entrar para a universidade, ainda mantivemos bastante contato, depois, a vida virou uma loucura, um verdadeiro rolo compressor. O tempo de graduação foi um divisor de águas na minha vida, fazer bem uma boa universidade pública foi certamente um diferencial. A vida confortável e estável que eu levaria na fase adulta começou, sem eu ter consciência disso, no dia em que eu ei no vestibular. Há trinta anos.

Vamos lá. Oitenta e nove foi um ano de muita agitação no Brasil. Haveria eleição direta para presidente depois de muito tempo, eu votaria pela primeira vez. Para mim, entretanto, muito mais do que as eleições, oitenta e nove foi o ano do vestibular e, acima de tudo, de treinamento para tirar a tão sonhada carteira de motorista. Naquele ano, eu me tornei o manobrista oficial da família, aos dezessete anos, meu pai não me deixava dirigir sozinho nas ruas de São

Carlos, nem deveria. No interior, era muito comum ver menores ao volante, não havia nem a fiscalização, nem a visão de certo e errado que existe hoje. Mas eu me contentava com as centenas de balizas que eu fazia, ainda manobro muito bem em função do tanto que eu treinei. Não via a hora de poder dirigir nas ruas, sem restrições. Sem carteira de motorista, o jeito era dirigir no campus da UFSCar, que naquela época tinha um monte de áreas inocupadas, principalmente na região onde eu viria a trabalhar anos mais tarde. Perdi a conta do número de vezes em que quase atropelei animais do cerrado, corujas, gambás, tatus, lagartos, felizmente, nunca matei nenhum. Tirei minha carteira no início de março do ano seguinte, por ironia do destino, tomei pau na primeira tentativa, depois de uma barbeiragem que eu prefiro não contar aqui. Mas deixo uma pista, a infração foi grave.

Eu estudava no colégio CAASO, dentro do antigo campus da USP de São Carlos. Fazia o terceirão, terceiro ano do ensino médio junto com cursinho prévestibular. Minha vitalidade estava a mil, eu corria para um lado e para o outro na minha Caloi 10, pesava cinquenta e oito quilos, comia que nem um javali. Depois de muito refletir, decidi que prestaria vestibular para engenharia química ou mecânica. Eu gostava muito de matemática, ia bem em física, sabia que não seria piloto militar, enfim, mesmo sem muita empolgação, meu futuro profissional estava definido. Estudei bastante, devorei o guia do estudante da Editora Abril, me inscrevi nos três principais vestibulares do estado e, entre mortos e feridos, ei em dois. Na UNICAMP eu não ei nem da primeira fase, fiz a prova em Ribeirão Preto e bombei. ei em engenharia mecânica na UNESP de Guaratinguetá, Vale do Paraíba, e em engenharia química na UFSCar. Cheguei a fazer a minha matrícula na UNESP, um ou dois dias antes de completar dezoito anos. Logo em seguida, ei na FUVEST que, naquele ano, incluiu o processo seletivo da UFSCar. Optei por permanecer em São Carlos, fiz um ano de engenharia química, mas no final de noventa, prestei vestibular de novo, com a intenção de trocar a federal pela estadual.

No conturbadíssimo governo Collor, estudar em uma universidade federal era um verdadeiro inferno. A insatisfação era enorme, as greves eram longuíssimas, faltava verba para o básico, o campus da UFSCar estava mal cuidado, as pessoas estavam desanimadas, não quis pagar para ver. Em noventa e um, ei na

FUVEST para engenharia civil na USP de São Carlos, continuei fazendo engenharia química por mais um semestre, mas não aguentei os dois cursos ao mesmo tempo. Acabei me formando em engenharia elétrica pela USP de São Carlos, em noventa e cinco. Por mais uma ironia do destino, voltaria para a engenharia química na pós-graduação e me tornaria professor do curso que eu abandonei no início da década de noventa. O mundo dá muitas voltas, parece clichê, mas não é. Meus tempos de estudante de graduação foram bem aproveitados, cinco anos que pareceram vinte. Muita coisa acontecia enquanto eu me formava, teve a Guerra do Golfo, transmitida ao vivo pela TV, o fim da União Soviética, plano Collor, confisco de dinheiro, impeachment, a morte do Senna, a moeda mudou, nasceu o real, infelizmente, naquela época, ainda havia tortura no país, mas no lugar do choque elétrico e do pau-de-arara, eram o axé music e a dancinha da Macarena, respectivamente, que judiavam. De norte a sul, de leste a oeste. Isso e muito mais, dentro e fora do Brasil, grande efervescência.

Quando entrei na universidade, o bicentenário da Revolução sa e a queda do Muro de Berlim eram os assuntos em voga que, aliás, caíram no vestibular. Veio, então, a vitória do Collor nas eleições, o caçador de marajás tornava-se o primeiro presidente eleito através do voto direto, após trinta anos. Antes, teve até a candidatura do Silvio Santos, impugnada a tempo. Liberdade e democracia acima de tudo, mas o gosto amargo do livre-arbítrio não estava nos planos dos brasileiros. No dia em que o Collor traiu a confiança do povo e confiscou a poupança de todo mundo, em pleno feriado bancário, logo no início do mandato, começou um pesadelo de dimensões épicas que duraria até a sua renúncia, no finalzinho de noventa e dois. Todos queriam o pescoço do Collor, que dizia ter nascido com aquilo roxo, o homem só dava bola fora, mas foi uma denúncia do irmão caçula que o derrubou. A boa contribuição do Collor, indireta, mas válida mesmo assim, foi o renascimento do movimento estudantil. Nascia a geração cara-pintada, eu fiz parte dela. Fomos para as ruas com os rostos pintados de verde e amarelo, pedindo a saída do presidente. Não houve confusão, nem confronto, o Collor provocou a população pela TV, e os estudantes responderam.

Fui à várias eatas, numa delas, em São Carlos, sem combinar nada, encontrei na aglomeração, meu irmão e depois o meu pai, bem no centro da cidade, na região do mercado municipal. Meu pai estava acompanhado por colegas do

departamento e alguns alunos. Foi divertido, esse era o astral. O brasileiro se encantou com os estudantes, as manifestações cresciam e se multiplicavam pelo país, não pararam até o Collor cair. Ele não teve trégua, a cada aparição nos meios de comunicação, íamos para as ruas. As grandes capitais viraram palco de grandes protestos coloridos e animados, bem ao nosso estilo, nossa índole. Pacífico, sim, bunda mole, não. O Brasil pós-Collor mostrou-se viável, o expresidente teve seus direitos políticos suspensos por oito anos, mas assim que pôde, foi eleito senador por Alagoas. Freud teria perdido cada fio da vasta barba branca e todo o seu tempo tentando explicar o comportamento humano nos trópicos, não-linear ao quadrado. Mas não éramos bunda mole, isso era mais importante do que lógica e coerência. Como senador, Fernando Collor de Mello completou sua frota pessoal de super máquinas, uma Ferrari, um Porsche e um Lamborghini, um de cada um. Sou fã de carros, desses então, nem se fala, mas no conjunto da obra, sou mais a Jabiraca do Juca, que levava um cara honesto ao volante e, de carona, um monte de adolescentes com espinhas na cara, e calos nas mãos.

De volta ao que interessava, no dia seguinte ao exame de sangue, fui para a sexta seção de quimioterapia driblando o trânsito interrompido ao longo do caminho. Pouco depois das sete e quarenta da manhã eu já me encontrava na antessala, esperando a minha vez. Eu estava mais sereno, após a tormenta, a calmaria, que nem o conto do bode na sala. Eu vivia isso. ei a achar até que os momentos difíceis acabavam valorizando os períodos mais tranquilos. Antes e depois. Minha companhia na Santa Casa era o livro de memórias do Gregório Bezerra, um destacado dirigente comunista brasileiro, cabra macho feito de ferro e de flor, segundo as palavras de Ferreira Gullar. Minha fama entre os pacientes era justamente por conta da leitura, mesmo dormitando de tempos em tempos, eu conseguia devorar páginas e mais páginas durante a seção. Tinha sempre um livro em mãos, antes de ser afastado da universidade, lia pouco, menos do que eu gostaria. Com mais tempo à disposição, entretanto, o hábito de ler livros ganhou reforço, um aspecto positivo que não podia ser ignorado. Enquanto eu lia, me transportava para a narrativa, tentando me incluir, como observador, no cenário da trama. Informação e entretenimento, como tinha que ser.

A ala de quimioterapia da Santa Casa era um espaço democrático, como já dito,

havia todo tipo de câncer por lá, vários estágios diferentes, pessoas de diversas classes sociais, a maioria mais velha do que eu. O contato era benéfico, o comparativo era inevitável, eu era um privilegiado, sofria menos, estava em melhor estado, tinha um bom plano de saúde, mesmo assim, eu não era o que mais sorria. Talvez nem fosse o mais agradecido. Estava melhorando, um o de cada vez. Eu convivia muito bem com todos naquele ambiente, não imaginei que encontraria um astral tão bom por lá. Nesse dia, havia um senhor com câncer em estágio bem avançando, as periódicas doses de morfina tiravam a sua dor, mas, também, deixavam o pobre homem fora de órbita. Acostumei-me, sem indiferença, a ouvir as palavras câncer, maligno, metástase, morfina, ditas a torto e a direito na Santa Casa. Os médicos evitavam, os enfermeiros também, mas entre os doentes, não havia etiqueta, "onde foi o seu câncer?", "tinha metástase?", "é seu primeiro câncer?", "é a primeira vez que você faz quimio?", "nunca fez radio?", e por aí vai. Ninguém perdia o rebolado tocando nesse assunto, era a nossa realidade, de certa forma, a troca de experiências alimentava a esperança de uns, o consolo de outros, era assim que funcionava. Nessas horas, eu me alegrava por estar escrevendo um livro, deixando o registro do meu testemunho. Esperando um final feliz antes do ponto final.

Na noite de terça para quarta feira, dormindo com o infusor na cintura, mais um sonho estanho entrou para a minha coleção. Dessa vez, o enredo foi claramente induzido por um filme espanhol que eu assisti antes de ir para a cama. Lo Nunca Visto contava a história de um povoado condenado a sumir do mapa se sua população de dezesseis habitantes não aumentasse para dezoito. Um barato, quatro africanos salvaram a pátria, o filme abordou o racismo de forma cômica e inteligente, temas pesados ganharam leveza nas falas dos personagens. Enfim, gostei muito da história contada. Mas o que me levou a sonhar foram os quindins mostrados o tempo todo, fama do povoado. O quindim era o meu doce preferido até eu virar diabético, nunca deixei de gostar da iguaria, mas não pude mais comer regularmente. Cheguei a cair em tentação algumas vezes, ei mal, jurei que não comeria de novo, até cair em tentação mais uma vez. Pois bem, fui dormir com a imagem dos quindins de Fuentejuela de Arriba, a pequena aldeia montanhosa do filme Lo Nunca Visto, amarelinhos e brilhantes, belamente arranjados em fileiras dentro de caixas de doces. Resultado, sonhei com os quindins, eu não comia os quitutes, dividia ao meio e lambia, muito estranho. Sentia um prazer danado, o ambiente parecia ser o de uma cozinha, eu sozinho, lambendo quindins, feliz da vida. Vá entender!

O período do tratamento foi repleto de recordações boas do meu ado saudável e ativo. Era inevitável pensar, com insistência, nos momentos felizes vividos num tempo em que eu nem imaginava que ficaria seriamente doente. Durante quinze meses, fui professor visitante no Departamento de Engenharia Química da Universidade do País Basco em Bilbao, na Espanha. Viajei justamente no período logo após a reeleição da Dilma e voltei um pouco antes do impeachment. Uma loucura. Apesar do pouco tempo que eu ei fora, no início de dois mil e quinze, deixei um Brasil otimista e com ótimas perspectivas para o futuro, mas voltei no ano seguinte para encontrar um país em frangalhos, cheio de desempregados, polarizado, com protestos de todos os lados. Não entendia nada. Em dois mil e nove a revista The Economist transformou, em sua capa, a imagem do nosso Cristo Redentor em foguete para dizer que o Brasil era um país que finalmente decolava. Eu trabalhava na UFABC, fiquei empolgado e acreditei piamente nas previsões otimistas que a revista fazia sobre a economia e o desenvolvimento do Brasil. Pouco mais de quatro anos depois, era terrivelmente frustrante para mim ver que o país não era nada daquilo que se previa, continuávamos a nossa longa e talvez eterna trajetória pelo subdesenvolvimento, afundando cada vez mais em um buraco sem fim. Mas essas não eram lembranças que valiam a pena para animar um paciente em tratamento de câncer.

Em Bilbao, eu levei um vidão, tinha uma ótima bolsa da CAPES para estágio sênior de professores mais velhos, como eu. Enquanto eu aproveitava ao máximo meus dias por lá, o pau comia aqui no Brasil. Os colegas bascos de departamento me perguntavam sobre a Lava Jato com frequência, se a dimensão da corrupção era mesmo o que a impressa divulgava, impensável para um europeu, e, principalmente, o que Curitiba tinha a ver com aquilo tudo. Curitiba tinha sido a sede da seleção espanhola durante a Copa do Mundo de dois mil e quatorze. Tentava explicar o que, a rigor, eu nem entendia, mas era um assunto bastante desconfortável e constrangedor. Por que, então, remoer esse ado? Porque eu voltaria para a Espanha se estivesse bem de saúde. Quando saí do consultório do Doutor Daniel, com o diagnóstico do câncer, o primeiro cancelamento na minha lista de atividades futuras foi justamente a viagem ao País Basco espanhol. A ida seria custeada por um convênio internacional, eu estava louco para ir. Mas, enfim, tudo mudou, deixei de ir e não fiquei infeliz por

conta disso.

Na Espanha, eu aprendi portunhol, aquela língua que mistura Português e Espanhol, que funciona bem em várias situações, que não é nem uma língua e nem a outra, mas dá para ser usada até ao telefone. Na verdade, meu primeiro contato com o portunhol foi na França, durante o meu doutorado. Conheci muitos espanhóis naquela época. Em Bilbao, o portunhol melhorou bastante, com isso, acabei estreitando laços com povos hispânicos. No final de dois mil e dezoito, fui à Colômbia para um ciclo de seminários na Universidade dos Andes, em Bogotá. Foi minha última viagem ao exterior. Meu intestino já dava sinais de rebeldia, mas eu estava tranquilo com relação a isso, não me preocupava. A viagem de ida foi meio estressante, a princípio, meu embarque seria num fim de semana, mas eu não pude ir para Bogotá porque havia esquecido minha caderneta de vacinação em São Carlos. Eu nem sabia que precisaria dela. Acabei pagando uma mega multa, reagendei meu voo, e tudo deu certo. Participei de várias reuniões, palestras e seminários, e ainda consegui visitar Bogotá, uma belíssima capital a quase dois mil e setecentos metros de altitude, além de localidades na província de Cundinamarca, como a estonteante Catedral de Sal, e uma cidade histórica com mais de quinhentos anos em Boyaca. Todos os dias, no almoço ou no jantar, eu comia ajiaco, uma sopa de batata, milho e frango, com pedaços de abacate, bastante típica de Bogotá. De acompanhamento, arroz branco, mais abacate e a redonda cerveja Club Colombia. Melhor companhia, impossível.

A sexta seção de quimioterapia ia bem, suave como uma valsa vienense, dava até medo pensar nisso. O soluço logo apareceu em cena, mas em compensação, eu ia ao banheiro sem grandes dificuldades, tinha pavor de uma segunda lavagem intestinal. Faria se fosse necessário. Fazia cocô com aquele sentimento de vitória, irava o resultado final como se fosse meu Magnum opus, quase tirei fotos para guardar de lembrança, tamanho o trauma. Já não havia mais previsão de chuvas fortes em São Carlos, foi muito triste ver os estragos causados pelas enchentes, felizmente, só houve perdas materiais. Era domingo, muita gente estava em casa quando o dilúvio inundou a cidade. Realmente, parecia que a poeira baixava ao meu redor, janeiro voltou a ter cara de janeiro, eu não sentia dores horrendas no ombro e nem estava entupido. Bom, pena que, nesse caso,

entre parecer e ser havia uma distância considerável. Constipação realmente não houve. Entretanto, quando retirei o infusor na Santa Casa, quinta-feira às 15:00, a dor na região do cateter beirava o inável. Implacável, envolvente, cruel como uma viúva negra. Dessa vez, porém, nada de sofrimento, cabelo branco não nascia à toa, no começo da noite tomei um comprimido de Tramal Retard, a dose de ópio que eu precisava para dormir que nem um bebê.

Vale aqui um parênteses sobre esse medicamento. Nunca havia tomado algo tão forte, teve a morfina no hospital, quando fui operado, mas não dava para comparar. O curioso do Tramal Retard era que ele não tirava a dor propriamente dita, mas sim, me tirava da dor, ela continuava lá, do mesmo jeito, só que eu me desligava por completo dela. A sonolência provocada pelo remédio era estranha, eu ficava grogue, com aquela fala atravessada de bebum, e apagava na cama. Ah, o Retard do nome era por conta do tempo de residência no organismo, efeito de ação prolongada, era o que ele queria dizer. Por medo da presença do ópio nessa história toda, eu evitei ao máximo o medicamento, no dia seguinte, tomei mais um comprimido só para aguentar o dia, dormi praticamente o tempo todo, e a dor começou a dar uma trégua. No sábado, dia dezoito, acordei bem mais disposto, ciente do ciclo de dor e de recuperação que fazia parte do meu tratamento. De certa forma, a cabeça era o gerente e o regente de tudo, saber que a dor aguda era ageira me deixou mais tranquilo, não era a primeira vez, o intestino funcionando direito também foi motivo de otimismo. Na primeira crise, depois da quinta seção de quimioterapia, tudo foi novidade para mim, a dor aguda, o intestino preso, eu não sabia o que pensar. Depois disso, sabia que se eu aguentasse alguns dias, haveria o período de calmaria logo em seguida, mais gostoso do que nunca.

Acho que tanto eu quanto você merecemos que esse capítulo termine com a felicidade de um dia bom. Eu acordei bem melhor no sábado, dia vinte de janeiro, quis sair de casa para dar uma volta na rua. Como as ruas de São Carlos ainda estavam intransitáveis em vários pontos, resolvi ar a rodovia Washington Luiz, sentido capital, e levei meus pais para almoçar no restaurante Brava Gente, distante uns vinte quilômetros. A estrada parecia dialogar comigo, a trepidação do volante anestesiava um pouco a dor, cruel como uma bruxa impiedosa. Comi canelone ao sugo, mas meu estômago ainda estava muito ruim,

para a minha total decepção, só aguentei comer metade do prato individual. Os garçons que já me conheciam de longa data, estranharam, para quem já havia batido sozinho, pratos para duas pessoas, eu não tinha nem sombra do apetite de outrora. Foi bom, sair de casa depois das seções de quimioterapia tinha um sentido terapêutico, era a dose de normalidade que eu precisava para seguir em frente. Antes de voltar para casa, amos numa loja de departamentos e comprei um tapete para o meu apartamento. Já que eu não me mudaria mais para um apartamento maior, o legal seria dar uma garibada no futuro ex-endereço. Que, por sinal, eu gostava muito. Deixei meus pais no apartamento deles e corri para o meu, com o tapete no porta-malas. Depois de ter comprado copos pela primeira vez, em Porto Ferreira, comprar o tapete cor de marfim foi mais um lance inovador na minha nova vida. Havia um desconto de duzentos reais na compra à vista, fiquei feliz com o preço e o tapete ficou bem bacana. Pena que não era voador, daqueles que transportam gente feliz em um mundo mágico. Quase saltando para fora do meu corpo físico, eu olhava para o tapete marfim no chão da minha sala com exclamações múltiplas, desejando que ele decolasse. A dor no ombro atrapalhava a magia do momento, sem pestanejar, chutei o balde, peguei um punhado de comprimidos de Tramadol e enfiei na boca.

MAGIC CARPET RIDE

Enquanto eu mastigava e engolia os comprimidos, pensava na dor com bastante rancor, eu queria viver e aproveitar a folga da quimioterapia, mas ela não deixava. Morrer de overdose não seria suicídio, meu compromisso era com a vida, mas conjugar o Tramadol no plural era uma curiosidade que eu tive desde que comecei a usar o medicamento. Resolvi experimentar. ado algum tempo, estirado no sofá da minha sala, tive o orgasmo mais longo e maravilhoso de toda a minha vida, múltiplo, eu me sentia anestesiado, totalmente relaxado e muito feliz. A felicidade química fazia a minha mente escapar do meu corpo doente, de repente, em alguma parte, comecei a ouvir a música Outside Chance do The Turtles, que eu nem era fã, mas que naquela hora, foi a trilha sonora que escolheram para mim. A sala do meu apartamento continuava no mesmo lugar de sempre, eu não sabia onde estava, nem me importava com isso, minha atenção estava voltada para o tapete. No chão, entre o sofá e a televisão, o tapete me entreteve por algum tempo, obedecendo aos meus comandos, diante dos meus olhos injetados, ele levantava e abaixava, eu morria de rir. Joguei duas almofadas em cima dele, sentei-me de pernas cruzadas bem na parte do meio, abri os braços que nem um crucificado e fiquei esperando o tapete decolar. A espera não foi longa, ciente dos meus anseios, o tapete voador logo ganhou os céus, de braços sempre abertos, sentia o vento gostoso que o deslocamento proporcionava. Se não dava para se aventurar de corpo e alma, já que o primeiro estava um bagaço, foi com o segundo que eu me diverti. E muito! A falta de ar, que minutos antes acabava comigo, mudou de endereço e não deixou telefone, enchia os pulmões enquanto o tapete dava rasantes nas copas das árvores. Que árvores eram essas? De que importa! Não eram pinheiros. Nem coqueiros ou palmeiras.

Confiante na eficiência do meu meio de transporte, o desejo foi atendido, para longe eu fui, voando alto, com destino a Índia. Não bastasse me deslocar no espaço, eu me deslocava no tempo também, voltei para dois mil e oito, ano em que fui à Ásia pela primeira vez. A distância era vencida em quilômetros, meses e anos. A música do The Turtles tocou enquanto a viagem durou. Só vi árvores no caminho, como se só houvesse a floresta amazônica entre o Brasil e a Índia.

Que loucura, existem momentos na vida da gente em que a realidade se torna facilmente corrompível e maleável, o corpo não queria mais nada, mas a mente clamava por alguma ação, e conseguia, graças ao derivado da papoula. A viagem real à Índia foi meu primeiro compromisso internacional como professor efetivamente contratado, consegui de última hora uma verba do estado, comprei uma agem pinga-pinga, que quase acabou comigo, tomei vacinas, acertei o visto, isso e aquilo, tudo meio atropelado, e parti para o outro lado do mundo, numa tarde quente de sexta-feira, dia sete de novembro de dois mil e oito. Uma epopeia, apesar de gostar muito de viajar, meu espírito aventureiro era bem almofadinha, só caía na estrada se estivesse tudo bem programado, não abria exceção. Para a Índia, entretanto, tive algo em torno de quatro semanas para organizar tudo, nem encontrei tempo suficiente para preparar direito a apresentação que eu faria no congresso. Ficou uma merda. De qualquer maneira, era isso ou não ir. Levei uma mini-vida em avião para sair de Vitória e chegar ao meu destino. No meu tapete voador, teria sido bem mais rápido, um piscar de olhos.

Só que em dois mil e oito, a viagem só terminaria no domingo pela manhã, com uma vontade danada de chorar de tantas horas de voo. Eu estava em estágio probatório na universidade, ou seja, ainda não tinha estabilidade, meu período de afastamento para a viagem foi curto, faltou-me também experiência, enfim, foi muito cansativo, mas foi bom. Eu era saudável! Feliz da vida, saí de Vitória para o Rio, do Rio para São Paulo, de São Paulo para Paris, de Paris para Amsterdam, de Amsterdam para Mumbai e, finalmente, de Mumbai para Hyderabad, onde foi o décimo sexto congresso internacional de secagem, motivo da minha viagem. Os últimos voos pareceram intermináveis, fiquei mais de trinta e seis horas nos ares, ou correndo de um terminal para o outro, quase perdendo uma conexão aqui e outra ali. Em Paris, só consegui trocar de voo porque entenderam o meu francês enferrujado. Pulei, literalmente, um dia inteiro da semana, aquele sábado, dia oito, simplesmente não existiu para mim, se fiquei duas horas com os pés no chão, foi muito. Na manhã do dia nove de novembro, ao chegar a Hyderabad, minha primeira vontade foi de beijar o chão como o Papa João Paulo II, só não o fiz porque não tinha coluna para tanto. O aeroporto era enorme, parecia um oásis no meio do nada. A cidade também era enorme, uma mistura danada de riqueza e de pobreza, de moderno e de antigo, bem diferente dos nossos contrastes. Tudo era muito belo.

Fiquei hospedado num resort com alguns hotéis de quatro e cinco estrelas onde havia um estúdio de Bollywood, a indústria de cinema indiana. Nos intervalos do congresso, cheguei a ver ensaios de danças típicas dos musicais que fizeram a fama dos indianos, realmente, foi muito interessante. Havia muitos europeus e norte-americanos no evento, para eles tudo era muito exótico, provocando constantes suspiros e iração. Eu não achava tanto assim, Brasil e Índia empatavam em muitos aspectos, ei cinco dias perambulando pela cidade, conhecendo os pontos turísticos de uma região um pouco fora do roteiro de viagens mais populares. Adorei a gastronomia! Nenhuma novidade. Numa tarde de folga, fui com colegas brasileiros visitar uma estátua do Buda que ficava bem no meio do lago Hussain Sagar. Hyderabad era uma metrópole agitadíssima, por vezes, tivemos que pedir ajuda a guias turísticos para conseguir atravessar algumas de suas avenidas. A imagem do Buda que encontrei por lá era diferente das que eu previamente conhecia, na ilhota onde reinava sozinho, ele estava em pé e parecia bem mais magro. A estátua tinha mais ou menos o mesmo tamanho do nosso Cristo Redentor, havia muita gente quando o barco ancorou na pequena ilhota, mas nós parecíamos ser os únicos turistas. A esposa de um colega da UNICAMP, de pele alva como leite, chamava a atenção e atraía olhares por onde ava. Eu, ao contrário, parecia completamente inserido em qualquer cenário indiano.

Não me lembro muito bem o que fiz durante o tempo que ei aos pés da imensa imagem de Buda, seguramente tirei fotos, apreciei o skyline da cidade, visto de longe, devo ter pedido alguma coisa em oração. Na minha volta triunfante à Hyderabad, porém, quase doze anos depois, no meu tapete voador pago no débito, só tinha eu por lá. Mantendo meus olhos fechados, mas vendo tudo mesmo assim, a imagem de Buda me transformava no menor e mais solitário habitante da Terra. Tudo era muito agradável, a temperatura era a ideal para meditação, morna com frescor, havia pouco vento, entardecia em Hyderabad. Uma explosão de tons vermelhos ocupava o céu, enchendo-me de emoção. Era muito bom estar ali, sozinho. Apesar da imediata paz de espírito, a princípio, eu não sabia muito bem o que fazer naquele contexto, irreal, mas verdadeiro, ou melhor, necessário. A partir da quinta seção de quimioterapia, o processo de cura tornou-se consideravelmente mais difícil, como já dito, me debilitando à beira do desânimo. Não foi à toa que o ópio deu vida ao tapete

felpudo, com pinta de bicho morto, eu tinha que aproveitar aquele voo. Diante de mim, o imenso Buda aguardava com toda a atenção o que eu tinha a dizer.

- Eu não quero sofrer, de jeito nenhum, acho que o sofrimento da dor é uma cruz que eu não consigo carregar.

Bom, timidamente, comecei meu diálogo dirigindo-me a Buda com o que era mais importante para mim naquele momento. Se em dois mil e oito eu devo muito provavelmente ter pedido algo bem mundano e material, na pausa dentro desse mundo mágico do tapete voador, era hora de caprichar mais.

- Quero e preciso aguentar o tratamento, com uma forcinha, creio que darei conta.

Se por um lado, todo o foco dos meus pensamentos era em mim mesmo, por outro, eu acreditava piamente que Buda, erguido e imenso ao meu lado, me escutava com atenção e daria um jeito de me ajudar, de alguma maneira. Acreditar na sutileza oculta nunca foi um desafio para mim, viver essa realidade como se eu fizesse parte dela é que era a novidade. O budismo e o espiritismo têm muitos elos em comum, com o câncer, o lado de lá da vida ficou bem mais ao alcance dos meus olhos. O tramadol fez a ponte.

- Se não estou pronto para sofrer, também não estou pronto para morrer.

Já que era para pedir, sem rodeios, fui construindo gradativamente a narrativa do que, de fato, eu queria. Morrer também não estava nos meus planos, algo me dizia que ainda faltava alguma coisa para eu fazer, além da prova da doença. A sexta seção de quimioterapia havia me deixado com muita falta de ar e fortes

dores no peito, meu fôlego me abandonou com uma mão na frente e outra atrás, sendo otimista, minha vitalidade caiu pela metade. A dor no braço rolava de tanto rir, tamanha a supremacia no meu dia a dia, a batalha era de peso pesado, e eu estava estatelado na lona, um caco para me levantar. Buda era o aliado que eu precisava.

- Não sou evoluído o suficiente a ponto de aceitar numa boa a adversidade do câncer como forma de elevação do meu espírito.

Era assim que eu pensava. Não adiantava mentir, mesmo porque, Buda lia pensamentos. A evolução do espírito significava muito para mim, na existência além-túmulo, nas nuvens branquinhas do céu. Mas aqui na Terra, em nosso universo palpável, eu queria mesmo era ser um homem melhor, curado, livre do câncer, pronto para recomeçar. O que eu mais desejava, a rigor, era saúde plena, sem questionamentos, o resto era detalhe. Sem saúde, nada importava, nada valia a pena, não havia felicidade, nem todo mundo era como o Chico Xavier ou a Madre Tereza, eu seguramente não era. O convívio com o câncer seria longo, um teste de paciência, por incrível que pareça, meu ado saudável e ativo, consolo de todas as horas, ressuscitava da tumba sem aviso prévio, melhorando meu ânimo. Era com os pés nele que eu seguia adiante, atravessando o presente rumo a um futuro que só podia ser sonhado, e não planejado.

- Enfim, ajude-me como puder, quando houver dor, que haja alento, quando eu sofrer por conta disso, esteja ao meu lado.

Confesso que senti vontade de pedir outras coisas, tipo "um prêmio quando eu vencer essa etapa", mas achei que estragaria tudo. Realmente, pensando bem, tudo o que eu precisava era ter minha saúde de volta, seria uma baita benção alcançar isso. Poder acordar e dormir com aquela leveza do pulmão cheio, ar o dia em atividades normais, trabalhando, curtindo, comendo tudo com pimenta e farinha, e uma cervejinha gelada goela adentro para acompanhar. Era pedir demais? Para mim, era sim! Nunca na minha vida eu me vi tão afastado da

normalidade dos meus dias quanto no momento em que montei naquele tapete voador, duzentos reais mais em conta, voltei doze anos no tempo e fui para a Índia ao encontro do Buda de Hussain Sagar.

De imediato, logo após os pedidos, continuei o mesmo bagaço do primeiro parágrafo desse capítulo. Pensamento positivo e otimismo combinavam bem com mente sã e barriga cheia. Não era o meu caso enquanto eu pegava meu transporte psicodélico de voltava para São Carlos, pronto para tudo, menos para a realidade que me aguardava. Mesmo assim, o eio no tapete voador criou em mim uma expectativa muito boa, ter ido ao encontro de Buda, por vontade própria, com nobres intenções, parece ter rendido dividendos em minha vida. Deixei de lado aquela sensação de abandono e voltei mais uma vez a acreditar no mundo invisível que olhava por mim. Seria um exercício diário de fé. O fato foi que, nos dias seguintes a isso tudo, a coisa melhorou e alguns sinais me levaram a crer que Buda mexeu os pauzinhos para me ajudar. Como num e de mágica, achei dentro da mochila que me acompanhou na cirurgia, meses antes, duas caixas de um remedinho para a dor do pós-operatório. Remédios para dores musculares não estavam servindo para nada, devorava esses medicamentos que nem amendoim, mas continuava entrevado. Retirando as duas caixas de comprimidos como quem tira coelhos de uma cartola, me veio a certeza "esses vão funcionar". Eu estava certo. A dor forte virou uma dor um delta menos forte, mas a qualidade de vida foi outra. Por que então não me entupir de ópio? Simples, porque não dava, um de seus efeitos indesáveis em mim era paralisar o meu intestino.

Você vai pensar que eu estou mentindo, ou melhor, inventando. Mas não estou. Tenho como provar que foi assim mesmo que aconteceu. Eu mal havia estacionado o tapete de volta à minha sala de estar quando recebi um email coletivo da UFSCar em que se lia "Projeto Ombro". Um estudo sobre dores no ombro estava sendo desenvolvido no Departamento de Fisioterapia da universidade, a mensagem pedia voluntários que se enquadrassem na pesquisa. Meu organismo vivia uma verdadeira revolução dos pés à cabeça. Se eu tivesse que elencar o meu maior sofrimento, com certeza seria a forte dor no braço e no ombro, com direito a varizes estranhas que me assustavam bastante. A falta de ar viria logo em seguida. Escrevi imediatamente um email solicitando a minha

inclusão no estudo sobre o ombro. Descrevi as linhas gerais do tipo de dor que eu sentia, citei a quimioterapia, cliquei no "send" e fiquei muito feliz com isso. Essa eu atribuí ao Buda, independentemente de qualquer coisa, me fez um bem danado demonstrar interesse. Tristemente, nunca tive resposta.

Meses haviam se ado enquanto eu corria contra o câncer. Desde a colonoscopia, lá se iam sete meses! Longos, longuíssimos meses. ava por uma metamorfose danada, as vezes dramática, outras vezes, enigmática. Eu era outro, não restava dúvida. Mais chorão, mais dócil, mais sereno, menos pragmático, mais humano, eu era outro. Sorria mais, dizia "bom dia" a todos, demonstrava mais carinho em casa, não cheguei a pensar em fazer crochê ou bordar panos de prato, mas ficar de molho em casa mexeu bastante comigo. Comprei copos, comprei tapete, bolei mudanças no meu apartamento, curti tudo isso. Domei meus pensamentos com maior facilidade, os bons iam rapidinho para a gaveta e os ruins, direto para o lixo. Lembranças boas eram bem-vindas, lembranças ruins voltavam para o ado sem cerimônia. O verão em São Carlos estava ameno, combinava comigo. No varandão do apartamento dos meus pais eu apreciava por horas, sem fazer outra coisa, o céu nublado e a eventual chuva. Sempre gostei do cheiro de chuva, tenho uma iração enorme pelo barulho, sinto uma profunda paz de espírito. Por falar nele, pena que o céu exagerou um pouco, a água foi demais, mas janeiro terminava com ares curitibanos, com friozinho fora de época.

E, por falar neles, os curitibanos vieram me visitar de surpresa, meu irmão, minha cunhada e meus dois sobrinhos. Obra de Buda, essa sim, não restava dúvida. Faria outros eios de tapete até a Índia, com certeza! Viva o tramadol! Foi uma alegria indescritível, quando no dia vinte e quatro de janeiro, na hora do almoço, descemos até a portaria do prédio para receber meu irmão e sua família. Como eu já disse, o Flavio é um grande amigo, tem todos os vínculos de irmão e mais uma dose, ou duas, de outros quesitos que nos aproximam bastante. Nossa amizade é muito boa e bastante franca, somos muito diferentes, ele tranquilo, eu, paranoico, um caso feliz de diferenças complementares. No trabalho, temos parecerias que funcionam muito bem, alunos em comum, alguns artigos em coautoria, como ele se casou, teve filhos, ralou mais no trabalho, no geral, o Flavio tinha uma certa ascendência em mim. Inverteram-se as idades, e os

papéis, ele me aconselhava e me orientava, eu escutava com respeito, carinho e amor ao meu irmão. A gente sempre escuta sobre famílias em que os membros não se dão, irmão que não fala com irmão, dinheiro mais importante do que tudo, enfim, entre eu e o Flavio, a conivência não tinha preço.

A galera de Curitiba ficou em São Carlos até o dia da minha sétima seção de quimioterapia, logo pela manhã do dia vinte e oito de janeiro, terça-feira, eu fui para a Santa Casa e eles, para a casa deles. O tempo em que ficamos juntos foi perfeito, meus sobrinhos grudaram em mim, cheios de carinho, criança sabe demonstrar o que sente. Tomei um banho de energias positivas ao lado deles. O Caio estava começando aquela faze do "por que?", perguntava tudo, nem sempre era fácil responder.

- Por que está caindo isso no ventilador?

Pois é, de comum acordo, numa tarde de céu nublado, assistimos na TV o filme Apertem os Cintos... o Piloto Sumiu!, uma comédia que fez sucesso no início da década de oitenta. Filme adulto, mas o Caio queria ver, e gostou. Obviamente, não entendeu todas as piadas, principalmente as picantes, mas riu bastante. Ele é muito risonho. Num dado momento, dentro do contexto da narrativa, apareceu em cena um ventilador ligado e merda voando para todos os lados. Estávamos eu, meu pai e o Caio na sala de estar. Deixei a resposta para o vô Freire, professor gabaritado, cheio de títulos e reconhecimento nacional e internacional.

- É que o piloto...

E explicou tudo, direitinho. Para a minha total surpresa, o Caio entendeu, contou a explicação para a minha cunhada, trocou merda por bosta, mas deixou claro que saberia usar o novo ensinamento, em caso de necessidade. Crianças do século vinte e um.

A Laurinha é uma criança meiga, espertíssima para quatro anos e meio. Aprendeu a falar bem cedo, saía com cada uma! Em São Carlos, me pediu um monte de brinquedos, ando sozinha a internet no celular, via o que queria e me pedia, com sorriso travesso. Coisa de criança!

- E, por último, eu quero um celular

Isso mesmo, o esquema de pedir celular emprestado para os adultos não ia tão bem, querer e nem sempre ser atendida na hora, estava começando a pesar na vida da Laura. Chegava a hora de ter o próprio celular. Vale ressaltar que nem a Laurinha era pidona, e nem o Caião vivia dizendo palavrões. Eles eram crianças criadas em um ambiente de liberdade supervisionada de perto, em que tudo era conversado, discutido, e o acordo quase sempre acontecia. Quase sempre! Por fim, a Laura gostava mesmo era da bonequinha baratinha que eu trouxe para ela de Porto Ferreira, no mesmo dia em que comprei meus quatro copos americanos, e o Caio não abria mão de um papo cabeça, bem intelectual, sobre o cosmos, dinossauros, eletricidade, bactérias. Ambos curtiram mesmo foi a piscina do condomínio, avam a tarde toda na água.

Roteiro bom com o pessoal de Curitiba era o gastronômico, tirando a Laura que não estava em grande sintonia com isso, todos gostavam de comer bem. No sábado, fomos a um restaurante à la carte, das poucas opções do gênero em São Carlos. Foi bom, a comida demorou muito além do normal para ser servida, mas estava uma delícia. Valeu a espera. Comi um delicioso filé de peixe à cuiabana. No dia seguinte, domingo de sol, meu irmão fez um churrasquinho no espaço gourmet do apartamento, ficou ótimo, como eu faria exame de sangue pouco depois, por mera demagogia, segurei a boca. À toa, o exame deu ruim e logo falarei nele. O importante desses momentos era o grau de normalidade conquistado, a longa convivência com o câncer era um constante desafio, comandado pela cabeça. Digo e repito, a vida não podia virar uma pausa de lamentos, no menor sopro de vitalidade, era preciso fazer alguma coisa boa para aproveitar. Naquele domingo, o bom foi o churrasco em família, e a tarde

gostosa que eu ei com todos à beira da piscina do prédio. Todo mundo feliz, e eu também. Era isso, a fórmula era essa, minha formação profissional sempre me fez pensar muito em problemas e soluções. Eu começava a entender a nova dinâmica da minha vida, com altos e baixos mais ou menos previsíveis.

Nem tudo foram flores, alguns dias antes da chegada do meu irmão, subi uns lances de escada e perdi de uma só vez meu fôlego, fiquei com uma falta de ar medonha e só não perdi os sentidos porque minha mãe me colocou sentado. A falta de ar continuou, com menor intensidade, mas com aquela impressão de quem veio para ficar. Minha disposição foi à zero, qualquer movimento me cansava, meu irmão ficou preocupado quando me viu desse jeito, mas a presença deles compensava. Repousei o tempo todo, muito bem acompanhado. Na segunda-feira, véspera da sétima seção, fiz exames de sangue pela manhã, e mais uma novidade.

- Senhor, pelo amor de Deus, volte aqui

Esbaforida, a recepcionista saiu do balcão de atendimento e foi correndo em minha direção, só não me assustei com o gesto impetuoso porque não tinha energia para tanto. Saí do laboratório cansado que nem não sei o quê, andava em direção à saída da grande clínica como se fosse um robô comandado por controle remoto, estava feliz, mas caindo pelas tabelas. Buda não tinha nada a ver com isso. Resumo da ópera, meu braço direito estava lambuzado de sangue, o furinho feito pela agulha não quis cicatrizar e eu não notei. Sujei o chão, minha camisa, minha calça, tive a impressão de estar suado, um suor meio gelado, não suspeitei daquela sangueira toda. Justo eu que sou um banana para essas coisas. Sem vitalidade, porém, não houve drama, eu simplesmente não reagia, fui levado para uma sala privativa, fizeram um novo curativo no meu braço, mais parrudo, esperei uns vinte minutos, e fui liberado. Ansioso para reencontrar os meus sobrinhos, feliz da vida. Ainda consegui encontrar ânimo para comprar pão e leite numa padaria antes de voltar para casa.

Nesse período, comecei a notar uma alteração no meu raciocínio, na minha sétima seção de quimioterapia, levei a biografia do Einstein para ler. Tive uma dificuldade danada para entender as belíssimas análises e comentários do autor, um físico de mão cheia que conviveu com o gênio em Princeton, nos Estados Unidos. Brilhantemente, o autor incluiu no texto várias contribuições teóricas do Einstein, inclusive em áreas que conheço, como difusão e radiação (térmica ou não). Eu lia como se fosse um leigo total no assunto, coisa que eu não era. Não bastasse isso, a memória também estava estranha, principalmente para nomes. Acho que a diminuição brusca no ritmo de trabalho me levou a exercitar muito menos a cabeça, na UFSCar, meu dia a dia era dedicado a lidar com assuntos acadêmicos, variando desde textos técnicos até as inevitáveis burocracias, isso e aquilo. Em casa, eu trabalhava lentamente na redação de artigos, fora do convívio com os colegas, e lia muito. Era diferente. Era também o que dava para ser feito, e eu fazia com felicidade. Durante o tratamento, nunca aceitei o fato de viver à margem da sociedade, como um doente terminal, coisa que eu não era. Quando eu melhorava, fazia alguma coisa na rua, uma caminhadinha, um eio de Fusca, o que fosse. Fora de casa.

Cheguei para a sétima seção de quimioterapia, depois de me despedir dos curitibanos, oito quilos mais gordo. Meu recorde de peso, setenta e seis quilos, nunca havia ado dos setenta e quatro. Com um metro e setenta e um de altura, esse peso deixava a minha silhueta bem rechonchuda. Meus índices de DHL, TGO, TGP estavam bem elevados, indicando luz vermelha no fígado e no coração. Não fui liberado de imediato para a seção, tive que ar por uma consulta médica antes. Por fim, me foi istrado metade da quantidade de medicamento, um esquema mais leve e muito bem-vindo. Eu realmente estava um bagaço, havia também o aneurisma que sempre preocupava. Com menos química, a expectativa era a de que tudo seria mais brando. A etapa da Santa Casa terminou à uma e pouco da tarde, voltei para casa, naquele dia, com dois desafios. O primeiro, era melhorar os índices que estavam altos, o segundo, perder uns quilinhos. Sempre gostei muito de comer, desde a primeira colherada de mingau de Cremogema, quando pequeno, até o delicioso churrasquinho do Flavio, o prazer de mastigar era grande. A quimioterapia alterava meu paladar ao longo de uma semana, nesse ínterim, eu perdia peso. Depois, compensava, comia um monte. Sem minha corridinha diária, tudo dependia da alimentação.

Na noite do dia vinte e oito de janeiro, com o infusor na cintura, cheio de saudades dos curitibanos, mas feliz com a vinda deles, fui dormir logo após assistir uma comédia na TV. No período da tarde eu havia acabado de ler a biografia do Einstein, fiz refeições leves e me sentia bem. A quimioterapia estava nitidamente mais leve, os efeitos bem mais toleráveis. Tive menos dores no braço, meu paladar alterou um pouco menos, a indigestão estava mais tranquila, eu respirava melhor e meu coração não disparava a troco de nada. A taquicardia foi mais branda. Luz no fim do túnel! Assim, desse jeito, seria bem mais fácil continuar o tratamento. Dormi muito bem, direto, uma noite gostosa, calma, não me levantei nenhuma vez para ir ao banheiro, algo fantástico, com o infusor, era a primeira vez que isso acontecia. Pouco antes de acordar, sonhei com um bilhete escrito em um pedaço de papel. No sonho, eu me abaixava para pegar o bilhetinho no chão, no breu de sempre, em um ambiente que pouco importava. A escrita era clara, muito nítida, o recado era direto. Não procurei interpretar a origem do conteúdo, fiquei muitíssimo feliz ao acordar, animado e disposto, nada mais, nada menos, só isso. Nem tudo precisava ser explicado, há momentos em que é preciso viver a experiência, sem interrogações, só exclamações. No bilhete se lia "O Jorge José ou por aqui".

TUDO INDO

Jorge José foi o marido da minha tia caçula por parte de mãe, pai dos meus primos Junior e Marina. Fez carreira na Rede Globo e já foi citado anteriormente, personagem importante no meu verão de oitenta e cinco, o melhor de todos. Sempre teve um xodó especial pelos meus pais, por mim e pelo meu irmão. Enquanto ele viveu, nossa interação foi muito boa, é fácil gostar de quem gosta da gente. Infelizmente o JJ, como era conhecido, faleceu muito novo, vítima de complicações causadas por uma gota implacável e uma diabete persistente. Agravados por um controle alimentar que ele não fazia. No dia dois de fevereiro de dois mil e treze, um dia antes do meu aniversário de quarenta e um anos, o Jorge descansou. Lá se iam praticamente sete anos, apesar do bom relacionamento, eu não pensava com frequência no JJ, as lembranças eram bem esporádicas, e boas. Ao descrever meu verão de oitenta e cinco, me veio à memória o Jorge e a saudade foi inevitável. Não sei se foi esse o motivo do recado, uma visita induzida pela minha própria cabeça, ou se houve, de fato, um teor espírita nisso tudo. Não sei, e continuarei não sabendo, não vou buscar explicações, o importante foi o efeito benéfico do sonho. E a noite gostosa de sono profundo e revigorante. Se o Jorge José esteve realmente ao meu lado, registro aqui o meu agradecimento e a minha gratidão.

Não pretendo levantar bandeiras religiosas, nem destacar muito a minha crença no espiritismo. A não ser que eu fique pelo meio do caminho e tenha que terminar esse livro via psicografia. O que depende de autorização. O sonho com o bilhete foi bastante nítido, cheio de percepções físicas, como o ato de me inclinar para baixo, pegar o pedaço de papel no chão e ler a mensagem. Além disso, de fato, tive uma noite muitíssimo tranquila, de sono profundo, sem as várias idas ao banheiro, algo incomum quando estou com o infusor. Para mim, honestamente, era indiferente, tanto fazia se houve a visita de um espírito que me queria bem, ou uma experiência motivada psicologicamente, não importava. Foi bom, ponto final. Eu estava precisando. A batalha contra o câncer requer fôlego, ânimo e, principalmente, paciência. A vida a em câmera lenta durante o tratamento, o ritmo muda muita, a normalidade vira uma pequena fração do que era antes. Semana sim, semana não, eu fazia quimioterapia, nas

folgas, a luta era pela tal fração de normalidade, uma verdadeira higiene mental. Às vezes, nos momentos mais difíceis, tive a impressão de entrar em módulo de espera, uma contagem regressiva que parecia ser infindável, até a tão sonhada alta do tratamento. Não tinha como viver assim, a rigor, eu não sabia ao certo quanto seria esse tempo de espera. Enquanto isso, a vida tinha que continuar. Da melhor maneira possível.

Tirei o infusor às três e vinte da tarde de trinta de janeiro. Só havia um paciente quando entrei na ala de quimioterapia da Santa Casa, algo bastante raro. Uma senhora recebia cuidados enquanto eu aguardava o ritual da alforria. Tirar a pochete com o infusor era um momento ansiosamente esperado, de grande alívio. A quimioterapia mais leve teve efeitos obviamente mais leves. Eu precisava dessa janela, janeiro estava sendo o mês mais duro do tratamento, por mais que eu tentasse ser racional, o sofrimento me pegou de surpresa. Tudo foi mais ameno na sétima etapa, as fortes dores no braço e no ombro foram mais toleráveis, não tive muita febre, nem náuseas, perdi um pouco do paladar, mas conseguia comer com um certo prazer, ia ao banheiro regularmente, enfim, um sopro de vigor para quem precisava fortalecer o ânimo. Continuava bastante cansado, mas com menos falta de ar. Com mais calma, comecei a entender melhor os impactos no meu organismo, descobri, por exemplo, que frutas e doces não perdiam tanto o gosto. Durante a semana de quimioterapia, tudo o que eu mastigava tinha gosto de papel. Para quem sempre gostou de comer, isso era um verdadeiro castigo. Aos poucos, fui vendo o que poderia ser feito para amenizar as coisas.

Vamos lá, salaminho não combinava com quimioterapia, mas tinha gosto. Melhor, impossível. Massas e pão branco, não. Pão integral era menos pior. Frutas, como já dito, tinham gosto, só que não sou grande fã delas. Nem de saladas. Nunca fui. Felizmente, geleias de frutas tinham gosto bom, mas eu precisava fazer uma dieta, ou seja, nada de geleia. Minha mãe fez biscoitos de fécula de batata que tinham gosto, derretiam na boca e não pareciam de papel. Torradas tinham um pouco de gosto, mas só na primeira mordida, ao mastigar, o gosto ia embora. O prazer de comer também. Arroz perdia o gosto, feijão, não. Em compensação, o feijão me dava indigestão. Purê de batata parecia creme de chuchu. Tomate com limão tinha gosto, de limão. Cebola tinha gosto também,

alho não ficava atrás, mas para quem havia recém operado o intestino, a combinação não era boa. Pimenta, nem pensar. Farinha ajudava, sempre ela, importante ingrediente na minha vida, um farofeiro de carteirinha. Ricota tinha gosto de ricota, queijo prato e mussarela também tinham gosto de ricota. Nhoque à bolonhesa tinha gosto de molho de tomate, só até a primeira mastigada. Depois, não tinha gosto de nada, massa branca, como eu disse, era assim. Iogurte ia bem, granola também, o duro era a parte psicológica, era preciso muita meditação para considerar isso uma refeição. Pizza eu me recusava a comer nesses períodos, tamanho era o meu respeito por ela.

A constipação foi tranquilamente controlada com muita hidratação, mamão e ameixa de três a quatro vezes ao dia, e laxante antes de dormir. Nenhum mistério, fácil de tudo, meu intestino funcionava bem, uma preocupação a menos. Tudo começou por causa dele, o cocô era, sem sombra de dúvida, o grande protagonista da minha nova realidade. Quando fazer cocô virou uma prova olímpica, acendeu-se uma luz vermelha que seguia acesa sem prazo determinado para apagar. Sonhei com a luz verde diariamente, um sonho permitido e gostoso. Depois da luz verde, vida plena, melhor do que antes, com a bagagem da quimioterapia, da cirurgia, do sofrimento vencido. Usando os ensinamentos do período de longo convívio com uma doença implacável, mortal. Aproveitando melhor o tempo, vivendo mais o presente e deixando o futuro chegar, sem pressa. Um novo homem nascia a cada dia do tratamento, uma gestação as vezes complicada, um renascimento que me foi imposto e que eu aceitava como podia. De certa forma, eu pagava uma conta ainda vivo, sofrimento do corpo sem sofrimento da alma, assim eu pensava. Talvez fosse mesmo mais interessante ar por isso em vida, aparando arestas aqui e ali, caindo e levantando, eu me redescobria.

Quinze não tinha metade, então, a sétima seção de quimioterapia foi um marco. A dor no braço direito, ombro, axila, pescoço, venceu a batalha, mas não a guerra. Seria uma companhia certa e indesejável até o final do tratamento. Realmente, desde que o cateter foi implantado em mim, eu sentia dores, numa faixa que ia de um incômodo chatíssimo à uma dor excruciante. Eu teria que encontrar um meio termo dentro desse casamento temporário. Calma, paciência, serenidade ajudavam. Quando eu notava uma alteração mais significativa no

meu comportamento, devido à dor, procurava pensar no braço esquerdo, que não doía. Assim ficaria o direito depois da alta, era o que eu pensava. Reclamei muito da dor no braço, fiz exames específicos e nada foi detectado. Sou engenheiro, se um equipamento opera de forma patológica, mexe-se aqui e ali, altera-se a pressão, a temperatura, troca-se uma peça, e assim vai. Tudo se resolve. Com o organismo humano, o buraco era mais embaixo, as variáveis eram incontáveis, as restrições também, "não era para sentir dor", era o que eu escutava do pessoal de saúde. Não era, mas eu sentia, e muita. Nas crises, não poupei remédios para dor, só com o incômodo eu conseguia me virar. Não era o ideal, mas era o possível.

Fiz um estudo sobre a dinâmica da minha dor. Sempre era pior no período da manhã, logo depois que eu acordava. Uma noite eu dormi de barriga para cima, me policiando para permanecer nessa posição, e a dor matinal foi mais tolerável. Anotei o resultado. Deitado, eu sofria menos. Anotei o resultado. A rigor, sob efeito de medicamento para dor, só o pescoço e o ombro não aliviavam. Apoialos em um travesseiro era o jeito. As dores na axila direita e no ombro eram bastante amenizadas com os remédios, sofrer, nem a pau. Toda vez que a dor beirasse o inável, tomaria a minha dose de ópio e ponto final. Nos casos mais leves, medicamentos mais leves resolviam. Aproveitei o embalo e mexi meu braço, com cautela, para baixo, para cima, para um lado, para o outro. Anotei os resultados. Fiz o mesmo com o pescoço, sempre anotando as alterações na intensidade da dor. Realmente, não tinha posição melhor para o pescoço do que apoiado por um travesseiro ou almofada. Fora de casa, nas minhas saidinhas mais do que necessárias, o incômodo aparecia, eu usava uma tipóia para apoiar braço. Doía bastante, mas dava para aguentar. A falta de paladar e as dores mais agudas na região do cateter atuavam juntas, um complô para me derrubar. Minha arma contra elas era a cabeça, que começava a ser usada especificamente para isso.

Encontrar um meio termo para conviver com a dor no braço e no ombro era vital. Em momentos de raiva e frustração, cheguei a chamar essa dor de castigo. Não era, felizmente, a razão falava mais alto nessas horas, desnecessárias para quem vivia o que eu vivia. Não era castigo coisa nenhuma, mas sim, um desafio. Quando esse desafio veio com mais força para cima de mim, me desliguei mais

facilmente das questões do meu trabalho, de imposto de renda, de política, talvez fosse isso, não tinha como saber ao certo. Pensei em solicitar a retirada do cateter, essa era uma dúvida que eu não tinha, a da origem da dor. Sem o cateter, não haveria o sofrimento. Conhecendo bem os trâmites na área de saúde, entretanto, isso levaria meses, ou seja, era melhor eu aguentar o tratamento como estava. Deitado, o ombro doía menos, então, deitado eu ficava. Montei um verdadeiro escritório na ampla cama de casal do quarto de hóspedes onde eu me alojei. No confortável apartamento dos meus pais, dava para levar uma vida muito boa, enquanto eu me curava do câncer. Respirar calmamente pelo nariz, de boca fechada, ajudava. Procurei, então, fazer menos esforço físico para respirar menos pela boca. Rumo à vitória final.

Cheguei aos quarenta e oito anos no dia três de fevereiro, uma segunda-feira de sol em São Carlos. Acordei cedo, saí para uma caminhada curta, morri de dor no ombro, mas valeu a pena. Saber que a dor acalmaria logo em seguida, foi um consolo. Era bom demais estar na rua, a região do Shopping de São Carlos, onde ei a morar, era relativamente nova, dela, dava para ver o final da cidade e a bela região rural que completava a paisagem. Meu foco nessa voltinha ao ar livre foi a higiene mental, muito mais do que o exercício em si. Para quem tinha o hábito de correr diariamente, com oito quilos a menos, a caminhada poderia parecer um prêmio de consolação, só que não era. Era sim um verdadeiro presente, embrulhado em papel de seda, daqueles que a gente tem taquicardia ao abrir. Minha felicidade escondia o contexto que eu vivia, algo que, a princípio, eu achei que tiraria de letra. Enfim, meu aniversário começou bem, dei conta de uma volta na quadra, que incluía três condomínios de casas, e ainda conferi na garagem de um prédio, um carro que eu estava de olho. Isso mesmo, há tempos eu acompanhava um velho Ford Landau azul marinho se acabando, sendo consumido lentamente pelo tempo, estacionado num prédio próximo ao dos meus pais. Ainda tinha jeito de recuperar, parecia.

Meu paladar ainda estava comprometido, no café da manhã eu não tive dúvida. Tinha pedido para a minha mãe fazer umas pizzas caseiras que ela caprichava e eu adorava. Desisti das pizzas assim que senti o gosto de papel em tudo o que eu mastigava. Pizza sem gosto não dava, junto com estrogonofe e bife à parmegiana, era meu prato preferido. Almoçaria e jantaria pizza pelo resto da

minha vida, sem problema. Estrogonofe e bife à parmegiana também. Meu ganho de peso foi justamente compensando a semana sem paladar e de indigestão. Sempre gostei de comer, meus eios sempre incluíram roteiros gastronômicos, desde as coxinhas douradas de Bueno de Andrada, até os pratos exóticos e picantes que eu comi quando fui à China, comida não podia faltar, era muito mais do que uma simples necessidade alimentar. Em dois mil e dezessete, meu aniversário foi na belíssima Buenos Aires, comi um bifão de chorizo que daria para me manter nutrido até o solstício de inverno daquele ano. A gordurinha, que eu nunca deixei de comer, reforçava essa minha afirmação. Entre um gole e outro de Quilmes gelada, carne e gordura faziam a festa na minha barriga que, naquela época, era bem menor do que a atual. Os festejos dos meus quarenta e oito anos foram bem diferentes, lembrar do ado glutão em solo porteño foi muito divertido. Empanadas e alfajor completaram aquele dia de comilança na Argentina.

No dia seguinte ao meu aniversário, quatro de fevereiro, ei por uma perícia na Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas (ProGPe) da UFSCar, às nove e pouco da manhã. O procedimento foi rápido, ainda bem, a partir da quinta seção de quimioterapia, a tal da espera era complicada para mim. Felizmente, cheguei ao prédio da ProGPe e fui prontamente atendido. Meu pai me acompanhava.

- O familiar também solicitou licença médica?

A médica que me atendeu tinha em mãos meu processo de afastamento, com as informações relevantes sobre o meu caso. Tanto eu quanto o meu pai não entendemos muito bem o propósito da pergunta, era evidente que somente eu havia solicitado a licença médica. Num primeiro momento, essa colocação fora de lugar me deixou bastante desconfortável, a perícia em si já era um incômodo suficiente para me aborrecer, fazia parte dos procedimentos legais, mas era desumana em vários aspectos. Parecia uma vistoria de carro velho. Valia lembrar, eu tinha câncer e não, unha encravada.

O tempo me fez assimilar algumas lições de vida que me serviam enormemente, e eu sabia disso. Antes mesmo do câncer, que trouxe novos ensinamentos. O fato de poder estar errado, de eventualmente não ter razão em alguma situação, era algo que eu tinha plena consciência. Num ambiente corrosivo e altamente poluído pela empáfia, como o acadêmico, nunca assumi o papel do soberano detentor de uma procuração divina que me colocava acima do bem e do mal. Mesmo convencido da razão, eu não deixava de questioná-la, ciente da possibilidade de estar errado. De olho na médica, num primeiro instante, meu intuito foi o de me defender, sendo curto e formal nas falas. De acordo com o meu julgamento, eu estava diante do inimigo, que parecia querer me prejudicar. Ou, eu poderia estar errado, julgando tudo ao avesso. De fato, a pergunta inicial feita pela médica ficou solta no ar, tanto eu quanto o meu pai ficamos sem entender, mas o mal-estar causado não tinha respaldo suficiente para as deduções que eu fiz. Ao longo da perícia, que durou pouco mais do que quinze minutos, a médica mostrou-se solidária, compreensiva e fez de tudo para me ajudar. Pensei uma coisa e aconteceu outra, felizmente, mais uma vez, eu estava errado.

A perícia era parte dos trâmites do meu afastamento, tirando ter que levantar a camisa a pedido da médica, para mostrar as cicatrizes na minha barrigona, não ei por nenhum outro constrangimento. Saí do procedimento um pouco decepcionado com a UFSCar e com as leis trabalhistas, sentindo-me, como já dito, um automóvel após a vistoria obrigatória. Sentimento que logo mudaria.

- Cuide-se, professor, que Deus o acompanhe!

A funcionária na recepção da ProGPe compensava em simpatia e humanidade, voltei rapidamente a me sentir um privilegiado pelo bom emprego público que eu tinha. Fazia tempo que eu não ia ao lindo campus da UFSCar, foi impossível não sentir saudades da minha rotina de trabalho, do ambiente acadêmico tão variado e fascinante, o novo homem que eu era, olhava para tudo de forma diferente. Enquanto fui atendido pela médica em seu consultório, funcionários cortavam a grama do lado de fora, com aquelas máquinas barulhentas, algo que já tive que aturar em algumas das minhas aulas. Eu falo alto e forte, às vezes,

desnecessariamente. Sempre que foi preciso, minha voz superou os cortadores de grama e a aula continuou. Ao sair da perícia em direção ao estacionamento, olhei ao redor procurando registrar detalhes da imagem. Como um click na minha cabeça, senti uma contagem regressiva começando, rumo a minha volta à UFSCar. Luz no fim do túnel!

Os dias rumaram até a oitava seção de quimioterapia com bem menos indisposições, metade da dosagem, metade dos efeitos. Consegui sair um pouco mais e com mais qualidade. Aproveitei a maré favorável para a higiene mental que eu tanto precisava, ainda estava longe, mas, repito, já dava para ver um pouquinho da luz no fim do túnel. O único inconveniente nesse período foi a tosse, com direito a uma dorzinha bem chata nas costas. Cheguei a suspeitar de catarro no pulmão, ou mesmo de um princípio de pneumonia, visto que ei uns dias com uma leve febre de trinta e oito graus. A febre era comum no tratamento, mas não no período de folga. O longo convívio com o câncer mexia diariamente com a minha essência humana, ainda tinha muito o que aprender, mas as lições impostas pela doença não avam em branco. Sempre fui muito contido em demonstrar afeto, e nada contido em demonstrar ira. A doença causou uma inversão nesse cenário, ei a sentir mais necessidade de demonstrar bons sentimentos e de conter a minha raiva. Domar pensamentos foi mais difícil, mas acredito que essa era uma tarefa complicada para todo mundo. Pensamento é pensamento, fluido, move-se livremente sem amarras, para o bem, ou para o mal.

O ano de dois mil e vinte começou com muito agito, tanto na minha vida quanto no mundo inteiro. Havia algo de estranho no ar. Desde o início de janeiro, havia sido reportado algo em torno de trinta e cinco mil casos de infecção pelo coronavírus, em mais de vinte e oito países. A maior parte dos casos ocorreu na China, que contava com mais de novecentas mortes. Número que aumentaria vertiginosamente. O vírus era altamente letal e assustava, diante dele, crianças, idosos e gente como eu, de baixa imunidade, caiam que nem peças de dominó. Acompanhei os noticiários sobre o vírus sem preocupação, mas me importava e queria me manter informado. A coisa estava feia, o vírus era uma mutação inteligente, altamente contagioso, isolou a China do resto do mundo, mexeu com a economia do gigante, matava sem dó nem piedade. O mundo se precaveu,

apesar do perigo, a situação parecia bem controlada, sem bola de cristal, não dava para saber qual seria o desfecho dessa trama. Eu me cuidava, sem paranoia, mas com atenção. O cansaço extremo, presença confirmada na minha vida em dois mil e vinte, me deixava mais mole e sereno, era fácil conter as minhas reações. Esgotado nessa lassidão, eu respirava profundo, de suspiro em suspiro, enchia meu pulmão de ar, calmamente. Não tinha outro jeito, mesmo com metade da dosagem, meu ritmo de vida diminuía a cada seção de quimioterapia. Torcia para que o covid-19 não assombrasse o nosso país.

Não havia casos dessa misteriosa gripe aqui no Brasil, estávamos a uma distância segura, do outro lado do mundo, bem nos trópicos. A imprensa demonstrava preocupação com a possibilidade de uma eventual epidemia, iríamos sofrer bastante por aqui, o perfil humano do atual presidente brasileiro assustava, ele parecia um híbrido do Donald Trump com o Tiririca. Lembro-me de quando ele afirmou que no governo dele, índio não teria nem um centímetro de terra, assim, do nada, falou por falar. Obviamente ele quis dizer um centímetro quadrado de terra, não que isso fizesse alguma diferença em sua cabeça. Popular vereador pelo Rio de Janeiro e deputado federal com vários mandatos, o presidente de extrema-direita teve uma trajetória política de pouca expressão, conhecido nacionalmente por se meter em polêmicas com a esquerda e por ser favorável ao porte de armas de fogo, acabou se elegendo nas eleições de dois mil e dezoito, para estupefação de gente como eu. É verdade que o povo já estava de saco muito cheio com a esquerda, teve também a comoção em torno da facada durante a campanha eleitoral, o candidato esfaqueado subiu nas pesquisas eleitorais. Só que sondagens são sondagens, eu particularmente fiquei para lá de surpreso quando o resultado final das eleições confirmou o nome do atual presidente. Achei que o brasileiro fez uma aposta de risco, independentemente de qualquer ideologia de direita ou de esquerda, assumia o comando do país um político que, na minha opinião, era incapacitado para o cargo.

No dia dez de fevereiro fui fazer meus exames de sangue antes de encarar a oitava seção. Chovia muito, aliás, as chuvas no estado de São Paulo castigavam, mais uma vez, tive que percorrer um caminho alternativo. Já no laboratório, assim que meu nome foi chamado para a coleta, acabou a luz. Bem na minha

vez! Parecia coisa combinada, a enfermeira chegou a brincar comigo.

- Se o senhor topar, tiro o seu sangue na calçada!

Brincadeiras à parte, topei na hora, eu não podia esperar muito, o resultado tinha que sair no mesmo dia para que eu pudesse fazer a minha oitava seção tranquilamente, no dia seguinte. Não fui para a calçada propriamente dita, com o empenho típico do pessoal de saúde, meu sangue foi coletado com o auxílio de uma lanterna de celular. Todos cooperaram, incluindo minhas veias castigadas pelo tratamento. Emocionado com o ato de humanidade, pensei comigo mesmo, eu tenho que mudar, eu preciso ser diferente. O lado bom e leve da vida era reservado para pessoas desencucadas, sorridentes, apesar das mudanças, eu ainda era muito complicado, era mais do que hora de descomplicar.

Enquanto isso, o mundo seguia estranho, com mortes e assassinatos cruéis, pessoas surgindo e sumindo nas milícias do Rio de Janeiro, filha matando pai, mãe e irmão por pouco dinheiro, a monstra do ABC matava, com auxílio da namorada, e não se arrependia. A quimioterapia seguia, me detonando em suaves prestações, mas me livrando do câncer. Sob protestos da natureza, muita chuva, muita neve, muito calor, muita seca, muita queimada, muito tudo, em cima da gente. Uma conta cara a ser paga. Os hemisférios temiam, os gringos não, Trump despontava como provável vencedor das eleições americanas. O mundo estava cada vez mais próximo da truculência dos Estados Unidos, ninguém escava ileso à tirania do Tio Sam. Viramos um imenso México. Por aqui, notícias boas, só as do futebol feminino da Ferroviária, mesmo assim, para entusiastas do interior paulista, como eu. De resto, só desencontros, frases mal ditas por gente maldita, bestialidade aclamada pela burrice humana, intransigência, fanatismo, sociedade dividida, chão de areia movediça. A medida em que o tratamento seguia, eu me distanciava disso tudo, sem indiferença. Não tinha como eu me engajar numa cruzada pelo bem, se eu mal me aguentava em pé. ei a rezar pelo mundo.

QUASE METADE

Fui para a oitava seção de quimioterapia com uma certa empolgação adicional, aria da metade do tratamento. À essa altura, eu já me sentia a própria vovozinha da Chapeuzinho Vermelho, frágil como um poodle. Dane-se o lobo mau. Os pensamentos continuavam poluídos, vez ou outra eu me pegava no meio de uma verdadeira tempestade mental, de fúria até. Havia muito estímulo. Em compensação, a meu ver, eu externava mais facilmente atitudes nobres e humanas. Chorava feito manteiga derretida, até comerciais de ração animal me emocionavam. Sinal de que eu ainda não havia superado completamente o drama do cachorrinho perdido no episódio de Patrulha Canina, já contado aqui. Chovia em São Carlos, nenhuma novidade. As ruas estavam molhadas e o trânsito estava ruim, ciente do dever, sonado, morrendo de saudades da cama, eu cruzava as esquinas, calmo por um lado, ansioso por outro. Feliz acima de tudo. A temperatura estava bem abaixo da esperada para o mês de fevereiro, eu me sentia bem assim, calor e quimioterapia não formavam um casadinho perfeito tipo goiabada com queijo, longe disso. Levava comigo os resultados dos exames, com índices cada vez piores, mas dentro do esperado para o meu caso, um livro sobre a guerra do Paraguai, identidade, carteira do plano de saúde, e sorriso de orelha a orelha. Não via a hora de ar da metade do tratamento, bobagem, mas era importante para mim. Sou assim, não tem jeito. A Santa Casa estava mais cheia do que o usual, acho que havia muitas pessoas com problemas respiratórios. Mal sabia, mas eu também fazia parte desse grupo.

- Você não fará quimioterapia essa semana

Tomei uma ducha de água fria diante da médica que me atendia, uma bela jovem, bem articulada e irradiante. Ficar assanhado era engraçado, quando eu mal me aguentava em pé. Puxa vida, eu havia acabado de ar por uma perícia na UFSCar, que me considerou inapto. Mais uma reprovação. Fazer o que! Enquanto me lembrava do dia em que eu virei carro velho e ei por vistoria veicular no meu trabalho, na ala de quimioterapia da Santa Casa, eu era dispensado da oitava seção por uma razão muito simples, estava com

pneumonia. No fundo, eu já suspeitava. Minha baixa imunidade somada ao vai e vem climático me pregaram essa peça. Desde sexta-feira, sete de fevereiro, eu me sentia estranho. ei a tossir bastante e tive febre constante de trinta e oito graus. Era pior à tarde. Achei que isso fosse um novo sintoma da quimioterapia, as febres eram usuais na semana de tratamento, mas era a primeira vez que elas aconteciam no período de folga. No comparativo, o mal-estar era muito menor do que o sofrimento de janeiro, eu tirava de letra. Tinha dificuldades para respirar porque minhas costas doíam muito, como se estivesse com uma espada atravessada na carne. Eu temia, mas não queria acreditar que estava acometido por uma pneumonia. Não naquela época, em que o mundo via atemorizado o avanço do coronavírus.

Não era a primeira vez, em oitenta e sete, eu tive pneumonia e recaída, fiquei quase um mês sem sair de casa, tinha quinze anos. Naquela ocasião, perdi mais de dez quilos, eu era parrudo, fiquei magro. Continuei magro por vários anos, depois de defender meu doutorado, comecei a trabalhar, fui ganhando uns quilinhos, sem notar, até ficar gordinho na época do câncer. Tudo bem. Mas, voltando ao que interessava, vale ressaltar que a vida de quem tinha câncer era assim, imprevisível. Assim que as enfermeiras da quimioterapia notaram a minha tosse seca, fui imediatamente encaminhado para a médica oncologista que, por sua vez, imediatamente solicitou um raio-X de urgência. Esperei uns minutos até o exame ser autorizado pelo plano de saúde, fiz o raio-X, o resultado não demorou nem dez minutos para sair, meu pulmão esquerdo estava realmente bem infectado, ou seja, não tinha como eu fazer a oitava seção. Fui, então, liberado para voltar para casa, com uma receita de antibióticos e de cortisona no bolso. Não reclamei, nem me revoltei, a injeção de medicamentos fortes para o tratamento do câncer iria me derrubar com aquela pneumonia. Era melhor eu me curar primeiro para só depois pensar em ultraar a marca histórica, metade do tratamento.

Era assim, aliás, foi assim desde o começo, que nem as coloridas Matrioskas, aquelas bonequinhas russas. Você abre uma, tem outra dentro, abre a outra, encontra mais uma, cada vez menor, até a última, bem pequena. Nunca se sabe ao certo quando vai acabar. Quando eu não previa mais surpresas, veio a pneumonia. Seguindo a analogia com as bonequinhas russas, veio a pneumonia

e, junto com ela, mais outra surpresa, a dor no ombro foi parcialmente embora. Desconfio que a pausa na dor tenha a ver com os antibióticos e a cortisona, e a dose de quimio que eu deixei de tomar, mas me surpreendi mesmo assim. No rodízio de problemas, entrava em cena a pneumonia, saía a dor chata no ombro e no braço direito. Justo o braço que eu mais usava. Obra do Buda de Hyderabad? Muito provavelmente, acho que conquistei a simpatia do Buda diferente, em pé e levemente gordo, mais magro do que eu. Sentia-me dolorido, como um recém atropelado, ou um lutador estatelado na lona, mas o sufoco era menos intenso do que o perrengue de janeiro. Brincadeiras à parte, se evoluísse, a pneumonia poderia ser letal, eu tinha que me cuidar bem. Morrer por doença me parecia triste demais, eu não queria isso para mim, ter um fim eternamente associado ao calvário de uma enfermidade, qual fosse. Queria um fim como o de Nair Pequena, da Estação Primeira de Mangueira, que morreu na avenida, sambando, durante o desfile das campeãs do carnaval de mil novecentos e setenta. Há cinquenta anos! Uma morte para sempre lembrada com alegoria, ornada de cor, sem lamentos, ao som do batuque do samba, com muito suor, confete e serpentina. De duas, uma, ou morrer de velhice, ou morrer enquanto eu dormia, depois de uma noite especial. Era o que eu queria, em suma, uma morte feliz.

Sempre gosto de salientar que quando se está debilitado, tudo fica mais difícil, a batalha torna-se mais dura. Na altura do campeonato, a quimioterapia já tinha me detonado a ponto de dificultar bastante a minha vida. Eu seguia em frente, aproveitando os momentos favoráveis, mas qualquer coisinha me derrubava. Já não assistia mais filmes tristes, nem noticiários pesados, evitava ar o email da UFSCar porque só tinha bucha. Havia o ministro da educação, de sobrenome judeu e sangue nazista, querendo acabar com a gente, nadando de braçadas, tirando o sarro das universidades que nada faziam a não ser meros protestos bem superficiais. Nada eficazes para conter um bobo da corte que brincava com coisa séria, a mando do Capitão Gancho, presidente do Brasil. Estressar, xingar, bradar, dar murro em mesa, não seria o caminho certo. Beicinho e carinha feia tão pouco. Endurecer, pero sin perder la ternura jamás, era a dose certa. Afinal, o Capitão gostava do ministro, eram almas gêmeas, dois broncos fecais que nasceram um para o outro. Pai dos irmãos metralha, ele também gostava muito da namoradinha do Brasil, do meio ambiente em chamas, de índios ao molho pardo, de gays e de lésbicas en el paredon, do Palmeiras e, se não bastasse, tinha simpatia pelo Flamengo. Que loucura! Ressuscitou das tenebrosas trevas a Guerra Fria, o AI-5, a Operação Bandeirantes, xingou a mulher do guarda e

ainda botou a bunda dos professores na cadeira do dragão. Era o pior inimigo que o ensino público já teve. Sonhava com uma nação povoada por burros como ele. Uma overdose de desencontros numa só pessoa. Queridinho dos sertanejos, nada mais natural, fã de axé music (aposto), apesar de torcer pelo Brasil acima de tudo, eu simplesmente não conseguia ter simpatia nenhuma pelo presidente. Not my president. Um palmeirense, palmeirense! E contra a minha classe, aí não, violão. A situação era triste e revoltante, mas eu tinha mais o que fazer, tocar adiante o tratamento e continuar vivendo já era o suficiente para me manter completamente ocupado. Qual era, então, o lance desse parágrafo, um surto psicótico contra o governo de extrema direita? Não, era um mero desabafo. Enquanto isso, todos por um, Deus por todos e água no shampoo. C'est la vie.

Por falar nela, eu conheci pessoalmente a namoradinha do Brasil, Regina Duarte, secretária de cultura, muy amiga do José de Abreu, aquele excelente ator que abriu a boca e se, isso mesmo, se fu***, e fugiu. Para bem longe. Um cara de cuca boa, língua afiada, mas que não tinha aquilo roxo. Pois bem, foi em janeiro de noventa e quatro que eu conheci a Regina Duarte, quando fui à Flórida, nos Estados Unidos, fazer um curso de inglês de dois meses. Aconteceu mais ou mesmo assim, eu juntei a minha bolsa de iniciação científica da FAPESP, contei com um "paitrocínio", e viajei para os States. Para a minha total surpresa, numa época em que eu nem sabia o que eram as Matrioskas, no primeiro dia de aulas, dei de cara com a Regina Duarte, nos corredores do Eckerd College de Saint Petersburg. Ela também fazia curso de inglês. Fingi que era colombiano e ignorei a famosa atriz brasileira, estrela de novelas, viúva Porcina de Roque Santeiro, magrinha e miúda, amiga do Capitão, cabeça de camarão. Mas não naquela época. A decisão foi acertada, ela não foi nada simpática com os brasileiros que por lá estavam, como sempre, em grande número. Aliás, meu inglês continuou uma merda por causa disso, falei mais português do que inglês, felizmente, dez anos depois, fiz pós-doutorado no Canadá e aprendi a não ar fome na língua dos gringos. Verdade seja dita, eu estava cagando para a estrela de novelas, só pensava em curtir. Lembro-me que no final do curso, a Regina se apresentou numa peça de escola, encenando a letra da música "Hit the Road Jack", do genial Ray Charles. Os brasucas ficaram orgulhosos, ela mandou muito bem, brilhou sozinha num pequeno palco, diante de um cenário improvisado.

Isso era um fato curioso da minha vida, mesmo morando quase sempre no interior, esbarrei pessoalmente em personalidades de vários quilates ao longo dos anos. Em meados da década de oitenta, almoçando no restaurante Bambu, bem em frente à Praça Coronel Salles, em São Carlos, na mesa ao lado, estava o Chacrinha. Sem a famosa buzina, mas era ele, em carne e osso. Alô, alô Terezinha, tempos depois, eu estava no auditório do Cassino do Chacrinha, graças ao tênue grau de parentesco com a Rede Globo, através do Jorge José, o eterno JJ. Não parou por aí, quando estive em Vancouver, no Canadá, fazendo meu pós-doutorado em dois mil e quatro, encontrei o Kelly Slater, o maior surfista profissional de todos os tempos, cruzei com ele numa região próxima de onde eu morava, e ele me cumprimentou. Ainda no Canadá, em dois mil e quatro, ou no ano seguinte, caminhando sem compromisso num domingo, nas cercanias da University of British Columbia, fui abordado por um engravatado que, com um gesto de mão, pediu para que eu parasse na calçada. Havia três carros se deslocando lentamente na rua, do primeiro, saiu esse cidadão. De um dos outros dois carros, não me lembro qual, desceu o Dalai Lama, ou um sósia igualzinho a ele, famoso também, com direito a forte esquema de segurança. Onze anos depois, em dois mil e quinze, vi o Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai, na Universidad del Pais Basco, em Bilbao. Esse eu não tinha dúvidas, era ele mesmo, tinha ido ao País Basco espanhol para dar uma palestra. Parece que era descendente de bascos.

No início de oitenta e nove ou de noventa, logo após o começo das aulas, fui a uma calourada organizada pelo DCE da UFSCar. Sentia-me o próprio universitário. Na época, o prédio do DCE ficava no centro da cidade, numa casa bastante antiga. Assim que cheguei, dentro do recinto, havia uma garota muito bonita cantando sozinha, acompanhada somente pelo violão que ela mesma tocava. A voz era incrivelmente potente, meio grito, meio rouca, fez o maior sucesso naquela noite.

- Quem é essa garota?

Eu não conhecia ninguém, incluindo o calouro careca que tinha cara de perdido

igual à minha, a quem fiz a pergunta.

- Ela é de Brasília, uma tal de Cássia Eller

A tal da Cássia Eller cantava bem pra chuchu, só fui embora da festa na hora em que ela parou de cantar. Tempos depois, aquela cantora estourou nas paradas de sucesso fazendo um dueto com o Edson Cordeiro na música Satisfaction dos Stones. Cássia Eller dispensa apresentações, fui e sou fã dela, no finalzinho de dois mil um, preparando as malas para voltar ao Brasil depois de um tempo na França, fui pego de surpresa ao saber de sua morte prematura. Jamais esquecerei da garota de Brasília, que encantou universitários há mais de trinta anos, em São Carlos.

Lembranças me faziam muito bem. a rápido, o tempo voa, você vai ver, logo estará curado. Eu escutava isso o tempo todo. Não ava rápido coisa nenhuma, muito pelo contrário, demorava um monte. O tempo não voa para quem está convivendo com uma doença que debilita como o câncer. Isso não era um problema, fazia parte do enxoval, sem a normalidade plena, aquela que circula do lado de fora, nas ruas, os minutos demoravam para ar. Minha vida parecia seguir em câmera lenta, já disse isso quinhentas vezes, eu tinha então que me curar da pneumonia para continuar com o tratamento. Mais uma vez, um desafio para a cabeça, primeiro, o de aceitar o revés, depois, o de não lamentar. A energia vital diminui muito, era preciso otimizar os gastos, cortar demandas e manter o equilíbrio. Acamado, eu lia ainda mais, escrevia um pouco, e lembrava do ado. A vontade de sair nas ruas sem me sentir debilitado, vulnerável a tudo, era difícil de controlar, mas eu dava um jeito. Meu caso não era extremamente grave, eu tinha a perspectiva da cura, era preciso olhar adiante com otimismo. Tanta gente saudável encarcerada, amontoada em celas escuras, tanta gente doente e entrevada, aguardando a chegada da morte em leitos de hospitais. Eu era um privilegiado, manter o vigor mental não era uma tarefa tão complicada. Como já disse, eu começava a ver a luz no fim do túnel, a rigor, tanto para frente, quanto para trás. Ainda era fácil lembrar da vida imediatamente antes do câncer.

Mais fácil ainda era voltar para o ado distante, quase esquecido, ressurgido das cinzas para o meu deleite. Não adianta, eu não consigo ser linear, não combina comigo. Linearidade é o seguinte, uma propriedade de relação ou função matemática que pode ser representada graficamente como uma linha reta. Fácil, simples e direta. Minha mente, no entanto, funciona em zigue-zague, minhas memórias, então, nem se fala. A febre da pneumonia era um estímulo adicional. Na semana em que eu me recuperava da pneumonia, enchentes assolaram a grande São Paulo, as piores em trinta e sete anos. No período em que trabalhei na então jovem UFABC, campus de Santo André, eu tinha um medo danado do rio Tamanduateí, um vizinho próximo que vivia transbordando. Certa vez, fiquei ilhado dentro do meu carro, no estacionamento improvisado da universidade naquela época, com água encobrindo todos os os para a minha casa. Eu dava aulas prioritariamente à noite, para alunos que trabalhavam durante o dia, gente madura e dedicada que buscava ascensão profissional com muita garra. Nunca senti tanto prazer em sala de aula quanto naquele período, ficou um carinho enorme e um respeito muito grande pelos meus alunos da UFABC. Não me lembro de arrogância e de nenhum filhinho de papai mimado por lá. Mas das cheias do Tamanduateí, eu me lembro muito bem. Era sempre um suspense. O campus de Santo André ficava na Avenida do Estado, bem no centro da cidade, uma muvuca danada.

Foi no período matutino da UFABC, entretanto, que eu mais me diverti na minha carreira. Mais precisamente, na disciplina de laboratório BC0001, Base Experimental das Ciências Naturais. Era uma festa e eu ainda recebia um salário para curtir de montão. A disciplina de número um da universidade era destinada a mostrar para o aluno recém ingressado, como associar a teoria à prática. Os experimentos eram diversificados, em química, física e biologia. Tinha também os relatórios, com grande peso na nota final. Eu adorava ir para as aulas, os alunos também, a disciplina terminava com um grande simpósio, em que a garotada apresentava trabalhos experimentais de autoria própria. Eles eram os mentores e nós éramos os orientadores. Orientei vários grupos de alunos que tinham aulas comigo, um chegou a ser premiado por mérito na pesquisa. Impossível não sentir saudades, logo que ei em concurso público e fui trabalhar na UFSCar, ficou claro para mim que eu ganhava de um lado e perdia de outro. Sempre quis trabalhar na UFSCar, mas o prazer de estar em sala de

aula ficou, para sempre, na UFABC. Do prazer ao dever, ei a dar aulas pela obrigação de quem era pago para isso. Em compensação, tive mais foco e consistência na pesquisa, integrei um grupo de peso, coordenado pelo meu pai, autor de vários trabalhos de destaque, de grandes projetos e de ideias que davam certo. Meu currículo melhorou muito. Antes, eu topava de tudo para continuar pesquisando, quase me prostituía.

Eu vou, mas eu volto, com ou sem febre. Voltando aos meus alunos de Base Experimental das Ciências Naturais, no simpósio de dois mil e nove, um dos grupos era composto pela Karen e pelo Lucas, ela baixinha e ele altão. Dois ótimos alunos, do tipo que a gente nunca se esquece, durante a disciplina, faziam relatórios caprichados, cheios de informações adicionais, que eu canetava sem dó nem piedade. Quanto mais texto, mais eu canetava, eles estavam ali para aprender e eu sempre gostei de escrever. Corrigir os relatórios me dava muita alegria. Enfim, a Karen e o Lucas tinham como proposta para o simpósio uma demonstração sobre indução de corrente elétrica, girando uma manivela, o aparato deles acendia uma pequena lâmpada incandescente. Não vou entrar em detalhes técnicos, mas, empolgado com o experimento, o Lucas resolveu deduzir a equação da corrente induzida usando as equações de Maxwell, ao invés da lei de Faraday, como eu havia sugerido. Não gosto de pôr cabresto em aluno, apesar de cético, deixei o garoto livre para divagar. Fazia sentido o que ele queria.

- Fábio, teoricamente, tem como induzir corrente contínua girando a manivela.

Essa era outra marca dos meus alunos Andreenses, eles me chamavam pelo meu nome. A cara de espanto do Lucas, por violar, sem se dar conta, vários conceitos do eletromagnetismo, era impagável. Não entendi, jamais entenderei, mas o garoto fez uma dedução usando um limite matemático em que era possível induzir corrente contínua a partir de um gerador que girava em torno de um eixo. Corrente alternada, sim, contínua, nem em produções de hollywood. Pelo menos, foi assim que eu aprendi.

- Lucas, vamos a um centro espírita tirar essa dúvida com o próprio Maxwell, serve o Faraday também.

Tinha que ter humor. Foi difícil convencer o Lucas de que, ao invés do Nobel de Física, ele pagaria um mico danado com aquela teoria maluca. Solicitei o reforço dos colegas formados em Física, corrige daqui, corrige dali, e a fundamentação teórica do Lucas ficou tinindo.

Continuando mais um pouquinho nesse ado gostoso, no embalo da UFABC, naquela época, eu morava num apartamento na Rua Cananéia, Vila Valparaiso. Tinha como ir a pé até a universidade, às vezes, era o que eu fazia. Numa sextafeira, véspera de feriado, no final da tarde, indo para a minha aula de Transferência de Massa no noturno, cruzei a pé a pracinha do supermercado Carrefour, adjacente ao campus, eu fui imediatamente jogado ao chão. Carregava uma enorme mochila com notas de aulas, livros e uma garrafinha de água. Três pivetes me renderam, era comum assaltos envolvendo alunos, mas acho que eu fui o primeiro professor a ser assaltado.

- Calma, eu sou professor!

Existem momentos na vida em que a gente ganha ficando quieto. Eu, sabe-se lá por que, puxei o crachá da universidade pendurado no meu pescoço e mostrei para os delinquentes quem eu era. Sentindo-me uma autoridade intocável, dando uma carteirada estilo Chanchadas da Atlântida.

- E daí tio, foda-se, vai tomar no seu cu - puro lirismo, enquanto eu levava um merecido esfrega, no chão da praça.

Pois é, apanhei, mas não perdi a pose. Os perigos desse ponto eram conhecidos, já haviam me alertado sobre os roubos, porém, julguei ter uma certa imunidade diplomática, por ser docente, e quebrei a cara, literalmente. Mesmo assim, dei a minha aula depois do assalto, todo esfolado, pelo profissionalismo, conquistei os alunos. Depois da aula, ganhei até uma carona de volta para casa, eu estava sem as chaves, sem grana, sem cartão de banco, sem celular, só com os documentos e as notas de aulas, que eu não deixei levarem. Lembrança ruim? Que nada, lembrança boa, lembrança ótima, de alunos legais que marcaram a minha carreira acadêmica. Mantive contato com vários deles, depois que fui para São Carlos. No comparativo entre UFABC e UFSCar, entre Santo André e São Carlos, eu ganhei me mudando para o interior. ei a levar uma vida mais confortável, tinha mais tempo para curtir, mas, como não se pode ter tudo, ficou na UFABC o professor empolgado com as aulas. Que bateu boca com marginais só por causa de umas anotações sobre difusão e dispersão de poluentes. Levem tudo, menos isso! Ficaram as notas, os livros e meus documentos, de bônus. Os "mano truta do rodo" que me roubaram, segundo meus alunos, eram garotos que ficavam nos vários sinais ao redor do campus, lavando os vidros dos carros. Eu era maior do que a maioria deles, mas era um só. Além disso, eles estavam fortemente armados (mentira). Cheguei a reconhecer um, de fato, limpando parabrisas próximo à UFABC. Fiquei com pena, eu já estava recuperado da surra e do roubo, minhas broncas eram momentâneas. Sei dizer que durante um tempo, bandido pedia pizza em penitenciária usando o meu celular roubado. Tinha esse lado.

Era isso, entre a tortura necessária da quimioterapia e os efeitos da pneumonia, lembranças boas pipocavam na minha cabeça. Eu não tinha muito controle, elas surgiam como visões do ado, clamando por resgate. Eu adorava! Escrevia uma autobiografia diferente, só dos bons momentos, da felicidade sincera, das vitórias e das conquistas, das pessoas que valiam a pena, dos lugares legais, da gastronomia nota dez. Em direção à luz no fim do túnel, eu seguia em frente, olhando para trás, vendo como foi bom ter vivido, apesar dos pesares. Eu precisava agradecer, não era fácil conviver com a doença, mas eu tinha plena consciência de que a minha cruz não era a mais pesada de todas. Levava essa cruz para um lado e para o outro, sem lamentos, puto de vez em quando, mas só de vez em quando. Aquele tempo para mim mesmo, de resguardo, meio afastado da sociedade, serviria para o futuro diferente que eu teria, era preciso crer em coisas positivas. Era a primeira vez que eu ficava duas semanas consecutivas

sem fazer quimioterapia, sem sombra de dúvida, mais uma vez, eu vivia o conto do bode na sala. Lidar com a pneumonia era muito mais fácil do que lidar com o tratamento. A quimio era, realmente, barra pesada, um mal necessário, ou um bem obrigatório, para a cura do meu câncer.

Os dias aram, eu melhorei significativamente, o pior sintoma da pneumonia era a forte dor nas costas, na base do pulmão esquerdo, e ela já tinha diminuído bastante lá pelo quarto dia de medicamentos. Nesse ínterim, impedido de sair do apartamento, nem na portaria do prédio eu ia, aproveitei para trabalhar. Esquematizei propostas de pesquisa, fiz buscas por bibliografias novas para as minhas linhas de estudo e dei uma olhadinha nos primeiros capítulos desse livro. Havia jurado para mim mesmo que não mexeria em nada do que fora escrito, era curioso ver nas linhas e nas entrelinhas do texto, meu estado de espírito no começo disso tudo, sem saber o que me aguardava. Essa leitura me deu a impressão de estar diante do diário de um sobrevivente de desastre aéreo, se recuperando dos traumas físicos, com a parte psicológica em dia. Do pósoperatório com direito ao congresso em Belém, antes do tratamento, ao Natal em Curitiba e o eio em Cachoeira de Emas, entre seções de quimioterapia, meu relato nem parecia ser o de um doente de câncer. Mas era. Somando e subtraindo, o saldo era positivo, havia no conteúdo da narrativa, mais felicidade do que tristeza, mais esperança do que sofrimento. As palavras escritas revelavam o lado bom da vida de um homem que gostava de comer bem e que odiava axé music, que andava de fusquinha como se fosse o Rei da Romênia, que teve um monte de privilégios e que, gradualmente, se dava conta disso. Esses eram os alicerces de um futuro diferente, mais otimista, curado de um monte de coisas, do câncer e de vícios pessoais. Enquanto isso, o mundo seguia dando suas voltas, eu me tratava da pneumonia e aguardava a oitava seção de quimioterapia, consciente de que daria a volta por cima, e de que jamais gostaria de axé, nem sob tortura.

MAIS DA METADE

Na madrugada de quinze de fevereiro, um sábado, pouco antes das quatro da manhã, acordei bastante assustado, quase enfartando, meu coração batia nervoso no peito, dava até para ouvir. Milésimos de segundos antes, eu havia vivido o que pode ter sido provavelmente um sonho ultra denso, mais um, com pinta de realidade, me deixando muito confuso. Mesmo debilitado pela pneumonia, saí da cama o mais rápido que eu pude, em direção ao banheiro social. Meu coração dava sinais de que iria explodir, olhei minha cara no espelho e me vi mais desbotado do que nunca. Sentei-me no vaso sanitário e esperei a pressão baixar. Suava que nem um porco, um suor gelado, sempre tive pavor de experiências mediúnicas, não gostava nem de ouvir a respeito, mas achava que tinha tido uma. No quarto onde eu dormia, um homem estranho apareceu do nada e me deu um relógio bonito, não parecia sonho. O cidadão era um total desconhecido, jovem, muito magro e pálido, com cabelos escuros desgrenhados, rosto encovado como o de um doente terminal. Ele sorria. Estranho sonhar com alguém que eu nunca tinha visto antes. Apesar disso, a fisionomia do homem não me assustou, tranquilamente, peguei o relógio de ponteiros, bem ao estilo que eu gostava, e fiquei contemplando, sem colocá-lo no braço. O jovem permaneceu próximo de mim durante um tempo, sempre sorrindo, timidamente, eu achava isso normal. Até eu acordar, ou melhor, despertar do transe, do sono profundo ou dos dois ao mesmo tempo, com um medo incontrolável.

Não houve diálogo entre a gente, durante o episódio, vou chama-lo assim, foi tudo muito tranquilo, o jovem estava feliz, apesar da aparência de doente. Ainda no banheiro, sentado no vaso, tentando me recompor, eu não sabia o que pensar, de cara, resolvi não buscar explicações. Naquele momento, para mim, era importante eu me convencer de que aquilo tudo havia sido um sonho diferente, talvez especial para quem ava pelo que eu ava. A imagem do jovem jamais sairia da minha cabeça, eu sabia disso, um estranho que deixava de ser um total desconhecido. Sempre tinha um relógio nessas horas! Tentando ser lógico, eu sabia que a mediunidade era um dom bastante especial, para pessoas especiais, não era o meu caso. Sempre fui um grande covarde para essas coisas, virei espírita kardesista por conta das palestras e dos ensinamentos de vida, a

parte de interação com o além-túmulo eu deixava para os outros. Meus sonhos começavam a me preocupar, de volta à cama, rezei para que as manifestações, se fossem de fato espirituais, se tornassem mais sutis, que o contato com o universo dos mortos fosse mais inconsciente. Eu não tinha estrutura emocional para interações com quem já morreu, comecei a achar que eu estivesse meio nivelado com eles, meio morto-vivo por assim dizer. Honestamente, fiquei um pouco perdido, uma alma penada no breu do quarto. Pouco a pouco, a fé nos meus protetores foi maior do que tudo, eu não queria parar de sonhar, mas também não queria sentir aquele medo de novo. Acima de tudo, eu queria me sentir vivo, inserido dos pés à cabeça no mundo dos vivos.

Mudando de assunto, nesse mesmo fim de semana, o que eu temia, aconteceu. Meus pais, idosos, tiveram problemas de saúde. Sobrecarregados, cuidando de mim e da minha vida fora de casa, o negócio estava começando a pesar. No sábado à noite, caiu extrato de própolis no olho direito da minha mãe, um acidente doméstico. Não imagino a dor que ela deve ter sentido, certa vez, deixei respingar própolis na minha coxa e a ardência foi tanta que xinguei, de todos os possíveis impropérios, o própolis, a mãe dele e toda uma geração de produtos naturais. O estrago na vista da minha mãe só não foi maior por que os plantonistas do hospital vinte e quatro horas fizeram um bom atendimento. Na segunda-feira, dia dezessete de fevereiro, logo após meus exames de sangue rotineiros, minha mãe ou por uma consulta com sua oftalmologista, foi medicada, e orientada sobre a situação. Tinha que ter cuidado. Não bastasse a semana de pneumonia para mim, e de acidente doméstico para a minha mãe, nessa segunda-feira, meu pai acordou com diarreia e uma leve febre de trinta e sete graus. Como sentia dores nas costas, o temor era de que eu tivesse ado pneumonia para ele. Felizmente, não era nada disso, mas meu pai ficou bastante debilitado, diabético e idoso, tudo era motivo para derrubar. Enfim, loucura pouca é bobagem. Difícil saber quem estava pior, eu, meu pai ou a minha mãe.

Para mim, entretanto, a tormenta ou na manhã do dia dezoito de fevereiro, quando fui liberado para encarar a oitava seção de quimioterapia. Estava abafado, a ala de quimioterapia tinha todos os ventiladores ligados, reencontrar os enfermeiros dava muito prazer. Cumprido o ritual de checagem de peso (não tocarei mais nessa questão do peso, gordo ou gordinho, era melhor isso do que

estar mais magro e esticado num caixão), de pressão arterial, de batimentos cardíacos, e de temperatura, fui logo liberado para receber os medicamentos. A médica ouviu meu pulmão esquerdo, felizmente, não havia mais nada de errado com ele. Depois de tantos acontecimentos, minha vida era tão imprevisível que eu só tentava adivinhar meu futuro na hora seguinte, sessenta minutos adiante, e nada além. Era a já citada metamorfose. Não podia ser diferente, era a lição que eu tinha que aprender, vivi muito tempo pensando no futuro, sonhando e sofrendo, era hora de mudar. Talvez fosse o câncer um professor didático que eu precisava para assimilar a tarefa de mudar internamente. Ainda estava longe do ideal, tenho que itir, minha fé em Deus não era perfeitamente inabalável, sem questionamentos ou ponderações. Inúteis, diga-se de agem. Como pode o finito tentar entender o infinito? Mudanças, assim, da noite para o dia, não aconteciam. Mesmo assim, surgia em meus pensamentos um lado positivo sempre que eu puxava um bate-papo com Deus, meu grande amigo. Eu jogava a peteca e esperava de volta, com otimismo.

Recapitulando desde o começo de tudo, foi mais ou menos assim comigo. Deus, em sua infinita sabedoria, pegou um cara saudável, no caso, eu, e o fez ficar gravemente doente. Entender ou não essa lógica inquestionável do nosso criador não vem ao caso, o importante era buscar a cura e sobreviver. Sinceramente, nunca me revoltei, só fiquei fulo algumas vezes, mais comédia do que outra coisa. Na escala de fúria, confesso, sobrou algumas vezes para os meus protetores espirituais, injúrias contra eles foram raras, mas ocorreram. Nessas horas, achei que eles estivessem ocupados no WhatsApp e me esqueceram. Bobagens e mais bobagens da minha parte. Entendi, ao longo do meu tratamento, que o desafio tinha cara de terapia de choque, um "sacode", ou "esfrega" no meu espírito, algum tempo de semi-isolamento para eu melhorar minhas atitudes, meus valores, minhas ideias e pensamentos. Sem falsa modéstia, as atitudes e os valores já estavam mais nobres. Ideias e pensamentos eram uma outra história, a jornada seria bem mais longa, mas eu estava no caminho certo. Sabia disso. No mais, cada dia vencido era um dia mais próximo da cura, cada momento de dor deixado para trás era um sofrimento a menos, cada instante bem vivido era mais uma lembrança boa, em um período que não seria esquecido.

Com isso em mente, na manhã de céu nublado do dia vinte de fevereiro, fui até a Santa Casa para retirar o infusor que, para a minha surpresa, esvaziara rápido. Pela primeira vez, eu ia sozinho, dirigindo meu Fusca, curtindo o barulhinho gostoso do motor refrigerado a ar, sentindo os incômodos do tratamento, sem nada poder fazer. Meus pais eram teimosos com relação ao meu transporte para a Santa Casa, faziam questão de me levar e de me buscar, mas não estavam em condições de me contrariar. Fui, então, sozinho, feliz com o marco histórico, estava concluída a oitava seção de quimioterapia, eu havia ado da metade do tratamento. A princípio, faltariam sete seções, no melhor cenário possível para a minha doença. Era nele que eu me baseava, nada de pessimismo! Às oito em ponto eu fui atendido na ala de quimioterapia, o ritual para a retirada do infusor levou um pouco mais de dez minutos, todos falavam comigo. Seu Fábio pra lá, Seu Fábio pra cá, apesar do duro tratamento e do ambiente bastante pesado, ver o pessoal da Santa Casa era bom, parecia que eles emanavam luz. A luz que eu precisava para aguentar firme e seguir em frente, afinal, eu estava, teoricamente, por assim dizer, mais perto do fim do que do começo. Ainda não dava para pensar na alta, eu tinha até medo disso, enquanto isso, ia tocando o barco, remando, como dizia meu avô paterno.

Aproveitei que estava na rua, andando de Fusca, e dei um pulo no meu apartamento, saudoso em mente. Antes de me mudar para o apartamento dos meus pais, em setembro do ano anterior, meu endereço era o Jardim Bethania, bem ao lado do centro de São Carlos, uma ótima região para se viver. Localizado no ponto mais alto da cidade, o condomínio onde eu morava tinha duas torres de dezessete andares, muita gente também vivia por lá. Desde o eio de tapete voador até a Índia eu não voltava ao meu apartamento. Apesar das fortes dores na região do cateter, que ficava bastante sensível por causa dos medicamentos pesados, lá chegando, encontrei disposição para pregar dois posters na parede, um de carro, no meu quarto, e o outro dos Beatles, no quarto de hóspedes. Sentia uma dorzinha adicional e muito chata na altura da lombar, em toda a lateral esquerda do meu corpo. Era a oitava seção me lembrando que a rapadura é doce, mas não é mole, sweet but not soft. Entender o que acontecia comigo, saber por alto qual era a origem da dor, aliviava um pouco, mas, paralisava também. Quanto mais ocupado eu ficava, menos bola eu dava para o sofrimento. Era o jeito.

Nesse mesmo dia, livre do infusor, recebi um email da UFSCar que me deixou feliz e animado. Por meio da assessoria de comunicação da reitoria, fui convidado a dar uma entrevista sobre trechos de um ebook que eu havia escrito sobre minha última participação no Projeto Rondon. A entrevista seria parte das comemorações dos cinquenta anos da universidade. Era muito importante me sentir inserido na sociedade, receber o convite foi como fincar meus dois pés de volta ao contexto do trabalho, o sofrimento da dor ficava de lado nessas horas. Perdia a batalha para me derrubar. Fui às nuvens com a perspectiva de interagir com alguém da UFSCar, mesmo estando afastado para tratamento de saúde. Mais do que prontamente, respondi o email condicionando o convite, expliquei minha situação, usei a palavra câncer para não deixar dúvidas, e pedi para que a entrevista gravada fosse substituída por uma escrita. Eu não tinha condições para ter um depoimento gravado, meu aspecto estava bastante alterado, além disso, a falta de fôlego me deixava vulnerável em atividades fora de casa. Enfim, apesar da excitação, fui honesto com os meus princípios e, acima de tudo, tive respeito por mim mesmo. Tristemente, nunca tive resposta, nem aquela protocolar desejando melhoras. O convite logo virou pó e ado.

Essas coisas não me abatiam, mas me faziam refletir. Quais foram os caminhos estranhos que levaram a sociedade a tamanha falta de humanidade? A indiferença era, de fato, o novo padrão de comportamento? No comparativo com o mundo da minha juventude, o de dois mil e vinte parecia tomado por trevas, uma gripe epidêmica matava sem dó nem piedade, começando pela China e avançando como uma imensa onda pelos quatro cantos, atentados matavam inocentes numa escala jamais vista, o discurso do ódio parecia ter vindo para ficar, xingamentos e ofensas viraram recursos de comunicação frequentemente usados nas mais altas escalas de importantes governos, com destaque para o nosso. A tensão era percebida no ar, algo se perdeu ao longo do tempo, o trato entre as pessoas mudou para pior, sou da teoria de que ficamos mais individualistas e menos coletivos. Posso estar errado, de repente estou, mas acho que a internet tinha uma ponta de culpa nisso tudo. Ferramenta fantástica, trouxe várias mudanças para melhor, agilizou, mas trocou o real pelo virtual, tudo muito rápido, o antes e o depois da internet parecem ter séculos de distância, mas não têm. O conceito de distância, aliás, teria que ser redefinido, no mundo da internet, ela não existia mais. Estávamos conectados demais, dentro de camisas de força, abraçados num imenso hospício. Bom, era isso, Freire dando uma de Freud.

Enquanto isso, crescia em mim um senso de aproveitar melhor o dia, a vida poderia mudar a qualquer instante, nunca se sabe. Num minuto você está bem e no minuto seguinte, tudo muda. A gente não consegue escapar da aleatoriedade que rege o universo, existe o previsível, mas existe também o imprevisível. No meu último ano de graduação, em noventa e cinco, havia uma banda de rock irreverente chamada Mamonas Assassinas que fazia estrondoso sucesso. Surgiram do nada, naquele mesmo ano, cinco jovens de Guarulhos, com idades bem próximas da minha, que cantavam e dançavam fantasiados e que logo viraram os queridinhos do brasileiro. Eu não era fã, nem gostava do estilo, mas não tinha como evita-los, não havia artistas mais famosos do que eles, a qualquer momento, era só ligar o rádio ou a TV que lá estavam eles. Um verdadeiro fenômeno. No dia dois de março de mil novecentos e noventa e seis, encerraram uma turnê de shows se apresentando no Estádio Mané Garrincha em Brasília, despediram-se do público, entraram em um jatinho com destino ao Aeroporto de Cumbica, e tudo acabou. Morreram todos em um acidente quando o pequeno avião se chocou contra a Serra da Cantareira. Eram jovens e saudáveis, famosos e ricos, viviam um sucesso e preparavam-se para um futuro que nunca chegou. aram por aqui rápido como um meteoro.

Nesse mesmo dia dois, eu tinha recém completado vinte e quatro anos, minha vida continuou. Fiquei triste com a morte dos Mamonas, mesmo não sendo fã, acompanhei a comoção do enterro e as investigações sobre o acidente, estúpido, por sinal. Depois disso, ei por várias fases, vi muitas mudanças acontecerem, amadureci, acho até que envelheci. Para os Mamonas, entretanto, o ponto final veio cedo demais. Arrisco afirmar, porém, que eles viveram intensamente enquanto o fim não chegou. Morreram sem saber de nada, sem se darem conta, deve ter sido um susto enorme. Não houve sofrimento, nem dor, nem doença, num instante eles aguardavam o pouso dentro de um avião e, no instante seguinte, já não havia mais nada, só morte e destruição. Muita gente morre devagar, eles não, sumiram do mapa num piscar de olhos. Tantos anos depois disso, eu estava doente, ameaçado de morte, vivendo de ado, desejando um futuro diferente. Talvez o ideal fosse viver como se não houvesse amanhã, sem criar expectativas, de olho no presente, só nele, sem desperdiçar tempo pensando num futuro que poderia ser tão incerto. Entre a vida e a morte, havia a Serra da Cantareira, só ela, os Mamonas foram enterrados no dia em que

eu comecei a fazer mestrado, eram jovens como eu. Eu tinha vinte e quatro anos, hoje tenho o dobro disso, faz tanto tempo que nem me lembro como eu era. Minha vida continuou, e continua, até quando, só Deus sabe. Tenho que aproveitar.

Vou pegar uma carona nisso tudo e contar aqui um caso, mais um, que me impressionou bastante no ado, aconteceu bem antes do câncer me encontrar pelo caminho. Conheci na minha juventude um sujeito cheio de problemas de locomoção, uns oito anos mais velho do que eu. Detesto academias, mas vez ou outra eu me matriculava em uma, só para me arrepender logo em seguida. Pois em uma dessas academias, conheci o personagem desse parágrafo. Além de algumas deformações na cabeça, ele tinha braços e pernas de tamanhos diferentes, atrofiados, pelo menos, era o que parecia. Andava com bengala, fazia sua fisioterapia nos aparelhos, falava com dificuldade, sorria para todos, era muito simpático. Uma vez, me exercitando ao lado dele, puxamos conversa.

- Eu tinha dezoito anos quando sofri o acidente

Foi assim, filho único de uma família de classe média, bem estruturada em São Carlos, ele se definiu como um jovem "sem freio", sem restrições, que fazia exatamente o que queria. Estava no auge da vitalidade, em oitenta e dois, tinha dezoito anos, transbordava energia e tinha dinheiro para gastar. Naquele ano, os pais compraram um Monza zero quilômetro, recém-lançado no mercado brasileiro, um super carro, sonho de consumo de muita gente. Um belo dia, esse homem, que era jovem, pegou o Monza novinho na garagem e embicou sua dianteira em direção à Ribeirão Preto, distante oitenta quilômetros. Naquela época, a pista era simples e perigosa. Pois bem, no caminho, encontrou duas alunas da UFSCar que também iam de carro para Ribeirão e, através de gestos, combinaram uma corrida, ou racha. Ziguezagueando na pista, em alta velocidade, o Monza vencia as ultraagens como se os demais veículos estivessem estacionados. Na década de oitenta, vale dizer, a frota de carros nas ruas era muito menor do que a atual, as estradas eram bem mais vazias, mesmo assim, sempre havia muito trânsito entre São Carlos e Ribeirão Preto, acidentes

graves e com mortes eram comuns, raro um mês em que ninguém perdia a vida por lá. As estatísticas eram desfavoráveis para os motoristas.

Se andando normalmente, já era perigoso, apostando corrida, então, nem se fala. Num dado momento, ao ultraar um caminhão, impedido de utilizar a faixa contrária por conta do trânsito, o homem puxou cegamente o carro para o acostamento, sem ter a mínima visão do que fazia. Resumindo, em altíssima velocidade, logo que saiu da pista, ele deu de cara com a traseira de um outro caminhão, estacionado, sem tempo para reagir. Segundo seu relato, o carro entrou completamente em baixo da traseira do paquidérmico caminhão. A partir desse instante, sua vida jamais seria como antes. Milagrosamente, ele sobreviveu, foi retirado das ferragens quase morto, com fraturas expostas da cabeça aos pés. Resgatado na estrada, a princípio dado como morto, foi levado por um fazendeiro até um hospital em Ribeirão, onde ou por procedimentos de emergência que o mantiveram vivo.

- Foi um milagre, não tem outra explicação

Deve ter sido mesmo, ainda mais naquela época. Ao contar o drama, o homem usava a palavra milagre com a autoridade de quem entendia do assunto. ou vários meses, anos, se recuperando parcialmente dos traumas, nunca ficou bom.

- Era para eu ter morrido

Realmente, independente de crença religiosa, o relato parecia de um milagre, com todos os ingredientes de um ato celestial. Por muito menos, em acidentes bem menos graves, pessoas perderam a vida num piscar de olhos. Como o apresentador Gugu, que havia morrido de um tombo bobo, em sua residência, no final de dois mil e dezenove. Moral da história, certo ou errado, justo ou injusto, a dinâmica da vida tinha dessas coisas, nunca se sabe quando tudo vai mudar.

Por mais que a doença já se manifestasse com incômodos aqui e ali, foi no dia oito de agosto de dois mil e dezenove que tudo mudou para mim. Entrei num consultório crente que iria tratar uma fissura intestinal, e saí dele com a certeza de um câncer e de uma verdadeira corrida pela frente, contra o tempo, cheia de obstáculos que eu desconhecia. Se eu tivesse uma bola de cristal e soubesse o que eu iria viver, teria feito um monte de coisas antes, acima de tudo, teria comido muita pimenta, até dizer chega. Mas não é assim que acontece, ainda bem, melhor não saber mesmo. O ideal é ter plena consciência de que tudo pode mudar de um segundo para o outro. É preciso saber viver, sem desperdiçar energia à toa, sem abrir mão da felicidade por causa de carreira ou de dinheiro, descartando rapidamente da cabeça qualquer encheção de saco. Uma vigília constante para não cair em tentação, um exercício diário de sabedoria na hora de encarar as batalhas do dia.

Mantendo a tradição das minhas seções de quimioterapia, tive muita dor no ombro, horrenda, excruciante. Sabia que ela não iria embora, mas que se dissiparia gradualmente a medida em que o tempo fosse ando. Isso não deixava de ser um consolo, entretanto, não posso negar, já tinha saudades da pneumonia e da semana extra de folga. À essa altura, o efeito acumulativo do tratamento havia alterado significativamente meu funcionamento e meu corpo, muito além do ganho de peso. Não cheguei a ficar careca, a cabeleira ralou e afinou um pouco, o aspecto geral mudou. Meus pelos atrofiaram, nunca fui um Tony Ramos, mas era notável a diferença. O tato era estranho, sempre acompanhado por um leve formigamento. Manchas rochas lembravam pequenas varizes no meu braço direito, bem ao lado de onde ficava o famigerado cateter. A falta de paladar, a indigestão e eventuais náuseas, incomodavam mais, só que a comida já havia virado, de certa forma, um consolo e tanto no período que eu vivia. Compensava um monte de coisas que eu havia deixado de lado para me tratar, incluindo, exercícios físicos. Eu vivia cansado, meus os lentos pareciam os de um velho ancião das profundezas do tempo. Nada disso me desanimava, eu queria ficar bom e livre do câncer, só isso.

Ou melhor, mais do que isso, eu não estava sozinho, a batalha contra o câncer tinha a proteção do plano espiritual, que eu sempre acreditei, e tinha também a família, os amigos, enfim, um time completo. No dia vinte e um de fevereiro,

junto com os primeiros acordes do carnaval, chegou à São Carlos meu irmão, minha cunhada e meus sobrinhos. Parecia haver sempre uma força maior me levando adiante, em frente com o duro tratamento, um empurrão aqui, um vento favorável ali, assim eu via a surpresa de ter meu irmão por perto, mais uma vez, num momento em que eu poderia me abater. Os curitibanos chegaram tarde, pouco depois das oito da noite, minha cunhada teve que trabalhar de manhã e só depois do almoço eles puderam cair na estrada. Três pizzas os aguardavam. Eu ainda vivia os piores efeitos da quimioterapia, fiquei doido para jantar como todo mundo, mas o gosto de papel da comida não me animava. Tanto na sextafeira, dia vinte e um, quanto no sábado, a falta de paladar mexia com o meu apetite, guerreiro, teimoso, mas, vencido mesmo assim. Minha mãe havia encomendado uns salgadinhos, esfirras, croquetes, coxinhas, que eu comia com os olhos, mas nem chegava perto. No domingo, porém, para a minha total surpresa, lá estava ele de volta, meu paladar. Uma benção pela presença dos curitibanos, pois normalmente, eu só voltava a sentir o gosto da comida a partir do quinto ou sexto dia sem o infusor.

Aproveitando essa melhora antecipada, no domingo, fomos almoçar no Castelo, tradicional restaurante às margens da rodovia Washington Luiz, sentido capital. O gosto da comida ainda era somente uma fração do normal, mas não me impediu de traçar quilos de picanha junto com fartas porções de arroz, feijão branco, salada de maionese, farofa e vinagretes de vários tipos. No total, consumimos um espeto de costela de porco, outro de picanha e meio de peixe. Meu apetite estava em módulo de compensação, eu mastigava pensando nos dias anteriores, de fome sem vontade de comer. Conversávamos alegremente, momentos de normalidade tinham que ser bem aproveitados, não só por mim, mas por todos os envolvidos emocionalmente comigo. A vida tinha que continuar. Terminada a refeição, fomos brincar com as crianças num parquinho do lado de fora do restaurante, eu usava absorvente masculino por conta da incontinência. Minha disposição para atividades físicas era praticamente nenhuma, mas eu participava de tudo, queria estar por perto o tempo todo. Nunca gostei da imagem de doente, mas já não tinha mais como evita-la totalmente, eu estava bem debilitado e distante dos meus dias normais. Se por um lado isso não me impedia de seguir vivendo, e bem, por outro, já não dava mais para esconder o drama que eu vivia.

Os curitibanos ficaram em São Carlos até o final do Carnaval, no dia vinte e cinco pela manhã, antes das oito, pegaram a estrada de volta para casa. Nesse ínterim, aproveitamos o tempo da melhor forma possível, dentro daquela política de viver bem o presente e deixar o futuro para depois. Gradativamente, a oitava seção de quimioterapia ficava para trás, enquanto a nona despontava no horizonte. Nunca fui muito fã de carnaval, não compartilho a empolgação do brasileiro, sou e sempre fui bastante desgarrado dos dias de folia. Verdade seja dita, entretanto, a alegria do povo nesse período do ano era contagiante, merda no ventilador espirrando para todos os lados, mas, por aqui, nem parecia que havia algo de errado. Ponto para o brasileiro, que sabia dar um tempo em tudo para se divertir, apesar dos pesares. O país parecia a oitava maravilha diante dos alegres foliões. Talvez, se eu tivesse um pouco desse espírito brasileiro, da felicidade dentro ou fora do contexto, nas linhas ou nas entrelinhas da vida, eu viveria muito melhor. Assim que me despedi dos curitibanos, naquela manhã chuvosa de carnaval, voltei a pensar no jovem desconhecido que me visitou em sonho com um belo relógio de presente. Dado o distanciamento do fato, em plena luz do dia, mudei de ideia e desejei que esse jovem fosse, de fato, um mensageiro, anunciando mudanças boas na minha vida. Para melhor. Queria viver diferente e, acima de tudo, queria aquele relógio.

VETERANO

Sim, eu havia me tornado um veterano na ala de quimioterapia, não era o mais experiente, mas começava a acompanhar um monte de novos pacientes que iniciavam seus tratamentos. Mesmo avesso a conversas enquanto eu recebia os medicamentos, ei a soltar mais a língua, sabia que era importante a troca de experiências e que eu não poderia ficar de fora dela. Minha nona seção de quimioterapia acontecia enquanto o sudeste contabilizava os prejuízos causados pelas fortes chuvas. Infelizmente, perdas humanas, materiais e ambientais deram um tom dramático à tragédia. Para sempre, meu período de tratamento contra o câncer teria as marcas das chuvas torrenciais que ocorreram naquele verão, dois mil e vinte, vinte e vinte, no calendário e na prática. Um ano arretado, era coronavírus pra lá, enchentes pra cá, motim de PMs e Deus de prontidão para nos salvar. Março estava em seus primeiros dias, mesmo assim, o ano já parecia um velho giboso, com cara e pinta de poucos amigos. Eu estava lascado, a partir da quinta seção de quimioterapia eu vivia o paradoxo do tratamento de saúde que me deixava doente, sem todas as limitações possíveis, mas tendo que lidar com algumas delas. Vivia cansado, sem energia, olhava o mundo ruir ao meu redor entre suspiros e exclamações. Um tanto desconectado.

Não adiantava ter pressa, vez ou outra eu me pegava ansioso, pensando no fim do tratamento. Era ruim, existe aquela questão psicológica que aparece junto com esse tipo de sentimento, o tempo ava mais devagar nessas horas. Demorava mais, eu realmente não via a hora de retomar minha vida, cair na estrada, voltar ao trabalho, comer pimenta, beber cerveja, mas, quanto mais eu me apegava a essas coisas, pior ficava. O jeito, então, era colocar os pensamentos no lugar e pensar direito. Na nona seção de quimioterapia, iniciada no dia três de março, uma terça-feira de tempo feio em São Carlos, o importante foi concentrar as energias positivas e a disposição para vencer as aplicações do infusor até a quinta-feira, dia cinco. O resto era detalhe. Ainda na Santa Casa, uma senhora que se tratava de um pavoroso câncer de boca, sentada bem a minha frente, puxou conversa comigo.

- O que o senhor faz?

Não era a primeira vez e nem seria a última que eu responderia a essa pergunta. Eu era uma rara exceção entre os pacientes, conseguia ler durante as seções, a esmagadora maioria ficava débil e dormitava, ou ava o celular. Eu não, estava aproveitando o período afastado da universidade para ler, ei a gostar de história do Brasil, quase concluí a leitura do livro sobre a Guerra do Paraguai durante a seção. Expliquei que era professor da UFSCar e à pergunta "o senhor dá aulas de quê?", eu respondi.

- De física

Quando morei em Santo André, durante a minha inesquecível agem pela UFABC, certa vez, uma vizinha de condomínio me fez a mesma pergunta, que eu respondi "mecânica dos fluidos".

- Eu nem sabia que tinha mecânica disso - disse a vizinha, depois de uma bufada estranha e engraçada.

Pois é, não quis de forma alguma subestimar a capacidade da senhora em entender a minha disciplina, mas eu estava azoratado demais para comentar sobre o meu trabalho. Como já citado aqui, minha cabeça estava preguiçosa e confusa, em parte por conta dos medicamentos e em parte pelo tempo afastado de minhas atividades normais. Tudo me fazia cair no choro. Tinha uma dificuldade danada para me lembrar de nomes e, não raro, me perdia em conversas, entre um lapso e outro, um tombo no fio da meada. Vale dizer, isso não me preocupava, nem me aborrecia.

Nessa nona seção, mais ou menos uma hora depois que começaram as minhas injeções, entrou na ala de quimioterapia da Santa Casa de São Carlos, um jovem esguio sem a perna esquerda. Chegou sozinho, movendo-se habilidosamente com o auxílio de um par de muletas, aparentava ter menos de trinta anos, era tatuado e usava um boné que cobria sua cabeça pelada. Não sei se a perna amputada tinha alguma coisa a ver com o câncer, para mim, sempre foi mais difícil testemunhar esses casos precoces, digo e repito, a juventude não combinava com doenças graves, parecia algo enxertado, totalmente fora do contexto. Mas acontecia, lá estava aquele jovem, pálido, sereno, dormiu praticamente o tempo todo, com fones no ouvido, de vez em quando eu olhava para ele, e ficava triste. Uma tristeza justificada, que eu não tentava evitar, nem conseguiria. Tudo tem um proposito, para quem tem fé, nada é fruto do acaso, aquele jovem silencioso travava uma guerra pela vida, assim como os demais, incluindo, eu mesmo. A tristeza que eu sentia pelo jovem vinha do meu lado humano, entrincheirado na minha essência, protegido por enormes barricadas dentro da minha personalidade. O lamento vinha acompanhado por uma torcida, tantas provas com tão pouca idade, mas, cada um com a sua cruz, a minha também não era nada leve. Apesar dos vários privilégios que eu tinha.

Duro era saber que alguns ficavam pelo caminho, eu não perguntava, tinha medo, mas deduzia isso das conversas que eu escutava. Seu Fulano descansou, Dona Fulana também, a ala de quimioterapia atendia casos graves, de tratamento paliativo, amenizando o sofrimento final. Era assim, eu nem sabia que tinha estrutura emocional para aguentar o tranco, mas ei a ter, auxiliado pelos meus guias, tentando me equilibrar numa corda bamba que balançava para os lados. Era duro, mas virou uma rotina para mim, desde julho ado, minha vida tornou-se um entra e sai de consultórios médicos, clínicas e Santa Casa, eu vivia uma metamorfose em todos os seus estágios, só faltavam as asas. Asas necessárias, para uma nova vida, não dava para ser como antes, seria um desperdício muito grande. Avisos não faltaram, eu ainda tinha uma grande pulga atrás da orelha, não tirava da cabeça a estranha experiência, ou episódio, com o jovem que me deu o relógio e sentou-se ao meu lado na cama do quarto. Parecia uma mediunidade latente, que eu não desejava, mas que talvez fosse parte do pacote, teria que lidar com ela. Apesar de me julgar mais evoluído do que antes, ainda era inevitável a volúpia de maus pensamentos, desnecessários, que desconstroem um futuro melhor. Talvez fosse essa a razão da tal mediunidade.

Enquanto isso, engajei-me em mais uma atividade do meu trabalho. Juntamente com o meu pai e a Maria do Carmo, já citada aqui, iniciei a redação de um capítulo sobre secagem de folhas medicinais e extração de óleos essenciais. A proposta era contribuir com esse capítulo em um livro internacional, editado por um professor brasileiro, um colega do Departamento de Farmácia da USP de Ribeirão Preto. Era cada vez mais difícil trabalhar, a cabeça simplesmente não acompanhava o texto, o raciocínio lógico era só uma fração do normal. Cruzar os braços, entretanto, não dava, eu tinha que combater essa inércia, minha vida profissional não podia parar, era preciso exercitar aquele lado guerreiro que todo mundo tinha, que fazia superar as dificuldades de percurso. Nesse ponto do tratamento, o mais cômodo era ar o tempo inteiro deitado, repousando e enchendo a cabeça de minhocas, até elas transbordarem. Eu não queria isso para mim, nem recomendava para ninguém que estivesse ando pelo mesmo processo que eu ava. A mente bem ocupada rendia dividendos, fazia parte daquela normalidade várias vezes citada, ajudava no meu auto-equilíbrio. Progressivamente, os parágrafos iam surgindo na tela do computador, sempre respeitando os limites do meu fôlego e as minhas pausas para descanso. Era o que dava para ser feito.

A nona seção de quimioterapia terminou às duas e meia da tarde do dia cinco de março, uma quinta-feira de sol, com temperatura de outono em pleno verão. O sentimento de alívio por ter concluído mais uma etapa do tratamento era inquestionável, evitava fazer planos, mas me atrevia a pensar na vida após isso tudo. Saí da Santa Casa me sentindo bem, a dor na região do cateter estava ável, sentia o paladar um pouco menos alterado, enfim, os efeitos da quimioterapia pareciam mais brandos. Minha mãe me acompanhava. Aproveitando o momento na rua, fomos buscar uma calça que havíamos deixado na costureira para alguns ajustes. Minha silhueta havia aumentado muito rápido, minhas roupas antigas já não me serviam mais, usá-las era fogo. Honestamente, não via problema nenhum nisso, mas achava que voltaria ao meu tamanho normal após o término da quimioterapia e do longo período de convívio forçado com o câncer. Gordinho, eu estava vivo, no plano terrestre, ando por uma experiência que eu jamais havia previsto, obrigado a ser grato mesmo quando eu ainda tinha dificuldades para isso. Estava no caminho, ainda caminhando, ainda chegando lá. Olhava-me no espelho e ria das minhas bochechas inchadas, fiquei

mais jovem com elas.

Às vezes, muito raramente, eu me permitia uma tarde de desânimo, não lutava contra ela. Deixava rolar, era o melhor que eu fazia. Nesses momentos, deitava na cama ou no sofá da sala para assistir vídeos na internet ou filmes na TV. Desse tipo de repouso absoluto, eu nunca gostei, no mínimo, tinha sempre um livro a tiracolo para ir lendo uns parágrafos, ou meu notebook para digitar alguma coisa. Logo após a retirada do infusor, entretanto, minha energia despencava, minhas pernas ficavam bambas, a cabeça ficava pesada e preguiçosa, pensar me fazia mal. Isso mesmo, eu evitava pensar, cheguei a escrever no meu bloco de notas (de papel), "pensar nessas horas é uma porta aberta para o pessimismo". Era mesmo, o ideal seria me desligar de tudo, e esperar. Minha recuperação era boa e relativamente rápida, ei a retirar o infusor na quinta-feira à tarde e no domingo eu já me sentia melhor, dentro do que isso significava para quem fazia quimioterapia. Confesso que ficar à mercê da situação me desanimava, tinha um gostinho de derrota, mas fazia parte do ciclo. Altos e baixos, na minha vida e na de todo mundo. Meu histórico de vida não combinava com essa dinâmica, mas eu tinha que aprender a lidar com ela, da melhor maneira possível, minha evolução como ser-humano dependia disso.

Gradualmente, comecei a alimentar um desejo profundo de mudar de vida, tanto pessoal quanto, principalmente, profissional. Talvez o fim do tratamento, a cura e a plena recuperação mudassem esse cenário, a verdade, porém, era que eu não me via de volta à UFSCar como eu era antes. Após quinze anos de magistério, ficava difícil mudar, minha carreira estava engessada, havia um monte de mudanças nos critérios de estabilidade e de aposentadoria que me prejudicariam profundamente se eu saísse de um emprego e fosse para outro. Pedia a Deus um pouco de luz, sabia que o paraíso na Terra não existia, mas tinha plena consciência de que minha vida poderia ser bem melhor do que antes. Confiava Nele, desejava de forma racional, com fé na sabedoria infinita do nosso criador. Buscava esse meio termo nas horas em que a minha cabeça funcionava melhor, cheguei à conclusão de que uma mudança de ares poderia ser o caminho, complicadíssimo, mas possível. Apesar do meu xodó por São Carlos, eu me via bem num futuro feito de projeções forçadas e tendenciosas, diga-se de agem, em Curitiba, no Rio ou no Nordeste. Ou, quem sabe, de volta à UFABC. De

certa forma, eu queria romper com o câncer e com tudo o que pudesse ser uma lembrança dele. São Carlos havia virado pano de fundo para a doença que queria me matar.

Enfim, meu futuro ainda estava muito incerto, ornado de pontos de interrogação, mas a luz no fim do túnel já brilhava mais forte e os primeiros planos pipocavam na minha cabeça. Assim, eu me alimentava de esperança, olhando adiante com uma bela bagagem para trás. A transferência entre universidades federais é prevista e acontece, porém, é complicadíssima, ainda mais no meu caso, paciente de câncer, seria dificílimo encontrar uma instituição interessada em me receber. Tornei-me um servidor de alto risco, além do tumor maligno no cólon, da metástase e da quimioterapia, tinha ainda o aneurisma na aorta ascendente, outro problema de saúde grave que eu teria que lidar nos próximos anos. Minha perspectiva de retirá-lo via cirurgia era aos cinquenta anos, eu estava com quarenta e oito, ou seja, a data se aproximava a os largos. Mesmo assim, ei a pensar com carinho na possiblidade de não mais seguir vivendo em São Carlos, repito, uma cidade espetacular. Algo me dizia que era hora de virar a página, a vontade veio da noite para o dia e foi ganhando força a medida em que eu me aprofundava nos prós e nos contras, principalmente no tocante à UFSCar, uma das melhores universidades federais brasileiras. Essa era a nona seção de quimioterapia, ainda tinha dúvidas se esse desejo iria continuar.

Bom seria se tudo desse uma pausa enquanto você se cura. Já disse isso, repito mais uma vez. Não é assim que funciona, o mundo não para, tudo continua igual, menos você. Bem em frente à varanda do apartamento dos meus pais, num bairro de classe média alta, na verdade, bem mais alta do que a média, havia um condomínio chique para os padrões de São Carlos. Endereço de médicos, empresários, fazendeiros, enfim, gente de contas bancárias graúdas, ou seja, os doutores. Na casa mais próxima ao prédio dos meus pais, um adolescente aprendia a tocar guitarra em altos decibéis, desprezando todas as normas da boa convivência, canalizando todo o som justamente para a janela do quarto onde eu costumava repousar. Não bastasse o duro tratamento, a dor e o sofrimento que ele causava, mais um peso era colocado na minha cruz, quando o som começava, do nada, sem aviso prévio, eu ficava perdido, vulnerável e muito incomodado. Como eu era obrigado a ficar em casa a maior parte do tempo, praticamente sem

sair, ninguém sofria mais do que eu com aquela repetição de acordes, à uma altura desnecessária, que nada contribuía para o aprendizado do instrumento musical. O que já era difícil, ficava ainda pior, infelizmente, um desrespeito que não ocorreria no mundo civilizado, não tinha solução no Brasil tropical. Era normal e ponto final. Triste realidade, afinal, o garoto tinha dinheiro, poderia fazer o que bem entendesse.

Numa das vezes em que os acordes da guitarra torturaram os ouvidos dos moradores vizinhos, meu desespero foi tão grande que comecei a botar sangue pelo nariz. O filete quente de sangue não tinha cheiro porque eu ficava sem olfato depois das seções de quimioterapia. Transtornada, minha mãe forrou com colchas e lençóis o chão do banheiro social, cuja janela ficava oposta de onde vinha o barulho, e lá fiquei deitado. Imaginando como seria a situação invertida, fazendo mentalmente um experimento social, pensei comigo mesmo se deixariam o barulho continuar assombrando o nosso prédio, caso o guitarrista adolescente não fosse nem rico e nem branco. Se conheço bem o país em que nasci e sempre vivi, deixando qualquer resquício de hipocrisia de lado, acredito, tenho quase certeza de que o resultado seria outro. Infelizmente, repito, a triste realidade de um país de contrastes e de concentração de renda era essa, a classe dominante decidia e a classe dominada se lascava. Uma relação que atracou por aqui com a vinda de Cabral e que veio para ficar.

Enquanto isso era o título perfeito para o que eu vivia, a vida continuava, tinha que continuar. O mundo ava pelo drama da epidemia do coronavírus, assustador, que pegou todos de surpresa. Disparava o número de infectados e de mortes mundo afora, muitos estudos surgiram para tentar desvendar os mistérios da nova peste negra. Além das mortes, a doença tinha um impacto social jamais esperado, bolsas despencavam na Ásia, na Europa, eu não me lembrava de um período tão obscuro. Como espírita cada vez mais convencido do poder das provas e das expiações, eu me questionava sobre o momento, sobre os desvios que levaram a humanidade a merecer, por assim dizer, um castigo. Era difícil entender a dinâmica das coisas, mas ficava claro para mim que a união de forças para derrotar o vírus cruel e implacável, aproximava as pessoas, no sentido humanitário de aproximação. Eu, de minha parte, ao contrário, tinha que me afastar de qualquer tipo de aglomeração, já tinha ado pelo susto da

pneumonia, que peguei por conta da minha baixa resistência imunológica. A dispensa da universidade e do contato com um público jovem, de estudantes, a princípio tinha sido meio contra a minha vontade. Mas, a cada dia, mostrava-se uma decisão acertada e correta.

No dia nove de março, pouco antes das seis da tarde, ei por uma consulta com o meu oncologista, o doutor Luiz Agenor. Jovem e entusiasmado, trocar ideias com ele me fazia muito bem, suas falas eram positivas, apesar de realistas, meu prognóstico era bom, minha vida não seria exatamente como antes do câncer, mas seria bem próxima do normal. Antes da normalidade, porém, eu ainda teria que encarar uma série de exames de avaliação, para confirmar a cura. Além disso, aria também por mais uma cirurgia para a retirada do cateter. Checagens periódicas fariam parte do meu dia a dia dali em diante, as cartas estavam na mesa e eu gostava do que via. Enfim, era bom poder conversar, por um instante que fosse, sobre a vida após o tratamento. Como eu já disse, o convívio com o câncer era longo, eu olhava para trás com a impressão de ter vivido uma vida inteira dentro da doença, numa metamorfose forçada que ironicamente me fazia bem. Descomplicar minha cabeça não era tarefa para uma única encarnação, mas parecia que eu seguia no caminho certo. Do jeito que eu estava, a perspectiva de um futuro próximo em que eu poderia sair livremente nas ruas, sem restrições, enchia-me de alegria. Por outro lado, pensar na volta às salas de aulas, naquele momento, era uma tristeza só, quase um lamento de socorro. Sendo assim, nada de sofrimento, se dava para não pensar em algo ruim, eu conseguia não pensar. Se não havia nada de bom sobre um determinado assunto, melhor não pensar nele. Antes, isso era muito difícil para mim.

Você já deve ter notado, e com razão, que eu oscilava para cima e para baixo, pra lá e pra cá, de um lado para o outro, enquanto seguia no tratamento. Horas me sentindo um novo homem, horas condenado por velhas falhas. Querendo mudar de ares, lembrando frequentemente do ado, evitando perspectivas sobre um futuro ainda incerto. Resumidamente, segundo minha nova ótica, o mais importante era aproveitar melhor o momento, o instante presente, isso estava no topo da pirâmide. Para isso, eu tinha que cuidar dos meus pensamentos. Chegava a época de pagar o triste e injusto imposto de renda, eu havia agendado a minha declaração para o dia dez de março, terça-feira. No domingo anterior, dia oito de

março, durante o almoço num restaurante próximo à Praça XV, me peguei pensando nessa terça-feira de imposto, nos documentos, na encheção de saco, etc. Isso me deixava ansioso e angustiado, a troco de nada. Quer outro exemplo? Na universidade eu estava dispensado, oficialmente, para que, então, pensar em sala de aula? Pensar em determinados assuntos na hora errada era um mal que eu ainda precisava combater, como programar um churrasco para o domingo em meio a uma tremenda dor de barriga, com direito a forte diarreia, durante a semana. Entendeu o que eu quis dizer? Bom, se não entendeu, fique tranquilo, ou tranquila, nem eu entendi. Infelizmente, fui criado para torcer pelo melhor, esperando pelo pior. Não dava para continuar assim.

Faltou dizer aqui que o bom da consulta com o meu oncologista foi saber que eu faria doze, e não quinze seções de quimioterapia. Não sei porque cargas d'água, porque bulhufas, na minha cabeça, eu faria quinze seções de quimioterapia em seis meses. De fato, os seis meses estavam corretos, receberia as injeções duas vezes ao mês, ou seja, um total de doze após seis meses. Fiquei feliz com a notícia, que nem lambari de sanga, tchê! A metade do tratamento já havia ado e eu fui o último a saber, como o marido traído. Tudo tem uma razão, desde que começou o tratamento, fazia tempo que eu não tinha um momento tão feliz. A quimioterapia era barra pesada, mexia com tudo no meu organismo, judiava de mim. Diminuía o meu pique e aumentava o meu peso. Mesmo assim, eu tinha que ser grato à benção de poder me submeter a um tratamento caro, com as regalias do meu emprego público, que eu conquistei por mérito próprio. A novidade me encheu de ânimo, como tinha que ser. Fiquei empolgado além da conta, renovou-se a esperança de dias melhores, parecia que a vida ganhava mais cores. O mundo temia uma grande epidemia, o Brasil vivia a insana saga de um governo que só sabia rugir e mostrar os dentes, o ódio crescia em plena luz do dia, o estresse era grande, as pessoas estavam tensas, mas eu não, eu estava nas nuvens. Ou, então, num céu de estrelas.

A medida em que o tratamento avançava, mais se acentuavam as mudanças da minha relação com o tempo. Se havia algum futuro novo e bom para mim, ele deveria ser mais bem aproveitado, cada instante, essa era, sem dúvida, a maior lição de todas. Por isso, toda e qualquer atividade que desperdiçasse meu tempo deveria ser repensada nesse futuro que eu tentava imaginar. Se desse para

descartar, ótimo, caso contrário, eu teria que lidar melhor com ela. Não sou do tipo que busca a culpa de tudo nos outros, gosto de me autoavaliar antes de apontar o dedo para alguém. No geral, no histórico de altos e baixos da minha vida eu sempre tive, pelo menos, uma parcela de contribuição, tanto para o bem, quanto para o mal. Durante os infortúnios, é comum a gente deixar de lado a questão do merecimento. Repito, o paraíso na terra, não existe, mas isso não impede que a vida seja feliz. Para mim, na minha opinião, a chave da felicidade estava na simplicidade, quanto mais simples, melhor. Eu não conseguia ser assim, tinha que lutar muito para simplificar ao invés de complicar. Qualquer complicação invertia tudo, de um ponto A até um ponto B, deve-se seguir uma linha reta, de B até C também. A vida era curta demais, o tempo, muito precioso, mais do que ouro dezoito quilates, não tinha como desperdiçar.

A verdade é que quando você tira tudo de um homem, você dá para ele a liberdade. Ser despossuído, minimalista, descomplica bastante as coisas, a mobilidade da leveza é científica, vem da mecânica newtoniana. A elevação de uma alma leve, desapegada no sentido mais amplo da palavra, é uma tarefa muito mais fácil, com uma mãozinha do empuxo, outro conceito da física, que lindo! De acordo com o Mahatma Gandhi, um homem simples e poderoso, em suas palavras, "cada dia a natureza produz o suficiente para nossa carência. Se cada um tomasse o que lhe fosse necessário, não havia pobreza no mundo e ninguém morreria de fome". Estendendo um pouco isso, para cima e para os lados, os acúmulos de matéria, de metas, de planos, de falsas importâncias, são penduricalhos em nossas vidas que deixam tudo mais pesado, levar essa bagagem de um lado para o outro vira um fardo. Meu mundo era o oposto disso, dessa simplicidade, nunca me considerei muito materialista, mas vivo com a cabeça cheia de minhocas, que transbordam de vez em quando. Não vejo problema em ter as coisas, ou querer algo, ou ainda desejar conquistas e sucesso, a sabedoria é dar o devido peso a tudo na vida. Querer em demasia não atende a necessidade de ninguém. No meu caso específico, trabalhar em uma universidade é uma tentação para o ego, e um ego pesado é o aporte para complicar tudo.

Uma vez, na época da Copa do Mundo aqui do Brasil, em dois mil e quatorze, um pouco antes do vexame do Mineirão, eu voltava para casa no início da noite,

triste e esgotado, após uma daquelas reuniões de departamento cheia de insultos e descontroles. Minha cabeça parecia carregar o mundo dentro dela, eu havia ado mais de três horas num ambiente contaminado pelos piores fluidos e vibrações que um ser-humano poderia emitir, um verdadeiro cenário de guerra protagonizado por gente com doutorado, pós-doutorado e o escambau. Lembrome da respiração pesada combinando com o meu desconsolo dentro do carro, cruzando tristemente as esquinas na noite escura e fria de inverno. Procurando fugir dos semáforos da Avenida São Carlos, a principal da cidade, fiz um trajeto que saía da universidade ando por um bairro adjacente de casas humildes, próximo ao Hospital Universitário da UFSCar. Numa das casas, rolava na garagem um churrasco com gente feliz, se divertindo, diante de uma enorme televisão. Foi como um bálsamo de luz divina ar ao lado daquela casa simples, cheia de alto astral, as pessoas sorriam com uma facilidade tremenda, a rua em frente parecia o caminho da fé, uma energia positiva soltava faíscas para todos os lados. Não dava para julgar, mas arrisquei afirmar que ninguém ali tinha o perfil sofisticado que havia entrado em choque momentos antes, na reunião que eu lamentava ter participado.

Aprendi muito nessa noite, voltei para casa irando a simplicidade que estava tão vinculada com aquela felicidade toda que eu vi. Continuei complicado e o que é pior, complicando tudo, mas nunca me esqueci daquela lição de vida, talvez com a chegada do câncer fosse mais fácil incorpora-la no meu dia a dia. Parecia ser a fórmula certa, uma afirmação quase universal, pessoas simples eram mais felizes, como as que eu via nos meus tempos de pagamento dos carnês das Casas Bahia. Não que a simplicidade fosse uma questão financeira, mas acho que tinha a ver. Nem dava para dizer que diplomas tivessem culpa no cartório, mas havia suspeitas, por experiência própria, o tal do nível superior, pelo menos por onde ei, era bem infectado. Tinha como ser mais desencucado, meu irmão sabia lidar muito melhor do que eu com os pela saco do meio acadêmico, além de outras pentelhações do dia a dia, mesmo dividindo genética e criação comigo. Meu corpo ava por uma revolução devido à quimioterapia, meu organismo funcionava de forma alterada, quase nem me lembrava mais de como eu era antes. No embalo do tratamento, eu tentava aproveitar a doença para abandonar alguns vícios, já que estava de molho, tinha que tirar algum ensinamento.

Já que falei em laços familiares, eu e o meu irmão, tão diferentes, criados na mesma casa, com os mesmos pais, lembrei-me de um caso peculiar que vi na televisão em um programa de investigação policial. Em dezembro de setenta e dois, Steven Stayner, então com sete anos de idade, foi sequestrado pelo pedófilo Kenneth Parnell em Merced, na Califórnia. Ao longo de sete anos, o Steven virou Dennis e viveu com Parnell, sendo molestado diariamente. Mesmo assim, apesar de tudo, levou uma vida bastante normal com o sequestrador, estudou, namorou, jogou futebol americano, sua índole era essa. Em março de oitenta, enquanto Parnell estava ausente em seu emprego noturno, Stayner fugiu do longo cativeiro juntamente com Timothy White, outra vítima de sequestro. Incapaz de localizar o endereço residencial do pequeno White, Stayner decidiu ir a uma delegacia, onde proferiu a frase que lhe marcaria a vida, "I know my first name is Steven" ou "Sei que meu primeiro nome é Steven". O caso imediatamente ganhou destaque na mídia da época, Steven foi o herói adolescente que salvou White e voltou para casa após sete anos de um estranho convívio com Parnell. Uma história de arrepiar os cabelos. E que não terminou aí. A fama fugaz de Steven lhe rendeu alguns dividendos, o drama foi contato em livro, filme e série de TV, mas logo a poeira baixou, o interesse do público diminui, a repercussão também, e a vida continuou. Em setembro de oitenta e nove, Steven morreu aos vinte quatro anos, em um acidente de moto. Era casado e tinha dois filhos.

No final dos anos noventa, outro membro da família Stayner ganhou os noticiários, por motivo bem diferente. Enquanto Steven foi considerado um herói até falecer precocemente, Cary Stayner, seu irmão mais velho, tornou-se uma figura obscura, solitária, antissocial, desajustado dentro do convívio familiar. Entre fevereiro e julho de noventa e nove, Cary matou friamente quatro mulheres no Parque Nacional de Yosemite, também na Califórnia. Ele recebeu pena capital pelos quatro assassinatos, encontra-se no corredor da morte na Penitenciária de San Quentin, na Califórnia. Steven, o herói, Cary, o serial killer. Papéis invertidos por conta de personalidades diferentes, Steven sofreu o trauma do longo sequestro, mas teve uma vida normal e feliz. Cary sempre permaneceu no seio familiar, foi criado com pai, mãe e irmãos, sem sobressaltos, mesmo assim, mergulhou numa melancolia tão grande e profunda que o levou a matar friamente. Mistérios da mente. A natureza de cada um é particular e diferente em relação ao outro, construída de maneira polarizada, ela pode excluir qualidades compartilhadas. Assim como Steven e Cary, eu e o Flavio também tivemos a

mesma origem, a mesma fonte, mas enquanto a cabeça do Flavio era bastante limpa, a minha era cheia de minhocas. Bom, isso até a cirurgia, quando o tumor foi embora, as minhocas também foram, o câncer mexeu muito comigo.

Quem eu era antes do tratamento já não existia mais, acordei na manhã de treze de março, uma sexta-feira de céu azul, com essa certeza. Eu só tinha uma fração do que eu era, resquícios de uma existência que pouco a pouco dava lugar a outra. Havia ado mais ou menos umas duas ou três semanas desde que mencionei em casa, pela primeira vez, que queria comprar uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, um menino Jesus e um crucifixo de pendurar. Coisa minha, meus sonhos intensos continuavam a todo vapor, mas não tiveram absolutamente nada a ver com essa minha decisão. Não tive visões nesse período, também não ganhei relógios de presente de entes que não eram desse mundo. Minha mente, preguiçosa, insistia na tecla da mudança, sem trégua, eu tinha que me tornar um homem melhor, para os outros e, principalmente, para mim mesmo. Parecia haver uma contagem regressiva para isso. A pandemia do coronavírus havia me forçado a um exílio voluntário dentro de casa e eu praticamente não saía mais. Seguia trabalhando no capítulo sobre processamento de folhas, a vida continuava, não podia parar. Não chovia mais, muito pelo contrário, as águas de março haviam caído em fevereiro, o mês avançava à galope, com pressa para todos, menos para mim. Para mim, a correria acabou no dia em que eu descobri que tinha câncer.

Pouco depois das onze da manhã dessa sexta-feira treze, fui com a minha mãe à uma lojinha bem em frente da Paróquia Nossa Senhora de Fátima de São Carlos, próxima ao Instituto de Física do antigo campus da USP. A ideia era comprar as imagens que eu queria na Livraria Católica Nossa Senhora Mãe da Divina Providência. O espiritismo não prega o culto às imagens, mas havia liberdade suficiente dentro da doutrina e eu, de minha parte, nunca fui muito fanático. Queria uma presença física no meu lar, que ele ficasse mais sagrado, e que eu tivesse para o que olhar quando fosse bater meus papos com o andar superior. Minha Nossa Senhora Aparecida, a que eu escolhi, tinha pouco mais de cinquenta centímetros, era negra como a da cidade de Aparecida do Norte. A imagem era feita de resina, paguei caro por ela, mas foi amor à primeira vista, eu tinha o dinheiro e fiquei feliz com a compra. No embalo, comprei também um

crucifixo estilizado e um pequeno menino Jesus dormindo na manjedoura improvisada de berço. Plena sexta-feira treze, a UFSCar completava cinquenta anos, dois mil e vinte era o meu décimo primeiro ano na instituição, eu estava afastado, me curando de um câncer. Por mera coincidência, datas que seriam lembradas, gravadas na minha linha do tempo, juntas comigo rumo ao ponto final.

CORONAVÍRUS

Os shows de guitarra no condomínio vizinho ao prédio dos meus pais continuavam em altos decibéis, eu ficava perdido quando a repetição de acordes começava. O que era difícil ficava ainda pior. No início de março, meus pais tomaram a iniciativa de procurar a istração do condomínio para explicar a situação e pedir, humildemente, que alguma providência fosse tomada. Por uma questão de humanidade, muito mais do que qualquer outra coisa. Pois bem, quando a casa do guitarrista adolescente foi identificada pela portaria do condomínio Parque Faber I, a resposta que meus pais receberam foi como fazer uma viagem no tempo, de volta a um triste ado que o brasileiro queria esquecer, "ele é filho de um procurador do estado".

- Ele é o filho do Doutor Marcos!

Ué, foda-se o Doutor Marcos e o filho dele, pensei comigo mesmo, estou cagando para o Doutor Marcos e para o filho dele! Entendo de acústica, o som alto era totalmente desnecessário. Num país governado pela ultradireita, entretanto, o casal moreno reclamando de barulho na portaria do condomínio bacana estava fora do contexto da época, isso mesmo, o garoto era branco e filho de um procurador do estado, ou seja, intocável. Continuaria desrespeitando as normas da boa convivência, quaisquer que fossem, mesmo num momento de crise, afinal, era filho de um procurador do estado, ora bolas. Tristeza de um lado, frustração e revolta do outro, a barulho continuou, e eu continuei incomodado. No Brasil brasileiro, terra de samba e de pandeiro, filho de procurador tinha imunidade diplomática, azar o nosso. Isso dito em qualquer canto do mundo civilizado, soaria como uma piada, de péssimo gosto. Mas aqui, ainda fazia parte da nossa realidade, um verdadeiro episódio do Elo Perdido, em que a Cha-ka falava português tão bem quanto eu e você.

O que não tem remédio, remediado está. O aprendiz de guitarrista venceu uma

batalha, mas não a guerra. O Flavio, meu irmão, que também tocava vários instrumentos desde pequeno, herdou os dons musicais da família. Minha mãe tocava acordeom, lembro-me em minha infância de vê-la tocando o pesado instrumento musical, azul pérola, era divertido. Pois bem, a dica do Flavio, um entendido do assunto, era que eu botasse fones de ouvido e barulho de chuva com trovões enquanto os acordes rolassem no condomínio dos granfinos. Dito e feito, fiz um teste e funcionou bem, além de relaxante e agradável, o barulho da chuva não tirava a minha concentração, se eu estivesse lendo, continuava lendo sem problemas. Se estivesse escrevendo, idem. Além do capítulo sobre folhas, já mencionado, eu estava também estudando um livro sobre risco de enchentes, um assunto que eu tocava justamente com o Flavio, mais dentro da área de trabalho dele do que da minha. Tínhamos a ideia de usar inteligência artificial para estimar diariamente, em períodos críticos, as chances de enchente em uma determinada região da cidade de Curitiba, a partir de históricos hidrológicos e de dados climáticos. Mais ou menos isso. O estudo me ajudava, entre outras coisas, a assimilar melhor o jargão técnico de uma área que era nova para mim, fortemente vinculada à Defesa Civil. Não seria um filhinho de papai e nem uma guitarra ensandecida e fora de sintonia que iriam atrapalhar isso.

Bola pra frente, fazer o quê? Já que eu não era procurador do estado, nem meu pai, tinha que aguentar. A semana da minha décima seção de quimioterapia começou com uma segunda-feira de muito sol, após mais uma madrugada de chuvas torrenciais em São Carlos. Dezesseis de março era o início de um recesso forçado nas aulas das universidades, o coronavírus gradualmente paralisava o mundo, estávamos próximos do Dia em que a Terra Parou, da música do Raul Seixas. Já citei aqui o toque de recolher que aconteceu na época dos ataques do PCC, em maio de dois mil e seis, parecia reviver aqueles dias, só que dessa vez a escala era mundial. Havia muito menos gente na sala de espera do laboratório onde eu fazia meus exames de sangue regulares. A recomendação da Organização Mundial da Saúde era para que as pessoas evitassem as ruas, principalmente, aglomerações. A família toda estava muito preocupada comigo, eu praticamente não saía mais. A economia caminhava para um colapso, o Brasil já estava bastante acostumado com a corda bamba, se equilibrava, mas a recessão assombrava países da Europa habituados com a prosperidade típica do Velho Continente. Era triste ver, mais de dois mil mortos na Itália, número que aumentaria vertiginosamente, a alegria da Tarantella dava lugar ao luto e ao sofrimento. O coronavírus só não contava com a índole do povo italiano que, de

quarentena, trancados em suas casas, cantava e dançava nas sacadas e nas janelas.

Vivíamos dias de ficção científica, uma realidade que parecia ser virtual, mas não era, justo no momento em que eu estava mais vulnerável. Demonstrava uma resiliência instável, buscava desenvolve-la diariamente, o estimulo era grande, quando eu me achava no caminho certo, arrastando a minha cruz, vinham os acordes de guitarra e o surto do coronavírus. Na manhã do dia dezessete de março, teve início minha décima seção de quimioterapia, era nítida a mudança de dinâmica na Santa Casa. Havia menos pacientes circulando por lá, vários haviam sido dispensados de acordo com critérios médicos. Eu não podia ser dispensado, a frequência das injeções precisava ser mantida para o sucesso do tratamento. Na ala de quimioterapia, os enfermeiros mais pareciam astronautas, cobertos dos pés à cabeça por vestes de proteção, luvas, máscaras, tudo para resguardar os doentes. Por falar neles, havia menos doentes, por experiência própria posso dizer que no máximo um terço do número normal dividia comigo aquela seção de terça-feira. Fazia calor, o céu estava carregado de nuvens pesadas, o medo das chuvas fortes tinha agora a companhia do medo da infecção, tudo girava em torno de catástrofes humanas. Junto a tudo isso, eu tinha câncer.

Durante essa seção, conversei algumas vezes com o Edinaldo, jovem enfermeiro, sobre assuntos variados, sempre buscando usar bem aquele tempo de injeções na Santa Casa de São Carlos. Meus protetores terrenos tinham nome, enfermeiros e enfermeiras que me atendiam semana sim, semana não, nas seções de quimioterapia. O zelo com que esses profissionais nos tratavam era indescritível, só indo visitar a ala de quimioterapia para se ter uma ideia. O Edinaldo jogava futebol, chegou ao nível quase profissional, o papo com ele era sempre interessante, pai de família, tinha em torno de trinta anos e muita experiência de vida. A Alessandra, a Quésia, enfermeira chefe, a Marcinha, a Mônica, o Adriano, a Rosane e a Zenilde também integravam essa minha nova família, meus benfeitores de carne e osso. Era com prazer que eu pensava neles antes de ir para a Santa Casa. Um tratamento duro, duríssimo, de uma doença grave, mortal, ganhava um lado positivo e otimista com o grau de humanidade dessas pessoas. Gente competente e gabaritada, que fazia um trabalho com amor e

carinho, atendendo e cuidando de estranhos como se fossem próximos. Por causa deles, eu sempre me sentia muito bem durante as minhas injeções na Santa Casa, a décima seção não fugia à regra.

Contrair o coronovírus, na altura do campeonato, seria nadar, nadar, e morrer na praia. Eu fazia a minha parte, tomava os meus cuidados, mas o vírus ainda era uma grande e triste novidade, e eu estava no grupo de maior risco de morte pela doença. Os jornais do dia dezoito de março estampavam a cruel realidade daqueles dias, um presidente da república perdido que nem barata tonta, mais ignorante e boçal do que nunca, uma doença real que dizimava com uma fome insaciável, um mundo estagnado e uma economia em queda livre. Era só o começo. Veja você algumas das notícias desse dia, "Ministro de Bolsonaro, general Heleno diz que está com coronavírus", "Dólar sobe a R$ 5,20 com pânico global por coronavírus", "Coronavírus esvazia restaurantes em SP", na Folha de São Paulo, "População de baixa renda pode ir para navio para tratar novo coronavírus", "Quem infringir quarentena vai responder perante a Justiça, avisa o ministro Moro", "MEC libera aulas a distância para instituições federais de ensino superior" no Estadão, "Não vale garantir a economia com perda de vidas, diz Rodrigo Maia após críticas de Bolsonaro", "Quarentena impõe a famílias e amigos a criação de uma rotina virtual", "Morre paciente com sintomas de coronavírus internado no Hospital Icaraí, em Niterói", no Globo. Só bucha. Não era nem o começo, o pior ainda estava para vir.

No início da década de oitenta, a Aids surgiu do nada, por assim dizer, e apavorou o mundo inteiro. Naquela fase inicial, gays pagaram o pato, foram uma espécie de "tête de Turc", como diziam os ses. O nosso "bode expiratório". ado algum tempo, após muito estudo feito por gente séria e competente, viuse que o buraco era bem mais embaixo. Foi necessário mais de uma década até a chegada do AZT como medicamento eficaz para o prolongamento da vida de doentes de Aids. Milhares de pessoas morreram vítimas da doença, hoje em dia, morre-se muito menos. Não tinha como chegar até esse ponto do livro sem falar sobre a paciência. Digo aquela paciência ativa, da clareza mental, da certeza de que as coisas acontecem no devido tempo. Assim caminha a humanidade, quem tinha esse tipo de paciência, sofria menos, eu estava aprendendo isso. O mundo inteiro vivia uma enorme prova, verdadeiro desafio de proporção poucas vezes

vista. A orientação era para que ficássemos em isolamento, evitando a formação de aglomerações, o tempo custava a ar. Para mim, o novo ingrediente era só uma dificuldade a mais, eu já vivia as minhas próprias restrições desde que o câncer entrou na minha vida, sem pedir licença, a fim de leva-la embora. A paciência que eu buscava, e que o mundo inteiro precisava, era aquela que vinha da fé em Deus, em sua sabedoria infinita sobre os nossos destinos.

Tirei o infusor na Santa Casa às duas e meia da tarde do dia dezenove de março, mediante uma verdadeira operação de guerra. Somente pacientes de quimioterapia, radioterapia, hemodiálise, pronto-socorro ou com sintomas de gripe forte podiam entrar no hospital. A hecatombe do coronovírus mudava a cara do mundo a cada dia, o cenário piorava a uma velocidade incrível, pessoas infectadas morriam aos montes. A gente dormia e acordava no dia seguinte diante de um cenário ainda mais assustador, tinha horas em que parecia se aproximar o fim dos tempos. Quem poderia prever um período tão obscuro e trágico da existência humana? Eu e os meus pais fazíamos parte do grupo de maior risco de morte, por razões diferentes. Amigos e familiares se preocupavam conosco, ofereciam várias formas de ajuda, numa demonstração de solidariedade muito comovente. Se por um lado a propagação do vírus tinha cara de castigo, por outro, a face humana que aflorava das pessoas diante da expiação era um bálsamo de luz contra as trevas do dia. ava de dez mil o número de mortos pelo vírus, comportamentos egoístas estavam na mira da sociedade, era difícil prever a dimensão da tragédia, nem mesmo como seria o dia seguinte. Tudo muito rápido e fora de controle. A dura realidade do câncer junto com a crueldade do coronovírus me entorpeciam pouco a pouco, como a dose de ópio que aliviava a minha dor e me levava para viajar. Sem me dar conta, a embriaguez da alma tornava-se uma novidade para mim.

O coronavírus era conhecido por causar doenças em mamíferos e aves. Em humanos, ele levava a infecções do trato respiratório que podiam ser leves, como em alguns casos de resfriado comum, ou letais, como o famigerado covid-19. Em dezembro de dois mil e dezenove, um surto de pneumonia foi relatado em Wuhan, na China. O vírus fazia suas primeiras vítimas. Havia suspeitas de que ele se originou de morcegos. Seguindo a cronologia dos fatos, em vinte e dois de março de dois mil e vinte, um ano amargo e cruel, houve pelo menos treze mil e

cinquenta mortes e mais de trezentos e sete mil casos confirmados na pandemia de pneumonia por coronavírus. Os números cresciam sem recuo, dia a dia, uma progressão que pegou todo mundo de surpresa. Eu havia apresentado os sintomas de uma pneumonia na primeira quinzena de fevereiro, doença que foi confirmada dias depois. A princípio, nada tinha a ver com o covid-19, mas a luz vermelha acendeu na minha vida mesmo antes da pandemia. O estado de São Paulo havia decretado não só calamidade pública, mas também, quarentena a começar no dia vinte e quatro, terça-feira. Eu, de minha parte, já vivia o isolamento recomendado para o tratamento, obviamente, com a pandemia, meu exílio forçado foi ainda maior. Da janela do apartamento dos meus pais dava para ver o shopping e seus os, desertos que nem cenário fantasma.

Meu dilema diante disso tudo foi com a dor no ombro e no braço, tive que racionar o uso dos analgésicos pois as farmácias estavam impraticáveis. Tinha um pequeno estoque em casa que deveria durar bem mais tempo. O jeito foi ar a dor com mais resignação, usando a cabeça no meu limite máximo para não pirar e não piorar o que já era difícil. Pessoas boas, sérias, serenas e racionais davam lindas demonstrações no momento difícil que a humanidade vivia, enquanto as egoístas, pequenas, ignorantes e boçais escancaravam o lado negativo do ser humano. Na política nacional, o presidente falastrão perdia terreno cada vez que abria a boca, ainda contava com seguidores fanatizados, mas começava a enfrentar uma oposição ampla e diversificada que não estava nos planos dele. Brincou com fogo na hora errada, se queimou, perdeu ainda mais uma autoridade que nunca teve, e prejudicava o país a cada medida que tomava. Claramente despreparado para o cargo, o presidente, seu clã e seu guru (ele tinha um), mais atrapalhavam do que outra coisa, fora eleito por conta de uma falha no HD do brasileiro, apoiado por uma polarização irracional poucas vezes vistas. Não se dava conta disso. Eu, pessoalmente, sentia uma vergonha danada dele, colecionava gafes nacionais e internacionais, falava sem pensar, não ponderava o poder da palavra, vangloriava-se por ser honesto, mas esqueciase do resto. Bom, o tempo mostraria que nem honesto ele era. Honesto, eu também sou, mas seria um péssimo presidente. Além disso, ele perseguia artistas, universitários e tinha uma relação com o poder que assustava. Pregava a caça aos comunistas, em pleno século vinte e um!

Seguindo nessa linha de desabafo pessoal, procurava olhar para o momento difícil enxergando a mão de Deus. Minha geração e as mais velhas morriam de medo de uma guerra nuclear com potencial para acabar com a humanidade. Resquícios da Guerra Fria que insistiam em não esfriar. Chegava então um vírus ameaçador, que tirava o homem de circulação, criando uma situação de sobrevivência em que muitos aspectos da existência humana eram questionados. Famílias isoladas aram a conviver mais tempo em um mesmo ambiente, forçando, talvez, mais diálogo, mais troca. Vizinhos se uniam para ajudar quem precisava, uma demonstração de solidariedade que comovia. A Itália sofria os piores horrores com a doença, mas, mesmo assim, as águas dos canais de Veneza eram uma imagem surpreendente, não apenas uma visão clara e cristalina do leito de areia, mas também de cardumes de pequenos peixes, caranguejos em fuga e plantas coloridas. Tudo estava calmo como um lago porque não havia mais as ondas causadas pelos famosos vaporettos, barcos a motor para o transporte público. Havia esse lado, que não podia ser desprezado, dava para ver um sentido oculto no rastro de destruição provocado pelo coronavírus. A meu ver, pagávamos uma conta alta pela arrogância humana, o homem não era senhor da situação, nem dono da razão, não adiantava protestar. O inimigo invisível ganhava a batalha.

Nesse ponto, daria para parar tudo e só escrever sobre a pandemia, vivíamos um momento triste e marcante da história. A luta contra o vírus desafiava todas as camadas da sociedade, ensinando a resgatar valores humanos e de exercício pleno da cidadania. Aprenderíamos a lição? Meu duro tratamento contra o câncer tinha como plano de fundo acontecimentos cuja imprevisibilidade transformava tudo em areia movediça. Se antes o meu equilíbrio emocional podia se apoiar na normalidade do cotidiano, dos dias normais, com o avanço do coronavírus, tudo mudou. O confinamento dentro de casa alterou a dinâmica dos fatos como uma reação em cadeia, há meses, eu vivia limitações que eram só minhas, de repente, a vida na Terra limitou-se a uma sobrevivência que dependia do isolamento forçado. Estar vulnerável dava medo. A vontade era fechar os olhos e desaparecer, como num e de mágica, só reaparecendo depois que a poeira baixasse, bom e curado, num mundo livre da epidemia e de suas consequências. Se antes eu já sonhava com isso, a chegada do coronavírus na praça foi mais um ingrediente para eu divagar. Na falta de paladar, entre náuseas e febres, com dor no braço e no ombro, vários quilos mais gordo, cansado até de descansar, num mundo em quarentena, eu não tirava da cabeça o peso da cruz

que eu tinha que carregar. Era muita dívida para um cara só, acho que fui um matador em série em alguma vida ada. Às vezes, eu pensava assim.

A verdade, porém, não era essa, apesar do toque de dramaticidade dos dias difíceis. Eu era um privilegiado, tinha que ter consciência disso, meus dramas pessoais mesclavam-se com crises mundiais, muita gente sofria muito mais do que eu. De uma forma ou de outra, meu salário não estava ameaçado, nem meu emprego, mesmo isolado e debilitado, minha carreira não havia congelado. Gente que eu não via há muito tempo entrava em contato comigo oferecendo ajuda, amigos dos tempos de graduação, colegas de trabalho anteriores à UFSCar, enfim, ficava até difícil enumerar. Se havia dificuldades, cada vez maiores, havia também esse lado, do apoio que chegava até a mim sem eu correr atrás dele. Mérito dessa e talvez de outras existências. Eu não estava e nem me sentia sozinho, travando uma batalha inglória contra um inimigo cheio de armas e de truques. Muito maior do que eu. O mundo vivia uma fase estranha, de muitos conflitos, de desentendimentos e desencontros, o homem perdia a capacidade de dialogar. Todo mundo tinha razão, todo mundo sabia tudo, a culpa era dos outros, estava esquisito. Nesse contexto, diferentemente de outros vírus como o da dengue, transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, o do coronavírus era transmitido pelo contato direto entre pessoas infectadas. Uma loucura. Pelo menos para mim, segundo a minha crença, havia algo nas entrelinhas, no mínimo, uma lição que precisava ser assimilada.

Buscando alento nas horas mais difíceis, em que tudo acontecia ao mesmo tempo, dor no braço, dor no ombro, falta de paladar, febre, isolamento, a fúria dos céus em cima da gente, eu abria uma janela para o ado. Sempre funcionava. Um dos prazeres nesses momentos era reler trechos de um livreto que eu escrevi sobre a minha participação na Operação Palmares, do Projeto Rondon. Era como voltar no tempo e me projetar para aqueles dias ados no interior de Alagoas, em julho de dois mil e dezoito. Além disso, ajudava a fortalecer aquele sentimento de que tudo era temporário, ciclos de tormenta e de calmaria faziam parte do pacote. Apesar de ter sido criado em um ambiente acadêmico cheio de estrelas e de falsos brilhantes, eu e o meu irmão nunca nos importamos muito com o lado mais competitivo da carreira dentro de uma universidade. Aquele lado que dava status, destaque, que fabricava gente

importante. Sempre fui mais da linha que encarava a carreira acadêmica como um ganha-pão normal, igual a outro qualquer. Dentro do possível, encontrei satisfação pessoal em atividades que, se não eram pesquisa de ponta, nem pontuavam muito na progressão funcional, enchiam-me de ânimo. O Projeto Rondon foi uma dessas atividades.

O Projeto Rondon é mais ou menos assim. Duas vezes ao ano o Ministério da Defesa divulga no Diário Oficial da Nação, a carta convite para que IES, Instituições de Ensino Superior de todo o Brasil, enviem propostas. Existem duas modalidades de atuação nas operações do Projeto Rondon, as do conjunto A, nas áreas de Cultura, Direitos Humanos e Justiça, Educação e Saúde, e as do conjunto B, nas áreas de Comunicação, Tecnologia e Produção, Meio Ambiente e Trabalho. Na Operação Palmares, os paulistas da UFSCar se desdobraram nas atividades do conjunto B. Após serem submetidas, as propostas são classificadas e a Coordenação-Geral do Projeto Rondon seleciona as melhores, designando os respectivos municípios onde são desenvolvidos os trabalhos. O interior das regiões norte e nordeste do país recebe quase que regularmente operações dessa natureza. Cada equipe de universitários é composta por um professor coordenador, um adjunto e oito alunos de graduação. Todo mundo rala para estar no projeto. Divulgado o resultado, também no Diário Oficial, o coordenador da equipe participa da viagem precursora um par de meses antes da operação, indo pessoalmente ao município de atuação para sondar o terreno. Para quem pensa que a rotina em uma universidade é algo entediante ou maçante, a participação no Projeto Rondon tinha um quê de aventura.

Fui à três operações do Projeto Rondon, todas pela UFSCar. Minha primeira participação foi em julho de dois mil e quatorze, dentro da Operação Guararapes, na minúscula Lagoa do Ouro, do agreste pernambucano. O espírito da coisa era contribuir com ensino em regiões mais carentes do país, atuando como multiplicadores do conhecimento. Nessas atividades, os alunos universitários lidavam com o público e os professores ficavam na retaguarda, nos bastidores, viabilizando o que fosse necessário. Gostei muito, uma baita experiência profissional e de vida. Em janeiro de dois mil e quinze foi a vez da minha segunda participação, na Operação Porta do Sol, em Araruna, um dos principais municípios do agreste Paraibano. Por fim, em julho de dois mil e dezoito fui para

Coité do Nóia, no interior de Alagoas, pela Operação Palmares. Atuar nessas operações era uma verdadeira lição de cidadania, de contato com uma realidade muito diferente da minha, dos privilégios e das oportunidades. A gente trabalhava feliz, se divertindo e se emocionando com o público que aprendia e também ensinava. O deslocamento para essas operações era uma verdadeira estratégia de guerra, em aviões militares, com escalas imprevisíveis. A hospedagem não ficava atrás, dividindo parte do tempo entre quartéis, batalhões ou acampando em creches, escolas municipais, centros de assistência, só para citar alguns.

Bom mesmo eram as lembranças compartilhadas. Certa vez, durante a Operação Palmares, logo após o café da manhã, eu segui com dois alunos e uma aluna, o franzino Gustavo, o agroboy Luan e a bela Julia, respectivamente, para o povoado de Cruzes, onde visitamos artesãos que confeccionavam cestos, peneiras e balaios de palha destinados, principalmente, à capital Maceió. Boa parte dos artífices eram mulheres, que trabalhavam em suas casas, com uma habilidade que parecia de outro planeta. Quando chegamos, as ruas da comunidade estavam desertas, todo mundo ocupado, fazendo alguma coisa. Entramos, ao acaso, em uma das casas para acompanhar o trabalho de uma artesã, a convite dela. Vê-la trançando a palha, com uma velocidade impressionante, lembrava o funcionamento de uma máquina, só que não era.

- Ah, eu quero tentar!

O Gustavo foi o único que se animou a meter a mão na massa, ou melhor, na palha. Sentado no chão, de pernas cruzadas como se fosse meditar, o jovem estudante de biotecnologia pegou um punhado de fibras de palha e se meteu a torcê-las e a trançá-las, seguindo as orientações da moça artesã. Nunca gostei de nada que demandasse coordenação, aquele jogo de mãos e de dedos que parecia enganar os olhos, como um truque de mágica, não era para mim. Acho que nem para o Luan e a Julia, que preferiram ficar quietinhos ao meu lado, vendo o sorridente Gustavo se atrapalhar todo.

- Nossa, que difícil!

Sim, era difícil, ainda mais para um principiante. Mas rondonista não desistia nunca, nem podia, estava escrito no edital, depois de fazer e desfazer várias vezes o zigue-zague das palhas, determinado a ir até o final, nosso voluntário finalmente chegou a uma pequena peneira, sem acabamento, do tamanho de um biscoito de água e sal. O esforço havia sido recompensado. irando sua minúscula peneira como se estivesse diante da fórmula da fusão a frio, vesgo de tanta emoção, o Gustavo era só exclamações.

- Gente, olha isso!

Lá estava a peneira, parecia de brinquedo, menor que a palma da mão. Enquanto vivíamos aquele momento artístico, compartilhando a alegria do Gustavo com a sua criação, memórias eram fabricadas. A pinta de pré-adolescente, somada com a silhueta de Peter Pan, escondia um gigante dentro daquele menino. O Gustavo Américo venceu uma duríssima batalha contra o câncer, ainda muito jovem, teve muita coragem e a bravura de um verdadeiro guerreiro, como na lenda de Maculelê, que os nossos alunos encenaram no encerramento da Operação Palmares. Sempre sorridente e animado, no ritmo corrido do Rondon, o Gustavo irradiava alegria, nos momentos mais duros do meu tratamento, seu exemplo de superação foi uma inspiração para mim. Nos tornamos grandes amigos.

Nas horas difíceis, viver de ado, das lembranças boas, dos tempos de alegria, era um poderoso antídoto contra o baixo astral. Saber que os ciclos de altos e baixos fazem parte da vida, simplesmente olhando para o ado, que revelava claramente tudo isso, era um enorme consolo. Em mensagens de fé e de esperança, dessas disponíveis na internet, havia referência frequente a momentos difíceis como a travessia de uma ponte, unindo dois lados, separados por grandes penhascos, ou águas revoltas. A minha percepção dizia que essa travessia era na verdade um mergulho no escuro, para dentro de um túnel sem luz, não vendo nada, tendo fé e esperança mesmo assim. Vivíamos o imponderável, uma

experiência insólita que transformava ficção em realidade. Enquanto isso, em meio ao pandemônio da pandemia, ao meu tratamento contra o câncer, à escuridão do túnel, a vida continuava, com insistência, quase teimosia. Como tinha que ser. O mundo estava de ponta cabeça, eternizando gradualmente recordações tristes de um período que não estava nos planos de ninguém. Nem nos meus piores pesadelos eu imaginei viver o que eu vivia, mas não havia outra opção, fé e esperança acima de tudo, eu estava doente e o mundo estava doente também. Em agosto de dois mil e dezenove eu descobri que tinha câncer de cólon, sete meses depois, o mundo parecia desmoronar, e eu sobrevivia.

JE NE REGRETTE RIEN

Eu não me arrependo de nada. Parece que ouço a bela canção na inigualável voz de Édith Piaf, lendária cantora sa que viveu várias encarnações em seus quarenta e sete anos de vida. A pequena Piaf fez de tudo, trabalhou sem parar, cantou e encantou, tomava medicamentos para dormir e para acordar, sofreu horrores, com amores e doenças, casou-se com um homem vinte anos mais jovem e até morrer, um ano depois, em outubro de mil novecentos e sessenta e três, não se arrependia de nada. Era o que ela dizia, e cantava. Eternizou-se como grande estrela mundial. Arrependimentos fazem parte da vida, tomar a decisão correta na hora certa, escolher um caminho e não o outro, tornam-se dramas que tiram o sono do ser humano. Minha biografia nanica também foi, a meu ver, acertada. Eu poderia ter feito diferente, mas não necessariamente, melhor. O somatório de dificuldades que eu e o mundo compartilhávamos me forçou a repensar a minha trajetória, sem arrependimentos. Desde que eu nasci, oportunidades não me faltaram, e eu não as desperdicei. Se deixei muita coisa de lado, fiz o que me pareceu suficiente no tempo que eu tive. O genial Cazuza se dizia um exagerado, e era mesmo. Eu sempre fui o oposto, cometido, nunca me atirei em nada, nem mergulhei de cabeça em projeto nenhum, considero-me um cara morno, fui feliz assim.

Sem arrependimentos, na tarde quente de oito de agosto de dois mil e dezenove, eu descobria que tinha câncer. Eu me preparava para o começo do semestre letivo, tinha uma fila enorme de coisas para fazer, iria para a Espanha no final do ano. Vivia mais uma reedição de anos anteriores, sem muita empolgação, repetiria as mesmas aulas, trabalharia em cima dos mesmos temas, conviveria com as mesmas pessoas. Por fim, nada disso aconteceu, a minha vida mudou, nem parecia a mesma. Antes e depois do diagnóstico do câncer, assim seria dali em diante. ados mais de sete meses, da cirurgia para a retirada do tumor no cólon, após a décima seção de quimioterapia, o mundo desmoronava enquanto eu buscava me equilibrar no fio da navalha. O sentido de quase tudo mudou, mergulhei fundo nas profundezas do meu interior, descobri coisas ocultas, fui forçado a conviver mais tempo comigo mesmo, tive que melhorar. Senão, a vaca iria para o brejo e eu sabia disso. Nascer com vinte e cinco anos nas costas me

fez um cara diferente, que ficava mais diferente ainda a cada dia do tratamento. Sentia-me bastante cansado, talvez pelo estresse adicional do mundo em quarentena, da pandemia do coronavírus, ou talvez pelo longo tratamento e o acúmulo de efeitos na minha vida. A verdade era que nos últimos dias eu não tinha energia para nada, parei os estudos, a escrita, só lia um pouco e assistia televisão.

Na manhã do dia trinta de março, fui fazer meus exames de sangue de rotina, cruzando as ruas desertas de uma cidade fantasma. Não restava dúvida, a bruxa estava solta. Além da pandemia, São Carlos continuava sofrendo com as enchentes, mais uma vez, encontrei ruas barrentas, um carro abandonado, enfim, uma lista de ingredientes para os dias obscuros de dois mil e vinte. Fui o único paciente atendido no amplo laboratório de dois pisos, numa esquina bem em frente à entrada principal da Santa Casa. Era uma experiência nova para mim, o atendimento foi feito em, no máximo, dez minutos, sem espera. Entrei sozinho no prédio, de máscara, ei pelas etapas protocolares, meu sangue foi colhido e eu saí, a jato, de lá. Eu estava sonado, bastante exaurido, a curta caminhada, a os lentos, até o meu carro, foi o suficiente para me tirar completamente o fôlego. Respirava profundo, observando, da calçada, o mísero movimento de carros e de pessoas, meio perdido entre o desânimo e o dever, ou melhor, a obrigação de sair daquela carga negativa. Não tinha como lutar contra os fatos, mas tinha como reagir a eles. O câncer, entretanto, me deixava debilitado, sem reação, era estranho ficar ivo como um mero expectador diante de tanto estímulo à uma verdadeira guerra contra o inimigo invisível. Inimigo esse que hora se apresentava como um vírus mortal, e hora se materializava no comportamento desumano de certas pessoas.

Março aproximava-se do fim, os primeiros dias de outono chegavam com temperaturas mais amenas e, pelo menos em São Carlos, muita chuva. As dores na região do cateter eram maiores, de acordo com os meus benfeitores da Santa Casa, um dos medicamentos usados na quimioterapia era muito sensível a variações de temperatura. Desde as primeiras seções de injeção em novembro, eu já não tolerava proximidade com nada gelado. Evitava chegar perto da geladeira, era difícil abrir mão de bebida gelada, mas só conseguia dar um gole, ou dois, nas semanas de folga da quimioterapia. Na época das injeções, nem

pensar. Nunca fui beberrão, fazia sete meses que eu não bebia cerveja, de certa forma, uma bebidinha alcóolica estava fazendo falta. Seria um consolo, certamente. Ter fé, esperança, clareza de ideias, etc., sem pimenta e sem cerveja, era possível, mas difícil. A semana da minha décima primeira seção de quimioterapia começava em meio à efervescência que comandava o mundo. O coronovírus seguia fazendo suas vítimas, o número de mortes ava de trinta mil, no Brasil, a taxa de infectados assustava. Nosso presidente não estava nem aí, expunha-se ostensivamente em aglomerações, ia contra todas as recomendações da OMS, ameaçava a população com decretos, fazia o diabo para infernizar. Era a alegria de seus seguidores fanatizados, ganhou da imprensa internacional a reputação de burro e de palhaço, e o apelido de BolsoNero. Aos olhos do mundo civilizado, ele piorava o que já era ruim.

Enquanto isso, meu tratamento seguia a todo o vapor. No dia trinta e um de março, terça-feira de sol e temperatura amena, eu tive minha décima primeira seção de quimioterapia. Fui feliz para a Santa Casa, sonhando acordado com o ponto final dessa história verídica, que se aproximava do desfecho. Ponto final digitado por mim mesmo, curado, pronto para uma nova vida, cheio de otimismo com o futuro. Um futuro diferente, melhor, mais bem aproveitado, no mínimo, menos desperdiçado. Jogar tempo fora com o que não valia a pena, não dava mais, era preciso reescrever tudo, mudando meu jeito de encarar o dia. Tudo verdade, linha por linha vivida por um mortal comum, desconhecido, capiau de Rio Claro, professor, são-paulino, dono de um fusquinha, amante da estrada e da boa gastronomia, se possível, com pimenta. Sete meses sem cerveja! Já disse isso. As ruas estavam desertas, cheguei à Santa Casa em dois tempos, gastando menos da metade do tempo que eu levei para fazer o mesmo trajeto no período das enchentes. Dois mil e vinte, só bucha! Mas, apesar de tudo, o bom avanço do tratamento me animava, eu não estava em condições de ser solidário com os outros, mais do que comigo mesmo. Eu precisava de ajuda constante, e ela vinha principalmente da minha cabeça, dos meus pensamentos, da minha vontade de ficar bom e de seguir em frente com a minha vida.

A Santa Casa estava muito vazia, o único o disponível era pelo Pronto Socorro, onde havia o controle de quem podia entrar. Eu preferia entrar pela ala de radioterapia, cuja portaria era próxima a uma pracinha onde o meu pai me

deixava. Devido à pandemia, o hospital mais parecia uma capsula da NASA, dava um medo danado estar naquele ambiente, mas não tinha outro jeito, o tratamento tinha que continuar. A vida também. A decoração de Páscoa dentro da Santa Casa destoava com a tristeza das ruas desertas, bem ao lado da porta de entrada da ala de quimioterapia, havia um ovão tamanho família, e coelhinhos de papel sorridentes. Ajudava a melhorar o astral. Os profissionais da saúde estavam em alta no mundo todo, eram aplaudidos por onde avam, eu tinha contato com eles semana sim, semana não. Na China e na Itália, assim como nos demais países em que o coronavírus infectou muita gente, vários desses profissionais perderam a vida, trabalhando justamente para salvar vidas. Meu respeito por médicos e enfermeiros mudou, havia agora razão e gratidão para eu olhar para essa gente de branco de forma diferente. Salvaram a minha vida e salvavam muitas outras, isso nunca tinha ficado tão evidente quanto na época da pandemia.

A ala onde eu recebia as minhas injeções tinha dois ambientes, com um televisor em cada um deles. Neles, assistíamos as últimas notícias sobre o cornovírus, um adversário de peso, tão ou mais cruel do que o câncer. Aliás, por causa do vírus, quase não se falava em câncer. Eu havia perdido a inibição de falar sobre o câncer, mas morria de medo da doença, mais do que antes. Acho até que já comentei isso aqui, se não comentei, era a pura verdade. Antes de ficar doente eu não tinha medo nenhum do câncer, jamais imaginei que um dia eu teria que enfrentá-lo. Câncer e quimioterapia eram exclusividade dos outros, ou melhor, da família dos outros. Eu era saudável, disposto, sem graça, mas pronto para o que desse e viesse. Comia bem, dormia bem, corria uma hora todos os dias de manhã, de domingo a domingo, no sol ou na chuva. Corri, inclusive, no dia em que fui internado para a retirada do tumor. Maligno, por sinal. Câncer? Jamais! Não nessa vida. Outro dia eu comentei em casa que queria tirar a minha própria próstata só para não correr riscos, tamanho o medo que eu tinha do tal câncer. Meus pais não me levaram à sério. De qualquer maneira, deixei anotado na minha lista de coisas a fazer pós-tratamento. Mudar de São Carlos e tirar a próstata. Talvez estivesse ficando louco, um maluco beleza, achei que jamais teria câncer. Doce ilusão.

Por falar em doce e mudança de São Carlos, me veio uma doce lembrança da

minha infância, reforçada pela proximidade com a Páscoa. Quando nos mudamos de vez para São Carlos, no início da década de oitenta, a cidade tinha em torno de cento e vinte mil habitantes, havia poucas opções de lazer e nós ainda éramos, na essência, cariocas. Tirando o meu pai, feliz com o trabalho na UFSCar, reclamávamos de tudo, o tempo todo. Em pouco tempo, porém, a cidade nos conquistou. De minha parte, a conquista começou pelo estômago, todos os fins de semana, meu pai me levava para comer um sanduíche americano caprichado no Bar do Pistelli, na Rua Episcopal, bem no meio do quarteirão, entre as ruas General Osório e Geminiano Costa. Pãozão na chapa, apresuntado e queijo, ambos bem gordos, dois ovos fritos, alface, que eu tirava, e tomate, que eu tolerava. Décadas mais tarde, já como docente da UFSCar, meu colesterol bateria na casa dos 330 mg/dl, muito acima do normal. Mas na minha infância eu podia tudo, e mais um pouco. Naquela época, uma peculiaridade da cidade era ter uma fábrica de chocolates de médio porte bem ao lado da rodoviária, na esquina da rua São Joaquim e a Jacinto Favoretto. A Chocolates Serrazul impregnava aquela região com o cheiro gostoso do doce. Alguns reclamavam, mas eu adorava, achava ótimo! A espera literalmente cheirosa pelo ônibus intermunicipal era uma marca registrada de São Carlos.

Tinha também o golpe da velhinha, para quem desse bobeira nas cercanias da rodoviária. Lembre-se, você aí, eu vou, mas eu volto. Por hora, vamos de lembranças. Era o seguinte, morava sozinha, numa casa que já não existe mais, ao lado da rodoviária, uma senhora idosa do balacobaco. Parecia saída de um romance do Dias Gomes. Um belo dia, acompanhei o meu pai que iria fazer alguma coisa na rodoviária, enquanto ele se virava por lá, eu fiquei esperando no carro. Do nada, aproximou-se da janela do Fusca uma idosa aos prantos, chorando copiosamente, quase em cima de mim. Levei um baita susto, que o tempo não apagou. Não me lembro das feições da velhinha, mas acho que ela era igual a muitos descendentes de italianos que viviam em São Carlos, provavelmente, viúva de algum funcionário aposentado da FEPASA. Pois bem, do longo lamento, a única parte que eu entendi foi que ela queria uma carona até a Santa Casa. Nada demais, esperei o meu pai chegar e contei para ele o pedido da senhora. Obviamente, meu pai concordou na hora. Fui então com a velhinha até a casa dela, caminhando apressadamente ao seu lado, indo em direção ao famoso golpe que eu seria vítima. Enquanto ela se produzia para sair, fiquei esperando na varanda, em frente à casa, bem antiga. Resumidamente, voltei para o Fusca, ao lado da golpista com ares de vovozinha, carregando um botijão de

gás, com uma lista de compras para ela e para os diversos filhos. Até hoje não sei se o golpe incluía as compras também, ou se era só o transporte.

Fui enganado facilmente. A velhinha só não contava com o gênio forte do meu pai.

- Largue isso aí, já! - com gesto de mão e todas as exclamações possíveis, referindo-se ao botijão.

Ambos nos assustamos, a cara de espanto da idosa, toda arrumadinha e perfumada, foi impagável. Eu fiquei meio perdido, confesso que estava ali no meio do fogo cruzado sem entender totalmente o que se ava.

- Se a senhora tivesse dito a verdade, eu a levaria onde fosse, uma vergonha mentir para uma criança nessa idade!

Idade dela, não a minha. A indignação do meu pai, e sua fúria também, foi por conta de me ver sendo explorado, na inocência da minha infância, por uma senhora com idade para ser minha avó. Meus pais sempre foram muito rígidos com relação aos nossos valores morais, não havia flexibilidade em nossa casa. Havia o certo e havia o errado, o que podia e o que não podia. A velhinha havia ultraado uma fronteira intransponível, levou uma tremenda bronca, emputeceu-se, deu chilique, mas ficou por isso mesmo. Sete a um para o meu pai. Levamos o botijão de volta para a casa da idosa, ouvindo impropérios e ameaças de todos os tipos, entramos no Fusca correndo e demos o fora dali. Depois, ficamos sabendo que essa velhinha era conhecida na cidade toda, vivia zanzando de carona para cima e para baixo, sempre na lábia, contando com os desatentos como eu. Desde pequeno eu sou bastante avoado, as vezes me desconecto de tal forma que só o corpo fica no planeta Terra. Por andar meio desligado, como cantaram os Mutantes, fui assaltado na rua três vezes, uma no

Rio, uma em Santo André e a outra em Londres. Em Londres, e em libras esterlinas! Dentro daquelas icônicas cabines telefônicas vermelhas, por um punk drogado com cheiro de fezes. Uma coisa dessas, só comigo! Fiquei um tempão com essa história da velhinha na cabeça, mais precisamente, quarenta anos. Compartilho-a aqui com você. Golpe com cheiro de chocolate, valia a pena ser citado.

Durante a luta contra o coronavírus, houve muita polarização no Brasil. As posições contraditórias do governo federal, a falta de respaldo nas falas do presidente, seu comportamento irresponsável e infantil no período de quarentena vigente em praticamente todos os cantos do mundo, tudo contribuía para desestabilizar a sociedade. A cada aparição do presidente na televisão, aços ensurdecedores revelavam a insatisfação e protesto da população contra o líder que havia virado piada e contraexemplo no mundo todo. Havia o outro lado da moeda, o dos simpatizantes do presidente, que ostensivamente burlavam o isolamento, unindo-se em eatas e carreatas proibidas pela justiça. O mais triste, a meu ver, era que muita gente defendia a economia acima de tudo, deixando a vida, a doença e o sofrimento alheio em segundo plano. Eu fechei os olhos para isso tudo e me defini como um humanista, convencido de que a batalha contra a doença e as mortes por ela causadas seria a minha bandeira. Talvez, até, fosse esse o lado certo. Minha posição parecia convergir com a do resto do mundo, e também com a realidade que eu vivia, em tratamento contra um câncer. Era evidente que a quarentena e o isolamento forçados teriam consequências na economia mundial, mas eu acreditava que daríamos a volta por cima. Era evidente também que eu tinha o privilégio de ser funcionário público, não perderia meu emprego, como já disse anteriormente, não me julgo correto acima de tudo e nem o dono da verdade. Escolhi a luta pela vida, contra o governo brasileiro de extrema direita.

O dia dois de abril amanheceu com céu azul de brigadeiro, temperatura amena, e um ventinho gostoso. O infusor com a dose de quimioterapia que eu levava para casa istrava os últimos goles do medicamento. Era quinta-feira. A região da agulha doía bastante, mas nada era novidade. Os comprimidos não davam conta dessa dor, eu já sabia disso, tinha que aguentar. Dia dois do mês era também dia de pagamento, eu recebia o meu pouco antes da hora do almoço.

Religiosamente, desde que comecei a trabalhar na UFSCar, recebia o meu salário pontualmente até o dia dois do mês. Nunca atrasou. Eu era professor associado nível dois, em dois mil e vinte, teria progressão para associado nível três. O salário pago por uma universidade federal não era dos melhores, mas também não era ruim. Meu padrão de vida era bom, solteiro, caseiro, o dinheiro do mês dava e sobrava. O Fusca só usava gasolina aditivada, eu gostava de comer fora, e de viajar também, enfim, tinha sempre dinheiro na conta para fazer o que eu queria. Se por um lado, eu enfrentava um duro tratamento contra o câncer, por outro, havia atenuantes na minha vida que eu tinha que reconhecer e agradecer. Enquanto isso, nesse dia dois, o número de infectados pelo coronavírus ava de um milhão, com mais de cinquenta mil vítimas fatais.

Às duas da tarde, em ponto, meu pai me levou até a Santa Casa para retirar o infusor. As quarenta e oito horas em companhia da pochete com os quimioterápicos chegavam ao fim, terminava a minha décima primeira seção. A princípio, só faltava mais uma, marcada para o dia quatorze de abril. Eu evitava pensar no término do tratamento para não me iludir, minha saga contra o câncer havia me ensinado isso. Recapitulando, a fissura no intestino, que eu imaginava ter, era, na verdade, um tumor. O tumor, que eu supus benigno, era maligno. A cirurgia para a retirada do tumor maligno, que eu imaginava ter me livrado do problema, foi só o começo. Havia metástase e a necessidade de quimioterapia. Uma surpresa desagradável atrás da outra. Sendo assim, nada de expectativas com relação ao futuro. Ao voltar para o apartamento dos meus pais, depois da retirado do infusor, já na garagem do subsolo, a estrepitosa guitarra do filho do procurador dava o tom da tarde. Aparentemente, o "doutor" ficou ofendido com o pedido dos meus pais e instigava provocações contra o prédio. O garoto aumentava e abaixava o volume do som, numa clara demonstração de que com filho de procurador de estado, não se mexe. Dessa vez, entretanto, pouco me importei, só lamentei tamanha infantilidade, tanto do filho, quanto do pai. Os efeitos desconfortáveis da quimioterapia eram mais fortes nos dois dias após o término do infusor. Eu estava um bagaço, sem forças nem ânimo para protestar contra os acordes de uma guitarra mal tocada.

A sexta-feira seguinte à retirada do infusor era sempre o dia mais duro do tratamento. Os efeitos colaterais da quimioterapia afloravam com força, todos de

uma só vez. No coquetel do sofrimento, tinha febre, tinha indisposição, tinha indigestão, tinha falta de paladar, tinha soluço e muita dor na região do cateter. Até meus ossos protestavam. Como reagir a isso tudo? Simplesmente, não tinha como. O jeito era repouso absoluto, e doses periódicas de ópio, nos comprimidos de Tramal. A partir do momento em que o medicamento começava a atuar, a parte pior do incômodo saía da minha cabeça, ao invés de sentir dor, eu me sentia dolorido, como se tivesse levado uma surra antes, ou um belo tombo. Era diferente, eu me importava menos com a dor, tirava o foco dela, me desconectava. Dava para se viciar facilmente, num e de mágica, algo te tira da dor e do sofrimento, atuando diretamente no sistema nervoso. Funcionava assim, nos momentos de fraqueza, vulnerável às mais variadas tentações, drogas psicoativas tornavam-se mais do que uma alternativa, o prazer de se livrar da dor era indescritível. A minha dosagem era pequena e recomendada por médicos, mesmo assim, me fazia pensar. Eu não tinha o perfil típico do viciado, mas começava a entender a dinâmica do vício e o importante papel da fragilidade.

os de choro eram comuns nos momentos de maior sofrimento. Eu não tinha controle nenhum. Às vezes, parecia riso, quase um ricto, mas não era, era choro mesmo. Não sei ao certo se eu chorava ou se eu era chorado. Uma novidade para mim. ei praticamente a sexta inteira deitado, vendo filmes do Mazzaropi e dos Trapalhões, rindo e chorando. Um dos filmes, Os Vagabundos Trapalhões, de oitenta e dois, mostrava o quarteto dando golpes do bem, nas ruas da zona sul do Rio de Janeiro, para que granfinos adotassem crianças de rua. Os trapalhões eram mendigos, recolhiam crianças órfãs ou abandonadas, acolhendoas com amor e carinho. Minha tia caçula por parte de mãe, a Dayse, costumava levar os sobrinhos para assistirem aos lançamentos de filmes dos Trapalhões, era uma das diversões nas férias no Rio. Íamos ao antigo Cine Madureira 1 e 2, assistíamos o filme, fazíamos um lanchinho e depois voltávamos para a casa dos meus avós, em Magalhães Bastos. Naquela época, os lançamentos chegavam antes ao Rio, a gente voltava para São Carlos, ao término das férias, com várias novidades para contar. A famosa redação de escola "Minhas Férias" vinha recheada dos acontecimentos vividos na Cidade Maravilha, que era, décadas atrás, encantadora.

Voltando um "bucadinho" no tempo, no fim de semana anterior à décima

primeira seção de quimioterapia eu troquei e-mails com o professor com quem trabalhei na Universidade do País Basco, em Bilbao, na Espanha. A pandemia assombrava a Europa, fiquei sabendo que vários conhecidos da época em que eu estive por lá haviam contraído a doença, o Martin não quis entrar em detalhes, muito provavelmente para me poupar de preocupações adicionais, mas foi como ter o vírus mortal mais perto de mim. Indo um "bucadinho" adiante no tempo, no sábado seguinte ao tratamento, dia quatro de abril, um amigo de longuíssima data, professor em Rio Preto, nos informou que sua mãe de oitenta e cinco anos havia falecido de coronavírus em São Paulo. Não bastasse isso, contaminou as duas filhas que conviviam com ela. Era o coronavírus batendo em nossa porta. O aparente término do meu tratamento se embolava com o caos que o mundo vivia. Era pecado chamar de castigo, mas parecia a fúria dos céus em cima da gente. Dois mil e vinte estava sendo um ano muito difícil, se por um lado havia a reflexão sobre a existência humana, os desafios, as lições, o aprendizado, por outro, havia o tempo que parecia não ar, a dor e o sofrimento que insistiam diariamente com ares de presença eterna. De minha parte, via uma ferida enorme se abrir na minha vida, câncer, metástase, quimioterapia, quarentena, um monte de assombrações que driblavam os meus guias espirituais. Minha fé inabalável tremia que nem vara verde. A imprevisibilidade era a carta da vez, tinha uma curiosidade danada sobre o amanhã, como seria depois?

MEU DESTINO

Na manhã do dia primeiro de fevereiro de mil novecentos e setenta e quatro, uma sexta-feira, meus avós maternos chegavam à rodoviária de Rio Claro vindos do Rio de Janeiro. Em meio aos preparativos para comemorar os meus dois anos de vida, minha mãe se desdobrava para receber bem os seus pais, enquanto cuidava do meu irmão recém-nascido. Ingredientes do bolo, salgadinhos, docinhos, guaraná caçulinha, roupa nova para mim, a sexta-feira seria de muita correria e de muita alegria também, tudo deveria estar pronto para a festinha no domingo. Do lado materno, éramos os únicos netos, eu e o meu irmão, minha tia Maria das Graças estava prestes a dar à luz, minha prima Alessandra nasceria em Paris exatamente uma semana depois do meu aniversário. Chique, mas naquela sexta-feira, reinávamos sozinhos em Rio Claro. Minha avó, que era meu xodó também, detestava sair de sua casa no Rio, mas estava feliz, ajudando a filha mais velha a preparar a segunda festinha do neto mais velho. Morávamos em casa própria, na esquina da Avenida Vinte e Nove com a Rua Sete, como já dito, meu pai era professor no Departamento de Física da UNESP, tínhamos um bom padrão de vida, aos poucos, meus pais conquistavam conforto e estabilidade para a família que já estava completa, após a chegada do Flavio. Tudo fluía suave como uma valsa. Eu era vesguinho e saudável, sabia cantar Carinhoso, do Pixinguinha, para delírio dos fãs, adorava carrinhos e vivia dias bons atrás de dias bons.

Nessa mesma manhã, bem cedindo, no centro de São Paulo, a jovem Volquimar Carvalho dos Santos, de vinte e um anos, seguia para mais um dia de trabalho no vigésimo terceiro andar do Edifício Joelma, localizado bem no início da Avenida Nove de Julho, próximo à Praça da Bandeira e ao Vale do Anhangabaú, de costas para a Avenida Vinte e Três de Maio. O céu cinza despejava uma chuva fina sobre a cidade, mais do que uma garoa. No dia anterior, Volquimar havia faltado ao trabalho para preparar a documentação necessária a fim de se matricular no curso de Letras da USP, para o qual havia sido aprovada no vestibular. Enfim, aos vinte e um anos de idade, a jovem muito provavelmente vivia projeções e mais projeções quando entrou no elevador que a conduziria para o setor onde trabalhava. A aprovação no vestibular, os trâmites da matrícula, a expectativa

para o início do curso, um futuro melhor, coisas boas orbitavam a sua cabeça, subindo andar após andar do Edifício Joelma, enquanto, distante dali eu acompanhava, cheio de curiosidade, o agito com a chegada dos meus avós a Rio Claro. Duas vidas, dois destinos bem diferentes. O que parecia ser a banal repetição de mais um dia de rotina na vida da jovem, entretanto, logo se transformaria em tudo menos isso. Funcionária do antigo Crefisul, Volquimar trabalhava como gravadora de processamento de dados e iniciava sua jornada quando um curto-circuito no ar-condicionado deu início a um incêndio no décimo segundo andar do prédio. Começava a tragédia.

Em Rio Claro, o clima festivo era ouvido na vizinhança em altos decibéis. Nossa simpática casa de esquina parecia de desenho animado, tremia que nem gelatina de tanto barulho. Minha família do Rio era falante, sempre foi, falavam ao mesmo tempo, preenchiam qualquer espaço, enchiam de luz qualquer ambiente, Nelson Rodrigues teria um banquete de personagens, ao seu dispor, se conhecesse de perto, a galera de Magalhães Bastos. Dona Olga, minha avó, à época com quarenta e quatro anos de idade, tomava conta da cozinha, mal havia depositado as malas no quarto onde dormiria, e já começava a adiantar os quitutes que seriam consumidos na minha festa de aniversário. Eu ficava pela casa que nem barata tonta, sabia que era o centro das atenções, fazia as minhas graças, mostrava os meus carrinhos e cantava Carinhoso, a pedidos. Enquanto isso, em São Paulo, a luz dos olhos da jovem Volquimar extinguia-se para sempre, sufocada pela fumaça tóxica do incêndio que vitimou cento e noventa almas. Ela era um pouco mais nova do que a minha mãe, saiu de casa para trabalhar numa sexta-feira chuvosa, cheia de planos para o futuro, sem saber que sua vida estava com os segundos contados. A gente nunca sabe, é bom não saber mesmo. O saldo daquela manhã de primeiro de fevereiro de mil novecentos e setenta e quatro era esse, uma tragédia ceifava vidas no centro de São Paulo enquanto em Rio Claro, uma reunião de família enchia a nossa casa de alegria.

Curioso esse aspecto aleatório dos caminhos que o destino pode nos levar. Se tivesse faltado ao trabalho na sexta, e não na quinta-feira, talvez Volquimar estivesse viva até hoje, seria uma senhora com idade próxima à da minha mãe, formada em letras pela USP, quem sabe. Seus filhos, se os tivesse, seriam adultos, com filhos, por que não? Pois é, mas essa vida não seria a dela. O

destino não quis assim. Ao invés disso, ela morreu jovem, preparando-se para um futuro que nunca chegou. Sua última hora de vida foi lutando contra o terror de um incêndio tristemente famoso, até hoje. Quando, muitos anos depois, morei no Paraíso, em São Paulo, certa vez eu ei ao lado do edifício Joelma, renomeado de edifício Praça da Bandeira. À época da tragédia ele era recéminaugurado, mas apesar de novo, pecava em vários dos quesitos básicos de segurança vigentes na atualidade. Muitas vidas se perderam por causa disso, naquela manhã chuvosa em fevereiro de setenta e quatro. Cada um com a sua trajetória aqui na Terra, quem perdeu a condução e chegou atrasado ao Joelma, sobreviveu ao incêndio. Na verdade, ganhou ao invés de perder. Minha trajetória, eu a desconheço, ela vai acontecendo, melhor assim, não sei onde vai me levar, um dia ela chega ao fim. Só sei que, terminada aquela manhã de primeiro de fevereiro, eu almocei no colo da minha querida avó, bati dois pratos, e fui tratado a pão de ló, como o Rei da Romênia.

O incêndio do Joelma chocou o Brasil, as cenas de pessoas saltando para a morte, ou queimando vivas, invadiram os noticiários. Acredito que ao ficar sabendo do incêndio, sabe-se lá como, o jovem estudante do quarto ano de engenharia mecânica da UNICAMP Jair Presente, de vinte e cinco anos, deve ter ficado bastante chocado. A morte significava pouco para ele, a vida falava mais alto. Assim como Volquimar, Jair também galgava seu lugar ao sol, estudava, dava aulas, tinha amigos, se divertia. Eram os anos de chumbo no Brasil, e também de milagre econômico, a ditadura militar nadava de braçadas, livre e solta, não havia resistência a ela. Os jovens universitários daqueles tempos se deram conta de que a permanência de militares no poder seria longa, e relaxaram. Apesar da profunda tristeza que se abateu sobre o país na manhã de primeiro de fevereiro de setenta e quatro, Jair não abriu mão dos planos para o fim de semana e, no sábado, junto com amigos, seguiu para um pesqueiro em Paulínia, às margens do Rio Atibaia. Diversão típica do interior. Hoje parte integrada da região metropolitana de Campinas e de sua paisagem urbana, Paulínia era em setenta e quatro uma cidadezinha separada por uma pequena distância de vinte e poucos quilômetros que tinha cara de viagem.

O dia dois de fevereiro foi longo em Rio Claro, mulheres na cozinha o tempo todo, meu pai com o meu avô circulando de carro pela cidade, e eu e o meu

irmão pulando de colo em colo. O Flavio ainda não tinha dois meses, mas era um bebê grandão, nós dois nascemos com mais de quatro quilos. Rio Claro, a cidade azul, era em boa parte plana, simpática, limpa, bem do interior. Os cariocas adoravam ear pelas ruas estreitas da cidade, um contraste danado com o que eles estavam acostumados. Cento e setenta e poucos quilômetros dali, São Paulo vivia o luto pelo trauma da véspera, o incêndio do Joelma jamais seria esquecido. Enquanto a minha família celebrava a vida, a da Volquimar tentava assimilar sua ausência, com grande sofrimento. Um quarto vazio, fotos na estante, roupas no armário, livros de cabeceira, um presente feito de lembranças em que só o ado sobreviveria. Outras famílias de vítimas seguiam o mesmo rito de lidar com as perdas. Ninguém estava previamente preparado para aquelas mortes, acidentes têm essa característica, não houve doença, nem ameaça, só a força do destino. O sábado era o mesmo, mas os ânimos eram bem diferentes, tanto em Rio Claro, na casa dos meus pais, quanto em Paulínia, entre o Jair e seus amigos. Ainda havia resquícios de fumaça no Joelma.

Eis que chega o domingo, três de fevereiro de mil novecentos e setenta e quatro, dia de festa na Avenida Vinte e Nove, número setecentos e dezenove. Não dava para entender a dinâmica daquele dia, era muito para a minha cabeça, eu recebia todos os olhares, todos os sorrisos, fazia um enorme sucesso. Carinhoso, na minha voz, virou um hit lá em casa. Havia uma correria danada para a festinha que seria feita no período da tarde. Bolo no forno, guaraná na geladeira, isso e aquilo, seriam poucos convidados além dos familiares, na verdade, alguns vizinhos mais chegados e um colega de trabalho do meu pai com a família. Aliás, esse colega, anos depois, compraria o Dodge Dart amarelo que eu tanto gostava. Uma outra história, já contada. Nesse mesmo domingo, bem cedo, o Jair Presente e seus amigos saíram de Paulínia, onde haviam pernoitado, e decidiram rumar para a Praia Azul, em Americana, distante trinta quilômetros do pesqueiro. Às margens da Represa de Salto Grande, no rio Atibaia, a Praia Azul era um point de encontro e diversão como vários outros no interior. Em Campinas, a família do jovem estudante de engenharia não ficou sabendo da mudança de planos. As manchetes dos jornais diziam que ainda havia muitos corpos não identificados entre as vítimas do incêndio no Joelma.

Tudo pronto para a minha festinha de dois anos, bolo, docinhos, salgadinhos,

bexigas, guaraná caçulinha entupindo a geladeira, missão cumprida. Depois do corre-corre, a manhã terminava com um almoço improvisado e, seguindo a tradição, comi no colo da minha avó, dois pratos cheios na sequência. Pois bem, enquanto eu me afogava de tanto dengo, em Americana, o corpo inanimado do Jair Presente, afogado pelas águas da Praia Azul, era o retrato de um domingo que não seria como os outros. Volquimar e Jair, dois jovens, duas biografias interrompidas, incompletas, encerradas sem aviso prévio, tragicamente. Como se preparar para isso? Comemorei meus dois anos de vida com a felicidade sincera de quem não sabia disfarçar a alegria que sentia. Cantaram Parabéns Pra Você, eu só batia palmas e sorria, minha especialidade era outra, Carinhoso, do Pixinguinha. Desejaram muitos anos de vida para mim, eu nem sabia o que isso significava. Meus dias continuaram, os anos seguiram adiante, o tempo ou, até carioca eu virei, fui alfabetizado no Rio, penava com uma bronquite que me deixava com muita falta de ar. Jamais esqueci ou esquecerei isso. Mesmo assim, minha infância foi muito boa, a adolescência e a juventude também. Rio Claro virou agem nas minhas várias idas e vindas pela rodovia Washington Luiz. Nossa casa na Avenida Vinte e Nove ganhou um novo piso e virou um sobrado. Nada faz lembrar a casa de esquina onde rolou a minha festinha de dois anos. Setenta e quatro jazia longe no ado, mas seus ecos continuavam por aqui.

Naquele longínquo ano de mil novecentos e setenta e quatro os meus avós maternos tinham quarenta e poucos anos, nas fotos do meu aniversário de dois anos, eles parecem muito mais pais do que avós. Ambos morreram de câncer no estômago, meu avô em dois mil e cinco, aos setenta e quatro anos, e minha avó em dois mil e dezesseis, aos oitenta e seis anos. Os dois apagaram como vela, pouco a pouco, depois do diagnóstico tardio com a sentença de morte emitida pelo médico. Nada pôde ser feito, a espera durou poucos meses, tempo suficiente para a gente se preparar. O desencarne, em si, foi tranquilo, sereno, Seu Ayr, meu avô, já internado no INCA, Instituto Nacional de Câncer, cochilou num começo de tarde, e não mais acordou. Dona Olga faleceu em casa, em torno das três da tarde de dezoito de novembro de dois mil e dezesseis, estava muitíssimo fraca, era só pele e osso. Deitada em sua cama, minha avó permaneceu lúcida até o final, pediu um copo de leite batido com banana, tomou um gole, depois disse que iria descansar, teve um rápido movimento de olhos, como quem busca imagens apressadamente, suspirou e partiu. Estava na companhia de três filhos, a minha mãe, a minha tia Maria das Graças e o meu tio Ayr Manoel, de um genro, o meu pai, de uma irmã, a tia Diva, e minha, o neto mais velho. Havíamos

chegado na véspera, uma viagem triste, sabíamos que o fim estava próximo. Estávamos conformados, era o jeito, tivemos tempo para nos acostumar com a ideia.

A Volquimar e o Jair, entretanto, não tiveram o mesmo tempo, a vida deles parecia projetada para o futuro, eram jovens, estudavam e trabalhavam. Eram uma obra em progresso, deixaram uma biografia com cara de filme sem fim. Uma morte complicada, prematura. Não fizeram um monte de coisas, não se formaram, não se casaram, foram arrancados brutalmente da existência, deixando uma perturbação danada para os que por aqui ficaram. Em comum, além da juventude, das tragédias e das datas próximas de falecimento, ambos os jovens não perderam tempo do lado de lá e logo se comunicaram através da mediunidade. Se você quiser saber mais sobre o desencarne de Volquimar e Jair, o livro Somos Seis, fruto de cartas psicografadas pelo Chico Xavier, é uma excelente referência. Lá você vai encontrar uma citação que eu destaco aqui. Na verdade, duas, uma para cada desencarnado, que têm a ver com premunição ou algo parecido. Antes de concluir, só mais um parênteses, tem também o filme Joelma Vigésimo Terceiro Andar, inspirado na Volquimar, em que o papel da protagonista foi interpretado pela competentíssima atriz Beth Goulart, aquela que era a cara da escritora Clarice Lispector. Fecha parênteses. Em ambos os casos, tanto no da Volquimar quanto no do Jair, houve pressentimento, um malestar inexplicável, ou mal explicado. Enfim, houve sinais, sutis, mas dignos de nota.

Tudo isso porque, às vésperas da sexta-feira santa, em plena quarentena, sonhei com um acidente que eu tive em fevereiro de dois mil e sete, pouco antes do começo das aulas. Não sei o que me levou a ter esse sonho, mais um para a coleção, fazia tempo que nada muito impressionante acontecia comigo. Depois do episódio envolvendo o fulano que apareceu no meu quarto com um relógio na mão, ei a ter um certo receio à noite, bem oscilante, diga-se de agem. Tinha horas que me vinha a coragem de querer interagir com o oculto, mas, na maioria das vezes, eu ficava com medo do assunto. Era muito tabu para se quebrar de uma só vez. Quando adoeci, procurei indícios de que avisos foram dados, como já mencionei aqui, eu acho que nos meses anteriores ao diagnóstico do câncer, fui preparado. Acredito que os meus guias espirituais atuaram em

mim, discretamente, como tinha que ser. Eu não estava preparado para nada muito ostensivo, o próprio sonho com um mundo de relógios, quando fiz a colonoscopia, merecia ter sido mais bem interpretado. Era a segunda vez que eu tinha aquele sonho, exatamente do mesmo jeito. Na primeira vez, eu descobri que tinha um aneurisma cardíaco e, na segunda vez, veio a revelação do câncer de cólon. Sempre relógios! Seria isso uma premonição?

Uma premonição (do latim praemonitio, "aviso") indica a sensação de saber o que acontecerá no futuro. É uma intuição de origem inexplicável, que podia ser parapsíquica. Algumas pessoas têm sonhos premonitórios, existem relatos impressionantes. Lembro-me que quando os Mamonas Assassinas morreram, em março de noventa e seis, circulou na imprensa um vídeo do tecladista da banda dizendo ter sonhado com um avião que caía. No vídeo caseiro, feito por um cabeleireiro na manhã do mesmo dia do acidente aéreo, havia um tom de desabafo, o músico parecia realmente estar cismado com o teor do sonho, ou melhor, do pesadelo. Obviamente, após a morte dos Mamonas, o vídeo ganhou repercussão nacional, gerando muita especulação. Videntes que comeram barriga e não previram a morte dos Mamonas, aproveitavam o vídeo para divagar em revelações misteriosas. Eu fiquei impressionado, na época, mas logo esqueci o episódio. Principalmente no caso da Volquimar, parece que houve uma intuição muito grande sobre o fim trágico que ela teria. A moça chegou inclusive a deixar pronto um kit de cartolina formado por letras, números e as palavras sim, não e adeus, com um pequeno cartão móvel acoplado. Esse kit permitiria a comunicação caso ela morresse. Uma jovem pensar assim na morte? Deve ter havido alguma razão.

Em dois mil e sete eu ainda era professor na Universidade Federal do Espírito Santo, vivia me deslocando na movimentada e perigosa BR-101. Aos trinta e cinco anos, com a saúde de touro premiado, o litoral capixaba era uma tentação irresistível. Logo após o carnaval de dois mil e sete, no calor do verão, combinei um eio com dois casais de amigos, era a saideira antes do começo das aulas. Meu carro era grande, o Santana vermelho já citado aqui, durante a semana, planejamos tudo para cair na estrada no sábado de manhã, bem cedinho. Sextafeira à noite, véspera do eio, recebi um telefonema inesperado do meu pai:

- Eu não gostaria que você colocasse o carro na estrada amanhã

Como eu não havia comentado nada sobre o eio, achei estranha a colocação. Meu pai parecia tenso no telefone, não fez as brincadeiras usuais sobre futebol, seu tom de voz parecia perturbado por alguma coisa.

- Como é que você soube do meu eio?

Ele não sabia, evitou se estender na resposta, mas não disfarçava a preocupação. Eu, de minha parte, não me preocupei nem um pouco, era céptico demais para isso. Papai, entretanto, me fez prometer que eu não iria de carro para a estrada no sábado.

- Vá de ônibus!

- Tá certo

Promessa feita, sem convicção nenhuma, já pronta para ser quebrada. O fato era que pegar o ônibus mudaria tudo, o eio só fazia sentido se fosse de carro. Fiquei com a consciência levemente pesada, mas no sábado de manhã, peguei o carro, os amigos, e caímos na BR-101. Pouco depois do meio-dia, usando um celular emprestado, liguei para os meus pais. Tive que ligar, o seguro do carro não estava no meu nome. Do outro lado da linha, antes mesmo que eu falasse qualquer coisa, meu pai atendeu a chamada com nítida decepção:

- Já sei, você bateu o carro na estrada

Isso mesmo, meu pai não sonhou com o acidente propriamente dito, mas teve o pressentimento de que algo me aconteceria na BR-101. Estava certo. Na altura do trevo de João Neiva, a menos de oitenta quilômetros de Vitória, um carro apareceu do nada e simplesmente cruzou a pista, bem na minha frente. A pancada foi forte, jamais esquecerei o barulho, lembro-me vagamente de ter tido a intenção de pisar no freio, mas não houve tempo. A frente do meu carro ficou completamente destruída e o chassis ficou contorcido. Até hoje, quando esfria, sinto dores no pé direito devido às várias fissuras que eu tive.

Na noite de nove de abril de dois mil e vinte, sonhei com o acidente. Na verdade, com o susto da trombada, uma versão simplificada do que realmente aconteceu. Um carro aparecia na minha frente e a inevitável batida me fazia gelar dos pés à cabeça. O sonho foi como uma máquina do tempo, me senti projetado para aquele acidente no Espírito Santo. Felizmente, ninguém morreu, nem se feriu gravemente, mas ficou o legado da promessa não cumprida. Quando tenho que mentir, falsear com a verdade ou florear os fatos, eventualmente eu penso no dia em que prometi algo para o meu pai, e não cumpri. A Volquimar e o Jair Presente morreram jovens demais, tiveram pouco tempo para pecar. Viveram a juventude saudável em sua plenitude, correndo atrás de um diploma, sem complicar demais a vida, aproveitando bem cada dia, criando oportunidades. Eu nasci com vinte e cinco anos de idade, tive bastante tempo para embolar o meio de campo e complicar tudo, sobrevivi àquele início de fevereiro de setenta e quatro e sobrevivia ao câncer. Em meio à pandemia e ao caos social, sobrevivia também à fúria dos trópicos, em terra onde nascia banana, o buraco era mais embaixo. Chegava a semana santa, os efeitos da quimioterapia haviam me transformado em um doente, mas a vida seguia seu curso, em direção a um futuro diferente. Assim eu esperava.

Quis o destino que eu sobrevivesse à juventude. Volquimar morreu aos vinte e um anos de idade, tinha cara de menina, viveu suas últimas horas na manhã do dia primeiro de fevereiro de setenta e quatro. Em Rio Claro, nessa mesma

manhã, meus avós chegavam de viagem e me enchiam de carinho. Completei vinte e um anos em noventa e três, eu fazia engenharia elétrica na USP de São Carlos e tinha uma bolsa de iniciação científica da FAPESP. Era bem arrogante. Em três de fevereiro de setenta e quatro, dia festivo em Rio Claro, Jair Presente dava suas últimas braçadas na Praia Azul, antes de se afogar. Tinha vinte e cinco anos, sua aparência era a de muitos dos meus alunos. Aos vinte e cinco anos, em noventa e sete, eu fazia mestrado na engenharia química da UFSCar, sem imaginar que me tornaria professor do departamento anos mais tarde. São os ciclos da vida, o mundo dá muitas voltas, uma história termina e outra começa, é assim que funciona. Acho que com o câncer, Deus me deu uma chance de pagar por aqui, contas da vida atual e das anteriores também. Era um jeito de aliviar um pouco a minha bagagem quando tudo terminar e eu for para o além. Faltou tempo para a Volquimar e o Jair, tanto para acertar quanto para errar. De acordo com cartas psicografadas por Chico Xavier, ambos os jovens foram bem acolhidos do lado de lá, em um lugar bom, de luz.

Talvez o desencarne violento dos dois jovens tenha sido algo colocado no destino dos familiares. O aprendizado coube a eles, aos que por aqui ficaram para continuar suas jornadas não interrompidas. Pais e irmãos, tios e primos das vítimas, as respectivas perdas devem ter sido difíceis, a morte de jovens é uma inversão do processo natural, lidar com o inesperado requer evolução e força mental. Era o que o doloroso tratamento contra o câncer fazia comigo, um desafio diário à cabeça, aos pensamentos construtivos, ao rumo certo. Tive contato com as biografias de Volquimar e Jair Presente no centro espírita João Stella, que eu frequento, a duas quadras do prédio em que eu moro. Ao pensar nos dois jovens, ao buscar informações adicionais sobre eles e sobre o fim trágico que os levou embora, me senti solidário e até cúmplice da vida que tiveram. Foi como fazer dois novos amigos, virei jovem de novo, próximo a eles. Mentalizar os dois me fazia um bem danado, trazendo paz de espírito e conforto ao meu coração. Dentro do espiritismo, há fortes indícios de que Volquimar e Jair já reencarnaram, portanto, meu apego foi à memória deles. De repente, são jovens de novo, dessa vez, quem sabe, arão pela juventude e seguirão em frente, com todos os desafios da fase adulta.

Imerso em reflexões, sem dúvida mais evoluído, mas ainda longe do ideal,

acordei na manhã do dia treze de abril, uma segunda-feira ensolarada, com uma emoção incontida, que transbordava em cima de mim mesmo. Chegava a semana da minha décima segunda seção de quimioterapia, a princípio, a última do tratamento. Evitava criar expectativas, mas não me livrava de pensamentos ligados ao futuro sem o câncer. Principalmente, queria muito me afastar dos efeitos colaterais, em especial, das fortes dores no braço e no ombro. Só os exames específicos iriam comprovar a cura, mas eu me permitia uma dose grande de otimismo enquanto me dirigia para o laboratório de análises. A doença havia me envelhecido a ponto de me causar estranheza, olhei meu reflexo no retrovisor do carro e levei um susto com o que vi. Se por um lado o ganho de peso fez sumir um pouco das minhas rugas, por outro, o aspecto geral deixava claro que eu era um doente. Assim como na vez anterior, entrei sozinho no prédio onde meu sangue foi colhido. Tinha estampado no rosto o ânimo de quem estava próximo da linha de chegada de uma corrida de rua, após todo o esforço vencido até aquele ponto. Queria transformar tudo aquilo em ado, o quanto antes, mas sabia esperar. Tudo no devido tempo, como tinha que ser.

ÚLTIMA SEÇÃO

Caía uma chuva forte em São Carlos quando teve início a minha última seção de quimioterapia. A chuva era resultado de uma frente fria que chegou sem pedir licença, deixando o clima com ares de inverno. Nesse dia, eu já acordei chorando, tomei banho chorando e ei o café da manhã enxugando as lágrimas. Era muita emoção, além disso, o câncer tinha me ensinado a lidar melhor com os meus sentimentos. A dar mais valor a eles, esconder a vontade de chorar seria ridículo demais, ainda mais, depois de tudo o que eu ei. Só a lavagem intestinal em si, no começo do ano, já era para servir de lição, com aquela mangueirinha marota enfiada no meu fiofó, e uma mocinha linda com cara de universitária acompanhando tudo. Era a metamorfose em fase avançada. Aliás, acordei com um flashback na minha cabeça, pensando em cada etapa vencida, fiz tudo o que eu podia fazer para me livrar do câncer. Meu intestino e meu fígado ainda seriam avaliados, haveria uma consulta com o meu oncologista no dia seis de maio, o cateter permaneceria comigo por mais algum tempo, mas começava a fase final do meu tratamento, eu tinha que estar otimista. Fazia um friozinho meio friozão para o meu gosto, meu lado carioca nunca tolerou as oscilações de temperatura de São Carlos.

Durante as injeções, na ala de quimioterapia da Santa Casa, ainda enfeitada com ovos de Páscoa ornamentais, reencontrei dois pacientes que conheci no meu primeiro dia de tratamento. Desde que minhas seções mudaram de quarta para terça-feira, por causa do Ano Novo, não mais me encontrei com eles. Por uma dessas coincidências da vida, ou não, eram meus vizinhos de poltrona. Um era um senhor com setenta e cinco anos que também se tratava de um câncer de cólon com agem para o fígado. Vivia na roça, teve uma perna amputada aos dez anos de idade e, segundo suas próprias palavras, cuidava bem da próstata usando-a com frequência. Que figura! Era falante, me deu várias dicas sobre direitos adquiridos com o câncer, como descontos na compra de carro zero quilômetro e saque do FGTS. Meu outro vizinho era bem jovem, assim eu o descrevi na minha primeira seção, "o garoto era conhecido dos enfermeiros, falava pouco e com dificuldade, via-se debilitado, não sorriu nenhuma vez". Continuava do mesmo jeito, a única diferença eram os quilos a mais. Por falar

neles, cheguei à marca recorde de dez quilos ganhos durante o tratamento, mas na última seção, só tinha nove a mais. Não estava nem aí com isso, sabia que não iria mantê-los por muito tempo. Longe de ser uma preocupação.

Dessa vez a seção demorou mais, recebi instruções adicionais dos enfermeiros, todos fizeram festa comigo, respeitando as restrições de contato impostas pelo coronavírus. O Ednaldo instalou o infusor em mim, enquanto me enchia de micropore, contava como estava fazendo para estudar e estruturar uma monografia, ao mesmo tempo em que a filhinha de dois anos pintava o sete em casa. Saí da Santa Casa à uma e quarenta da tarde, com receita para comprar a minha dose de ópio, já que as dores no braço e no ombro não me davam trégua. Remédio caríssimo, mais um privilégio que eu podia ter. Aproveitei e comprei também o remédio para o soluço, outro companheiro na jornada contra o câncer. O céu estava bastante nublado, mas não chovia mais, a rua estava vazia e molhada. Tive que caminhar pouco mais de cem metros para ir da Santa Casa até a farmácia, mesmo assim, levei um tempão para fazer o trajeto. Fiquei com dor nas costas. Estava bastante cansado, sem fôlego, com dor de cabeça, mas ultra feliz. Meu ânimo ultraava a estratosfera, parecia realmente que um ciclo importantíssimo da minha biografia se aproximava do fim, um intensivão de ensinamentos de vida que me foi imposto pelo câncer. Voltei para o apartamento dos meus pais com a pochete azul na cintura, o líquido transparente que ela guardava era o exército que combatia o inimigo, células que se multiplicavam muito rápido e que não deveriam estar no meu organismo. De quebra, matava também células boas, que me faziam falta. Paciência!

À noite, antes de me deitar para dormir, escolhi a esmo uma mensagem para ler no livro Vinha de Luz, da coleção Fonte Viva, escrito por Chico Xavier com auxílio de seu guia espiritual Emmanuel e editado pela FEB (Federação Espírita Brasileira). Esse era um hábito quase diário, fazia essas leituras com frequência, muitas vezes, parecia que a mensagem selecionada aleatoriamente tinha sido escolhida a dedo para mim. Essa, que destaco a seguir, com certeza, me tocou profundamente.

"Cultiva a Paz

Em verdade, há muitos desesperados na vida humana. Mas quantos se apegam, voluptuosamente, à própria desesperação? Quantos revoltados fogem à luz da paciência? Quantos criminosos choram de dor por lhes ser impossível a consumação de novos delitos? Quantos tristes escapam, voluntariamente, às bênçãos da esperança?

Para que um homem seja filho da paz, é imprescindível trabalhe intensamente no mundo íntimo, cessando as vozes da inadaptação à Vontade divina e evitando as manifestações de desarmonia perante as leis eternar.

Todos rogam a paz no planeta atormentado de horríveis discórdias, mas raros se fazem dignos dela.

Exigem que a tranquilidade resida no mesmo apartamento onde mora o ódio gratuito aos vizinhos, reclamam que a esperança tome acento com a inconformação e rogam à fé lhes aprove a ociosidade, no campo da necessária preparação espiritual.

Para esmagadora maioria dessas criaturas comodistas a paz legitima é realização muito distante.

Em todos os setores da vida, a preparação e o mérito devem anteceder o benefício.

Ninguém atinge o bem-estar em Cristo, sem esforço no bem, sem disciplina elevada de sentimentos, sem iluminação do raciocínio. Antes da sublime edificação, poderão registrar os mais belos discursos, vislumbrar as mais altas perspectivas do plano superior, conviver com os grandes apóstolos da Causa da Redenção, mas poderão igualmente viver longe da harmonia interior, que constitui a fonte divina e inesgotável da verdadeira felicidade, porque se o homem ouve a lição da paz cristã, sem o propósito firme de se lhe afeiçoar, é da própria recomendação do Senhor que esse bem celestial volte ao núcleo de origem, como intransferível conquista de cada um".

Em suma, a mensagem refletia o que eu mais lutava para mudar em mim durante o período de tratamento. Essa paz, dificílima de conquistar, uma vez assimilada, tornaria a minha vida muito melhor. Cada trecho do texto tinha a ver com o período que eu vivia, de mergulho dentro de mim mesmo, no meu interior, e de questionamentos múltiplos sobre a minha relação com os meus próprios pensamentos. Meus demônios. Eu ainda teria uma longa jornada pela frente até dominar minimamente a fúria que eventualmente invadia a minha mente. Mas eu achava que estava no caminho certo, pelo menos, ter a consciência de que errava ao me deixava dominar pelo ardor do estômago, ou do fígado, já era um consolo. Verdade seja dita, eu não fazia discursos sobre o jeito certo ou errado de conduzir a vida, apontando méritos e deméritos meus e de outras pessoas, não tinha nada a ver com o meu estilo. Todo o processo que acontecia comigo era interno, silencioso, só para os meus ouvidos. Por fim, independente do sentido da coisa, ao citar explicitamente as palavras "apartamento" e "vizinho", achei que fosse hora de perdoar o jovem guitarrista. Minha fúria contra a guitarra não era gratuita, o menino cabeludo provocava, mas não dava para ficar alimentando um ódio contra alguém que só queria aprender a tocar um instrumento musical.

Por falar nisso, o aprendizado fora da roda vida, o tempo de resguardo em casa, à margem da sociedade, serviam para eu me focar melhor nos pontos em que ainda tinha que evoluir. Desde o começo, quando a doença entrou na minha vida, algo me dizia que eu tinha que mudar, não dava para continuar como antes. Parecia, ou pelo menos, tudo indicava, que eu estava vencendo a batalha contra o câncer, sendo assim, nesse contexto, desperdiçar tempo era um crime inafiançável. Desperdiçar tempo com bobagens que não valiam a pena era um pecado, e quase

tudo o que me estressava no ado anterior à doença, não ava de futilidade, se comparado com o que eu vivia. Uma proposta de pesquisa indeferida, uma publicação científica negada, uma meia dúzia de alunos idiotas em sala de aula, o conhecido que não cumprimentava, um motorista apressado, nada valia o meu tempo, que deveria ser bem utilizado para coisas mais nobres. Fácil dizer, difícil fazer. Mas eu tinha que me empenhar, no mínimo, tentar. Eu, de fato, joguei muito tempo fora a troco de nada, errando na forma de pensar, de encarar e de ponderar os fatos. O Flavio, meu irmão, teve a mesma criação que eu tive e sempre soube lidar melhor com os seus aborrecimentos. Casado, com muito mais responsabilidades do que as minhas, meu irmão lida muito bem com contratempos e encheções. Cinco minutos de fúria, e bola pra frente. Nunca vi o Flavio remoer sentimentos ruins por muito tempo, coisa dele, bastante natural para a personalidade do meu irmão. Eu era bem diferente.

Uma surpresa boa veio na hora do almoço da quarta-feira, a chamada telefônica de um casal de amigos da família de longa data. Na verdade, pais de um amigo meu da adolescência, dos tempos de colegial e de vestibular. De universidade também, por fim, nós nos formamos juntos em engenharia elétrica, com colação de grau no dia oito de dezembro de noventa e cinco. O pai dele foi nosso professor na graduação. Nossas vidas seguiram rumos diferentes, nos tornamos professores universitários, eu em São Carlos e ele em algum lugar nos Estados Unidos. Não bastasse esse laço, a mãe dele, professora no renomado departamento de engenharia de materiais da UFSCar, era colega do meu pai desde a época do mestrado. Todos eles tinham PhD por excelentes universidades americanas, mas não eram afetados por conta disso, nunca perdi o contato com a família Bretas. Conversar com eles foi muito bom, uma injeção de ânimo a mais para vencer a última seção de quimioterapia. Parecia que havia uma conspiração dos astros me apoiando nesse final previsto para o tratamento. O curioso era que a vontade de me mudar de São Carlos aumentava gradativamente, a medida em que se aproximava a luz no fim do túnel. Vez ou outra eu me pegava pensando nisso. Quando desliguei o telefone, feliz com o bate-papo, lembrei do amigo que morava fora do Brasil e pensei que talvez fosse hora de trocar de cidade. Essa, porém, seria uma questão que eu deixaria nas mãos de Deus.

A décima segunda seção de quimio terminou às duas e pouco da tarde de

dezesseis de abril. Ao retirar o infusor da minha cintura e desconectar o tubinho ligado ao cateter, foi como sentir a alforria para uma vida nova, diferente da anterior. Nenhuma bola de cristal me dizia nada, nem tinha tapete voador para eu ir para a Índia perguntar ao Buda, mas eu sabia que dali em diante, nada seria como antes. Eu estava mais confiante com relação à minha fé em Deus, ela ainda era um desafio nas horas difíceis, mas estava mais aprimorada. Confiar nos desígnios de Deus, aceitando as etapas da vida como provas para uma evolução espiritual, era uma tarefa árdua, feita de forma consciente, então, nem se fala. Quando tudo estava bom, lindo e maravilhoso, minha fé era inquestionável. Bastava uma turbulência e já vinham minhocas na minha cabeça. Enquanto o Edinaldo dava o toque final na minha liberação, eu desejava profundamente sair dali realmente renovado, não só por uns tempos, nem exclusivamente quando a maré estivesse favorável. Quando eu descobri que tinha câncer, fiquei com muito medo do sofrimento associado à doença. De quebra, fiquei com mais medo ainda de morrer cheio de contas a pagar, aquelas que têm a ver com conduta e personalidade. Morria de medo do umbral. O fim do tratamento me afastava de ambos os receios, houve sofrimento, mas houve resiliência. Sempre acompanhada daquele sentimento gostoso de vitória. O medo do umbral não me assombrava mais, eu havia feito a minha parte e estava disposto a mudar, para melhor.

Chegava a hora de pensar na nova vida que acenava para mim após o término da décima segunda seção. Não sei se comentei com você, acho que sim, mas durante o tratamento eu não pude ter contato com nada gelado. Nada! A sensação de frio era muito estranha, cheia de formigamentos e uma ardência mal explicada. Além disso, era só sentir frio que o soluço vinha na hora, sem perdão. Encarei refrigerante quente algumas vezes, mas era dose para elefante. Sentia uma saudade danada daquela cervejinha gelada, depois do expediente de sextafeira. Mas, enfim, nada disso era desafio. Logo nos primeiros dias após o talvez término das minhas injeções, minha grande meta gastronômica girava em torno dos sorvetes de massa! Eu fiquei doido para tomar um sorvete. Enquanto ainda estivesse sob os efeitos dos medicamentos, não daria para encarar o sorvete, mas já dava para ir pensando nos sabores preferidos, no tipo de cobertura, no número de cerejas. Era assim que funcionava, a vontade, ou melhor, o desejo profundo de tomar sorvete ocupava o meu tempo e a minha atenção. Eu vivia intensamente a questão do sorvete, minha vida se resumia a isso, a me recuperar da quimioterapia, a cuidar do isolamento para não pegar coronavírus, a continuar

existindo. Por falar nisso, às vésperas da semana em que eu normalmente faria quimioterapia, mais precisamente, no domingo de céu azul, dia vinte e seis de abril, a pandemia já havia ceifado mais de duzentas mil vidas mundo afora, quatro mil delas só no Brasil. Eu tinha muito medo.

O Brasil ainda vivia o drama adicional de um presidente alucinado, remando contra a maré, despejando ódio e discórdia em dias já tão difíceis. Devido à origem do vírus na China, o Capitão clamava em tom raivoso que uma suposta onda comunista estaria invadindo o mundo, e convocava seus seguidores a aglomerarem-se em protestos a favor do fechamento do congresso, de intervenção militar e da volta do Ato Institucional número Cinco. Uma loucura, parecia mais ficção do que o próprio efeito mundial do coronavírus. Vivíamos uma volta ao ado, aos tempos da guerra fria, a bordo da mente doente de um presidente despreparado, ignorante e inculto, incapaz de cumprir seu papel de líder. Enquanto o mundo lutava contra a pandemia, no Brasil, gastava-se tempo e energia com a escalada de fúria de um político acuado e fanatizado, sem habilidade para dialogar, mais isolado do que o próprio isolamento que ele tanto combatia. Uma doideira bruta que contaminava os trópicos. Só para se ter uma ideia, o AI-5, de treze de dezembro de sessenta e oito, poucos dias antes do casamento dos meus pais, foi a forma de legislação que o regime militar encontrou para se transformar em uma ditadura, cerceando direitos individuais e cuspindo, ou melhor, escarrando na constituição. ado mais de meio século, num contexto totalmente diferente, era isso que o presidente e seus fiéis seguidores queriam, incluindo a atriz outrora chamada de "namoradinha do Brasil" ou, melhor dizendo, "filhotinha da ditadura". Irônico, já que artistas foram duramente perseguidos naquele triste período da nossa história.

Enfim, de volta ao meu drama pessoal, a dor no braço e no ombro infelizmente me impedia de usar o laptop com a frequência que eu gostaria, forçando-me a ser escravo de uma realidade que eu tentava escapar quando começava a escrever. Com o uso do braço direito para digitar, o que era difícil ficava inável. Achava isso uma crueldade, mas não me revoltava. Se tinha que ser assim, o jeito era dar tempo ao tempo, respeitando com serenidade as etapas que eu vivia. Realmente, ao final do tratamento, ou pelo menos da primeira fase dele, minha relação com o tempo parecia muito mais saudável, aquela corrida contra ele já

não fazia mais sentido. Eu tinha quarenta e oito anos, não era novo, nem velho demais, tinha um emprego estável que facilitava as coisas, uma carreira encaminhada que não me envergonhava, enfim, tinha tudo a meu favor para me concentrar na tarefa de evoluir como homem. Tinha que aproveitar. As vezes não me restava outra alternativa senão esperar, com paciência, ou não, uma fase mais difícil e dolorosa ar. Dois mil e vinte começou difícil para mim, me apresentando a novidade do sofrimento em seus primeiros dias. Nem o vidente mais espetacular, entretanto, poderia prever o que seria esse ano na história da humanidade. Eu lutava contra um câncer, fazia um tratamento pesado, e ainda por cima, tinha que lidar também com a assombração de um mundo atormentando por uma epidemia cruel que matava sem dó.

Quando nada mais parecia me assustar, quando todos os possíveis sustos pareciam se diluir na linha do tempo, um fantasma bateu em minha porta. Enquanto eu me recuperava da décima segunda seção de quimioterapia, debilitado e extremamente cansado, vislumbrava a consulta médica que eu teria no dia seis de maio. Ela seria um marco importante do meu tratamento, dos vários meses dedicados à cura do câncer. Seis de maio, no entanto, foi um dia que demorou para chegar. Que se distanciava ao invés de se aproximar. Que ficou muito longe, além do horizonte, depois que eu acordei com febre, tosse seca, fadiga e dificuldade para respirar, na manhã de vinte e quatro de abril. Uma sexta-feira que começou sem cores, de tristeza em preto e branco. ei muito mal durante a noite, como se uma verdadeira revolução acontecesse dentro de mim, quase não consegui dormir. Tentava não associar uma coisa à outra, mas era difícil, os sintomas estavam claros e definidos, com cara de quem chegou para ficar. Digo e repito, o paciente de quimioterapia torna-se vulnerável a tudo, sua energia vital e a capacidade de lutar contra isso e aquilo são só uma fração do que seriam. Eu acordei naquela manhã de sexta-feira com febre, tosse, muita indisposição e uma enorme pulga atrás da orelha. Era o fantasma do coronavírus me assombrando bem de perto. Só me faltava essa. Minha vida na corda bamba, de novo.

A SOMBRA DO CORONA

Após todas as expectativas em torno da décima segunda seção de quimioterapia, sempre positivas, uma melhor do que a outra, tudo indicava que eu havia sido contaminado pelo coronavírus. Na manhã de sexta-feira, dia vinte e quatro de abril, eu acordei apresentando os sintomas típicos da gripe que matava gente no mundo todo. Triste fim para um começo tão promissor. Devido aos efeitos debilitantes do tratamento contra o câncer eu havia me tornado um forte candidato ao óbito, caso o vírus mortal me encontrasse pelo caminho. Manter o equilíbrio psicológico e emocional virou uma tarefa hercúlea, não me revoltei, mas voltei a pensar na morte. Pior, voltei a esperar mais sofrimento, uma cruz pesada de se carregar, principalmente quando eu já estava vendo a luz no fim do túnel. Abria-se um buraco enorme sob os meus pés, ei a chorar com frequência, fiquei com um medo terrível de contaminar ou de já ter contaminado meus pais idosos, deixaria um triste legado caso toda essa desgraça se confirmasse. Eu não tinha certeza se era, ou não, coronavírus, mas a associação de uma coisa com a outra foi inevitável. Levantar da cama era quase impossível, minhas fracas pernas pareciam carregar um piano de caldas, cada vez que eu ficava em pé. Deitado, então, eu fiquei a maior parte do tempo, sem nada fazer, a não ser forçar a respiração e lamentar tudo aquilo.

De tanto pensar no assunto, criei para mim mesmo uma versão da minha própria morte. Era a seguinte, primeiramente, eu seria auxiliado por equipes espirituais durante a travessia do mundo físico para o mundo espiritual. Resultado do merecimento, que eu supunha ter, as equipes especialistas realizariam o rompimento do cordão fluídico, que me prendia ao meu corpo carnal, após a minha morte natural, por interrupção das forças vitais devido à doença. Eu estaria inconsciente durante esse processo todo. Talvez o lamento dos meus familiares dificultaria um pouco as coisas, com vibrações que me prenderiam ao meu corpo doente. De qualquer forma, também haveria uma equipe de guias atuando sobre a família. Um pouco antes do desencarne, eu teria uma melhora fictícia a fim de neutralizar as vibrações que prendem o espírito ao corpo. Acho que como nunca fui muito apegado a bens e posses, esse desligamento não seria tão complicado. Tirando o meu xodó pelo Fusca, no geral, eu era um cara bem

"despossuído". Meus vínculos principais com o mundo material eram através do afeto. Por isso, creio que eu desencarnaria com facilidade, dormindo profundamente ou sem nada perceber. Meu espírito estaria sujeito à influência do ambiente até o rompimento do cordão, depois disso, o grau de consciência do lado de lá aumentaria gradualmente. Após o meu desligamento, sendo um espírito livre, eu seria encaminhado para o local de amparo a doentes, muito provavelmente um hospital de acolhimento ainda em plano próximo da Terra.

Eu não queria morrer, longe disso, lutaria pela vida, mas minhas forças se encontravam à níveis muito baixos, reagir era muito complicado. Então, eu desejava a vida, mas me preparava para a morte. Nadar, nadar, e morrer na praia, esse era o meu grande medo quando a pandemia surgiu no cenário. Lá estava eu, com a fé inabalável na vontade de Deus, sentindo, porém, que meus dias chegavam ao fim. Eu já praticamente não saía da cama. Com a piora do meu quadro, no dia vinte e oito de abril, uma terça-feira, fui levado ao hospital vinte e quatro horas da Unimed, trançando as pernas de tão cansado que eu estava. Mal aguentava o meu próprio peso.

- Estou me sentindo assim, assim - balbuciei para os enfermeiros e técnicos de saúde que, do lado de fora do hospital, orientavam a entrada.

Realmente, era fácil ver que havia algo de errado comigo, estava estampado na minha testa. Por ter uma população itinerante, principalmente pela presença dos estudantes, São Carlos ou a ser foco de vigilância, com mais casos do coronavírus do que a média do interior. A entrada do hospital mais parecia o portão principal de um batalhão de infantaria. Entrei desanimado, sem energia, carregando comigo os sintomas da gripe mortal.

Por fim, fiquei algo em torno de três horas e meia no hospital, ei por consulta, fiz raio-X e um exame de sangue, depois voltei para conversar com o médico.

- Não é coronavírus, fique tranquilo, você está com uma forte pneumonia, os dois pulmões estão infectados.

Gostaria de poder descrever aqui o alívio que eu senti nessa hora, mas não sou capaz. Era o conto do bode na sala, de novo, minha felicidade ao ouvir o diagnóstico do médico transbordava pelas orelhas, mais uma vez, eu tinha pneumonia! Para quem estava condenado à morte pelo coronavírus, a pneumonia parecia uma gripezinha qualquer, meu ânimo ultraou a estratosfera nessa hora. Estranho né? Essa era a realidade de quem vivia um tratamento contra o câncer em meio à pandemia. Isso sem contar com as loucuras diabólicas que vinham de Brasília.

A série branca apresentou valores bastante alterados no meu exame de sangue, além disso, minha proteína c reativa estava muitíssimas vezes acima do normal. Isso indicava um processo infeccioso barra pesada. Mesmo assim, eu fiquei feliz da vida com a tal da pneumonia, pela segunda vez no maquiavélico ano de dois mil e vinte. A morte me sondava de perto, a cada investida, eu perdia o medo dela, a danada não largava do meu pé. Por alguns dias, achei que fosse morrer, não era uma recaída aos valores antigos, mas não tinha como não cogitar o óbito diante de tanta assombração. Em nenhum momento eu perdi a serenidade ou o equilíbrio, nem tinha forças para isso. Preocupava-me, porém, o fato de poder ter contaminado os meus pais, isso mexia muito comigo. Era a pior parte. Obviamente, me senti no lucro com a pneumonia, ela judiava de mim, não era fácil, mas também, não era mortal. De qualquer forma, valeu o susto, ei a tomar cuidado redobrado com o coronavírus. Voltei a me preparar para o novo horizonte com a proximidade da consulta do dia seis de maio, a primeira após o fim das seções de quimioterapia. O futuro astigmático assumia formas mais bem definidas a medida em que eu melhorava. No geral, eu estava um bagaço, o corpo moído e cheio de dores aqui e ali, principalmente nas pernas, nas costas e no omoplata. O braço incomodava menos. Eu tossia bastante, ficava deitado o tempo todo, a febre durou praticamente dez dias. A cabeça no lugar, animada com o diagnóstico da pneumonia, ajudava na recuperação.

Até a colonoscopia do dia dezenove de julho de dois mil e dezenove, eu era um sujeito saudável, nada me fazia mal. Meu intestino estava estranho, começavam os incômodos, mas ainda assim, minha vida era muito ativa, eu quase não ficava em casa, só deitava para dormir, comia de tudo, enchia de pimenta as minhas refeições, corria todos os dias. Não dava para imaginar que eu já tinha câncer, com direito a metástase. Mais alguns meses sem saber e já teria sido tarde demais. Depois disso, ei a viver uma outra vida, centrada no tratamento contra o câncer, exclusivista, o tempo todo durante muito tempo. Essa era a principal marca da doença, o longo convívio com ela. Uma semana de gripe já era um pé no saco, imagine você como eu estava após quase dez meses de tratamento! Dez meses que pareciam muito mais, sem um prazo definido para terminar. Nesse ínterim, mudei de endereço, fui morar com os meus pais, ei a frequentar a região da Santa Casa, um tremendo entra e sai de laboratórios, consultórios, farmácias, tudo ligado à saúde. Meus dias seguiam o ritmo da doença, eu era comandado, independia de mim querer ou não tal coisa. Eu era outro, estava mudado, tanto que fiz festa, dentro das minhas limitações, quando soube que estava com pneumonia. O Brasil fervia. Enquanto isso, eu continuava escrevendo, como escrevedor, contanto a minha história, com começo, meio e um sonhado ponto final.

A pausa na quimioterapia ocorria ao mesmo tempo em que a pandemia crescia no Brasil, e eu penava com uma pneumonia. Mesmo assim, tudo ia. Um cenário bem diferente do que, a princípio, eu imaginei. Achei que fosse curtir a folga no tratamento com uma melhora visível a cada dia. Não foi o que aconteceu. Antes mesmo que os efeitos se diluíssem, eu fiquei doente. Fui à zero. Verdade seja dita, o braço doía menos e, também, parei de ter taquicardia, algo que me incomodava bastante, principalmente quando eu deitava. Com a cirurgia e a quimioterapia, dei um tempo no acompanhamento que eu fazia do aneurisma cardíaco. A previsão inicial do meu cardiologista, o Doutor Marcelo, era de que eu seria operado, para a retirada do aneurisma, lá pelos cinquenta anos. Caso meu quadro não piorasse antes. Em dois mil e vinte eu fiz quarenta e oito anos. Além disso, a torcida era para que estentes curvados estivessem disponíveis, visto que o meu aneurisma ficava numa curvinha da aorta ascendente. Nesse caso, o procedimento cirúrgico seria bem mais simples. Seria, mas dependia de uma nova tecnologia ainda indisponível. Se dá para complicar, para que facilitar!

Só rindo, meus parentes diziam que se houvesse um único buraco no mundo, eu cairia dentro dele. Como já disse, eu era um privilegiado e tinha consciência disso, mas coisas estranhas aconteciam comigo.

Era outono, um período bastante seco em São Carlos. As temperaturas estavam mais amenas, para quem ficava deitado o tempo todo, até que era bom. Eu sempre vivi muito bem em São Carlos, tenho um histórico maravilhoso com a cidade, mas pensava em ir embora. Uma vontade difícil de explicar, eu na verdade queria novos ares para combinar com a minha nova vida, sem as lembranças do tratamento contra o câncer, só as consequências boas na minha personalidade mudada. Eu me sentia mais evoluído, com mais humanidade no coração, graças ao período de tratamento. Continuar na cidade significaria seguir vendo o pano de fundo de tempos bem complicados para mim. Enfim, mudar de cidade não era nada muito consciente, um desejo meio alegórico, sei lá. São Carlos é uma cidade fantástica, a duzentos e trinta quilômetros da capital, com uns duzentos e cinquenta mil habitantes. Bem dosada, bem localizada no estado, bem servida de boas estradas, repleta de universitários e professores, São Carlos concentra o maior número de doutores, com doutorado, do Brasil. Isso é um diferencial, a presença das universidades mexe com o astral local. Mesmo com todas essas virtudes, outras qualidades e muito mais, eu queria me mudar de São Carlos. Recomeçar, recomeçando, em outro lugar. Fogo de palha, continuar em São Carlos não significava, necessariamente, abrir mão das mudanças tão benéficas na minha vida.

Aos trancos e barrancos, chegou o dia da tão esperada consulta pósquimioterapia. Eu ainda me via bastante debilitado por causa da pneumonia, com muita tosse, mas mesmo assim, às quatro da tarde, estava firme no consultório do oncologista. Tinha uma curiosidade danada em torno do que seriam os tais exames de avaliação e acompanhamento, sabia que dependeria deles a tão sonhada alta. Mantinha-me sereno, em parte para poupar energia, mas também, para não criar expectativas naquele momento. Um o de cada vez. Na sala de espera havia seis pessoas, todas de máscara, meu pai me acompanhava. Eu estava muito cansado, minha vontade era de estar deitado, em casa, mas, como já dito, minha vontade não prevalecia mais. A dinâmica do tratamento era quem, de fato, conduzia a minha vida. Queria ficar bom, acima de tudo. O dia seis de maio

não estava sendo como eu imaginei, isso não era um problema, a gente não tem bola de cristal para prever o futuro. Logo que a consulta foi marcada, meses antes, eu previa um dia festivo, comemorado até. A realidade, porém, foi bem outra, em meio a pandemia e meu estado geral, o tempo ado na sala de espera do consultório era um misto de tortura e de redenção. Resignado, eu aguardava a minha vez, sem nada fazer, com o olhar solto e os pensamentos vagando livremente.

Às vinte para as cinco da tarde eu fui atendido. Na sala do oncologista, diante do profissional que havia me acompanhado por mais de seis meses, eu me relaxei. Tinha confiança no que estava sendo feito, o tempo de convívio, com os altos e baixos do tratamento, parecia bem mais do que seis meses. O primeiro o da consulta foi dedicado à questão da pneumonia. Doutor Luiz Agenor checou um por um os resultados dos exames que haviam sido feitos no hospital vinte e quatro horas, disponíveis em seu computador. Visivelmente contrariado, em poucas palavras, o médico virou o jogo e colocou um par de aspas na minha "pneumonia".

- Não estou totalmente convencido dessa pneumonia.

Realmente, não estava. Se por um lado, ouvir isso foi bem duro, uma vez que eu já estava convencido e satisfeito com a pneumonia, por outro, o laudo do meu médico era o que mais me importava. Usando um estetoscópio e um oxímetro de dedo, o Doutor Luiz me avaliou pessoalmente e, com ar descontraído, colocou os pingos nos i's.

- Prefiro pecar pelo excesso.

Ele estava certo, meus sintomas de fato eram parecidos com o do coronavírus. Eu fazia quimioterapia, portanto, meu organismo respondia de maneira própria

às perturbações externas, não dava para descartar totalmente o covid-19. Minha oxigenação estava bem abaixo do normal, contribuindo para a fraqueza que eu sentia. Enfim, saí da consulta direto para agendar uma tomografia do tórax. Dependendo do resultado, seria pedido o exame específico para ver se eu tinha, ou não, covid-19.

Enquanto isso, meus pais teriam que monitorar a temperatura deles, esse era o aspecto mais delicado para mim, a possibilidade de ter contaminado os dois. Depois de tudo o que eles haviam feito, cuidando de mim com todo o zelo, seria imperdoável expô-los a uma doença tão grave. Eu me cuidava ao máximo, sempre me resguardando em casa, saindo só o necessário. Mas não tinha jeito, as seções de quimioterapia eram na Santa Casa e lá estavam os doentes de covid19. Quando fiquei sabendo que tinha câncer e uma verdadeira maratona pela frente, jamais imaginei que o mundo estaria de ponta cabeça em dois mil e vinte. Ninguém podia imaginar, estávamos vivendo um dos maiores desafios da humanidade que, por si só, já era mais do que suficiente para derrubar um exército. Meus pais idosos e eu, paciente oncológico, estávamos na marca do cal, prontos para a goleada do vírus. Após vencer um aneurisma cardíaco e o câncer, eu me julgava o Highlander da nova geração, ou um gato de sete vidas, duro de derrubar. Apesar dos pesares, algo me dizia que eu chegaria à velhice, pura intuição, um murmúrio sussurrado nos meus ouvidos. Só o coronovírus me fez repensar a vida e a minha própria mortalidade. Por alguns dias, eu vivi mais a morte do que a vida. Não tinha como evitar, nem encenar um falso otimismo.

No segundo domingo de maio, dia das mães, o coronavírus já havia vitimado mais de dez mil pessoas no Brasil. Países vizinhos pensavam cada vez mais em impor limitações de o ao Brasil devido à irresponsabilidade do genocida que ocupava a nossa presidência. Por falar nele, no dia anterior, o presidente sem nenhuma credibilidade comemorou o número de mortes por covid-19 com um eio espalhafatoso de jet ski no lago Paranoá, em Brasília. O país era a grande piada mundial, jornais do mundo todo, os principais veículos da imprensa internacional ridicularizavam o comportamento nocivo do presidente brasileiro. Nossa versão intelectualmente raquítica do presidente americano, ou melhor, nosso Trump tupiniquim, não sabia o que fazer para demonstrar ostensivamente seu desdém pelo drama da epidemia que já havia matado um número maior de

pessoas do que a população de São Carlos. Atormentado por uma obsessão diabólica, o Babalaô do Balacobaco seguia destrambelhado, atropelando tudo o que havia pela frente. Era angustiante ver tamanha monstruosidade sem poder fazer nada, a população presa dentro de casa permanecia calada, incrédula, de queixo caído até o chão, sem outra opção. Uma realidade que parecia ficção, intitulada Apocalipse Já! Pior do que a omissão diante da pandemia era a constante tentativa de sabotar a saúde, não tomar providências era até lucro aqui no Brasil.

Enfim, segundo a minha crença religiosa, um dia chega a conta para pagar os deslizes da vida atual e das adas também. Eu, aliás, pagava uma conta bem alta, seguramente, uma experiência dura pela qual eu tinha que ar. Pelo jeito, dadas as circunstâncias, eu era um ser humano pior do que o presidente que eu tanto criticava. Eu tinha câncer e ele nem resfriado pegava. Levou uma facada no bucho e tirou de letra. Talvez a cruz do Capitão seja ser o que ele é, um castigo e tanto para nós e para ele mesmo também, que promete entrar para a história como um dos maiores genocidas do período. Na guerra contra a covid19, ele jogava no time do adversário, batendo bola com o coronavírus. Há que se dizer que uma história contada resiste ao tempo, seria imperdoável não incluir aqui o momento político que vivíamos. A guinada histórica para uma direita mais à direita, eleita democraticamente pelo povo brasileiro, era um fato que mudava radicalmente o andar da carruagem. A sensação era a de que aqueles dias pautados pela insígnia do ódio tinham décadas de vida. O câncer e a quimioterapia me forçavam a lidar com tudo isso da melhor maneira possível. Procurava seguir em frente, tentando equilibrar a minha indignação sem ficar revoltado. Tudo tinha um lado positivo, eu me tornava mais humano à medida em que apanhava da doença, sem muito esforço. Um saldo bom, para um período tão ruim.

O fato, porém, era que o dia das mães não poderia ar em branco. Encomendei para a minha mãe um almoço a base de bacalhau, para comemorar o dia dela. O domingo de sol e céu azul, sem nuvens, era um convite para sair, mas estávamos cumprindo à risca o isolamento, então, o almoço seria entregue para comer em casa. Com o comércio fechado, preso dentro de casa, debilitado pela "pneumonia", meu presente para a minha mãe acabou sendo um prato de

bacalhau à lagareiro e outro com camarão gratinado, providenciado pelo telefone. Fazer o quê? Estava bom, mesmo com o paladar prejudicado pela pneumonia com aspas, consegui curtir o almoço de domingo em homenagem à minha mãe. De sobremesa, uma torta holandesa com pinta de pavê metido a besta. Não havia dilema na nossa quarentena, tendo um aspecto positivo, era nele que a gente se apoiava. Como tinha que ser. Depois de tanto apanhar da saúde, ou melhor, da falta dela, eu achava tudo bom, bastava um cisco de luz e eu já me animava. Pensar em como seria a vida após a minha plena recuperação era um exercício diário, que me fazia bem. O almoço de domingo serviu para vitaminar os bons pensamentos, eu quase não participei das conversas devido à tosse persistente, mas a felicidade dos meus pais encheu de cores o astral do dia das mães. O mundo não seria como antes, eu, menos ainda.

TEMPO QUE NÃO A

Segundo o dicionário, crendice é definida como crença popular sem fundamento, geralmente motivada por algum tipo de superstição. Por exemplo, é crendice acreditar que leite com manga faz mal. Faz nada, eu já experimentei e estou aqui para contar a história, com câncer, cheio de problemas, mas vivo. Pelo menos, ainda. Coca-cola faz mal, vitamina de manga com leite é uma delícia! Pois no momento histórico em que eu vivia esse parágrafo, o Brasil tinha entrado numas de abolir as ciências, assim mesmo, no plural, todas elas, deixando o conhecimento de lado justamente em uma época de enormes desafios. Assumindo o papel de curandeiro da nação, o paraquedista que virou vereador, deputado e depois foi eleito presidente, receitava, ou "prescrevia", contra o coronavírus, banho de sol e cloroquina, medicamento sem comprovação alguma. Divulgava também aplicação retal de ozônio para interessados, enfim, fazia um desserviço que custava um monte de vidas. Sem nunca ter pisado na sala de aula de um curso de medicina, nem mesmo aquele do brejo das bananeiras, o Capitão falava como se fosse um M.D. da Johns Hopkins. Máscara hospitalar, distanciamento social, isolamento, segundo ele, era tudo bobagem. Bom mesmo era cloroquina e boa alimentação. Vamos, então, para a segunda definição do dicionário. Negacionismo é a escolha de negar a realidade como forma de escapar de uma verdade desconfortável. I rest my case. Esquecia-se o Babalaô do Badabauê o papel implacável do tempo e da história.

Enquanto o mundo civilizado seguia à risca as orientações da OMS na batalha contra o coronavírus, no Brasil, a cabeça insana de um presidente lunático era o que importava. Pelo menos, para ele. Brincar com a vida dos outros tornou-se sua meta em Brasília, seu descontrole diante de jornalistas era destaque na imprensa local e internacional, o que já era difícil, ficava ainda mais difícil. No dia quinze de maio o ministro da saúde pediu demissão do cargo, por não se entender com o presidente. Era o segundo ministro da saúde a pular fora do governo. Enfim, não adiantava trocar as rodas da carroça quando o problema era o jumento que a conduzia. Com perdão aos jumentos. O genocida havia cismado que o tal do medicamento chamado Cloroquina era a solução de todos os problemas. Sem base científica nenhuma, cisma no melhor sentido da palavra.

Quem não concordasse com ele, tinha que cair fora. Era assim, strange days indeed. A população, presa dentro de casa, protestava através dos aços, batendo as nas janelas, fazendo barulho do jeito que dava. Jornalistas, repórteres, médicos, enfermeiros, o pessoal da imprensa e da saúde eram os grandes heróis na pandemia, lutando contra o vírus e contra um presidente psicopata. A oposição estava calada, aparentemente sem entender direito o que acontecia no Planalto, ou sabe-se lá por que. Muito estranho. Tínhamos na presidência uma aberração de circo incapaz de dialogar, que num período complicadíssimo, ameaçava a população com golpe militar, autoritarismo e otras cositas más. Seus discípulos seguidores não cumpriam o isolamento social, alguns deles ostentavam suásticas e faziam saudações nazistas em protestos nas ruas. O inimaginável acontecia nos trópicos, a terra de gente morena, mestiça, virava palco para demonstrações bizarras dos filhotes de Hitler.

Tenho uma aversão quase incontrolável contra o autoritarismo, a boçalidade da ditadura militar orbitou a minha família, causando-me a repulsa. Meu pai era um jovem sargento do Parque Central de Motomecanização, na Vila Militar, Rio de Janeiro, no dia do golpe de sessenta e quatro. Um dia antes, Jango havia participado de uma cerimônia de posse da Associação dos Sargentos na sede do Automóvel Clube, no centro do Rio de Janeiro. O alto comando do exército ficou pê da vida. Foi a gota d'água para o golpe, ou seja, fodeu para os sargentos. Tempos depois, minha mãe, ainda adolescente, enfrentou soldados que, por alguma razão, espancavam o Seu Zé Leiteiro, bem velhinho, à vista de todos. Uma covardia típica dos gorilas. O bairro em que a minha mãe vivia, Magalhães Bastos, era vizinho à Vila Militar, aliás, foi graças a essa proximidade que, anos depois, eu vim ao mundo. Enfrentar a ditadura sozinha foi um feito da Dona Luzia que entrou para a história da família. Tenho muito orgulho disso. Ela acabou apanhando também, pouco, se comparado ao Seu Zé Leiteiro, mas hoje, quem apanhou mostra a cara e quem bateu se esconde de vergonha. A história não perdoa.

A pedido do meu oncologista, no dia oito de maio eu fiz uma tomografia do tórax que revelou uma vasta infecção tomando conta de ambos os meus pulmões. Da base ao topo. O médico ficou bastante assustado com o que viu e me encaminhou para um pneumologista. Havia cada vez mais a suspeita de que

eu tinha contraído covid-19. O estrago nos pulmões foi grande, isso explicava as minhas baixas taxas de oxigenação e o cansaço extremo que eu sentia. Nesse período, eu praticamente não saía da cama, o tempo ava diferente, ou melhor, não ava. Os dias tornaram-se longos, eu via televisão sem me importar muito com o que estava na tela. Nem ânimo para ler eu tinha. Na verdade, faltava-me energia, eu não tinha pique para nada, não estava triste e nem deprimido, só entregue à situação. Tossia bastante, tinha dores no tórax por conta disso. Estava difícil. Não bastasse o estado pulmonar, as imagens da tomografia revelaram também que eu tinha dilatação cardíaca, muito provavelmente como resultado da quimioterapia. Era o efeito Matrioskas que eu já falei, tira uma boneca, tem outra dentro. Tira a outra, encontra mais uma. Uma surpresa atrás da outra, minha vida sem pimenta tinha disso. Só covid-19 era pouco, tinha que ter algo além. Seguindo os infindáveis trilhos desse trem fantasma, no dia treze de maio, saí do consultório do pneumologista com uma lista adicional de exames para fazer. Teste rápido para covid-19, raio-X e ecocardiograma.

Em menos de um ano, achei um tumor no cólon, descobri que ele era maligno, ei por uma cirurgia para retirá-lo, me disseram que havia metástase, fiz seis meses de quimioterapia, sofri um bocado, tive duas pneumonias, uma delas, com suspeitas de covid-19. Era pouco, somava-se a isso tudo um aneurisma na aorta que eu já conhecia, e um coração dilatado, a última novidade. Fazer o quê? Essas eram as cartas, eu tinha que lidar com elas. Continuei firme na luta, sem entregar os pontos, mas estava cansado. Um cansaço físico e mental, seria bom ter um período favorável para recarregar as energias, mas isso independia de mim. Nesse jogo do tempo, que começou com uma corrida contra o relógio até a cirurgia, segundos pareciam minutos, minutos pareciam horas, horas pareciam dias, dias pareciam semanas, semanas pareciam meses e meses pareciam anos. Eu olhava para trás, em busca do ado imediatamente anterior a isso tudo, e via distante meus dias normais. Longe no tempo, estranhamente mais velho do que minhas lembranças da infância, adolescência e juventude. Num intervalo de dez meses eu havia envelhecido vários anos, torcia pelo futuro vivendo de memórias completas, e boas, do que tinha sido a minha vida antes do câncer. Nesse período, eu havia me tornado um cara muito mais humano, um verdadeiro consolo.

Logo no início desse processo todo, minha impressão era a de ver a banda ar. Ficava ligeiramente ansioso por estar de molho enquanto o mundo continuava dando voltas. As coisas aconteciam no meu trabalho, na família, em torno de mim, e eu acompanhava tudo como um mero expectador. A cura do câncer, o tratamento longo e a dureza das injeções eram envolventes, intransigentes até, como o presidente que eu diariamente xingava. Não tinha escolha, a única opção que havia era se revoltar, e complicar tudo, ou aceitar e seguir em frente. Eu jamais imaginei que teria câncer, ou que aria por um período tão desafiador. Mais do que isso, eu tinha praticamente certeza de que não daria conta. Pois bem, lá estava eu, todo ferrado, num mundo todo ferrado, cheio de problemas, um pior do que o outro. Aguentando o desafio aos trancos e barrancos, sempre sereno, ou quase isso. Era o que dava para fazer, cada dia vivido era um dia vencido, diante do obstáculo, havia resiliência. Ia completar um mês que eu só saía da cama para consultas e exames médicos. Ninguém disse que seria fácil. No fundo, o ser humano acaba encontrando forças para superar as dificuldades mais variadas. Eu me julgava um cara fraco, mas não era, o tempo estava me mostrando isso. No período de tormenta a gente acaba evoluindo mais, eu ainda preferia, como todo mundo, a calmaria, a tranquilidade, mas, havia esse lado, inegável.

Fazer o tal do exame rápido para ver se eu tive, ou não, covid-19 seria um desafio de proporções épicas. Em amostras de sangue, eram detectados anticorpos IgG e IgM, usados no diagnóstico. Explodiam os casos da doença no Brasil, a demanda pelo exame era muito acima da capacidade de atendimento, a espera era grande, como eu já não tinha mais febre, estava longe de ser prioridade na fila. Mesmo assim, no sábado, dia dezesseis de maio, fui cedinho ao laboratório para a coleta de sangue.

- Esse exame do covid-19 precisa ser autorizado no atendimento pessoal, que só funciona de segunda à sexta.

Okay, sem problemas, na segunda-feira, bem cedo, lá fui eu de novo até o laboratório, diretamente ao setor de atendimento pessoal.

- O plano de saúde não cobre esse exame, só particular

Fui orientado, então, a seguir direto para o piso térreo, onde eu pagaria o exame.

- A gente não faz esse exame - informaram-me, finalmente, no térreo

Como assim??? Não faz??? Por que não me disseram isso no sábado???

- A gente não faz esse exame

Se eu insistisse no assunto, ouviria repetidas vezes, como um mantra, "a gente não faz esse exame". Funcionava desse jeito, as informações eram desencontradas, o setor de saúde estava ando por um grande desafio, mesmo em países muito mais desenvolvidos do que o Brasil. Tomar banho de sol, comer banana ou tomar cloroquina não resolviam o problema, o drama continuava. Eu estava tranquilo, melhorando a cada dia, debilitado, mas longe de perigo. O tamanho do estrago nos meus pulmões levava a crer que eu tive covid-19, a suspeita era enorme. Talvez eu nunca saiba exatamente se tive ou não covid-19, na dúvida, me parecia razoável não descartar a possibilidade. Nada disso me importava, paciência, eu estava melhor e não tinha contaminado meus pais, o resto era detalhe. Paciência?

A palavra "paciente", por falar nisso, serve tanto para quem tem paciência quanto para quem recebe tratamento médico. Veja só, esse sentido duplo ou a significar muito para mim, principalmente depois do diagnóstico do câncer. Antes não, afinal, antes eu não tinha e nem precisava ter paciência e não era

paciente. Queria tudo na hora, no ato, era saudável e ativo. Cada fase da doença, entretanto, me fez exercitar a minha paciência, não dava para acelerar nada, nem queimar etapas. Terminada a décima segunda seção de quimioterapia, eu imaginei que voltaria, a todo vapor, à vida normal, ao peso de antes, ao fôlego de corredor. Não foi o que aconteceu. ei mais de um mês de cama, me locomovendo lentamente dentro do apartamento, só saía quando necessário. Havia suspeitas de que eu tive covid-19, independente disso, o vírus que me atacou fez um estrago danado nos meus dois pulmões. Tudo ava em câmera lenta, o mundo estava de pernas para o ar ao meu redor, e eu deitado na cama, de pijama, ivo, esperando, com paciência, dias melhores. O bom nessas horas era a fé. Eu ainda não tinha aquela fé plena e inquestionável, mas tinha mais fé do que antes. Minha questão comigo mesmo era do antes e do depois, não me importava o quanto eu ainda tinha que evoluir, o importante era ser melhor hoje do que no dia anterior.

No dia vinte eu acordei muito melhor, tossindo menos, com menos mal-estar. Depois da consulta com o pneumologista, meu quadro clínico evoluiu bastante, com melhora significativa dia após dia. O fantasma da gripe mortal já não me assustava mais, de qualquer maneira, minha atenção com as questões de higiene e cuidados gerais foi redobrada depois do susto. O Brasil ava da marca de mil mortos por dia, algumas cidades e estados viviam um verdadeiro filme de terror, com enterros coletivos em valas lado a lado. Uma cena de horror. Segundo a OMS, já éramos o terceiro colocado no ranking de países com mais mortes por coronavírus, numa escalada rápida rumo ao topo. O país tornou-se um pária internacional, governos de outras nações começavam a colocar restrições ao contato de seus cidadãos com o Brasil. Enquanto isso, o dono da faixa presidencial trocava os pés pelas mãos em falas e atos de uma loucura só. Seguidores fanatizados do genocida iam ao delírio com o líder deles, o mito, como diziam. Num período de intensa turbulência, estávamos há dias sem ministro da saúde, quem caía fora ou era expulso do governo parecia ganhar um selo de qualidade, ou de sanidade mental, perante a sociedade. Acadêmicos, universitários, artistas, médicos, enfermeiros, jornalistas, entre outros profissionais, continuavam na mira implacável do presidente e de seu núcleo duro. Partidos do Centrão, berço de corruptos, uma tradicional escória empesteada de maus-caráteres, recebiam cargos aos montes, um toma lá, dá cá danado na tentativa de segurar um louco no poder.

Talvez você se incomode com esse meu tom político de protesto contra um governo que eu julgava incapaz de governar para o bem do Brasil. Faço parte de uma família com longa tradição de resistência ao autoritarismo, meu pai era sargento no Rio de Janeiro quando o Jango caiu em sessenta e quatro. Para quem não sabe, ou não se lembra, o golpe foi apoiado e levado a cabo por oficiais, os praças eram contra, pouco tiveram a ver com isso. Meu lado humanitário, apoiado pelo meu lado guerreiro, simplesmente se recusava a ficar calado diante da insanidade que matava. E muito! No período da pandemia, sempre que eu melhorava, crescia dentro de mim uma necessidade básica, quase instintiva, de lutar pelos valores em que eu acreditava. Realmente, não dava para ficar calado. Posso estar errado, acho que não estou, mas me posicionar contra o governo na época do coronavírus era praticamente um dever bíblico. Parecia haver um lance meio dicotômico, quem era contra o governo era do bem e quem era a favor era do mal. Não tinha meio termo, os dias eram bastante complicados. Eu, na minha crença e no meu otimismo, fortalecidos com a doença, acreditava veemente que tudo era uma questão de tempo. Quando o presidente discursava, falando em apoio de militares, fechamento do congresso e golpe de estado, dava um certo medo. Mas logo se via que era bravata. Enfim, noves fora, o câncer não me castrou politicamente.

Por recomendação do pneumologista, voltei a usar, após quarenta anos, a bombinha de Aerolin. Companheira inseparável na minha infância, usar a bombinha era como fazer uma viagem no tempo, algo que eu já estava bastante acostumado. Até os oito, nove anos de idade, eu vivia em crise de bronquite, cheio de problemas respiratórios. Tomava altas doses de cortisona, fui internado várias vezes no Rio e em Rio Claro e tinha sempre a bombinha à mão. Esse não era, porém, o relato de um coitado, quando eu não estava em crise, pintava o sete junto com o meu irmão. Mas, havia esse lado, a família sofria com a minha forte bronquite. Isso mesmo, memórias são importantes, vamos a elas. Uma vez, saí de uma internação na Policlínica Geral do Rio de Janeiro, no centro da cidade, e fui direto com os meus pais e o Flavio até o supermercado Sendas, da Ilha. Tínhamos uma VW Brasília marrom novinha nessa época. Muito antes do politicamente correto, em tempos de Ernesto Geisel, mal entrei no supermercado e fui logo ouvindo.

- Vem aqui, gordinho!

Eu detestava quando me chamavam desse jeito, mas, mesmo assim, lá fui eu. Próximo à entrada, de cara para o estacionamento, uma moça lambuzada de maquiagem borrifava a nova fragrância do desodorante Rexona nos clientes, eu não escapei à propaganda agressiva. No melhor estilo anos setenta. Quando a mocinha me chamou, pensei que fosse algo de comer, mas quebrei a cara, levei uma borrifada de desodorante nas ventas e imediatamente entrei em crise respiratória.

- Puta que pariu!

Faltaram exclamações para descrever a fúria do meu pai diante do fato. Até os seguranças do mercado tiveram que intervir para conter a indignação dos meus pais. Meu irmão não entendia nada.

- Ele é alérgico a essa merda!

Palavrões não eram uma novidade para mim, meus dois tios cariocas, o Jorginho e o Mané, eram bem boca suja, um deles, aliás, meu padrinho, usava "porra" no lugar de vírgula e de ponto. Ver meu pai soltando o verbo, entretanto, foi diferente, deu vontade de xingar também. Resumindo, a falta de ar voltou com tudo, as pernas ficaram bambas, fui carregado até o carro e transportado de volta para a Policlínica, para mais um tempinho de internação. Hoje compro Rexona, dependendo da oferta.

Em dois mil e vinte, a bombinha estava de volta à minha vida. Lembranças da minha infância eram inevitáveis. Após três dias de uso eu já respirava melhor, ainda sentia uma certa ardência nos pulmões, mas estava me recuperando. O gosto do pozinho mágico na boca evocava memórias da minha batalha contra a bronquite. Minha aparência estava estranha, não que eu ligasse para ela. Devido à pandemia, fazia mais de dois meses que eu não cortava o cabelo, mais um pouco e daria para fazer bobs. A medida em que meu estado de saúde evoluía, meu ânimo voltava em cena. Junto com o ânimo, vinha o apetite, a vontade de trabalhar, o gosto pela vida. Quando se está debilitado por doença, é difícil ter bom estado de espírito, a gente cai na armadilha do desânimo e não consegue sair fácil dela. Essa história toda de suspeita de covid-19, de semanas em cama e de mundo em pandemia, me assustou bastante. Estava num mato sem cachorro, meus guias espirituais não me abandonaram, eu tinha certeza disso, mas mesmo assim, fiquei com um medo danado de sofrer de novo. Acho que se não fosse a força do plano superior, eu teria batido as botas, não contei antes, mas cheguei a encomendar a alma. A falta de ar era desesperadora, teve uma noite em que eu achei que fosse morrer, a febre não ava, doía tudo. De madrugada, rezei chorando, pedindo para não sofrer e para ser bem recebido do outro lado da vida. Sensações inéditas tomaram conta de mim. Fazer o quê?

A quarentena parecia interminável, todo mundo estava de saco cheio de ficar preso dentro de casa, em São Carlos, os dias estavam claros, o céu azul de outono era um convite para sair. Apesar disso, boa parte da população se cuidava, não fosse a demência do presidente, os brasileiros estariam morrendo muito menos de covid-19. O assassino em massa da presidência só perdia o exclusivo papel de vilão absoluto nessa minha trama pessoal quando o guitarrista juvenil resolvia provocar o prédio com a sua guitarra mal tocada. No fundo, eu já havia perdoado o filho do procurador, porque me fazia bem perdoá-lo. A falta de educação e a má conduta da família se refletia nele. Produto do meio. Num período de isolamento social, o doutor procurador e sua triste companhia limitada promoviam churrascos aos domingos, com vários familiares, dava para ver da sacada do apartamento dos meus pais. Quando meus pais procuraram a istração do condomínio para pedir clemência ao guitarrista, devido à minha situação, a intenção era boa, a missão era de paz. Em troca, veio a afronta, metemos a mão em um vespeiro sem saber. "Você sabe com quem está falando?", com a família do doutor, foi isso que aconteceu, Brasil de A à Z, terra onde nasce banana, do Oiapoque ao Chuí. Contra os altos decibéis, fones de

ouvido e barulho de chuva, com trovoadas. Dica do Flavio.

Eu melhorava a cada dia, depois de mais de um mês entrevado na cama, com os pavorosos sintomas de covid-19, voltava a surgir uma luz no fim do túnel. A vida triunfava mais uma vez. No dia vinte e um de maio, quase na metade do terrível ano de dois mil e vinte, voltei ao pneumologista para mais uma avaliação. Dr Delfino continuava encafifado com os estragos deixados nos meus pulmões, o raio-X revelou que ainda havia cicatrizes bem extensas devido à infecção. Não conformado, o médico me encaminhou para um laboratório onde pude finalmente fazer o teste rápido para covid-19. ava das quatro da tarde, apesar do sol, o movimento pífio nas ruas indicava que a quarentena estava sendo respeitada em São Carlos. Havia uma grande tristeza no ar, com o prolongamento do isolamento social, as pessoas começavam a surtar aqui e ali. Era difícil, o mundo parecia ruir que nem castelo de areia, no Brasil, somava-se a isso as atitudes deploráveis de um governo perdido e dominado pelo ódio. Nem em meus piores pesadelos eu imaginei que um dia teria que aguentar tantas provas, sem trégua, várias de uma só vez. De certa forma, estar em tratamento de saúde durante a pandemia me expunha a riscos difíceis de avaliar. Eu não tinha outra opção, meu frequente entra e sai de laboratórios, consultórios, centros médicos e hospitais, era inevitável, me colocando lado a lado a outros doentes e potenciais infectados. O mundo precisava de apoio, eu também.

O laboratório estava totalmente vazio quando cheguei para fazer o exame, com tremenda má vontade. Eu estava de saco cheio, não perdia a compostura, não reclamava de nada, mas começava a me faltar paciência. Vivíamos em módulo de espera, tempo que não ava no planeta Terra. Cheguei a cogitar em me voluntariar numa missão espacial, por uns tempos, para bem longe do coronavírus. Felizmente, no laboratório, entretanto, não tive que esperar, fui prontamente atendido. Paguei os duzentos e oitenta reais e fiquei um tempão preenchendo o cadastro da vigilância sanitária. ei todos os detalhes dos sintomas que eu sentia, não poupei nada, chorei as pitangas.

- Eu achei que fosse morrer!

Achei mesmo, não era dramatização da realidade, nenhum exagero nisso. A pneumonia que eu tive em fevereiro havia sido muito mais leve, não que ela tenha sido fácil, mas, no geral, eu estava mais inteiro. Dessa vez eu estava um bagaço, seis meses de quimioterapia haviam me tornado um morto vivo, qualquer brisa me derrubava. Minhas unhas da mão estavam tomadas por micose, a baixa imunidade me atrapalhava em tudo, dava até medo de chegar na janela do apartamento e ser transferido para o Nosso Lar. A senhora que colheu o meu sangue penou para encontrar uma veia disponível, levei várias picadas em sequência, sem me importar com isso. Quando finalmente fui liberado, saí do laboratório apertando o o até o carro, era muito desagradável estar na rua, de máscara, temendo o ataque do vírus mortal. Eu era a vítima perfeita, um petisco para ele. Enfim, à noite, na tranquilidade do isolamento, ei a internet e baixei o resultado do meu exame. Para o meu total êxtase, o resultado deu negativo.

VENCENDO ETAPAS

Eu não tive covid-19, estava feliz com o resultado do exame. A pneumonia tinha acabado comigo, ei mais de um mês deitado na cama, procurando uma posição mais confortável para aliviar as dores no meu corpo. Era um tremendo sacrifício me levantar para qualquer coisa, desde ir ao banheiro até sair para as consultas. A falta de ar foi a pior que eu já tive. Mas eu sobrevivi, o pior ou e, no dia vinte e dois de maio, sexta-feira, meu estado de saúde já era muito melhor. Pena que não deu para comemorar direito pois, nesse mesmo dia de alívio geral, o Brasil ava por uma de suas piores crises políticas, pelo constrangimento causado após a divulgação de um vídeo contendo as discussões de baixíssimo nível durante uma reunião ministerial em Brasília. O show de horrores reforçava denúncias ligando o presidente a possíveis interferências na polícia federal. Uma loucura, no vídeo, era possível ver o presidente dizendo, "eu não vou esperar foder a minha família toda", sobre manipular investigações da polícia. Não parava por aí, do ministro da educação, ouviu-se "botava esses vagabundos todos na cadeia, começando no STF", referindo-se aos demais poderes. Parecia piada, mas não era, a ministra dos direitos humanos, isso mesmo, dos direitos humanos, pedia a prisão de governadores e de prefeitos por atenderem a OMS mantendo o isolamento social. O ministro do meio ambiente defendeu, em tom lírico, ar "a boiada" e "mudar" regras enquanto a atenção da mídia estava voltada para o covid-19. Por fim, "tem que vender essa porra logo", foi a fala educada do ministro da economia, PhD com rabo de pavão, sobre o Banco do Brasil.

Liturgia do cargo parecia não haver mais. A agressividade das falas e o ódio das entrelinhas de um governo ensandecido surgiam no vídeo através de uma linguagem chula de baixo calão, num ambiente com ares de reunião de butiquim. Enquanto isso, o mundo civilizado, do qual o governo brasileiro já não fazia mais parte, nem queria fazer, cuidava do covid-19. O número de mortes chegava à trezentos e quarenta mil, no Brasil, ava de vinte e um mil. Por aqui, aliás, vivíamos uma derivada positiva, uma taxa de crescimento assustadora no número de infectados e de vítimas fatais. Mesmo assim, a resposta do genocida para qualquer pergunta sobre a pandemia era "e daí?". Desse jeito, cruel e

implacável, tipo faroeste. A frase "E daí?", inclusive, estampava camisetas usadas por seguidores fiéis ao presidente, o gado, como eram conhecidos na imprensa, em manifestações de apoio à política vigente e contra os inimigos da situação, que eram, só para citar alguns, o congresso, o comunismo, os meios de comunicação, as artes, o ensino, eu, você e quase tudo que tivesse a ver com democracia e liberdade. A princípio, achei que essa realidade tosca fosse somente uma brincadeira temporária de mal gosto. Pouco após a posse do Capitão Cabeça de Camarão, eu adoeci e saí discretamente do palco pela porta dos fundos, política deixou de ser um assunto importante para mim. Com o ar do tempo, entretanto, ficou claro que a democracia e as liberdades estavam ameaçadas no Brasil, correndo um sério risco. Fiquei realmente receoso com uma eventual ditadura de extrema direita, as universidades seriam duramente perseguidas, meu ganha-pão ficaria muito mais difícil. Mesmo estando melhor de saúde, meu estado geral ainda era precário, eu não tinha como lutar contra nada que não fosse a doença. Vulnerável dos pés à cabeça, do jeito que eu estava, meu único canal de protesto e indignação era esse texto.

Eu vejo a coisa desse jeito, você pode ver de outro. É salutar pensar diferente, lançar um olhar pessoal sobre tudo, ter opinião própria. Para mim, segundo o meu modo de ver, era preciso haver resistência ao governo, ele estava errado, despreparado, perdido, acuado e mal-intencionado. Nunca me julguei o dono da verdade, nem portador de uma procuração divina, como já disse antes. Minha posição era essa, sentia-me confortável comigo mesmo na oposição. Se desse, eu participaria de movimentos ou ações contra o governo, qualquer iniciativa de reação, mas não tinha condições para isso. A pandemia encarcerava o cidadão dentro de casa, enquanto isso, os níveis de popularidade do presidente despencavam, mas nada podia ser feito, manifestações públicas seriam um tiro no pé, nem pensar. Nem pensar? Aguarde! O correto, naquele momento, era não aceitar as maluquices do Planalto, protegendo o país com um antídoto contra a ideologia destrutiva que vinha da ala dos esquizofrênicos. Eu defendia a tese da insanidade mental, alegando que o risco de uma onda comunista, que o governo tanto temia, era enredo de filme do 007, daqueles bem antigos, no embalo da guerra fria. Em dois mil e doze eu fui à China comunista para participar de um congresso na minha área de pesquisa, uma viagem de trabalho que eu gostei muito de ter feito. Tinha muita curiosidade em saber como iam as coisas no país do líder revolucionário Mao Tsé-Tung. Para a minha total surpresa, e espanto até, o que encontrei por lá foram cidades modernas, um numeroso conjunto de

centros comerciais, ruas ornadas com um monte de letreiros luminosos de marcas famosas, trânsito pesado e um corre-corre frenético de multidões semelhante ao de qualquer país ocidental.

Diante de tanta loucura, pensando comigo mesmo, bom seria viver num mundo em que todos merecessem a felicidade. Um mundo em que houvesse uma rosa vermelha para quem quisesse uma rosa vermelha, e que a saúde não deixasse ninguém na mão. Como seria bom esse mundo, só de sorrisos, de harmonia entre sons e cores, perfumado com as fragrâncias mais leves e delicadas. Que alegria seria, viver como criança, dentro de uma poesia, de rimas casadas, tipo goiabada com queijo, um plural de abraço e de beijo, para meninos e meninas! Praias tropicais de areia branquinha, montanhas geladas, vales esverdeados, rios tranquilos, lagos e cachoeiras, nuvens felpudas, pássaros voando, céu estrelado e portões dourados ao alcance de todos. O lado bom da vida, somente ele, dos desejos atendidos, dos sonhos realizados, das tortas de chocolate com morango, do amor correspondido, das grandes amizades, dos cantos floridos, de eterna paixão e compaixão. Que bom seria, ter tempo para tudo, e tudo ao mesmo tempo. E quando tudo acabasse, ter tudo de novo. Esse mundo encantado, de árvores frondosas, na sinfonia das quatro estações, de cheiro da chuva e de chão molhado, de gente alegre para todos os lados, é o que Deus quer, é o que Ele deseja para todos nós. Chegará o dia em que viveremos nesse mundo, de mentes elevadas e de nobres atitudes, de beleza e de perfeição. Enquanto isso, segue a quarentena, mais isolamento, uns sobrevivem, outros se vão, há os que aceitam e cooperam, há os que negam e enlouquecem. Fecho os olhos e me transporto para o mundo de fantasia que eu queria, da saúde e do deleite, das várias garfadas com uma pitada de pimenta, da cerveja gelada, das corridas e das pedaladas, das minhas voltas de fusquinha e das malas prontas para a estrada sem fim. Que bom seria!

Aproveitando os ventos favoráveis, no domingo de sol, céu azul e frio de outono, último dia de maio, fui com os meus pais ao Banco do Brasil da UFSCar e depois demos um rolê de carro pela cidade. Era a primeira vez que eu me sentia bem após a décima segunda seção de quimioterapia. Era também a primeira vez que eu saía de casa para ear e não para ir ao médico. O pulmão ainda gemia, mas pouco, se comparado com o ápice da pneumonia. Ao lado da Praça XV,

estacionei o carro a duas quadras da Caixa Econômica e fui a pé fazer um depósito. Meu êxtase ao fazer a curta caminhada até o banco contrastava com o cansaço extremo que eu sentia. Dei conta da ida e da volta, mas fiquei sem fôlego e com falta de ar. Quem diria! Nos meus tempos de corredor não me faltava disposição para nada, andar a pé, subir morro, descer ladeira, não importava, eu encarava tudo com pique de adolescente. Estava escrito numa marchinha de carnaval, dos anos dourados, que recordar era viver. Penando para voltar caminhando até o carro, veio-me à memória a lembrança da minha participação na primeira Meia-Maratona Volta da Ilha de Vitória, disputada na manhã de domingo do dia dezesseis de setembro de dois mil e sete, na capital do Espírito Santo. Foram vinte e um quilômetros de subidas e de descidas, com largada próxima ao Ginásio Dom Bosco, na Avenida Marechal Mascarenhas de Moraes. A corrida foi parte das festividades do aniversário de Vitória. A chegada aconteceu na famosa Curva da Jurema, após contornarmos a Ilha de Vitória, ando pelo centro da cidade, o Tancredão, a Rodovia Serafim Derenzi, a Avenida Maruípe e o Leitão da Silva, só para citar alguns locais.

Não havia tanta aglomeração quanto a corrida de São Silvestre, mas, mesmo assim, a massa que corria em Vitória se divertia alegremente ao longo do belíssimo trajeto em torno da ilha. Eu tinha trinta e cinco anos, pesava sessenta e poucos quilos, estava bronzeado de sol e corria com folga, um verdadeiro contraste com o gorducho esverdeado que se lembrava disso tudo, no outono de dois mil e vinte, um ano só de sextas-feiras treze. Mas como nem tudo são flores, naquele dia de corrida de rua, ao ar por um dos pontos mais elevados do percurso, duas mulheres do público resolveram trocar gentilezas, empurrões e pedradas na calçada. Pareciam malucas e deviam ser mesmo, protagonizaram um choque entre as respectivas loucuras em pleno dia festivo, pedras voaram para todos os lados. Sei dizer que o clímax da confusão aconteceu bem na hora em que eu ei, distraído, próximo às duas doidas. Eu estava feliz da vida, desconectado de tudo, com a cabeça pra lá de Bagdá. O resultado da distração foi que acabei ganhando uma pedrada bem na testa, quase atingindo o couro cabeludo. Levei um enorme susto, demorei para entender a situação, mas continuei correndo, ainda mais, para bem longe do barraco. Detesto confusão. Desci o morro com um filete de sangue escorrendo até o meu queixo, o ocorrido não deixou cicatriz, só a lembrança de que tudo pode mudar de um segundo para o outro. Por essas e outras, aliás, é que diziam que se houvesse um único buraco no mundo, eu cairia nele. Não era bem assim, mas, de fato, a pedrada sobrou

para mim.

Voltando à política nacional, o Capitão Trapalhão dedicava os domingos a se unir ao gado em atos contra o STF e o congresso. A rotina de aglomerações semanais diante da rampa do Palácio do Planalto era imutável, a única diferença no último dia de maio foi que o presidente apareceu no circo contra a democracia montado a cavalo, só faltando o nariz de palhaço para completar a imagem de otário. A multidão de trezentas pessoas, no máximo, não usava máscaras, nem mantinha uma distância segura, entre gritos e xingamentos, os manifestantes babavam uns nos outros. O coronavirus fazia a festa com tamanha ignorância. Funcionava assim, durante a semana, o Rei do Gado ameaçava o país dizendo que tinha apoio militar para dar um golpe de estado. Daí, no domingo, desfilava em praça pública como um Führer de B movie, ruminando impropérios contra a Folha de São Paulo, a Rede Globo, a Tribuna de Ituverava, a mulher do guarda e a Turma da Mônica, dizia que a personagem dentuça do genial Maurício de Sousa era comunista. Cão que ladra, não morde, já diziam. Quanto mais latia, mais fragilizado o governo parecia. Meu pai era sargento na Vila Militar, no Rio de Janeiro, quando houve o golpe de sessenta e quatro. Foi pego de surpresa em trinta e um de março, não fazia a mínima ideia de que estava rolando um golpe naquele dia. Quem assalta o poder não anuncia antes, não fica constantemente ameaçando, vai lá, dá o golpe e pronto. Não sou especialista no assunto, mas acho que um golpe bem dado deve ser feito em silencio, se possível, na calada da noite. Principalmente, golpe sem cheiro de chocolate.

Nesse mesmo domingo de galope em Brasília, torcidas organizadas invadiram as ruas para protestar a favor da democracia e das liberdades do cidadão. As manifestações autodenominadas antifascistas e antirracistas foram as primeiras demonstrações de insatisfação com o governo no período da quarentena. Após meses provocando a população através de falas infundadas, absurdas, inconsequentes e de atos insanos, opondo-se ostensiva e teatralmente à OMS, o Capitão via sua popularidade despencando em queda livre. O caminho da democracia tornava-se cada vez mais inviável para ele. Infelizmente, os protestos na Avenida Paulista, em São Paulo, e na Avenida Atlântica, em Copacabana, Rio de Janeiro, terminaram em confusão. Na capital paulista, membros de torcidas organizadas de Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos

entraram em confronto contra um pequeno grupo de apoiadores do Capitão que portavam bandeiras da Ucrânia e do Pravy Sektor, uma organização paramilitar associada ao nazismo. Os devotos do Mein Kampf, manifesto autobiográfico do líder do Partido Nazista, Adolf Hitler, trocavam as estações e tropicalizavam a loucura que levou ao Holocausto. Foi cômico e trágico ao mesmo tempo, ver gente tão ou mais morena do que eu, fazendo saudações nazistas em apoio ao governo federal. Nosso país miscigenado ganhava esse ingrediente azedo, tóxico e perigoso.

Lembre-se, eu sou contra o governo, você talvez não seja. Contra ou a favor, o bom era saber porque uns eram contra e porque outros eram a favor. Eu via a situação política do Brasil desse jeito que você acabou de ler. Não tinha como fugir do assunto naquele início de junho, o Brasil havia se tornado uma mosca branca entre os países que se uniram na pandemia. Independente de paixões, o destaque negativo na imprensa internacional ia primeiro para os Estados Unidos e depois para o Brasil. Enquanto o Donald Trump original ganhava fama de mau e de perverso, o nosso Donald Trump genérico era taxado de burro e de ignorante. Diga-se de agem, ele adorava isso, quanto mais, melhor, se possível, a cavalo. Os dois maiores países da América sendo governados pelos dois maiores idiotas da história. Vale dizer também, justificando o meu tom político, que eu me sentia melhor da pneumonia e mais distante dos piores efeitos da quimioterapia. Isso me estimulava a exercitar o meu lado de cidadão, de eleitor, de brasileiro preocupado com o andar da carruagem. Do jeito que a coisa ia, não tinha como ficar indiferente, assim que eu melhorei, retomei algumas das atividades que eu havia pausado. Inclusive, voltei a escrever o capítulo para um livro internacional sobre medicamentos naturais que mencionei em capítulos anteriores. Eu ainda respirava com uma certa dificuldade, qualquer esforço um pouco além me deixava sem fôlego, mas, no geral, meu estado de saúde estava avançando.

Faltou dizer que, nessa época conturbada, todo mundo usava máscara hospitalar fora de casa, uma multidão de mascarados desfilava pelas ruas, não importava onde, em São Paulo, Paris, Tóquio ou Pequim, todos se protegendo. Era máscara hospitalar na cara e álcool em gel nas mãos, quem tinha juízo fazia isso. Eu já usava máscara quando ia para a rua desde que comecei a quimioterapia, com o

sistema imunológico fragilizado, não tinha outro jeito. Chamava bastante atenção. A única vez em que saí sem usar a máscara, peguei aquela primeira pneumonia, em fevereiro. Quando houve a pandemia, a quarentena, o isolamento social, as máscaras tornaram-se parte da vestimenta obrigatória, assim como calça, camisa e cueca. Poucas pessoas saíam de casa sem a proteção, a recomendação da OMS era seguida mesmo em países como Estados Unidos e Brasil, cujos respectivos chefes de estado achavam isso tudo uma grande bobagem. E daí? E daí o seguinte, no meu caso, além da proteção, a máscara também disfarçava um pouco o meu rosto redondo, eu me via no espelho e não me assustava tanto. Era muito engraçado ver crianças usando máscaras infantis com desenhos coloridos, eu sempre ria dos pequenos. Meus sobrinhos usavam as máscaras deles até para chegar perto do portão de casa, meu irmão mandava fotos e eu me divertia. O Caio sabia fazer vídeos e enviar por email, certa vez me mandou um tratado sobre como lavar as mãos corretamente. A máscara do Caio era de tecido mesclado em preto e branco, e a da Laurinha tinha desenhos de unicórnios.

A verdade absoluta e inquestionável era que todo mundo já estava de saco bem cheio do tal do coronavírus, o maior filho da puta das últimas décadas. O Trump e o Capitão Caverna eram fichinhas perto dele, Hitler, por sua vez, ainda era hors concours no quesito monstruosidade. De todas maneiras, um quarteto que me causava náuseas, só de pensar. Enfim, as universidades seguiam com aulas paralisadas, escolas usavam ensino a distância, o desemprego crescia sem sinal de recuo, empresas não sabiam o que fazer para salvar as contas. Tirando noticiários, a TV só mostrava programas reprisados, novas produções estavam suspensas durante a quarentena. Os estabelecimentos que continuavam funcionado, limitavam o o para evitar aglomerações. Em alguns casos, era preciso medir a temperatura de quem entrava em um determinado lugar. Lockdown, delivery, home office, fake news, eram palavras importadas que ganharam tropicalidade no período da pandemia e foram incorporadas ao vocabulário brasileiro. Vez ou outra, ouvia-se nas ruas, gritos dizendo FIQUEM EM CASA! Ninguém aguentava mais, mas ficava. Meu tratamento estava suspenso enquanto eu estivesse com os sintomas da pneumonia. A previsão era que eu retomasse as consultas médicas no final de junho. Enquanto isso, eu melhorava a cada dia, ensaiava até uma vidinha normal, dentro do que isso significava para mim naquele momento.

A Universidade de Oxford, na Inglaterra, começava a terceira fase de testes clínicos da vacina contra a covid-19. A esperança que batia em nossa porta, felizmente, não vinha dos Estados Unidos. As relações internacionais entre os gringos e o mundo eram péssimas, todos temiam uma supremacia norteamericana em assuntos humanitários. A era do multimilionário Donald Trump na presidência era barra pesada, seu desdém com relação a estrangeiros só não era maior do que o seu desprezo pelo meio ambiente e pelas questões climáticas. O Brasil era o terceiro país em número de mortes, no início da pandemia, começou bem, com poucos casos, mas em junho, ia muito mal no cenário internacional. Não parava por aí, o mundo efervescia enquanto o ano caminhava para a sua metade. Em vinte e cinco de maio, George Perry Floyd, um homem negro, foi morto por asfixia pela polícia na comunidade Powderhorn de Minneapolis, Minnesota, nos Estados Unidos. Essa morte covarde foi o estopim para protestos violentos contra o racismo, inicialmente nos Estados Unidos, mas que gradualmente ganharam as ruas de outras nações. Parecíamos reviver o clima das manifestações que tiveram início em maio de sessenta e oito e que se alastraram como uma onda por vários países, levando a profundas mudanças. Nem sempre boas. Por aqui, gerou o AI-5, que mergulhou o Brasil num período ditatorial linha dura, os famosos anos de chumbo. Eu era criança, quando ei a entender alguma coisa, o chumbo grosso já derretia que nem cera, falava-se até em eleições diretas.

Eis que então, o mundo todo usava máscaras, de proteção, dois mil e vinte não estava nem na metade completa quando as ruas rapidamente se transformaram em um verdadeiro campo de batalha. Eu assistia tudo pela TV, querendo participar daquele momento, mas sem condições para isso. Pessoas lutavam por igualdade, contra o racismo, contra o fascismo, contra o legado mórbido de supremacia ariana deixado pelo diabólico Hitler e, acima de tudo, contra todos os loucos que tinham poder nas mãos. Ironicamente, as máscaras deixavam todos mais parecidos, brancos, negros, pardos, asiáticos, só sobrava do rosto o contorno dos olhos, testas e cabelo. Era assim, homens e mulheres indo para as ruas em plena quarentena, indignados com tanta injustiça, buscando igualdade, portando máscaras e cartazes, dando um basta à tirania que insistia em sobreviver em pleno século vinte e um. No Brasil, havia cheiro de combustível no ar, o incêndio parecia iminente, o povo, insatisfeito e contrariado com uma

política que ia contra a sua índole, pouco a pouco, se rebelava. Primeiro, foram os aços nas janelas, depois, uma invasão de mascarados nas ruas das cidades. Um grupo de fanáticos seguidores do presidente intimidava a população, alegando ter o monopólio das ruas. Nutrido de ódio contra o comunismo e a imprensa, viajando na maionese como sempre, o Capitão instigava abertamente os conflitos, mas começava a temer nitidamente a disparada das manifestações e dos protestos. Parecia uma ratazana acuada, não demonstrava ter a mínima consciência do momento vivido, em que todo cuidado era pouco. Falava sem pensar, pensava sem refletir e refletia sem compreender. Enquanto isso, eu torcia para que o meu câncer logo virasse, sem cerimônia, uma sombra no ado.

REMANDO EM ÁGUAS AGITADAS

No fundo eu era um cara descontente, um ingrato, precisei ter uma doença grave para aprender a dar o devido valor à vida. Posso dizer que tudo começa pela saúde, física, mental, espiritual, seja qual for, sem ela, nada vale a pena. Antes, eu me achava um tipo "quem não chora não mama", meio cômico até, que não era para ser levado a sério. Depois que fiquei doente, ei a ver como era nocivo esse comportamento negativo, baixo astral, sempre reclamando de alguma coisa, sempre achando pouco. Nada estava bom. Houve um tempo em que isso não tinha consequências na minha vida, quando jovem, apesar da história dos vinte e cinco anos a mais que eu já contei aqui, meus dias eram mais leves, apesar do descontentamento, eu sabia viver. Minha juventude e a leveza da minha alma escaparam de mim, porém, depois que eu me formei e ei a complicar tudo, nada me satisfazia, a cada conquista, eu já queria outra no lugar. ei em concurso público para a UFES, depois de penar bastante, mas logo que comecei a trabalhar, chorava pelos cotovelos, achava tudo ruim. Estraguei o período de dois anos e meio que eu ei no Espírito Santo de tanto que eu reclamava de tudo. Só era feliz quando estava na praia, mesmo assim, achava a cor da água meio estranha. Em compensação, a temperatura era perfeita! Acho que somente nos meus tempos de UFABC foi que eu dei uma pausa nos lamentos, até me surpreendi comigo mesmo. Nem o assalto com direito a esfrega no chão e tapa na orelha tirou o meu rebolado em Santo André.

A chegada do câncer mudou tudo, fui obrigado a repensar a vida para sobreviver ao tratamento. Aprendi a agradecer a Deus por cada benção concedida, a dor que dava uma trégua, o soluço que ia embora, a mensagem de solidariedade que eu recebia, o silêncio temporário da guitarra, a noite bem dormida, a paz de espírito que eu sentia. Tudo era motivo de gratidão, mesmo quando eu relutava, nos momentos mais difíceis. No primeiro fim de semana de junho, com mais disposição para viver, sentia uma felicidade incontida, consegui fazer caminhadas no térreo do prédio que me animaram enormemente. Essa era a minha nova realidade, normalidade, para mim, era isso. Não adiantava buscar no ado as várias vezes em que eu subi a Avenida Brigadeiro correndo, durante a São Silvestre. A lembrança era boa, só isso, mas não servia de consolo para a

minha nova vida. No fundo, o que me importava era não estar na cama, sofrendo com a falta de ar, tremendo de frio por causa da febre. Comparar os meus dias antes e depois do câncer era uma burrice que eu não estava disposto a fazer. Digo honestamente que, às vezes, eu sentia uma saudade diferente, de ser como eu era antes. Saudade essa que não me incomodava, que chegava e ia embora, que mexia com a memória, sem mexer comigo. Eu queria cair na estrada como antes, encher o prato de pimenta, tomar sorvete e beber cerveja, ir para o trabalho e ar o dia na UFSCar, tirando onda de importante, sem ter importância nenhuma. Nada disso, entretanto, era páreo para o avanço do tratamento e a tão esperada cura.

Renovado, eu seguia, feliz com a minha melhora, observando a agitação que começava a incendiar o Brasil. Motivadas pela morte de George Floyd, grandes manifestações ocorriam mundo afora, Nova Iorque, Washington, Miami, Frankfurt, Londres, Paris, Sydney, eram algumas das cidades em que pessoas de todas as idades foram para as ruas protestar contra o racismo e a desigualdade social. Por aqui, a motivação maior era mostrar para o governo de extrema direita que, diante da tirania, haveria resistência. A índole pacífica do povo brasileiro cansou-se do incessante discurso do ódio, das constantes ameaças e da truculência com as palavras na forma de tortura psicológica. Quem com ferro fere, com ferro será ferido, já dizia o ditado popular. Havia uma divisão de ânimos, muita gente contrária ao governo do Capitão achava que ainda não era o momento de ir para as ruas protestar, dando um péssimo exemplo diante da pandemia. Eu, inclusive, pensava assim, a vida acima de tudo. O movimento Somos 70%, em referência à porcentagem de brasileiros que desaprovava o governo, entretanto, pensava diferente, afirmando que não havia mais margem para espera. O momento, de fato, era complicado, mas a luta pela democracia compensava. A princípio, o governo federal tentou proibir as manifestações contrárias a ele, alegando que havia um caráter terrorista e pró-comunismo no movimento de rua. E daí? E daí digo eu! Brasília alertou que seria dura contra os manifestantes da oposição, dizia haver guerrilheiros de luta armada infiltrados entre os cidadãos que iriam para as ruas. Dois mil e vinte era, ainda por cima, bipolar, horas século vinte um, horas século vinte, no embalo do regime militar. Sou da teoria de que quanto mais burro e incapaz, mais intransigente e autoritário é o dono da carapuça. Se não é capaz de dialogar usando o recurso da argumentação, por falta total de intelecto, o que sobra é a boçalidade e murro na mesa.

Frente a tantas ameaças dos gorilas de Brasília, o governo praticamente conseguiu coibir as manifestações de domingo contrárias a ele, que aconteceriam no Largo da Batata em São Paulo. Muita gente deixou de ir por medo. O inimaginável virou fato, na prática, sabe-se lá até quando, estavam proibidas, ou melhor, condenadas, as demonstrações contrárias ao governo do Capitão. Justamente na cidade símbolo do movimento a favor das Diretas Já, as ruas da capital paulista ganhavam, agora, uma incômoda mordaça, impondo um silencio difícil de engolir. Após quase quatro décadas de liberdade, o povo afônico, com um nó na garganta, duro de desatar, nada podia fazer. Coube quase que exclusivamente à imprensa, o papel que caberia aos partidos de oposição. Tirando o SBT, a Record, a Rede TV e, no top do topo, a Jovem Pan, fiéis babaovo do governo, e da cartilha do Führer, os grandes meios de comunicação faziam marcação cerrada ao aleijão mental e moral que ocupava a presidência do Brasil. Dava verdadeiro nojo ver a liberdade e exclusividade das ruas que tinham os grupos de extrema direita, em demonstrações antidemocráticas, fascistas, próracismo, a favor de intervenção militar e fechamento do congresso. Sempre prestigiadas pelo atual presidente. Sempre! Esquecia o Capitão, porém, que Deus era brasileiro e que o Brasil era muito maior do que a nuvem de chumbo que estacionou sob os céus do nosso lindo país tropical.

A mistura de câncer e de coronavírus com política chegava num momento da minha vida em que o mais importante de tudo, era a solução. Todo problema, tem solução, se não tem solução, então, não é problema. Eu pensava assim. O tumor maligno era um problema, aliás, um problemão, a solução foi uma cirurgia. A metástase deixou em mim, outro problema, a solução parecia ser a quimioterapia. O coronavírus era um problema invisível, cuja solução, por hora, era o isolamento social. E fé nos ingleses com a vacina, simples assim. O governo do Capitão era uma dor de cabeça para mais de setenta por cento dos brasileiros, ou seja, umas cento e cinquenta milhões de pessoas. Um grave problema. A solução era destronar o Capitão, seu clã, a gangue do ódio e correr com o gado para uma pastagem bem verdinha, cercada e segura. Terra onde nasce banana, tem que ter humor, a comédia fazia parte da nossa história. A ameaça de golpe de estado aqui no Brasil vinha dos parcos miolos do Capitão, de seu guru, kuru-kuru, bicho engraçado, mas tome cuidado, que ele vai te pegar e de uma récua de generais da reserva, com cara de doentes terminais. Meu avô

materno, um hábil despachante em Realengo, tinha frases ótimas sobre os militares, ele dizia que general de pijama era cabo. O tal do chefe do Gabinete de Segurança da República da Banana era quem mais bradava, ou melhor, babava contra a democracia. Defendia a ditadura usando dentadura, espumava pelos cantos da boca, que nem bulldog de filme da sessão da tarde. Se exaltava nas coletivas, enchia a farda, ou melhor, a fralda, daquilo que o governo jogava no ventilador. Eu também enchia fraldas na época do tratamento, mas as semelhanças terminavam aí. Era o quarto de xícara de azeite de oliva, na massa podre sem margarina. Verdinho que nem a farda empoeirada que já não lhe servia mais.

A medida em que eu me recuperava da forte pneumonia e dos efeitos acumulados da quimioterapia, notava mais claramente certas anomalias no meu funcionamento geral. Lapsos de memória ficaram mais frequentes, talvez eu quisesse acelerar a minha volta gradual à vida normal, e meu cérebro estivesse protestando. O problema não era só na memória, eu também me perdia em meio a falas simples, ou perdia o fio da meada quando tentava me concentrar em alguma tarefa. Tinha muita dificuldade para falar ao telefone. Eu já tinha ouvido falar de sobreviventes de câncer que apresentaram problemas de raciocínio e de memória após o tratamento. O pensamento nebuloso e o esquecimento podiam durar cinco anos ou mais para uma porcentagem considerável de pacientes, segundo pesquisa que fiz na internet. A quimioterapia circula por todo o corpo na corrente sanguínea, matando células que estão em processo de divisão. Por isso, pode tratar células cancerígenas em quase qualquer parte. Os tecidos do nosso corpo são feitos de bilhões de células individuais. Uma vez que crescemos completamente, a maioria das células do corpo não se divide e nem se multiplica. Elas só se dividem se precisarem reparar danos. No câncer, as células continuam se dividindo até que haja uma massa de células. Essa massa de células se torna um nódulo, chamado tumor. Como as células cancerígenas se dividem com muito mais frequência do que a maioria das células normais, é mais provável que a quimioterapia as elimine. Só para começo de conversa.

Foram seis meses disso tudo dentro de mim. As falhas no funcionamento da minha cabeça me incomodavam, mas não me preocupavam, nem me causavam sofrimento. Só estranheza. Meu maior desafio durante o tratamento foi, sem

sombra de dúvida, a dor inável na região das injeções, onde ficava o cateter, cheguei a me contorcer por causa dela. Meus colegas da ala de quimioterapia também reclamavam dessa mesma dor, de dentro para fora, do osso até a pele. Eu ainda podia me vangloriar por aguentar o tranco sem necessidade de internação, muitos dos demais pacientes eram internados com frequência. Além de ser mais novo do que a média, só perdendo em juventude para um ou outro, meu organismo era limpo, nunca fumei, não era de beber muito, corria todos os dias, dormia bastante, sentia-me forte e preparado para o tratamento. Ele foi longo e duro, mas eu resisti sempre que foi necessário, houve sofrimento, mas não foi grande, houve lágrimas, mas não houve tristeza. Eu estava vivo, bem, e seguia contando a minha história. Enquanto eu me livrava do fantasma do câncer, o mundo parecia se livrar do vírus assassino. Pouco a pouco, avanços aconteciam, muito além da medicina, o lado bom das pessoas ficava ainda melhor a medida em que a superação do momento difícil deixava suas marcas durante a pandemia. O lado feio do ser humano ficou horrível e o lado bonito ficou belíssimo. Uns ofereciam maldade enquanto outros ofereciam bondade, era essa a dinâmica daqueles dias. Não havia meio termo. Indiferença era proibido.

Na madrugada de oito para nove de junho, o frescor da noite do lado de fora apagou todas as marcas do câncer. Eu estava curado, sabia disso. Corria surpreso com o meu fôlego, usando tênis importado, camisa de poliéster e short de nylon. A luz da lua iluminava o caminho diante de mim, revelando uma paisagem rural que eu via pela primeira vez. O chão de terra batida não era irregular, firmes adas encontravam um piso perfeito sob os meus pés, o sentimento de alívio por estar conseguindo correr era indescritível. A endorfina transportava a minha mente como vapor difundindo-se livremente no espaço, ocupando tudo naquele cenário mais do que perfeito, sem pressa nenhuma de virar um pretérito mal explicado. Estar ali era um verdadeiro presente, a volta triunfal ao prazer de correr sozinho, disposto, vencendo a distância e querendo mais, não tinha preço. Se tivesse, eu pagaria, parcelando no cartão em quantas vezes fossem necessárias. A corrida era tão suave que eu parecia flutuar de tanta leveza, de tanto pensar em correr, com tanta saudade, eu quase voava, devagarinho, sem asas, nem penas. A única pena era que tudo não ou de um sonho, daqueles que contribuem para uma boa noite de sono. A realidade demorou para dar o ar da graça, por um lapso de tempo, fiquei feliz com a volta aos meus dias de corredor. As caminhadas no térreo do condomínio ajudavam a me manter ativo,

era o que eu conseguia fazer. A vontade de voltar a correr, entretanto, sempre existiu, o sonho me mostrou isso.

Não comentei aqui, nem sei porque, mas os sonhos voltaram com tudo no meu sono, desde que ei pelos piores dias da pneumonia. Eu entendo sonhos como sendo histórias e imagens que nossa mente cria enquanto dormimos. O bom era que eles podiam ser vívidos, eu ia dormir com a expectativa do sonho que eu teria. Uns eram intensos, outros confusos, alguns eram perfeitamente racionais, outros eram nada a ver, mas a maioria me animava. Achava até que a influência no meu ânimo era proposital. Teve uma vez que eu sonhei que estava magrinho, sem barriga, acho que tive esse sonho de tanto que eu falava da minha silhueta roliça. Dizem que a gente sempre sonha, mas não se lembra depois. Um sonho lúcido seria, então, aquele em que você sabe que está sonhando. Pesquisas mostraram que esse tipo de sonho é acompanhado por um aumento na atividade de partes do cérebro que geralmente não funcionam durante o sono. Neste sentido, sonhos podem ser induzidos, sei disso por experiência própria, no repertório que eu mesmo criava, de tanto pensar num determinado assunto, só faltou pimenta, cerveja e sorvete. O famoso psicólogo Sigmund Freud acreditava que os sonhos são uma janela para o nosso subconsciente e que revelam os desejos inconscientes de uma pessoa. O curioso era que fazia tempos que eu não tinha pesadelos, mesmo sonhos que me assustavam bastante não podiam ser considerados pesadelos. Talvez isso fosse um arranjo dos céus para me ajudar no momento difícil.

Por falar em céu, segundo o espiritismo, muito do que chamamos de sonho são, na verdade, experiências mediúnicas de interação com o lado de lá. Afinal, seriam situações vivenciadas por nossas almas durante o sono profundo, não apenas e exclusivamente impressões desconexas de lembranças do dia. Essa emancipação da alma ocorre quando ela se afasta do corpo físico, mantendo sua ligação apenas por um halo fluídico que impede o total desprendimento. Nesse momento, os sentidos ficam adormecidos, entorpecidos, facilitando a liberdade do espírito de ir e de vir em uma viagem astral. Além disso, lembranças espirituais de longuíssima data podem causar certas impressões no nosso campo mental. Ao deixar o corpo durante o sono, o espírito tem maior ou menor liberdade, dependendo do grau de adiantamento e de desprendimento material. O

espírito jamais está inativo. Parece que ele segue curso livre para o que lhe fala ao coração ou ao que esteja em sintonia com seu campo mental, segundo suas tendências mentais e paixões. Sei lá, o meu espírito estava a cada dia mais enigmático, não imagino os caminhos que ele percorreu nas várias existências adas, mas acho que todas elas emergiam de vez em quando. Dando um nó na minha cabeça.

Do sonho para a realidade, no dia dez de junho o Capitão autorizou o ministro da educação a nomear interventores nas universidades federais. Apesar da inconstitucionalidade, a investida contra as instituições de ensino era muito mais uma provocação do que uma demonstração de autoridade. Analistas políticos diziam que o presidente fazia isso para desviar o foco da escalada vertiginosa do coronavírus no Brasil, com taxas de mortalidade assustadoras. Nesse dia, meu email institucional da UFSCar recebeu toneladas de mensagens de protesto, além de notas de repúdio e de indignação, enfim, aparentemente o genocida conseguiu o que queria. Nos anos de chumbo, era muito comum a nomeação de interventores no lugar de reitores, mesmo havendo resistência, nada podia ser feito. Não bastasse o perigo incendiário da medida provisória sobre a nomeação de interventores, o ministro da educação, nesse momento, acumulava um vasto histórico de perseguição sumária, de atos anti-democráticos, de preconceito racial, de xenofobia e de tantas outras anomalias morais, de caráter e istrativas. Era tão ou mais repugnante do que o próprio Capitão que o defendia com unhas e dentes. Sua boçalidade ideológica beirava o mais insano fanatismo, seu ódio à esquerda e ao comunismo tinha um evidente caráter fascista. Falava errado, cometia gafes de ortografia semanalmente, os alunos se divertiam com elas. Embora suscitasse os piores sentimentos, principalmente entre universitários, sua agem por Brasília seria para sempre lembrada como a mais triste comédia do maior bobo da corte que a história política brasileira já teve.

Lembro-me que na semana em que o referido ministro foi nomeado, em abril de dois mil e dezenove, encontrei na UFSCar colegas que trabalhavam na UNIFESP de São Paulo e que conheciam sua fama.

- Você verá a loucura que vai ser

Eu achava que ninguém conseguiria ser pior do que o ministro anterior, mas estava enganado. Esse era deveras pior, completamente destrambelhado, muito mais nocivo, apto e pronto para fazer no ensino o papel sujo que o Capitão esperava dele. Mais parecia um personagem do insólito ficcional de um Frankenstein mental. Segundo meus colegas, o ministro, cujo sobrenome impronunciável só não era mais esquisito do que o beiço proeminente que ele ostentava, julgava-se imune às consequências de suas ações. Aprontou todas as diabruras na UNIFESP, onde trabalhava, envolveu-se em inúmeras polêmicas, frustrava-lhe o fato de não ter sido capaz de defender o doutorado e de ter que trabalhar em um ambiente em que todos tinham o título. E o nível também.

Se tiver um único buraco no mundo, eu caio nele. Eu estava cada vez mais convencido disso, não que me julgasse um cara azarado, não era isso, mas eu vivia me envolvendo em situações inusitadas. Na belíssima manhã do dia doze de junho, dia dos namorados, tive que ir à Santa Casa para agendar uma tomografia do tórax. Apesar da melhora significativa no meu estado de saúde, eu ainda tinha a respiração pesada, sabia que havia algo de errado com o meu pulmão. Enfim, a região da Santa Casa já era para mim quase uma segunda casa, foi difícil achar uma vaga para estacionar o carro, tive que caminhar mais de duas quadras para chegar até a entrada principal. O sol não me incomodava mais, durante as seções de quimioterapia eu simplesmente não ava claridade em cima da minha pele, mas isso era ado. Apesar do cansaço, caminhei tranquilamente, com medo do coronavírus, mas curtindo mesmo assim. Estar na rua era um ato de rebeldia que eu não tinha como escapar, no meu caso, o agendamento do exame tinha que ser presencial.

- Senhor, aguarde um momento

Na entrada principal, funcionários da Santa Casa discutiam com três pessoas, um homem e duas mulheres, uma delas, vestida com a camisa da seleção brasileira.

Fui barrado a poucos metros do o ao hospital, mostrei para a enfermeira a guia com o pedido de exame, mas não teve conversa, o bate-boca com o trio parecia interminável.

- Não estão deixando a gente entrar!

A jovem morena de cabelos longos, de boné e com a camiseta da seleção brasileira, estava indignada, transtornada, olhava para mim e para a guia que eu tinha nas mãos bufando de ódio.

- Que absurdo!

Isso mesmo, um absurdo, em alto e bom som, falei sem pestanejar e sem nenhum pingo de preocupação, para todo mundo ouvir, eu simplesmente me recusava a ficar calado diante da arbitrariedade, mesmo sem entender direito a situação. Fui prontamente solidário àquelas três pessoas que queriam entrar na Santa Casa, a meu ver, um direito delas. Não adiantou, a funcionária olhou firme na minha direção e pediu, mais uma vez, que eu me afastasse.

Por fim, não esperei o desfecho da conversa, dei meia volta e contornei o prédio da Santa Casa, conhecia outros os muito mais tranquilos para, finalmente, agendar a minha tomografia. De certa forma, a situação de confronto me perturbou, pelo pouco que eu acompanhei do diálogo entre aquelas três pessoas e os dois funcionários do hospital, a questão toda girava em torno de umas fotos, mas eu não tinha certeza. Notei que enquanto eu me afastava da confusão, algumas pessoas na calçada me encaravam com ar de reprovação, me condenando com os olhos por eu ter momentaneamente tomado as dores daqueles três cidadãos. A verdade era a seguinte, eu não estava entendendo mais nada. Andava devagar, levei quase dez minutos para finalmente entrar na Santa Casa, por um o ao lado da radioterapia. Só fui autorizado a entrar porque

tinha a guia de pedido do exame, caso contrário, seria barrado que nem a mocinha com a camisa da seleção brasileira.

- Por que estão restringindo o o à Santa Casa?

Sentia-me à vontade para fazer a pergunta, a atendente que me recebeu foi simpaticíssima comigo, disse que havia manifestações de pessoas diante dos hospitais a pedido do presidente da República. Segundo ela, os manifestantes queriam invadir as alas de terapia intensiva para fotografar os leitos, numa tentativa de mostrar para o mundo que no Brasil não havia problema com covid19, era tudo invenção, exagero da esquerda comunista. Só aí me ocorreu que o trio de invasores não usava máscara hospitalar, no calor do bate-boca esse detalhe, que não era detalhe coisa alguma, ou despercebido. Era difícil acreditar em tamanho delírio, tamanha estupidez, o boçal dos boçais, o idiota dos idiotas, o aleijão mental das profundezas do inferno, de fato, deu ordem para que seus seguidores entrassem na marra em hospitais. Depois eu confirmei essa informação nos jornais online. Era o fim da picada, não havia mais limite, invasão de hospitais a mando do Capitão. Na verdade, mais do que o fim da picada, era o chorume fétido que emanava da decomposição moral do lixo que ocupava a presidência da república.

Obviamente, saí da Santa Casa e voltei para o meu carro indignado com o que eu havia acabado de testemunhar. O ápice da loucura em vários tons de dramaticidade. O que mais me chateava, entretanto, foi ter dado apoio, sem querer, para o trio que queria invadir a Santa Casa. Nessa eu caí que nem um pato, igual ao golpe com cheiro de chocolate da velhinha da rodoviária. Sem saber, fui gado por uns minutos, só aí eu consegui entender a razão dos olhares de reprovação que eu recebi. Fiquei com uma vergonha danada, deu até vontade de voltar para a entrada da Santa Casa e me explicar, mas, não iria adiantar. Eu não sou gado! Pensava comigo mesmo, bois e vacas sim, gado, não! Ter feito parte do gado do Capitão Cabeça de Camarão, sem me dar conta, foi a lembrança de que coisas estranhas aconteciam comigo. Respeito a democracia, sou fã e defensor da liberdade total, incondicional, acima de tudo, quer ser gado,

seja, quer seguir o Capitão, siga, mas invadir hospitais era além do tolerável. Eu não me perdoava! Foi castigo, quem com porcos se mistura, farelo come, fiquei com uma bronca estratosférica da mocinha com a camisa verde e amarela, ela foi o estopim para a minha participação nas desventuras do gado. Seu olhar furioso me fez protestar, até por uma questão de patriotismo diante da camisa da seleção brasileira. Xinguei tanto o ministro da educação e acabava de dar uma gafe tamanho família, que superava todas as de ortografia que ele havia dado. Acho que nunca irei superar o dia em que eu me solidarizei com a extrema direita.

Nessa mesma semana em que eu virei casaca e apoiei o gado na invasão à Santa Casa de São Carlos, faltou contar aqui que a vice-síndica do nosso prédio foi ao condomínio Parque Faber I reclamar do som da guitarra. Realmente, as provocações eram infantis demais, o jovem aumentava e abaixava o volume do amplificador no meio da tarde, à noite, o filho do Doutor Marcos não podia ser contrariado, em terra onde nasce banana, funcionava assim. Parece que o nome dele era Otávio, Ovário ou qualquer outro nome que lembre um otário. Eu aprendi a lidar com o barulho estridente do instrumento mal tocado usando a dica do meu irmão, ou seja, fones de ouvido e barulho de chuva com trovões. Essa era uma batalha perdida, meus pais haviam tentado, em vão, uma solução pacífica para o problema, isso me emputeceu bastante. Fiquei com pena deles, idosos, ando pela humilhação de ir até o condomínio classe A, lidar com gente de baixíssimo nível. O pai do garoto, procurador do estado, o Rei da bala Chita, não estava nem aí para o convívio civilizado com os vizinhos, afinal de contas, abaixo da linha do Equador, filho de doutor podia fazer o que quisesse. A vice-síndica também fez a sua parte, esforçou-se, foi ao Parque Faber I, tentou argumentar dizendo que viviam no prédio, idosos, crianças, três golden retrievers, um labrador e um paciente em tratamento oncológico (eu, no caso). Qualquer pessoa com o mínimo de humanidade teria se sensibilizado. Três golden retrievers e um labrador! No mesmo dia em que essa n-ésima reclamação foi feita, os acordes da guitarra ensurdeceram o prédio, era possível ver o garoto cabeludo tendo múltiplos orgasmos enquanto tocava o instrumento em seu quarto.

ado todo esse tempo, desde o magnífico sonho com todos os relógios do mundo, na véspera da colonoscopia, até o parágrafo anterior, de protesto contra a

elite branca e sua maldita guitarra, você tem sido uma ótima companhia. Foi sempre muito bom ar esse momento com você, mesmo quando a doença e o tratamento me derrubavam. Estar aqui contando a minha história, com você do outro lado da linha, é terapêutico, prazeroso e motivador. Nosso relacionamento já merece uma pequena comemoração, bodas de alguma coisa, sei lá, de algodão doce diet que seja. Nunca tivemos altos e baixos, só momentos bons, você sempre esteve comigo quando eu precisei. Sempre que eu quis, encontrei em você o consolo que tanto me fazia bem. Compartilhei várias fases da minha vida com você, num diálogo pretencioso em que só eu falei. Mesmo não vendo você, posso te desenhar com a imaginação, consigo criar uma imagem de como você se parece. Tudo é fruto da vontade, eu acredito que quando se deseja verdadeiramente, algo acontece. Nesse ponto dessa história eu não consigo mais escrever para um leitor qualquer, tem que ser para você, tem que ser contada assim, desse jeito, eu não sei fazer diferente. Cada linha é digitada com gratidão, afinal, você esteve ao meu lado quando eu descobri que tinha câncer, acompanhou a minha cirurgia, as várias seções de quimioterapia, os sustos, não me abandonou nos momentos difíceis. Temos muito mais do que uma convivência respeitosa, existe um envolvimento e uma troca que vão muito além disso. Eu me sinto tão à vontade com você que solto o verbo, sem pensar duas vezes, falo mal de vizinho, xingo o governo, conto causos, me exponho como nunca, só para você. Isso se chama, confiança.

Daí me deu vontade de te contar uma coisa. Em dois mil e quatro eu fazia pósdoutorado no Departamento de Engenharia Química da Universidade da Columbia Britânica em Vancouver, no Canadá. Deslumbrante cidade da costa oeste, Vancouver me proporcionou um monte de experiências bacanas, pessoais, profissionais, enfim, um período da minha vida que ecoa nos meus ouvidos com frequência. Pois no final de dois mil e quatro, meu primeiro ano por lá, fui apresentado a uma plataforma digital para compartilhamento de perfis pessoais chamada Facebook. Alunos da universidade estavam divulgando a novidade que vinha dos Estados Unidos e que possibilitava uma certa convivência remota entre as pessoas, dentro de uma rede social de relacionamento. Não me empolguei com o tal do Facebook, mas a pedido dos meus colegas de Vancouver, abri a minha conta. Sem empolgação. Valeu a pena, durante vários anos, mantive contato permanente com colegas estrangeiros, aqui no Brasil, a rede social mais usada era o Orkut. Aí, alguns anos depois, quando eu já era professor na UFABC, foi lançado o filme A Rede Social, que contava a história

de criação do Facebook. Um enorme sucesso, principalmente entre os jovens daquela época. De um dia para o outro, o Facebook tornou-se uma verdadeira febre aqui no Brasil, minha rede de amizades virtuais saltou de trinta e poucos para mais de trezentos em alguns meses. Para mim, para o meu estilo, essa enxurrada de gente abrindo conta no Facebook e solicitando amizade tirou a graça do negócio.

Continuando o meu rolê no ado, sei dizer que em dois mil e quinze eu estava no País Basco espanhol, como professor visitante da Universidade do País Basco em Bilbao, e meu perfil no Facebook tinha um monte de gente. Foi um prazer enorme estar por lá, sentia-me completamente à vontade, o basco era um povo acolhedor, festeiro, as famílias eram unidas, a região era repleta de vales verdes, bem ao lado dos Pirineus. Eu tinha uma excelente bolsa da CAPES, levava uma vida bastante confortável, morava bem no centro da cidade, ao lado do Casco Viejo, um antigo bairro medieval, numa região ribeirinha bem boemia, de ruelas estreitas, repletas de lojas modernas e tavernas tradicionais. Não bastasse isso, meu trabalho rendia bem, logo me entrosei com o grupo de pesquisa de lá, as vezes eu até esquecia que era estrangeiro. Para completar a experiência, faltou apenas aprender a falar euskera, a dificílima língua basca. Minha pesquisa na universidade era sobre aproveitamento energético de bagaço de laranja através de secagem, pirólise ou combustão. Os experimentos tinham um cheiro delicioso, fiquei famoso no laboratório por visitar semanalmente a cafeteria principal do campus em busca de bagaço de suco de laranja. O professor que me recebeu em Bilbao acabou virando um grande amigo, mantenho também contato frequente com uma aluna que trabalhou comigo naquela época. Valeu a pena ter ido para o País Basco, fiquei em torno de quinze meses por lá e voltei com as baterias carregadas.

O Brasil vivia um período conturbado, fui para Bilbao logo após a reeleição da Dilma e voltei um pouco antes de seu impeachment. Uma loucura, o desemprego batia recordes, havia manifestações com milhares de pessoas ocupando as ruas para protestar contra a corrupção, contra as mentiras contadas durante a campanha, uma batalha campal entre coxinhas e mortadelas. Eu acompanhava tudo de longe, levando um vidão no País Basco. Anos depois eu também teria que acompanhar de longe os maremotos causados pelo governo de extrema

direita, mas em dois mil e quinze, entre uma taça e outra de txakoli, o vinho branco basco, eu ainda não sabia disso. Nem imaginava. Um belo dia, uma sexta-feira, trabalhando além do horário de expediente na minha sala, diante de uma bela vista do pátio principal da universidade, entrei na minha conta do Facebook e deixei o seguinte no meu status: "Estou aqui, feliz da vida, trabalhando e ouvindo Chico Buarque". Ponto final. Nunca tinha feito isso, nem gostava desse tipo de coisa, mas me deu vontade e eu fiz. Meu estudo estava dando certo, eu iria viajar no dia seguinte, para algum canto da Espanha, um país tão belo que nem parecia desse mundo. Aquele fim de tarde de sexta-feira combinava perfeitamente com as músicas geniais do Chico, meu gosto musical sempre foi bastante americanizado, a exceção era o Chico, Caetano, Gil, Alceu Valença e, obviamente, Elis Regina. Bossa Nova também.

Terminado o dia de trabalho, e o repertório das mais mais do Chico Buarque, voltei para casa com aquela deliciosa sensação de dever cumprido. Totalmente satisfeito. Lá chegando, feliz mas exausto, ei a minha conta do Facebook para mandar uma mensagem ao meu irmão, avisando sobre a viagem que eu faria no sábado logo pela manhã. Para o meu total espanto, meu status despretensioso de pouco mais de uma hora antes estava coalhado de comentários raivosos, um pior do que o outro:

- "Não pode ouvir Chico Buarque, tem que boicotar"

- "Se você escuta o Chico, então você é um isso e um aquilo"

- "Quem fala mal do Chico é que é um isso e um aquilo"

- "Não, quem defende é que é um isso e um aquilo"

- "Caía a tarde feito um viaduto, e um bêbado trajando luto"

- "Essa não é do Chico"

- "A letra é sim"

- "Não é não"

- "Comunista!"

Deletei o status e nunca mais postei nada que não fosse fotos. No Brasil polarizado, o Chico Buarque defendia com unhas e dentes a presidente Dilma e o governo do PT. Meu perfil no Facebook era velho, tinha mais de dez anos, meus amigos virtuais iam desde ex-alunos e colegas de trabalho, até funcionários de prefeituras do agreste nordestino, familiares próximos e distantes, estrangeiros de várias partes, enfim, temperamentos e humores bem variados. Direitistas, centristas, esquerdistas, conservadores, liberais, anarquistas, socialistas, vanguardistas, católicos, batistas, umbandistas, skatistas, surfistas, nerds, tinha de tudo. Eu gostava. A partir desse lamentável episódio, porém, meu interesse pelo Facebook foi diminuindo, até que em dois mil e dezoito, logo após a minha última participação no Projeto Rondon, eu encerrei a minha conta.

CONTAGEM REGRESSIVA

A medida em que junho seguia seu curso, meu ânimo e a minha disposição aumentavam gradativamente, mais rápido do que eu, a princípio, havia imaginado. A forte e longa pneumonia logo após a décima segunda seção de quimioterapia, as suspeitas de covid-19, a pandemia pelo mundo, o desgoverno no Brasil, tudo conspirava para me derrubar, foi muito difícil superar esse período, talvez um dos mais desafiadores da minha vida. Era muito obstáculo ao mesmo tempo, encontrar apoio em alguma parte para continuar firme e forte no tratamento, foi dureza. Mas como eu já sabia e insisto em repetir, as tempestades am, a calmaria, mais cedo ou mais tarde, prevalece. Nunca se desanime até a iminência de entregar os pontos, durante esse período bastante complicado, nada de bom aconteceu na minha vida, o único aspecto positivo era a certeza de que eu não estava sozinho, havia um batalhão celestial cuidando de mim sempre que eu precisei. No final das contas, foi mais uma etapa vencida. Um dos primeiros os que eu dei tão logo tive condições, foi retomar o trabalho. Eu estava muito saturado de tudo, minha cabeça não funcionava bem, tinha uma dificuldade tremenda em assimilar questões referentes ao meu emprego, mas achei que era hora de voltar a tocar o barco. O projeto sobre risco de enchentes com o meu irmão era, de longe, o que mais me motivava naquele momento, decidi, então, começar por ele. Transcrevo, a seguir, um resumo da proposta de pesquisa.

"O aumento no número de indústrias junto com a crise do setor agrícola promoveu a transição do Brasil rural para o urbano ainda na primeira metade do século XX. Além do crescimento populacional em si, a redistribuição de habitantes no território nacional fez inchar as cidades em pouco tempo, gerando grandes desafios de urbanização para se atender a demanda de desenvolvimento ordenado. Dentro dessa realidade imutável de ocupação civil dos espaços públicos, porém, nem sempre a qualidade de vida do cidadão, pagador de tributos, foi minimamente satisfatória. Problemas recorrentes de habitação, transporte, segurança, saneamento básico, drenagem urbana, distribuição de energia elétrica, só para citar alguns, seguem sendo transtornos comuns, principalmente em grandes metrópoles. Aglomerações urbanas sofrem com as

oscilações de funcionamento causadas, em grande parte, pela concentração de riscos e pelo acúmulo de contratempos em espaço reduzido, extrapolando a capacidade de atendimento das istrações municipais. Nesse contexto de enfrentamento dos problemas de uma cidade, as enchentes tornaram-se não só rotineiras, como também, fenômenos histórico-sociais que atingem uma parcela significativa da população.

A inundação de propriedades em um ambiente urbanizado, particularmente em áreas mais densamente povoadas, pode ser causada pela chuva que cai em quantidades crescentes sobre superfícies impermeáveis, sobrecarregando a capacidade dos sistemas de drenagem. O risco que isso aconteça é a combinação da probabilidade de ocorrência de uma enchente e de suas possíveis consequências negativas para a saúde humana, o meio ambiente, a propriedade, incluindo o patrimônio cultural e a atividade econômica. Mesmo nos casos em que as enchentes não resultem em perdas humanas, a proliferação de doenças infecciosas e o estresse pós-traumático afetam pessoas que vivem em regiões problemáticas. Soma-se a isso o bloqueio do tráfego e da circulação de gente, a consequente dificuldade de socorro, a interrupção no fornecimento de água potável e de energia elétrica, enfim, uma série de dificuldades adicionais que agravam a situação. Na impossibilidade de evitar as adversidades causadas pelas chuvas através de medidas eficazes, o uso de sistemas que preveem e alertam sobre a possibilidade de enchentes seria uma forma de reduzir os efeitos mais nocivos e auxiliar a Defesa Civil a gerenciar o grau de perigo, em especial, à vida humana.

Na análise tradicional do risco de enchente, o método estatístico é geralmente usado para estimar a probabilidade de desvio em excesso das variáveis hidrológicas. Em termos gerais, o estudo estatístico envolve a coleta, a estruturação em planilhas, a análise e a interpretação de dados, sendo que cada etapa deve obedecer a critérios específicos. Existem problemas comuns na viabilidade e na confiabilidade dos resultados do método, especialmente quando o banco de dados é limitado devido à dificuldade de coletar dados de enchentes de sequência longa. Uma possível alternativa para contornar esse tipo de obstáculo pode ser alcançada com o uso de ferramentas da inteligência artificial. Atualmente, a disponibilidade de computadores com boa capacidade de memória

e de processamento, juntamente com programas mais baratos e de uso mais amigável, impulsionaram uma onda de inteligência artificial em aplicações das mais variadas. Nesse campo do conhecimento tecnológico, as redes neurais são utilizadas para criar sistemas de inteligência artificial.

As redes neurais artificiais são estruturas de programação computacional que buscam imitar o funcionamento do cérebro humano em sua capacidade de aprender, usando para isso várias unidades de processamento chamadas de neurônios artificiais. Dentre as motivações para o uso de redes neurais artificiais destacam-se, a simplicidade teórica da técnica, o fácil uso de programas específicos e os bons resultados relatados. Redes podem ser usadas, com sucesso, para descobrir padrões, tendências e comportamentos em grandes bancos de dados, levando em consideração que as cidades crescem, mudam, verticalizam. Uma aplicação interessante é em sistemas de previsão de enchentes e de alerta precedente a fim de reduzir as perdas econômicas e os riscos para as pessoas. Assim, é possível usar redes neurais artificiais para prever enchentes em uma bacia urbana, estimando a evolução do nível da água. O objetivo dessa proposta de pesquisa é desenvolver uma ferramenta computacional usando redes neurais artificiais treinadas a partir de um histórico hidráulico e pluviométrico das cercanias da PUR de Curitiba para prever as chances de haver uma enchente num determinado dia de chuva. A rede projetada pode ainda ser usada para estimar a intensidade da enchente, possibilitando que essa informação seja divulgada junto com a previsão do tempo".

Eu me safei de enchentes no Rio e em São Paulo por pura sorte. Pelo menos, foi o que eu sempre achei. Escrevendo essas linhas, ocorre-me que essa sorte foi, na verdade, obra do destino, a força de Deus. Quando completei o meu primeiro ano de trabalho na UFSCar, programei uma semana de férias em Teresópolis, onde comemoraria os sessenta e nove anos do meu pai. A ideia era curtir o aniversário dele juntamente com a minha mãe, em uma bela cidade da região serrana fluminense que eles sempre gostaram. Aos sessenta e nove anos, meu pai rumava, bastante contrariado, para a aposentadoria compulsória. Por fim, eu não pude tirar minhas férias de verão, os planos de viajar para Teresópolis foram por água abaixo e eu me vi trabalhando no dia dez de janeiro de dois mil e onze, aniversário do meu pai, em plena segunda-feira. Lembro-me de ter ado esse

dia lamentando pelo fato de estar em São Carlos, na UFSCar, e não na Serra Fluminense, diante de vales verdes, picos e colinas de tirarem o fôlego. A comemoração dos sessenta e nove anos do meu pai acabou acontecendo no dia anterior, um domingo de sol, com churrasco, cerveja e MPB. No dia dez, propriamente dito, teve bolo sem açúcar, toneladas de e-mails e telefonemas até do exterior. O velho merecia!

A terça-feira seguinte ao aniversário começou sem ressaca, fui trabalhar com a mesma falta de ânimo da véspera, nos mínimos detalhes. Se por um lado, eu gostava do meu trabalho, por outro, em janeiro, estava na UFSCar envolto num clima de baixo-astral. Pois bem, enquanto eu arrastava os minutos em minha sala no departamento, uma tragédia provocada por fortes chuvas atingia sete cidades da região serrana do Rio, incluindo Teresópolis, nesse dia, pessoas foram vítimas de um dos maiores desastres naturais do Brasil. A chuva deixou mais de nove centos mortos e em torno de trezentos e cinquenta desaparecidos. As cidades mais afetadas foram Nova Friburgo, Teresópolis, Petrópolis, Bom Jardim, São José do Vale do Rio Preto, Areal e Sumidouro, eu conhecia todas elas. Apesar do luto e da imensa tristeza que se abateu no país, não contive um certo alívio ao me dar conta de que estaria no contexto da tragédia se meus planos frustrados de férias tivessem dado certo. Já naquela época, eu deveria ter aprendido a lição de que nem sempre o que a gente quer, é o que deve acontecer. Sinais na minha vida, não faltaram, era Deus falando bem perto dos meus ouvidos, precisei viver mais uma década para perceber isso.

Moral da história, as coisas acontecem quando têm que acontecer, não exatamente, quando a gente quer. Nem como a gente quer. Nem sempre o que parece ser bom, é o melhor, e nem o que parece ser ruim, é o pior. Nossas vidas seguem o rumo que Deus traça, caminhos certos ao longo de uma linha precisa que não tem como a gente prever. Quer ver? Em treze de outubro do ano em que eu nasci, um voo fretado levando uma equipe de rugby de Montevidéu, no Uruguai, para jogar em Santiago, no Chile, chocou-se contra os Andes, matando vários dos ageiros. O acidente ganhou notoriedade depois da revelação de que os sobreviventes se alimentaram dos mortos. Dezesseis sobreviventes foram resgatados em vinte e três de dezembro, mais de dois meses após a queda. Em um relato a jornalistas, um dos protagonistas dessa história verídica, Fernando

Parrado, contou que em determinado momento após a decolagem em Mendoza, na Argentina, cedeu seu lugar na janela para que um amigo, Francisco Abal, pudesse apreciar a paisagem. Pouco antes do acidente. O resultado dessa troca foi que Fernando, sem saber, sentou-se no lugar certo, sobreviveu para contar a história, casou-se, teve duas filhas, aventurou-se em muitas atividades, enquanto Francisco Abal, um jovem de vinte e um anos, atleta do rugby, de família abastada, morreu nos Andes, em decorrência do choque. Sentar-se à janela do avião para irar os picos gelados, custou-lhe a vida. Como adivinhar? O que, a princípio, parecia ser bom, na verdade, não foi, mas Francisco não teve tempo de se arrepender da escolha que fez, porque quis.

Os dias voltaram a ter todas as cores, eu ainda tinha aquele chiado chato no pulmão, mas, tirando isso, tudo estava bom. ei a ajudar mais em casa, voltei a caminhar no condomínio, recuperei rapidamente o peso que eu havia perdido com a pneumonia, enfim, finda a tempestade, nascia o sol. Precisava desesperadamente de um momento de folga, apesar de todos os ensinamentos de vida, eu começava a me sentir farto do longo convívio com a doença, faria um ano em julho que toda essa questão complicada com a minha saúde se revelou. Só de pensar em mais seções de quimioterapia, meu braço e meu ombro já doíam. O importante era que, finalmente, eu estava tendo dias dentro de uma normalidade que há muito tempo eu esperava. Evitava criar expectativas, eu ainda teria uma longa jornada pela frente, se tudo desse certo, seriam ainda necessários dois anos de acompanhamento a cada três meses, antes da alta definitiva. Já contei antes sobre a frustração que houve quando fiquei sabendo que teria que fazer quimioterapia. Tinha mais do que certo que a cirurgia havia me curado do câncer, algo me dizia que eu estava livre da doença assim que recobrei plenamente os sentidos na sala de recuperação. Jurei para mim mesmo que vigiaria meus pensamentos, evitando imaginar cenários antes da hora.

Certa vez eu voltava dos Estados Unidos para o Brasil com troca de voo no Aeroporto Internacional de Miami quando uma funcionária da American Airlines anunciou:

- Senhores ageiros, estamos com overbooking em nosso voo, solicitamos três voluntários...

Resumidamente, a companhia aérea ofereceu estadia em Miami e, inicialmente, cem dólares para três ageiros que aceitassem pernoitar na cidade, viajando no dia seguinte. Num primeiro momento, a oferta não me interessou, além do mais, eu tinha o que fazer em São Carlos e precisava voltar. Sei dizer que esse montante em dólares foi aumentando até chegar a quinhentos dólares. Quando isso aconteceu, dois jovens bateram o martelo e aceitaram ficar. Houve, então, um pedido adicional para que mais um ageiro ficasse em Miami, e eu acabei levantando a mão. Eu não conhecia bem a cidade, seria uma forma de relaxar mais um dia antes de voltar para o batuque do samba. Enfim, decisão tomada, fiquei feliz da vida, empolgado como nunca, ansioso para ir logo para o hotel, deixar a minha bagagem e cair na vida. Fiz mentalmente uma lista do que eu faria por lá, preenchi alguns formulários da companhia convencido de que estava fazendo um negócio das Arábias. Segui todos os trâmites junto com os outros dois jovens que também ficariam em Miami, esqueci o nome deles, mas naquele instante, já estávamos combinando de dividir taxi para sairmos à noite. Tudo certo, faltava só mostrar o aporte. Tirei o documento do bolso, com sorriso de orelha a orelha, ei para a funcionária, que sorria também, mas seu sorriso durou pouco.

- O senhor não pode pernoitar nos Estados Unidos

Eu não podia mesmo, meu visto vencia justamente naquele dia, no dia seguinte, eu já estaria ilegalmente no país.

- Não tem problema, eu fico mesmo assim

- Tem problema sim, o senhor precisa ir embora hoje

Ponto final, tentei um último apelo, jurando que me comportaria bem em território americano, mas não teve jeito, para a minha total frustração, o único eio que eu fiz às custas da American Airlines foi na imaginação. Embarquei de volta para o Brasil bastante triste, com o rolê que eu deixei de fazer. Criar expectativas tinha dessas coisas.

Funcionava assim, bom mesmo é quando as coisas boas e ótimas acontecem quando a gente menos espera. Um amigo meu ganhou um carro zero quilômetro num sorteio da prefeitura por pagar o IPTU em dia. Não sabia de nada. Que surpresa boa, ein? Isso foi há mais de vinte anos, até hoje ele tem o carro. Nunca ganhei carro desse jeito, aliás, o único sorteio que ganhei na vida foi de um rocambole de frango com catupiry num supermercado da cidade. Não sou o maior fã de franco, mas o rocambole estava delicioso. Tive, porém, muita sorte e uma mãozinha do andar de cima em momentos decisivos da minha vida. Já contei aqui como foi a minha aprovação no concurso público para ser professor da UFES, com toque de recolher, atentados do PCC e nenhum candidato para concorrer comigo. Mais do que uma mãozinha, uma mãozona. Quando dois anos depois, ei para a UFABC, essa conspiração dos astros foi ainda mais evidente. Desde que eu fui trabalhar no Espírito Santo, o estado, tentei viabilizar minha volta para o estado de São Paulo. Fiquei o tempo todo de olho em concursos, possibilidades de transferência ou alguma outra maneira de voltar para São Paulo. Por ironia, voltar a me exercitar e ir embora de São Carlos eram vontades que orbitavam a minha cabeça enquanto eu digitava essas linhas. Nos meus tempos de UFES, entretanto, eu só queria picar a mula.

Após dois anos na UFES, ei a aceitar a ideia de ficar por lá, comecei a me acostumar com a vida no litoral capixaba, tinha ótimos amigos, comprei um apartamento na planta próximo ao Shopping Norte Sul em Jardim Camburi, enfim, aos poucos, fui desistindo gradualmente de mudar de instituição. No começo do segundo semestre de dois mil e oito, na primeira semana, lendo ao acaso notícias online no meu computador do trabalho, vi uma reportagem sobre a UFABC, uma universidade do futuro, de vanguarda, não me lembro bem qual era o conteúdo do texto. Parecia propaganda. Resolvi entrar no site da instituição

para ver como ela era, fiquei impressionado com o que vi, o campus parecia um canteiro de obras, os prédios lembravam as construções de Brasília. Para a pouca idade, a universidade já havia conquistado um espaço invejável em ensino, estava caminhando para se tornar, também, uma referência em pesquisa. Fuça daqui, fuça dali, terminei por descobrir vários concursos abertos na UFABC, incluindo para professores, tinha um na minha área. Meu coração batia nervoso no peito, o prazo para inscrição terminava no dia seguinte, sai voando da UFES, fui para casa atropelando o que pintasse no caminho, fiquei que nem doido preparando a documentação, reciclei um velho projeto de pesquisa, necessário para a inscrição e decidi me inscrever no concurso.

O balde de água fria eu recebi quando vi no edital do concurso que a cópia do meu diploma de doutorado tinha que ser autenticada. Na minha pasta de documentos, encontrei somente cópias simples, não bastasse isso, os originais estavam todos em São Carlos, na casa dos meus pais. Imagine meu grau de abatimento. Fui à zero. Depois de toda aquela correria, na hora em que eu revisava os documentos para a inscrição, escapou-me esse detalhe. A inscrição seria feita pelo correio, a data de postagem tinha que ser o dia seguinte, faltavame tempo para contornar a situação. O que não tem remédio, remediado está, altas horas da noite, lá estava eu guardando tudo de volta nas pastas, todo jururu, com o rabinho entre as pernas e as orelhas caídas. Era o jeito, sabia que a tristeza iria embora, mas curtia uma fossa daquelas. Eis que então, solta em cima da minha cama, sozinha, uma folha de papel, virada com a parte da frente para baixo, reinava despercebida, enquanto eu lamentava os fatos. Lembro-me como se fosse ontem o meu queixo caindo quando virei a folha e descobri que ela era uma cópia autenticada do meu diploma, quietinha, esperando por mim. Talvez, ao espalhar os documentos pelo meu quarto, a única cópia autenticada que eu tinha, sem eu notar, resolveu criar vida própria e se esconder. Fiquei abismado, quase assombrado, ei dias dormindo de luz acesa, ainda estou convencido de que houve interferência do Além. Mandei tudo pelo correio no dia seguinte, algum tempo depois fui informado de que minha inscrição havia sido deferida, e a sorte não parou por aí.

As provas do concurso para a UFABC foram realizadas em Santo André, na mesma época e na mesma cidade do famoso caso Eloá, o mais longo sequestro

em cárcere privado da história de São Paulo. Eloá foi uma jovem sequestrada e morta pelo namorado, Lindemberg, enquanto eu encarava as várias etapas para me tornar professor na UFABC. Santo André estava uma loucura, a impressa circulava pela cidade fazendo a cobertura do caso, o Brasil inteiro acompanhava o desfecho que, infelizmente, foi trágico. Mais uma vez, eu fazia um concurso em meio à violência. Parecia um déjà vu, torcia para que tivesse o mesmo final feliz para mim. Não é que teve! Dessa vez todos os candidatos apareceram, onze contando comigo, um melhor do que o outro. Eu era o único que já trabalhava em uma instituição de ensino federal. Na fase de preparo para o concurso, no pouquíssimo tempo que eu tive, só pude estudar direito dois tópicos da ementa, por sorte, ou por força do destino, um deles caiu na prova teórica e o outro na prova didática. Os temas das provas eram sorteados que nem bingo, cada número era um tópico da disciplina do concurso. Me dei muito bem em ambos os sorteios, lembrei-me imediatamente da cópia autenticada do meu diploma de doutorado, concluí que os céus haviam decidido que eu tinha que ir para a UFABC, sendo assim, relaxei e papei a vaga. A jovem Eloá jazia quando voltei para Vitória, após o término do concurso.

A aprovação na UFABC foi um divisor de águas na minha vida, eu não só consegui o que queria, como também, notei que minha fé foi tocada. Os prazos apertados, o aparecimento da cópia autenticada, o sorteio dos dois temas que eu tinha estudado, o ano fantástico que eu tive na instituição, tudo parecia coincidência demais. O bom que havia em mim, na fase mais madura do adulto que eu me tornei, começou naquela época. Nunca me arrependi de ter voltado para São Carlos, acho até que isso fazia parte do esquema traçado pelo plano superior, ficou na UFABC um período em que só houve curtição. Gostoso de lembrar! No primeiro semestre de dois mil e dezenove, ano em que descobri o câncer, eu dava aulas de manhã e sentia fortes dores abdominais, como eu não sabia que estava gravemente doente, não havia o fator psicológico. Seguia o protocolo das aulas sem empolgação, mas também, sem sofrimento. O segundo semestre começou, entretanto, com a descoberta do câncer de cólon, minhas aulas eram a tarde e eu não sentia forte dores. Mas tinha o fator psicológico, que acabava comigo e me fazia sofrer. Mantinha o câncer em segredo absoluto, nunca senti tanta solidão no trabalho como naquela época. Dei poucas aulas, como já contei aqui, em praticamente todas elas, eu me senti projetado para a UFABC, onde eu queria estar naquele momento.

O conturbadíssimo contexto político que vivíamos não poderia ar em branco nesse texto. O negócio estava muito longe do normal, com o tempo, viraria somente uma página infeliz da nossa história, quando a extrema-direita assombrou o país com seu discurso de ódio e atos autoritários. No dia vinte de junho, um sábado de sol típico do começo de inverno em São Carlos, o Brasil era o segundo país com o maior número de mortes por covid-19, mais de cinquenta mil, abaixo somente dos Estados Unidos. O país tinha mais de um milhão de casos confirmados da doença, o mundo se unia pela vacina, pela vida, enquanto o nosso presidente facínora endoidava de vez. Durante a semana, a pergunta "cadê o Queiroz?", foi finalmente respondida. Bode expiratório do Capitão e de seu filho mais velho, o Queiroz era parceiro na atuação do clã do presidente junto a milícias cariocas, num esquema de lavagem de dinheiro e de assassinatos encomendados. Queiroz estava a mais de um ano foragido, escondido no sítio do advogado do presidente da república. Que o Capitão era mentiroso e vigarista, todos sabiam, mas que ele chegava a esse ponto, foi demais. Demonstrando falta de caráter e uma tremenda covardia, aproveitando a pandemia para tocar o terror, o genocida acobertou o laranja em todo o período de esconderijo. A queda do Capitão ou um golpe de estado pareciam iminentes.

O filho mais velho do presidente encabeçava um esquema de rachadinhas na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, um crime relativamente novo para a cultura geral da população brasileira, bastante acostumada com corrupção. O crime consistia no ree, por parte de servidores públicos ou um funcionário terceirizado dos governos federal, estadual ou municipal, de parte do salário ou da remuneração para políticos e assessores parlamentares. A prática das rachadinhas envolvia violência e ameaças, parecia filme de Al Capone, mas não era. Caso o Queiroz abrisse a boca em seu depoimento, ficaria difícil para o Capitão se manter no poder por vias democráticas. Essa era a percepção. Os dias eram assim, repletos de loucuras e escândalos. No dia seguinte a essa prisão, o ministro da educação, investigado pelo STF por diversos crimes e irregularidades, fugiu do Brasil com a ajuda do presidente. A Interpol foi avisada, mas seria difícil prender o ministro, refugiado nos Estados Unidos. O Capitão nomeou o ministro para o cargo de diretor do Banco Mundial, o setor financeiro estava apavorado com a possibilidade de ter um ser tão repugnante no comando de tão importante instituição internacional. O bobo da corte do

ministro tocou o terror no ensino durante um ano e meio, sua caça aos comunistas não tinha trégua.

A sensação que dava era a de que o Brasil afundava que nem um Titanic, primeiro lentamente e depois, bem rápido. Os ratos, com perdão aos pequenos roedores, pulavam para fora do navio enquanto havia tempo. A prisão do Queiroz e a fuga do ministro da educação pegaram as forças armadas de surpresa, o apoio que o Capitão dizia ter para um golpe, perdeu a força. Muita sujeira aflorava na época da pandemia, a população ficava presa dentro de casa enquanto os políticos pintavam o sete. Eu acompanhava de longe os desdobramentos, cada vez mais integrado com tudo. Meu estado de saúde estava muito melhor, tirando o incômodo de ter que levar para cima e para baixo um cateter embutido no pescoço, tudo ia bem naquele final de junho. A trégua no tratamento, junto com a melhora da forte pneumonia me faziam querer viver a vida num sentido mais amplo, sem tantas limitações, ou restrições. O isolamento social ainda era a ordem do dia, tirando o Rei do gado e seu rebanho, todos obedeciam. Eu morria de medo de pegar coronavírus, como eu estava afastado do trabalho e me sentia melhor, com tempo livre e vontade de me ocupar, o jeito foi mergulhar de cabeça nos acontecimentos políticos, xingar o Capitão, vociferar contra os seus aliados, torcer contra o Trump e rezar muito.

Pegando carona no embalo da minha melhora, ei orientações para um aluno meu de iniciação científica que desenvolvia um trabalho sobre o uso de inteligência artificial para monitorar as dosagens dos componentes usados na fabricação de embalagens biodegradáveis. Materiais biodegradáveis usados nas embalagens comercializadas devem atender algumas propriedades, tais como resistência mecânica e impermeabilidade. Nosso sistema computacional correlacionava as dosagens com as propriedades, mais ou menos isso. Os alunos das federais estavam sem aulas, não havia previsão de como seriam os dois semestres letivos de dois mil e vinte, meu orientado estava precisando de uma forcinha, um rumo, foi bom poder ajuda-lo. Levei um tempão para preparar um material de estudo para o aluno, minha cabeça estava um abacaxi, tinha uma dificuldade danada para me concentrar em atividades acadêmicas. Ter exercitado a mente, com um certo esforço, foi gratificante, o negócio era sempre lutar contra a inércia, mesmo que não fosse fácil. O sentimento de superação era

muito gostoso, num período normal, eu teria levado um quinto do tempo, ou menos, para cumprir a tarefa, mas não teria ficado tão feliz. Pequenos feitos viraram para mim, grandes conquistas.

Junho logo viraria julho, o tempo insistia em sua eterna teimosia de seguir adiante, a pandemia no Brasil era destaque negativo no mundo todo, não bastasse isso, o país perdia um montante astronômico de investimentos por causa de sua política ambiental irresponsável. Vários países estrangeiros iniciaram um boicote a produtos brasileiros devido principalmente às questões envolvendo o desmatamento da floresta amazônica e conflitos com povos indígenas. Eu tinha pouco mais de vinte anos quando intensificaram os protestos contra o então presidente Fernando Collor de Melo. Já contei aqui como foi importante ter feito parte da geração cara-pintada, gente nova e bonita que ia para as ruas com sorriso escancarado, protestar contra o governo. O Collor estava balançando a um bom tempo, mas faltava aquele empurrãozinho para ele cair, o Brasil sofria com isso. Foi então que a Rede Globo exibiu uma minissérie chamada Anos Rebeldes, escrita pelo Gilberto Braga, inspirada no livro "1968 - O Ano que Não Terminou" do Zuenir Ventura. Dado as proporções, num período em que ainda não havia por aqui, nem internet e muito menos redes sociais, a minissérie de certa forma serviu para incendiar a juventude. A trama mostrava o engajamento de jovens na resistência e na luta contra a ditadura militar. O sucesso de Anos Rebeldes foi, sem dúvida, um estopim, talvez não o principal, para a invasão das ruas. Havia o lado mais politizado nas manifestações, representado pela UNE, mas havia também o modismo. Eu era um meio-termo.

A pandemia de coronavírus tirava o cidadão de circulação, à exceção do grupo de seguidores que apoiava o Capitão, e que não dava a mínima para o isolamento social, as aglomerações de qualquer tipo eram extremamente mal vistas. As taxas galopantes de contaminação no Brasil assustavam o mundo, éramos o exemplo ruim da pandemia, até o alucinado Donald Trump citava o nosso país como o pior no combate ao coronavírus. O buraco parecia não ter fim. O governo brasileiro aproveitava a situação de exceção para "ar a boiada", como havia sugerido o ministro fascista do meio ambiente. Para alívio do ensino, o ministério da educação estava vazio, sem ministro. Bastante tempo após a demissão da ex-namoradinha do Brasil, a secretaria de cultura voltava a ser

ocupada por alguém indicado pelo Capitão, para desespero da classe artística. O novo secretário era um ex-ator ressuscitado do ostracismo, um marombinha da minha idade que fez dois papéis dele mesmo na TV e ficou relativamente famoso depois de aparecer em uma campanha publicitária de cuecas. Em resumo, esse era o seu currículo. A galera do QI de dois dígitos encabeçada pelo Capitão rezava a cartilha do guru Kuru-Kuru, que via o comunismo até em quem era canhoto. Chapeuzinho Vermelho, então, nem pensar. A imagem do Capitão era a pior possível, dentro e fora do Brasil, ele resolveu dar um tempo nas presepadas de domingo, mas parecia meio tarde demais. O futuro relaxamento do isolamento social, a volta às ruas e, talvez, um empurrãozinho tipo Anos Rebeldes na população, seriam o suficiente para tirar da presidência a figura patética que a ocupava.

No dia vinte e cinco de junho, quinta-feira de sol e friozinho, voltei ao pneumologista com o resultado da tomografia. Fazia tempo que eu não colocava os pés na rua, a última vez tinha sido para a higienização do meu cateter na Santa Casa. A pandemia tirava a gente das ruas, mas não conseguia mexer com o azul do céu, lindíssimo naquele dia. Eu precisava me recuperar completamente da pneumonia para poder seguir com o tratamento, faltava o aval do médico. Às vezes, dependendo das circunstâncias, eu sentia uma dorzinha bem leve nas costas quando eu respirava fundo, achava que ainda seria algum resquício da forte infecção. O laudo do exame fazia uma observação que eu não entendi, nem procurei entender. Diante do médico, nenhum pensamento ruim ava pela minha cabeça, de certa forma, eu achava que a minha cota de sofrimento por doença, nessa encarnação, já tinha sido alcançada.

- Essa mancha aqui me preocupa um pouco

O dedo indicador do meu pneumologista mostrava o que me pareceu ser um risco de caneta branca bem na base do meu pulmão esquerdo. Não foi preciso muita explicação, nem houve tempo para suavizar as palavras, eu custava a acreditar. As lições de vida impostas pela doença haviam deixado marcas em mim, mas não, manchas. Tentei ser o mais positivo possível, usei todas as

minhas forças para endireitar os pensamentos, ninguém disse que seria fácil. O fantasma do câncer voltava a me assombrar.

TEMPOS DE ISOLAMENTO

Eu andei de ambulância duas vezes na vida, ambas como paciente. A primeira vez foi logo depois que eu me mudei para São Carlos, fui fazer um exame de sangue pela manhã, estava caminhando até o laboratório, pisquei o olho e acordei em uma ambulância, com sirene ligada e tudo mais. Levei um susto digno de abertura de envelope de biópsia. Estava todo amarrado na maca, o enfermeiro ao meu lado olhou para mim e disse "ele acordou de novo". De novo? Eu não entendia nada. Levei algum tempo para perceber que algo de errado havia acontecido comigo. Os sentidos não voltaram todos de uma vez, a memória demorou um pouco para dar o ar da graça. Aconteceu o seguinte, fui fazer o exame de sangue mas exagerei no jejum, após a coleta, voltando para o carro, perdi os sentidos na calçada, dei com a cara no chão e cortei o supercílio direito. Não me lembrava de absolutamente nada, só de ter acordado naquele dia, fui carregado de volta para o laboratório e de lá, a ambulância me transportou até o hospital. Levei sete pontos no corte, fiquei com o olho direito roxo, fiz o maior sucesso quando cheguei na UFSCar desse jeito, com a cara toda quebrada e de ambulância. Caminhei da biblioteca, onde me deixaram, até a minha sala no DEQ, sentindo uma vergonha danada. Todos me olhavam.

Não bastasse isso, ainda perdi o meu carro naquela manhã, quando recobrei a consciência, não fazia a mínima ideia de onde havia estacionado. Uma amiga do trabalho me levou de volta ao laboratório, um pouco antes do intervalo do almoço, e ficamos circulando pelas ruas próximas, até achar o meu VW Voyage novinho, que eu tinha na época. Era a segunda vez que eu tinha um episódio de desmaio com perda de memória. Por conta disso, meses depois, fiz uma tomografia computadorizada no crânio e descobri que eu tinha atrofia hipocampal acentuada, comum em pacientes com Alzheimer. Nada sério demais, mas podia explicar a confusão mental e o problema da memória. Durante a Operação Guararapes, minha estreia no Rondon em julho de dois mil e quatorze, na primeira semana, madrugada de quinta para sexta-feira, eu me levantei para ir ao banheiro, mas fiquei no meio do caminho. Em algum momento, tive uma ausência, perdi os sentidos e dei de testa em uma quina, abrindo um grande corte na minha cabeça. O sangue jorrou. Sabe-se lá como, levantei atordoado, voltei

para o quarto e desmaiei de novo, caindo próximo a um aluno, quase o matando do coração. Já refeito, fui encaminhado de ambulância para o Pronto Socorro de Garanhuns, a maior cidade da região em que estávamos, no agreste pernambucano. Era o meu segundo rolê de ambulância.

Indo ao que interessa, eu melhorava em pleno período de isolamento social, começava a ter pique para um monte de coisas, mas tinha que ficar em casa, respeitando as orientações da OMS. Eu tinha previsto um final de tratamento bem diferente para mim. A magia da bola de cristal sempre habitou o meu imaginário, vez ou outra eu me pegava pensando no futuro, com ares de adivinho, tentando prever o que vinha pela frente. É errando que se aprende, mas eu prefiro acertar sempre, vendo imagens no Oráculo que quase nunca se revelam. Tenho uma relação curiosa com datas futuras, dizem que é cisma minha, mas eu acho que não é. Eu me projeto para essas datas, como um viajante do tempo, vivo em pensamento coisas que podem acontecer. Geralmente, dou com os burros n'água, ou sofro por antecedência e acaba dando tudo certo ou fico feliz antes da hora e me estrepo. Já comentei isso aqui. Quando o oncologista me disse que eu faria a última seção de quimioterapia em meados de abril eu achei que isso seria motivo para comemoração, uma data festiva. Não foi, o mundo estava de quarentena, o Brasil parecia um hospício deitado em berço esplêndido, eu tive pneumonia e pensei que fosse coronovírus, um rolo danado. O que não tem remédio, remediado está, eu estava me curando e não podia reclamar.

Por falta de opção, minha vida tornou-se uma sequência de dias quase que exclusivamente dedicados ao tratamento de saúde. Era isso ou o sofrimento alucinante de uma doença que avançava sem cura, era isso ou morrer de câncer. A colonoscopia que revelou o tumor no cólon estava prestes a completar um ano, desde que eu soube que tinha câncer, faltou-me outra opção senão aceitar o fato e buscar uma solução para o problema. Tudo o que eu fiz, até a presente data, teve algo direto ou indiretamente ligado ao câncer, muito mais do que a mim propriamente dito. Se por um lado, não ter opção era a minha única opção, por outro, não ter escolha eliminava a pressão de ter que tomar decisões. Eu não decidia mais nada, fazia o que tinha que ser feito de maneira quase operacional, contornava limitações, tocava meus dias e mergulhava nos meus pensamentos.

Refletia sobre o que poderia ser chamado de um eventual futuro, deliciava-me com histórias e anedotas do meu ado, tão cheio de vida que eu nem sabia. Descobri com o câncer que o nosso ado não ia embora, foi no meu que eu me refugiei quando o Brasil e o mundo começaram a ruir a os largos. A única decisão que me coube foi a de lutar pela minha vida, obedecendo as etapas, rezando a cartilha do tratamento. Do orgulho à humildade, uma metamorfose e suas várias fases.

Sem virar santo. No início de julho, voltávamos a ter um ministro da educação, para alívio da nação, o Capitão resolveu dar um tempo no ritmo e na frequência de presepadas, atrocidades e idiotices. Enquanto buscava salvar a própria pele, sacodia a poeira no Planalto Central e varria a sujeira para debaixo do tapete. O novo ministro definitivamente não tinha o perfil destrambelhado, inconsequente e irresponsável do anterior, não xingava, não ofendia, não era racista, nem xenófobo, conhecia o alfabeto, sabia soletrar, usava c cedilha no lugar certo e tinha doutorado. Mais do que isso, tinha pós-doutorado na Alemanha! Parecia um sopro de esperança diante do pandemônio instalado em Brasília. A ala radical de extrema direita que apoiava o governo protestou, o ensino, em compensação, respirou aliviado, pena que o alívio durou pouco. O meio acadêmico tinha plena consciência de que ao aceitar o convite, o novo ministro deixava claro que boa coisa ele não era. Imediatamente, entretanto, recebeu um voto de confiança. Traiu essa confiança ao cometer crimes de adulteração de documentos e falsidade ideológica em seu currículo, era mentira, ele não tinha doutorado, muito menos pós-doutorado. Não bastasse, sua dissertação de mestrado carregava a suspeita de plágio, ctrl C, ctrl V de quinta categoria. Os vínculos empregatícios citados por ele não eram verdadeiros, em menos de cinco dias da nomeação, era fidedigno dizer que o novo ministro não era digno.

Os eventos vividos desde que descobri o câncer estavam prestes a completar o primeiro aniversário. No dia primeiro de julho, a Laurinha, minha sobrinha, completou cinco anos. Quando ela nasceu, eu estava fora do país, só fui conhece-la aos nove meses, uma bebezona linda, de bochechas vermelhas e careca. Em dois mil e vinte, a comemoração do aniversário da Laura foi por chamada de vídeo, era a primeira vez que eu não ia para Curitiba festejar com ela. A pandemia seguia com força, no Brasil, o número de mortes ava de

sessenta mil, a vacina estava sendo testada, mas ainda era cedo demais para dizer se ela seria eficaz, ou não. Enquanto isso, nada de contato físico, o isolamento social era recomendado pela OMS como a única forma de frear o vírus mortal, Papai do Céu estava realmente chateado com a gente. Em Curitiba, havia racionamento de água por causa da estiagem, mas só isso era pouco, na véspera do aniversário da Laurinha, um violento temporal deixou vários bairros sem energia elétrica, dentre eles, o do meu irmão. A caixa de Pandora estava escancarada, despejando desgraça em cima de todos, essa era a tradução perfeita do ano de dois mil e vinte. O mundo da Laurinha, entretanto, não tinha nada disso, toda arrumadinha, vestida de Frozen, sorriso alvo e felicidade sincera de criança, lá estava a minha amada sobrinha no vídeo, tão alegre quanto nos anos anteriores.

Por um instante, foi bom e revigorante viver naquele mundo mágico, sem problemas, da Laurinha, nele, não havia doenças graves, só gripezinhas, nem quarentena estendida, nem dores de cabeça, nem falta de dinheiro, muito menos, tempo perdido com bobagens. Tudo eram bobagens, o importante era o essencial, a simplicidade das cores, a vida vivida numa aquarela de sol e de céu azul, casa de campo, muito verde, árvores frondosas, mamãe, papai e filhinhos sorridentes, lado a lado, de mãos dadas, pássaros voando. Eu fiz cinco anos em setenta e sete, poucas semanas após o meu aniversário, fomos visitar o Jardim Zoológico do Rio de Janeiro pela primeira vez. Fazia sol, um dia claro, um primo gaúcho da minha idade estava conosco, ainda tenho quilos de fotos dessa visita no meu álbum de infância. A grande atração, por força maior, foi ar pela jaula do famoso macaco Tião, que se tornou uma celebridade em todo o Brasil quando foi candidato à Prefeitura do Rio de Janeiro nas eleições de oitenta e oito. Terminou em terceiro lugar, entrando para o Guinness World Records como o chimpanzé a receber mais votos no mundo. Segundo o Tom Jobim, o Brasil não era para principiantes. Alguma dúvida? Essa proeza só foi possível porque na época ainda não havia urna eletrônica, os eleitores podiam escrever qualquer nome na cédula de papel. O engraçado e inesquecível daquele dia de visita ao zoológico foi que o quase prefeito do Rio jogou cascas de banana no público diante de sua jaula, acertando em cheio o meu pai. Tião era honesto, mas de pavio curto.

No dia primeiro de julho teve também a consulta com o meu cirurgião, como parte dos trâmites do tratamento. Chegava a hora de repetir a colonoscopia, estar de volta ao consultório do Doutor Edilson me trouxe lembranças dos tempos em que tudo começou. Lances de suspense, uma cirurgia extensa, seis meses de quimioterapia, uma lavagem intestinal, duas pneumonias, suspeitas de covid-19 e dez quilos a mais depois, a história se repetia, com outro enredo, o da cura. A missão estava quase cumprida, tudo o que era para ser feito, foi feito. Aguentei um tratamento duríssimo, sofri como nunca na minha vida, sorri e chorei tanto que perdi a conta. O Doutor Edilson ficou feliz em me ver, depois de tudo o que ei, eu estava muito inteiro, ninguém dizia que eu tive câncer. Acho que a doença me deixou mais contido para falar, apesar do entusiasmo renovado pela vida. O paciente que voltava a ver o cirurgião que lhe salvou a vida era um cara mais envergonhado, mais econômico com as palavras, marcas inevitáveis depois do longo convívio com a temática do câncer. Saí do consultório às quatro da tarde, o tempo estava feio, a chuva tinha dado uma trégua, mas as ruas estavam muito molhadas, aproveitei a proximidade e fui até a Santa Casa agendar a colonoscopia. Apesar dos quilos a mais, meus os em direção ao hospital eram leves, meu corpo parecia flutuar, meus pensamentos eram todos bons, a partir do momento em que se tem uma grave enfermidade, nada poderia ser tão difícil. O pior havia ado, eu achava.

Faltou dizer que o ponto alto do bate-papo com o Doutor Edilson foi quando ele mencionou que eu ficaria livre do cateter assim que os exames revelassem que eu estava limpo, sem tumores. Ao saber disso, não consegui evitar um tímido sorriso, daqueles de canto de boca, jurei para mim mesmo que encararia com extrema serenidade essa etapa do tratamento, mantendo o pensamento positivo, sem criar expectativas. O convívio com o cateter foi dificílimo, as dores que eu sentia na região das injeções foram se intensificando com o ar do tempo, até me fazerem sofrer bastante. No final, nas últimas seções, eu já ia para a Santa Casa ciente de que teria que aguentar o martírio inevitável da dor por alguns dias, tipo de experiência para se ter, no máximo, uma vez na vida. Já disse aqui que durante o tratamento contra o câncer, o organismo ficava ivo, sobrando somente a cabeça para encarar as várias batalhas que se sucediam até a vitória final. A dor no braço e no ombro foram, de longe, o pior legado desse longo ciclo que se encerrava. Teve febre, teve perda de paladar, teve náuseas, teve isso e aquilo, mas a dor me fez sofrer além do que eu esperava, além do que eu me julgava capaz. Superar as dificuldades do tratamento me ajudou a entender

melhor o universo silencioso que vivia dentro de mim. A indesejável presença do cateter no meu corpo estava com os dias contados.

ar por um longo período lutando contra uma doença grave me fez repensar uma série de valores antigos. Deixei de ser essencialmente centrado em mim mesmo, ei a depender dos outros, a ver que havia sofrimento além do meu. No início da pandemia, imediatamente me solidarizei com os que sofriam, com todo o lado humano da questão. Talvez fosse por isso, por estar vivendo essa fase diferente da minha existência, que tanto me incomodou ver o Capitão agindo como bedel de campo de concentração. Era difícil e revoltante, para mim, ter que aceitar um presidente que não estava nem aí com coisa séria, que dizia E daí? para as mortes por coronovírus. Todo mundo vai morrer um dia, era o que ele repetia que nem um mantra. Nas minhas seções de quimioterapia na Santa Casa de São Carlos, vi pacientes desenganados, apagando que nem vela acesa, não dava para ficar indiferente. Na pandemia, escolhi estar junto dos que defendiam as recomendações da OMS, de isolamento social e de toda e qualquer medida para frear o ímpeto do vírus mortal. A fábrica de ódio do Capitão Cabeça de Camarão produzia maldade em larga escala, o clã e o gado se alimentavam da loucura de lunáticos que pregavam a caça ao comunismo. Era impossível acompanhar tamanho delírio, cheguei a me beliscar algumas vezes para ver se aquilo era real ou se tudo não ava de um enorme pesadelo. O brasileiro é pacato, de boa índole, festeiro, carnavalesco, a permanente diarreia do governo fazia mal à nação.

Lembro-me que no primeiro semestre de dois mil e dezoito, houve uma violenta greve dos caminhoneiros, com direito a estradas bloqueadas, muito quebraquebra, agressões e tentativas de acordo frustradas. O martírio do brasileiro foi duro, hospitais, delegacias, escolas, um desespero danado. A paralização gerou uma crise de abastecimento por mais de dez dias. Faltou de tudo, a lista era longa, mas, principalmente, faltou combustível. As filas de carro nos postos eram quilométricas, logo que começou a greve, fiquei quase duas horas num posto, enchi o tanque do meu carro e evitei usá-lo o quanto eu pude. As aulas na UFSCar foram suspensas, eu ia e voltava a pé. Certa vez, caminhando em direção ao trabalho, ei ao lado de um posto de combustíveis que ficava em uma baixada próximo a um córrego. A fila de carros se estendia a perder de

vista, por vários quarteirões. Estou quase chegando onde eu quero. Pois bem, tem coisas que a gente só vê aqui no Brasil, num dado momento, um garoto de havaianas ou ao lado dos inúmeros carros, empinando uma bicicleta remendada e gritando.

- Seus trouxas!

Feliz da vida, uma felicidade tão empolgante que contagiou todo mundo, não havia um único motorista que não deu risada. Eu só parei de rir quando cheguei na UFSCar e a graça não se atreveu a ar pela portaria do Olimpo. A cena foi muito engraçada, o país desmanchando que nem leite Glória e o piá tirando onda de bicicleta. Tinha tudo quanto é tipo de carro na fila, mas nenhum fez tanto sucesso quanto aquela bicicleta. Segundo um colega francês, a alegria do brasileiro era fácil de se explicar em uma única palavra, luminosidade. Era isso, o alto astral do povo tinha a ver com os dias de céu claro e muito sol, de norte a sul, de leste a oeste. Nem o Rei do Gado conseguia mudar isso. Por falar nele, no dia três de julho ele nomeou o quarto ministro da educação de seu governo. Só que o nomeado teve grandeza e não aceitou, pulou fora antes mesmo de entrar. Do jeito que a coisa ia, até cantor sertanejo do brejo das bananeiras estava cotado para ser ministro da educação. Enquanto isso, o importante ministério ficava vazio, junto com o da saúde. Melhor assim! Antes isso do que uma das moscas que orbitavam a cabeça do Capitão.

Por falar em ministro da educação, ensino, universidades, nesse dia três eu dei uma mão para o meu afilhado de Campinas que estava cursando o primeiro semestre de engenharia agrícola na UNICAMP. As aulas eram remotas, de repente, de um dia para o outro, o ensino teve que se adaptar à nova realidade do mundo, a nova normalidade. O isolamento social tinha dessas coisas, meu afilhado estava com dúvidas em uns exercícios de geometria analítica e o padrinho engenheiro foi requisitado. Uso com frequência algumas operações vetoriais e matriciais na disciplina de mecânica dos fluidos, mas fazia trinta anos que eu não via tópicos da geometria analítica propriamente dita. Tive que relembrar um conceito ou outro, algumas definições e propriedades, antes de

fazer os exercícios. Foi muito bom, fiquei feliz, não só por ter ajudado o Pedro Lucas, mas também, por ter quebrado o gelo depois de quase um ano de afastamento. Desde que parei de frequentar a universidade, não tive mais contato com a graduação, só com os meus alunos de iniciação científica e de pós. Minha cabeça estava um abacaxi para tudo que demandasse concentração, mas o raciocínio lógico continuava funcionando sem problemas. No início da minha carreira, dei aulas de cálculo, gostava das disciplinas da matemática, na ajuda à distância ao meu afilhado, o prazer teve gosto de viagem no tempo.

No dia seis eu fiz pela manhã uma tomografia do abdômen, tive que ar por um preparo prévio, mas foi tranquilo. A última tomografia do abdômen havia sido um pouco antes da cirurgia, nenhum exame me preocupava ou me deixava ansioso, eu estava tão acostumado que já ia para a Santa Casa em módulo automático. Minha angústia ficava sempre por conta do resultado. O traço de pessimismo que eu ainda tinha aflorava através do pensamento, tentava não exteriorizar, mas incutia com esse tipo de coisa. Eu queria ficar bom, ponto. Eu queria voltar a ter vida normal, mesmo não havendo mais normalidade como antes. Pensar no futuro não era fácil, minhas previsões saiam pela tangente, dava até medo. Assim mesmo, eu voltava a ter planos, continuava com a ideia fixa de ir embora de São Carlos, achava que recomeçar a vida em outro lugar me faria bem. Talvez uma mudança de ares me ajudasse a apagar memórias tristes que eu gostaria de esquecer, de um ado que eu já não queria mais para mim. A doença me fez refletir sobre o estilo de vida que eu levava, sobre os erros que eu cometia diariamente sem me dar conta, ou sem querer notar. Insisto sempre na tecla da metamorfose, a legítima transfiguração que me deu consolo nas horas mais difíceis.

Em mais um capítulo do dramalhão "Vida de gado", a fedentina das mentes vis, preconceituosas, desumanas, arrogantes, inconsequentes, e por aí vai, foi sentida em todo o Brasil através de uma emissão transmitida pela TV, para todo mundo ver. Reproduzida pelo Fantástico, da Rede Globo, na noite de domingo, cinco de julho, a frase "Cidadão, não. Engenheiro civil, formado. Melhor do que você" de Nívea Valle del Maestro ao ser abordada junto com o seu marido, Leonardo Santos Neves Barros, por uma fiscalização contra aglomerações em bares na Barra da Tijuca, no Rio, ganhou triste notoriedade, virando imediatamente piada,

especialmente entre os jovens. Atitudes dessa natureza, asquerosa, nojenta, embaraçosa, não nasceram com o Capitão, mas tiveram nele um grande redentor. Por ironia do destino, os mugidos da dupla contra o fiscal intimidado pelo gado, sem saber, encontraram os ouvidos de um profissional concursado, com mestrado e doutorado. Após a enorme repercussão, "cidadão não" virou bordão nas redes sociais em que usuários ironizaram a fala preconceituosa do vídeo. A empresa de transmissão de energia TAESA, onde trabalhava a cidadã Nívea Valle del Maestro, bruaca do Fantástico, demitiu a funcionária por desrespeito às regras de prevenção à covid-19 e as normas de segurança da companhia. O engenheiro civil formado, Leonardo Santos Neves Barros, babaca do horário nobre, apagou seu perfil nas redes sociais e evaporou. O esgoto pútrido que seguia à risca os comandos do Capitão Gancho perdia terreno por defender uma ideologia que ia contra a boa índole do brasileiro.

Nesse ponto, eu até queria mudar de assunto, mas não dava. Era muita coisa acontecendo ao mesmo tempo no Brasilzão. Tanto fez que conseguiu, de tanta fanfarrice, depois de incontáveis espetáculos ridículos e de surtos de menino mimado que não podia ser contrariado, o Capitão Bananão contraiu coronavírus. No dia sete, todos os jornais publicaram a notícia de que o presidente testou positivo para covid-19, durante a semana, ele havia apresentado os sintomas típicos da gripe, mas sem a gravidade da doença. Ainda era cedo para dizer que o coronavírus seria uma lição de humildade para quem se julgava a perfeição acima de tudo e de todos. Eu particularmente não acreditava em redenção, para que houvesse arrependimento era preciso itir o erro e corrigi-lo. A soberba era tanta que me fazia lembrar da história do Titanic, o navio inafundável, como diziam, que afundou logo na primeira viagem, matando um monte de ageiros. O Capitão e a tropa do badabauê provocavam os mais baixos instintos em quem era minimamente decente, no episódio do covid-19, teve gente desejando pronto restabelecimento ao vírus, que contraiu o presidente. De minha parte, eu era incapaz de desejar mal ao Capitão, mesmo tendo infinitas e infindáveis ressalvas contra ele. Gostaria, porém, que a doença servisse para torna-lo um milésimo mais humano no trato com o povo, não só com os dez por cento de adeptos que o venerava. Era pedir demais, puro sonho.

Por falar em sonho, eu sonhava todas as noites, era só fazer uma forcinha que eu

me lembrava depois que acordava. A natureza dos meus sonhos variava bastante, as vezes pareciam a realização de um desejo inconsciente, outras vezes era como reviver acontecimentos agradáveis do ado. Mais de uma vez eu sonhei que estava correndo, esses eram os que mais me confundiam, pelo grau de realidade. Não sabia explicar, nem sabia se havia explicação, mas na época do câncer eu ei a sonhar com um certo teor de alucinação, tendo visões enquanto dormia. Era diferente, nessas ocasiões, eu levava um certo tempo para cair na real, como na vez em que eu me vi sentado na cama ao lado de um jovem que me exibia um relógio cromado. Na noite do dia sete eu tive um desses sonhos confusos, tão intenso que parecia que eu estava acordado. Nele, eu saía de algum lugar na altura da Praça Coronel Salles, também conhecida como Praça dos Pombos, caminhando pela Avenida São Carlos em direção ao trevo da cidade. O que eu via não era exatamente como é a avenida, mas no sonho, era nela que eu caminhava, no breu da noite. Havia movimento de pessoas. Logo após ar pela Escola Estadual Álvaro Guião, fui abordado por duas adolescentes, eu era bem maior do que elas.

- Moço, você pode ver se está escrito certo?

Na palma da mão de uma delas, estava escrito em azul a palavra "abdomem", desse jeito. Os detalhes saltavam aos olhos, a percepção era completa, só faltou sentir o cheiro da tinta de caneta Bic.

- Não está correto, faltou o acento circunflexo no "o" e a palavra termina com "n" de nata

Mantive minha mão esquerda sobre as costas da garota que estava mais perto de mim enquanto transcorria esse curto diálogo. Entre sorrisos. O contato foi claríssimo. Minha resposta à pergunta das duas foi bem ao meu estilo, como meus pais são idosos e têm dificuldades auditivas, tenho o hábito de dizer "a" de abóbora, "b" de bola, "u" de uva, com frequência. Assim que acordei, ainda meio sonado, peguei um lápis e ei os detalhes do sonho para o meu bloco de

notas, impressionado e confuso. Era de madrugada, fui ao banheiro, fiz xixi e voltei para a cama. Caí no sono em dois tempos. O único elo de lógica entre realidade e imaginação foi o abdômen, com acento circunflexo no "o" e "n" de nata no final. A tomografia no abdômen, o preparo para o exame, o ritual na Santa Casa, as imagens e o laudo, foram temas presentes nas últimas semanas. Perguntei para mim mesmo se o sonho era um reflexo do ado ou tinha algo a ver com o futuro. Ou nada a ver com coisa nenhuma. Não conseguia interpretar o episódio.

No período pós-quimioterapia, além da questão dos sonhos, meu tato ainda era diferente, com formigamentos nos dedos das mãos e eventuais arrepios que lembravam pequenas descargas elétricas. Enfim, a sensibilidade do toque era outra. O cateter doía menos, incomodava e restringia movimentos, sem me entrevar numa cama, em um calvário de dor. O mais inusitado para mim foi que a vontade de fumar voltou, com aquela sensação de saudade, muito mais do que uma mera curiosidade. O medo do câncer me fazia deletar rapidamente essa estranha vontade, que surgia do nada, sem explicação. Sabia, porém, que um vacilo ou um momento de fraqueza me levaria a fumar por causa desses pensamentos induzidos, sabe-se lá como, na minha cabeça. Fumante? Era só o que faltava! Tinha também a micose, que tomou conta das unhas dos meus dedos das mãos. ei a usar um remédio que fazia as unhas esfarelarem, o teclado do meu computador ficava cheio de flocos brancos, finos que nem polvilho. Os quilos a mais só me incomodavam na hora em que eu vestia uma roupa e ela ficava apertada, tirando isso, nada de estresse. Quem imaginava me ver raquítico por conta do tratamento, se assustava ao me ver redondo e bochechudo. No mais, a verruga na minha mão direita renascia a medida em que a quimioterapia se distanciava no tempo.

Aliás, o tempo, por sinal, precisaria ser redefinido durante a pandemia. Horas e minutos não valiam mais nada, segundos, então, nem se fala. Os dias se arrastavam, avam diferente, que nem a teoria do Einstein, na verdade, uma relatividade mal explicada. Eventos do começo do ano pareciam ter décadas de idade, as enchentes em São Carlos, as duas vindas do meu irmão para me visitar, a ida à Cachoeira de Emas e o lombo de peixe assado, os brasileiros indo embora de Wuhan, na China, fugindo do coronavírus, os primeiros casos de covid-19

aqui no Brasil, a lista era longa. O lema "fique em casa" começou em março e continuava valendo, a quarentena virou sinônimo de eternidade, o mundo girava preguiçoso, o suspense meio ficção não tinha fim. O governo brasileiro aproveitou o isolamento social, entrou na máquina do tempo e mergulhou de volta na guerra fria, deixando o coronavírus de lado, usando todo seu arsenal na batalha contra o comunismo, o socialismo, o esquerdismo, o canhotismo ou qualquer "ismo" ideológico de esquerda. Enquanto isso, cadê o Queiroz? Resposta, ele foi preso! Comentário, e daí? Normal e eterno, triste e real. O mundo pagava seus pecados, com juros e correção monetária, o Brasil pagava uma conta ainda maior, quase do tamanho da dos Estados Unidos, astronomicamente mais ricos. Donald Trump e o Capitão tornaram-se, na pandemia, figuras obscuras que assustavam o mundo, matando e desmatando. O demônio e o burro. Muita gente sofria. Raiva não, revolta sim. Era assim que eu me sentia.

Pois bem, o fusquinha estava parado na garagem desde que tive a primeira pneumonia, no dia nove de julho eu resolvi quebrar o isolamento em que me encontrava e levei o carro ao mecânico. Fusca é fusca, mesmo depois desse tempo todo parado, após alguma insistência, o carrinho pegou, quicando e engasgando, fui com ele até a oficina mecânica curtindo a rebeldia de sair de casa em plena quarentena. Fazia muito tempo que eu não saía de casa para outra coisa a não ser ir à médico, fazer exames, comprar remédios, já estava saturado, sem me dar conta. Aproveitei que o Fusca funcionou e peguei um pouco de estrada com ele, ei ao lado da UFSCar sem sentir saudade nenhuma dela. Meu casamento com a universidade não estava em crise, mas chegava a hora de reavaliar o relacionamento com a instituição. O contingente dos que se seduziam pela vaidade e arrogância do meio acadêmico era demais para o meu estômago pós-quimioterapia, gente que se iludia com uma importância fugaz e limitada, professores e alunos com o rei na barriga. Eu estava total e completamente fora de sintonia com essas coisas. Tudo isso e muito mais eu deixaria para pensar em outra ocasião, o bom foi que o rolê de fusquinha só me trouxe alegria. Eu estava realmente precisando de uma pausa na reclusão para curtir um pouco a melhora no meu estado de saúde. Fazia tempo que eu não me sentia tão bem fisicamente, queria aproveitar, com prudência, mas do lado de fora, na rua. O Fusca foi o meu parceiro nesse momento bem vivido, numa manhã que começou com chuva e terminou com sol.

O resultado da tomografia ficou pronto na manhã do dia dez, de tanto esperar, a ansiedade havia dado lugar à curiosidade, com o laudo, a curiosidade deu lugar ao alívio. Foi assim. Nenhum novo tumor foi localizado, as imagens mostravam um organismo limpo, saudável, de novidade, a única observação foi "cúpula frênica direita elevada", decorrente da forte pneumonia que eu tive. No mais, tudo certo. Pausadamente, o câncer encontrava o seu lugar no meu ado, deixando pela frente um futuro de páginas em branco, prontas para virarem o que eu quisesse. Era assim que eu pensava, crescia dentro de mim um senso de ruptura com o ado, o câncer me mudou a tal ponto que não valia mais a pena ser como antes. Minha vida era boa, ótima, mas internamente, a introspecção foi profunda, o quase um ano de batalha contra o câncer tinha feito uma verdadeira faxina na minha essência. Eu ainda caía em tentação, isso me incomodava muito, sinal dos novos tempos. Antes, jogar tempo fora com idiotices, desperdiçar energia com bobagens, ficar irritado por bobeira, dar valor ao que ou a quem não tem valor, eram hábitos quase diários. Isso tinha que mudar. Mudanças assim nunca são fáceis, mas o esforço era necessário. Pouco a pouco, a luta contra o câncer sedia lugar ao choque entre ado e presente. O resultado da tomografia era o primeiro sinal verde para a largada de uma nova corrida, a favor do tempo e, também, de pensamentos positivos e de coisas boas.

Nesse mesmo dia nove, o Queiroz, ex-assessor do filho do presidente, deixou o presídio de Bangu com base em uma decisão do ministro do STJ, João Otávio de Noronha. O Capitão Cloroquina vencia a batalha contra a OMS e, ainda por cima, conseguia se esquivar da justiça. Palmas para ele. Ainda ressoavam com força os mugidos da dupla patética Nívea Valle del Maestro e Leonardo Santos Neves Barros, a engenheira química e o engenheiro civil, a cidadã e o cidadão, almas gêmeas que se mereciam. Parei para analisar aquele rompante de prepotência que revelava o modo de pensar que tinha sua maior expressão na figura do presidente. Os gênios são raríssimos, eu nunca conheci nenhum, os superdotados são pouquíssimos, também nunca conheci nenhum. As inteligências acima da média são mais frequentes, mas não fazem chover sozinhas. A galera da média, do cinco ponto bola, que nem eu e você, ocorre à rodo na natureza, jamais seremos uma espécie em extinção. Eu, a vizinha do Chaves, o motoboy, a mulher do guarda, a senhora Nívea Valle del Maestro, o senhor Leonardo Santos Neves Barros e quase todo mundo, não temos

absolutamente nada de especial, "melhor do que você" uma ova, só na cabeça daquela idiota. Minha contribuição profissional à sociedade certamente não foi maior do que a nobríssima e essencial atividade de catador de material reciclado ou, nessa linha de raciocínio, eu teria sido muito mais útil entregando cartas à população. Nem melhor, nem pior do que ninguém, nem do que gênios, nem do que superdotados.

Em sua guerra pessoal contra o ensino público, gratuito e de qualidade, o Capitão Cabeça de Bagre, sob a influência de supositório de cloroquina, nomeou um pastor ligado à Universidade Presbiteriana Mackenzie para o MEC. Nada contra, absolutamente nada, mas o fato da religião ter influenciado a decisão do presidente me fez lembrar de um episódio com uma aluna, pouco tempo depois que um ebook meu sobre uma operação do Projeto Rondon foi publicado. Enquanto escrevo, não me lembro da fisionomia da menina, nada, nada, só o gênero mesmo. Ela costumava chegar à sala de aula antes de todo mundo, sentava-se quietinha no corredor e respondia com um largo sorriso, até meio exagerado, o meu "bom dia". Um belo dia, notei que ela parou de responder o meu cumprimento, mas não me liguei em nada, talvez estivesse com problemas e preferisse ficar calada. Bom, antes tivesse ficado calada.

- Petista macumbeiro!

Levei alguns segundos para perceber que era comigo que a aluna estava falando. O susto e as múltiplas interrogações foram maiores do que a indignação.

- Como?

Olhando sempre para baixo, ela nunca me respondeu, mas não largou mais do meu pé, encheu o meu saco dali em diante. O petista macumbeiro parecia um preto velho! Ouvi de tudo. Desconfio, por razões óbvias, que houve também

uma pitada de racismo por conta da minha cor de pele, mas escura do que a média na universidade. Respeito tanto petistas quanto macumbeiros, cada um com a sua escolha, o importante é ser uma pessoa boa, mas custei a entender a razão pela revolta da aluna. Felizmente, foi a única vez que tive problemas como docente. No livro, uma única vez, eu menciono que era espírita kardecista, dentro de um contexto, mas nunca soube porque a aluna me chamou de petista. Em sala de aula, nunca falei de política, nem de religião. O texto do ebook não levantava nenhuma bandeira ideológica, tomei muito cuidado com isso. Pelo simples fato de ser professor da UFSCar, escuto com frequência comentários sobre a minha orientação política, como já citei. Digo aqui que não sou de direita, só isso, o resto é especulação. No tocante à minha cor de pele, nada posso fazer. O tom caramelado me acompanha desde o berço. No mais, de minha parte, não me senti nem um pouco ofendido, seria um preto velho, macumbeiro e petista feliz da vida. Só não dava para ser racista e preconceituoso.

Julho estava sendo um ótimo mês para mim, eu voltava a ter boa qualidade de vida. A quimioterapia havia deixado sequelas que só o tempo apagaria. Talvez nem ele, sabia que alguns dos efeitos poderiam ser permanentes. Tudo bem, o importante era não ter câncer de novo, bastava uma vez. A gente não nasce com prazo de validade tatuado no corpo, uns se vão cedo, outros levam mais tempo por aqui, eu não fazia a mínima ideia de quanto ainda me faltava de vida para viver. Melhor assim, a cura do câncer me daria uma sobrevida, de quanto, só Deus sabia. Isso mesmo, minha questão era diretamente com o Pai, em suas mãos eu confiei, com fé, a minha vida, esperando que Ele decidisse o que o futuro me reservaria. Quanto ao meu destino, ei a acreditar que "les bonnes choses arrivent si on le désire", como respondeu Edith Piaf quando questionada por um repórter. Eu queria muitas coisas, todas boas. Eu queria um recomeço, ou melhor, o novo começo de um final feliz. Eu queria saúde e felicidade, simplicidade e fé, tinha que ser diferente, não foi o acaso que me fez ficar gravemente doente, estava escrito que eu ficaria, era a lição de vida que eu precisava. A luz no fim do túnel brilhava diante dos meus olhos, já dava para ver com clareza o outro lado, a travessia havia sido longa, eu estava cansado, mas feliz. A felicidade completa estava próxima, a cura parecia uma realidade quase assegurada, só faltava a colonoscopia.

EPÍLOGO?

"Enquanto isso", era isso, a vida continua, não para, sou paciente oncológico, mas sou também cidadão, são-paulino, professor, maluco por carros, glutão, como estrogonofe com arroz branco e batata palha no almoço e pizza no jantar uma vez por semana, detesto axé e duplas sertanejas, adoro ler biografias e livros de história, enfim, você vive do seu jeito e eu vivo do meu. Juntos até a vitória final. O câncer não foi uma presença totalmente exclusiva desde a sua descoberta. Apesar das cirurgias, das injeções e de tudo o que eu venho ando, minha vida sempre foi muito mais do que isso, a prioridade foi o tratamento, mas quando ele deixava, eu vivia, trabalhava, criticava, xingava, torcia, escrevia, esquecia da crase, botava vírgula onde não devia, sem ligar muito para o futuro. O lance era o presente, acordar e dormir bem, dentro do possível, me fazia muito bem lembrar do ado bom, só isso. Na luta contra o câncer, insisto, a fração de normalidade de uma vida em sua plenitude precisa ser incluída no tratamento, como se fosse, de fato, um medicamento. Esperar sentado significa deixar a vida ar, é preciso continuar vivendo, de cabelos em pé, eu via a escalada da pandemia ceifando vidas no mundo todo. Por aqui, a loucura parecia não ter fim, meu lado cidadão torcia o nariz para o negacionismo, o discurso do ódio maltratava o Brasil.

Por falar nele, em julho, o desespero dos brasileiros era total. A abordagem contra a pandemia era desastrosa, cheia de mentiras, desinformações, crendices, maluquices, enquanto o mundo corria atrás de desenvolver a vacina, nosso governo investia milhões na fabricação de cloroquina, a contagem de mortos crescia assustadoramente, mente quem diz que não era bem assim. Honestamente, eu não acreditava em golpe, ainda mais, dado por um aleijão mental e uma tropa de pelancas, de jeito nenhum. Não havia contexto mundial para uma ditadura da direita boçal no Brasil, mesmo que o lunático Trump conseguisse se reeleger nos EUA, mas via uma certa corrosão na qualidade da democracia brasileira. Aumentava a perseguição sumária aos opositores do Capitão, ainda não havia censura propriamente dita, mas havia ameaças de todas as formas. Além disso, penso eu, dar um golpe é uma coisa, sustenta-lo é outra totalmente diferente. Dificilmente o mundo aceitaria mais uma quartelada ao

estilo tabajara num país com dimensão de continente. O Capitão se comportava cada vez mais como um demônio ensandecido, tostando doentes nas chamas do inferno, ganhando fama internacional por incitação ao genocídio. Tirando seus fiéis seguidores, que compartilhavam da mesma filosofia extremista, havia cada vez menos gente disposta a embarcar naquele devaneio absurdo. Eu assistia a história acontecer, louco para fazer história também. Não nasci para ser cordeiro.

Eu vou, mas eu volto. Na manhã do dia dezenove de julho de dois mil e dezenove, acordei sobressaltado e sentindo muito frio. Durante o sono, tive um daqueles sonhos que embaralham realidade e ficção. Nele eu me via andando entre prateleiras repletas de relógios, num ambiente que lembrava um grande galpão, ou hangar. Era a segunda vez que eu tinha esse mesmo sonho, nos mínimos detalhes, cheguei inclusive a identificar um relógio branco da Disney que eu tive na minha infância, com o desenho do Mickey no centro e braços indicando horas e minutos. Sentei-me na cama com uma confusão danada na cabeça, estava enfraquecido por causa da dieta à base de caldos que eu tinha feito no dia anterior, parte do preparo para a colonoscopia. A temperatura estava amena, mas o frio maior que eu sentia era no estômago, estava ansioso, o exame era uma novidade para mim. Já tinha feito endoscopia anteriormente, mas colonoscopia, era a primeira vez. Nos meses precedentes, mudanças no funcionamento do meu intestino haviam me deixado com a pulga atrás da orelha. Embora eu estivesse encafifado com a dificuldade para eliminar as fezes, no fundo, a caminho da Santa Casa, acompanhado pelos meus pais, isso não me preocupava. Desconfiava de um monte de coisas, de alimentação ruim, de bactérias, de seja lá o que fosse, nada grave, nem sério demais. Não podia imaginar o tamanho da bomba relógio que eu carregava dentro de mim, preste a explodir.

Fui dirigindo até a Santa Casa de São Carlos, achei vaga em uma rua lateral, estacionei e fui a pé até a ala de colonoscopia. Havia ado a véspera e pernoitado no apartamento dos meus pais, conversava descontraidamente com eles, a princípio, eu estava indo fazer um exame sem apresentar nenhum sintoma preocupante como dores fortes, perda de peso, de apetite, nada disso. A gente não nasce com uma bola de cristal implantada na cabeça, prever o futuro não é possível, adivinhar o que vem pela frente foi algo que a humanidade de alguma

forma sempre tentou. Sem sucesso. Conhecer o futuro, que graça teria? Eu não fazia a mínima ideia do que me aguardava, entrei na antessala do laboratório às oito em ponto, preenchi um formulário, usei o cartão do meu plano de saúde, sentei-me e aguardei a minha vez. A sala de espera era bem apertada, havia gente do lado de fora, estava friozinho, mas fazia sol. Sou da teoria de que quando a única tarefa é esperar, o tempo não a. O tempo não ava naquela sala, fui chamado para o exame às oito e quarenta, entrei resignado e confiante, o probleminha seria identificado e sanado. Talvez o médico me colocasse numa dieta rica em fibras, talvez prescrevesse um remédio, logo eu estaria livre do desconforto, era assim que eu pensava.

A enfermeira meio ruivinha que me orientou durante o preparo conversava comigo, me dizia como seria o exame, se eu tinha alguma dúvida, essas coisas, mas eu não queria falar, já estava bastante desconectado. Sentir fome era para mim o fim da picada, eu não chegava a estar mal-humorado, mas não tinha ânimo para bate-papo. Nada me preocupava, eu só queria ficar logo livre para poder comer alguma coisa, em frente à Santa Casa havia uma lanchonete que era onde eu gostaria de estar naquele momento. Enfim, deitei-me numa maca, me cobri com um lençol branco, tirei a calça e a cueca, levei uma picada no dorso da mão, virei de lado e sumi do mapa. Nem vi o médico. A sedação que me tirou de órbita levou com ela alguns minutos de memória, tempo transcorrido até eu apagar por completo. A sensação de relaxamento, de distanciamento da realidade, não era acompanhada pelo paciente, as coisas aconteciam num piscar de olhos, dando um verdadeiro nó na cabeça. Despertei com a impressão de que mexiam em mim, eu não sentia nada, mas percebi movimentos estranhos que me balançavam de um lado para o outro. Depois vim a saber que comecei a despertar antes da hora. No segundo seguinte, eu já estava sentado numa cadeira na sala de recuperação. Completamente vestido. Meu primeiro pensamento lógico foi me lembrar da ruivinha, levemente constrangido, "ela me vestiu".

A consciência veio como um sopro, num e de mágica, me vi ao lado de uma moça gordinha que vomitava as entranhas, fazendo enorme barulho. Vez ou outra ela peidava alto, eu devo ter peidado também, só que o meu peido não me incomodou. A moça olhava para mim com cara de hipnotizada, como se estivesse diante de uma parede pintada de girassóis. A sinfonia de sons me

deixou atordoado, comecei a ficar progressivamente mais lúcido e impaciente. Olhei no meu relógio e não acreditei no que vi, já era quase meio dia. Não entendi absolutamente nada, o exame era para ter levado algo em torno de quarenta minutos, o meu tinha durado pelo menos duas horas e meia. Interrogações pipocavam no ar, que nem vagalumes. Embora essa questão da demora tenha acendido um alerta na minha cabeça, não associei uma coisa com a outra, ainda estava um pouco grogue.

- Posso esperar lá fora?

Eu já não aguentava mais aguardar a liberação ao lado da minha vizinha enjoada e flatulenta. Assim que vi alguém de branco ando por mim, quase implorei de joelhos para sair dali. Minha barriga doía um pouco, a vontade de comer era enorme, na sala de espera havia uma idosa, meus pais não estavam lá me aguardando.

- Seu acompanhante precisou sair, mas já volta

A princípio, achei o tom de voz da atendente levemente entristecido, sei lá, meio desanimado. Após o longo tempo de sedação, meus pensamentos invariavelmente me diziam que era hora de comer alguma coisa. Imaginei que meus pais estivessem buscando o carro para me pegar na porta da Santa Casa. Não era nada disso, eles estavam na UNIMED pedindo autorização para uma biópsia anatomopatológica e uma tatuagem de lesão. Só que eu não sabia.

- Sente-se aqui ao meu lado

Todos pareciam estar penalizados, tanto a moça da recepção quanto a idosa que

fazia o convite para que eu me sentasse ao seu lado. Nada disso, entretanto, mexeu comigo, continuei achando que os velhos tinham ido buscar o carro e que em breve eu estaria numa lanchonete, padaria, barzinho ou boteco comendo um pão de queijo, uma esfirra de carne, um pacotão de presunto e queijo, uma paçoca, ou duas, bem acompanhados por uma coca-cola bem gelada. Era isso, eu queria comer.

Foi então que meus pais foram ao meu encontro e a expressão no rosto deles não deixava dúvida de que tinha dado alguma zebra no meu exame. Não dava para disfarçar o semblante tenso dos dois, saímos da Santa Casa diretamente para um laboratório de análises, o resultado da biópsia levaria doze dias.

- Acharam uma lesão feia no seu intestino

Meu pai fez o comentário enquanto a minha mãe dizia, repetidas vezes, "não há de ser nada". Em nenhum momento eu fiquei preocupado, meu estado geral era muito bom, só me assustei um pouco ao abrir a pasta com as fotos da colonoscopia e bater o olho na tal lesão. A imagem era horrível, uma massa toda deformada na parede interna do meu intestino, algo que certamente não deveria estar onde estava. Não precisava ser médico para chegar a essa conclusão. No laudo, a palavra "lesão" aparecia mais de uma vez, à primeira vista, não me pareceu nada grave ou mortal, logo me distanciei da questão. Nunca fui um homem doente, sempre tive muita saúde, principalmente depois de adulto, nada me fazia mal. Os dias, semanas e meses seguintes revelariam uma realidade nova para mim, a da doença grave, da luta pela vida. Ainda não sabia de nada, nem fazia ideia, mas nesse dia dezenove de julho, sexta-feira, o doutor grandalhão Daniel Luporini salvou a minha vida ao localizar no meu cólon, o tumor que me mataria. O sofrimento do tratamento seguramente não foi maior do que a dor de ter que aguardar a morte, desenganado, acometido de doença terminal. Meu destino foi colocado por Deus em boas mãos, quando no dia vinte e três de setembro de dois mil e dezenove, o doutor Edilson Abrantes retirou o tumor maligno através de cirurgia por vídeo. O procedimento foi um sucesso, tive um excelente pós-operatório, em duas semanas eu estava inteiro. Foi aí que a peteca

ou para as mãos do doutor Luiz Agenor Gazzi, no dia seis de novembro, começou meu tratamento oncológico, havia metástase e eu tive que fazer seis meses de quimioterapia. Minha gratidão por esses três médicos irá comigo até o túmulo.

A vida é uma sequência de histórias, termina uma, começa a outra. De tanto irem e virem, dão voltas e se repetem. Lá estava eu, meio dia, treze de julho de dois mil e vinte, plena segunda-feira, encarando de novo a colonoscopia tão aguardada. Ao contrário do ano anterior, não fazia frio em São Carlos, o céu estava lindo, limpinho, a temperatura estava bastante agradável. Fiz a dieta de preparo no domingo, comi macarrão instantâneo e gelatina de sobremesa, ei fome, mas não muito. Na noite de domingo para segunda, fiquei apreensivo ao me deitar na cama, achei que fosse sonhar com os relógios, foi estranho dormir com essa sensação. O sonho havia virado para mim uma espécie de pré-anúncio de complicações na minha vida. Dessa vez, porém, nada de relógios, tive um daqueles sonhos que a gente quase não se lembra depois que acorda, mas tinha o dia doze de agosto em alguma parte dele. Lembrei-me da data assim que acordei, sem muito ânimo, na manhã de treze de julho. Isso mesmo, dia doze de agosto, desse ou de algum outro ano. No sonho, a tal data estava escrita em branco numa pedra, com pinta de hieróglifo, só que não era. Sei lá, o Caio faz aniversário no dia dois de agosto e o Pedro Lucas, meu afilhado de Campinas, dia dezoito. Pode ser que eu tenha induzido essa data por pensar no aniversário dos dois, ou pode ser outra coisa, a cada doze de agosto eu ficarei na expectativa de alguma surpresa. De preferência, boa.

Minha mãe me acompanhou no exame, meu pai estava acamado com problemas de coluna. Como no ano anterior, fui dirigindo e estacionei em uma rua lateral, numa vaga que exigiu uma baliza muito bem feita. A hora agendada estava quase chegando, tivemos que caminhar um quarteirão e meio até a entrada da Santa Casa, lá chegando, em dois tempos, preenchi os formulários do exame e fiquei aguardando. Por pouco tempo, às doze e vinte eu entrei na sala da colonoscopia, sem novidades, a história se repetiu lá dentro, nos mesmos detalhes. Fiz força para me lembrar ao máximo do procedimento, em vão, depois da picada na mão, a próxima lembrança já foi no caminho de volta para casa. Mesmo assim, ei o dia inteiro tendo lapsos de memória. Foi tudo mais tranquilo, saí da

colonoscopia em torno da uma da tarde, não me lembro de nada. Caminhei ao lado da minha mãe até o carro e atravessei a rua sem olhar, inconsciente que nem robô. Ela reclamou muito para retirar o carro da vaga, mas disso eu também não me lembro. No laudo do exame havia uma conclusão extensa, resumidamente, uma parte do meu intestino apresentou intensa ectasia venosa peri-anastomose, nada mais, nada menos do que veias dilatadas, com aspecto de varizes. Acho que elas apareciam na região onde fui operado, tirando isso, nada de pólipos e nem de tumores, meu maior temor.

Fechava-se um ciclo na minha vida, quase um ano de convívio com a lesão, que na verdade era um tumor, que se revelou maligno após análise e que já havia deixado metástase no meu organismo. Aos quarenta e oito anos eu tive que travar uma luta contra o câncer, sem saber direito o que fazer. Ninguém nasce preparado para essa doença, a comandante dos meus dias desde aquele inesquecível dezenove de julho de dois mil e dezenove. Durante todo esse tempo, aprendi a viver o instante, cada segundo era importante, cada minuto tinha um quê de aprendizado, cada hora precisava ser bem aproveitada, o dia seguinte foi sempre uma verdadeira incógnita. Era estranho, para mim, viver a expectativa do próximo o, sem poder fazer projeções a longo prazo, tudo ou a ser condicionado. Isso foi talvez o mais difícil, ser ageiro na minha própria vida, ser levado a esmo, sem outra opção. A primeira quinzena de julho estava sendo uma ducha de ânimo, eu me sentia bem, disposto, a pandemia seguia fora de controle, apesar do isolamento social, a nova realidade era de união. Enquanto isso, o tempo seguia adiante, sem olhar para trás, o mundo dava voltas e mais voltas, a humanidade ava por um de seus maiores desafios, lições tinham que ser aprendidas.

A limpeza no meu cateter foi feita no dia quinze, a próxima ficou agendada para o dia doze de agosto. Tai, doze de agosto! Escancarei um enorme sorriso quando a enfermeira marcou a data na minha caderneta do tratamento oncológico. Meu momento Nostradamus foi a sensacional previsão da data da minha próxima limpeza de cateter. Fiquei com vontade de apostar na Mega-Sena acumulada, vinte milhões, pensei nos números sete (mês do sonho), oito (mês sonhado), doze (madrugada do sonho e dia sonhado), treze (madrugada do sonho), vinte (ano porreta do sonho) e quarenta e oito (minha tenra idade). Enfim, voltando

para o planeta Terra, foi muito bom rever o pessoal da ala de quimioterapia da Santa Casa, eu ficava realmente feliz ao lado daquelas pessoas. Desde o primeiro dia de tratamento, seis de novembro, até aquele quinze de julho, meu convívio com os enfermeiros foi ótimo e intenso. Os cuidados comigo, o carinho, a atenção e mais quilômetros de adjetivos bons fizeram desses profissionais verdadeiros anjos na minha vida. Sei que meus protetores espirituais estiveram presentes sempre que eu precisei deles, mas foram os enfermeiros da Santa Casa de São Carlos que efetivamente botaram a mão na massa.

A consulta com o meu oncologista estava agendada para sete de agosto, sextafeira. O sinal verde para uma vida normal se aproximava a medida em que eu melhorava diariamente. Apesar dos vários quilos a mais, eu tinha mais vigor físico, não me sentia tão vulnerável quanto antes. Tinha a impressão de que o coronavírus não me derrubaria facilmente, caso eu contraísse covid-19. Meu corpo parecia reagir melhor, eu não me sentia tão ivo e exposto às intempéries da vida. Conseguia ajudar mais os meus pais, meu pai estava com sérios problemas na coluna, eu o levava às seções de fisioterapia e consultas médicas. Além disso, vez ou outra eu ia à padaria, à farmácia, só não encarava supermercado e lojas em geral. Não saía mais de casa por causa da pandemia e do isolamento social, tirando isso, eu me sentia quase pronto para reassumir meu papel na sociedade. Era preciso se cuidar, o número de mortes no Brasil ava de setenta e cinco mil, um governo lotado de militares saindo pelo ladrão perdia a guerra contra o coronavírus. Após as minhas três participações no Projeto Rondon, do Ministério da Defesa, eu me decepcionava profundamente com as Forças Armadas, que embarcaram numa nau de piratas nazi-fascistas em troca de complementos salariais. O Capitão Cloroquina endereçava os cheques àqueles que se vendiam por quaisquer dois tostões, mantendo-se no poder como um Führer nutellinha, cabeça de tainha. Se o Brasil virasse, de fato, uma ditadura de extrema direita, eu seria preso. Recusava-me, porém, a ficar calado.

Quem tem a minha idade se lembra da Guerra das Malvinas, ou, The Falkland War, um confronto bélico entre Argentina e Inglaterra. Eu me lembro bem, tinha dez anos, foi um pouco antes da Copa do Mundo da Espanha, de oitenta e dois. Embalados pelo ego inflado das forças armadas argentinas, que desconheciam o tamanho das próprias pernas, em dois de abril daquele ano o país invadiu as ilhas

Falkland, um arquipélago de domínio britânico localizado no Oceano Atlântico Sul, na Plataforma Patagônica. Foi uma guerra bem rápida, ainda bem, os ingleses levaram mais tempo para se transladarem até o sul do oceano atlântico do que para derrotarem a Argentina, que se rendeu em quatorze de junho, dez semanas após o início do conflito. Foi uma das ditaduras mais sangrentas da América do Sul, assim que a guerra terminou, ficou claro para todos, principalmente para os argentinos, que os poderosos combatentes do exército, da marinha e da aeronáutica, só eram valentes contra o povo desarmado. As forças armadas argentinas levaram uma verdadeira surra, vários jovens morreram pela estupidez de seus comandantes. O fim da Guerra das Malvinas foi também o fim da ditadura na Argentina. Aqui no Brasil, apesar da censura, conseguimos acompanhar o conflito e refletir sobre a situação. Os fortes, temidos e destemidos militares latinos eram, na verdade, covardes fardados que se julgavam acima do povo. A guerra foi um desastre, a copa do mundo também, o Brasil ganhou da Argentina (tadinha) por três a um no dia dois de julho, mas, em compensação, perdeu para a Itália três dias depois, uma derrota bastante amarga. Chorei bicas por causa de futebol pela primeira vez, mesmo assim, até hoje sou fã inveterado daquela seleção, a melhor que eu já vi jogando.

Foi então que a colonoscopia reveladora fez aniversário, o primeiro. De vários, eu espero. Dia dezenove de julho de dois mil e vinte caiu no domingo, o tumor havia sido descoberto exatamente um ano antes. Pela manhã, precisei ir ao Banco do Brasil da UFSCar para tirar um pouco de dinheiro, botei créditos no meu celular e aproveitei para pagar meu condomínio. O almoço nesse dia foi um delicioso nhoque à bolonhesa, que teve vida curtíssima. De sobremesa, bolo de creme de leite com frutas e canjica. No mais, teve também uma dieta adiada para a segunda-feira e um gordinho cada vez mais sem vergonha. Por mérito e merecimento, eu ei a tarde toda dando voltas no meu fusquinha, lamentei a desobediência, mas o isolamento social não poderia comprometer aquele dia festivo. Vestindo a minha máscara hospitalar, protegido dos pés à cabeça como um cavalheiro medieval com armadura de pano, lá fui eu, de Fusca em São Carlos, sem pensar em nada a não ser na direção. Uma bela higiene mental. Foi um longo ano, o tempo custou a ar, não faltou drama, nem suspense, mas dentro do fusquinha, o aniversário da colonoscopia foi comemorado ao som gostoso do motor refrigerado a ar. Pensei que o domingo relevaria a grande epifania do meu trecentésimo sexagésimo quinto dia de batalha contra o câncer de cólon. Ao invés disso, porém, a cabeça vazia é que foi a grande curtição.

Dezenove de julho foi também dia de sentir vergonha alheia. Pela humanidade toda. Pois é, foi dia da engenheira química Nívea Valle del Maestro e do engenheiro civil, formado, Leonardo Santos Neves Barros ganharem a ilustre companhia do Reizão da Bala Chita, Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira, doutor desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Cidadão, não. Desembargador, com contatos. Melhor do que você, seu analfabeto. Assim falou a autoridade. Durma-se com um barulho desses. Cidadão, sim, grisalho, com aquela papada de porco, mas sem a mesma leveza do suíno, o doutor pururuca Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira foi flagrado humilhando guardas civis municipais de Santos, no litoral de São Paulo, após ser multado por não utilizar máscara enquanto caminhava na praia. Os lamentáveis cinco minutos de triste fama do babaca de carteirinha logo ganharam os noticiários, o vídeo foi visto por milhares de pessoas. Que fase! O desenvolvimento da vacina de Oxford contra o coronavírus avançava a os largos, faltava, no Brasil, um estudo equivalente sobre o contágio por gente da laia da Nívea, do Leonardo e do Eduardo, que ganharam vez e voz nas asas do governo de extrema-direita. Esses momentos de pré-história liberavam o homem das cavernas que alguns de nós ainda transportava na personalidade. Bastou triscar o Desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira para ele soltar a franga e botar ovos, sem a mesma classe e elegância do galináceo. Quanto mais eu via esses vídeos constrangedores, de comportamentos deploráveis, mais eu era grato ao berço que eu tive.

Uma voltinha na ala de quimioterapia de algum hospital cura a soberba e o orgulho de qualquer um. O câncer equaliza a todos, não há ricos, nem pobres, homens, mulheres, negros ou brancos. A gente não vale nada, desembargador, engenheiro civil formado, vigilante sanitário, eu, você e a mulher do guarda, do pó viestes, ao pó voltarás. Estava na Bíblia. Por falar nisso, ainda bem que eu não sou Deus, gente como a Nívea Valle del Maestro, o Leonardo Santos Neves Barros e o Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira teria que sentar de lado no meu reino. Eu nunca tive (verdade), mas sou criativo, consigo imaginar como seria. Nada como uma ardência retal para cidadão, não, virar cidadão, sim. Igual a todo mundo. Deus é justiça, bondade e sabedoria infinita, melhor eu nem ficar desejando mal aos outros, eu me conheço, os três acabam acertando a MegaSena e eu ganhando a hemorroida. Rogar praga é que nem jogar um

bumerangue, ela vai, mas ela volta. O longo convívio com a doença, o duro tratamento e as várias revelações do período não foram suficientes para me livrar dos pensamentos menos edificantes, desedificantes, por assim dizer. A diferença era que, nessas horas, eu me cobrava, exigindo de mim mesmo mais humanidade, lirismo de ideias, empatia e compaixão com o próximo. Até mesmo com o gado, verdadeira prova de fogo. Antes de finalizar e virar a página, não sei por quanto tempo ainda vão estar disponíveis esses vídeos das celebridades ao avesso, mas vale a pena conferir a cara de pastel, com direito a balançadinha de pescoço, que a engenheira química Nívea Valle del Maestro fez ao proferir "Cidadão não, engenheiro civil, melhor que você". Só sei que nada sei, Sócrates.

Quando nada mais me surpreendia no meu tratamento e os resquícios da quimioterapia pareciam não me incomodar tanto, meu dedo médio, ou pai de todos, da mão esquerda, começou a doer. É verdade que eu retomei meu ritmo de trabalho a pleno vapor, mesmo afastado oficialmente da universidade, ava horas e mais horas atrás do computador. O dedo, aquele que eu levantaria se encontrasse na rua o desembargador torresminho com limão, doía mais do que os outros. A quimioterapia deixava um certo amortecimento na ponta dos dedos, pelo menos, nove deles estavam assim. O dedo médio da mão esquerda não, ele doía mesmo. Parei de buscar explicações para essas coisas, a dor não era nada demais, atrapalhava sem comprometer. Melhor se não doesse, mas doía. O toque nas teclas do computador fazia o pai de todos latejar, não chegava a ser dramático como uma suspeita de covid-19, nem acabava comigo como a dor no cateter, era a cereja do bolo que eu não queria comer. Nem podia. Minha vingança foi engolir a dor e continuar trabalhando sem dar a mínima para o dedo. Dos males, o menor. Andei ando antimicótico nas unhas das mãos, talvez o remédio tivesse algo a ver com a dor. Talvez o pai de todos não tivesse esse nome à toa, um dedo que chamava para si a responsabilidade de encarar sozinho a dor no lugar dos outros. Quanto ao fato do da esquerda doer e o da direita, não, talvez fosse uma ironia de tanto que eu xinguei o Capitão Bicado de Ema.

Amai a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo, eu me rendo. Não vai ser nessa encarnação que eu vou assimilar com maestria, ou sem, o primeiro mandamento. A primeira parte, amar a Deus, não é complicada, é fácil

amar a quem só oferece bondade. O criador de tudo é amor e é amado, moleza. Amar ao próximo como a ti mesmo, independente de quem seja o próximo, é dose para elefante, eu confesso, é mais difícil do que juntar relatividade, mecânica quântica e estatística, termodinâmica de processos irreversíveis, equações de Maxwell, tudo na mesma questão. Eu desconfio sinceramente que melhorei, xingo o governo atual, xingava o anterior, falo mal dos alunos, principalmente dos meus, ainda me exalto com aqueles que não usam seta no trânsito, torço contra o Flamengo, mas, se não amo o próximo como a mim mesmo, tirando isso, senti uma compaixão danada pelos guardas municipais que foram humilhados pelo desembargador brioco frouxo de preguinhas, em suma, no geral, eu me considero um amor de pessoa. Falando sério, nunca me vi tão ligado ao próximo, mesmo sem conhece-lo, quanto àqueles dois guardas de Santos, queria eu ter um milésimo do autocontrole e da nobreza que eles tiveram diante do meritíssimo da carteirada. Vida plena era assim mesmo, gente boa e gente ruim no calçadão de Santos, enquanto isso, eu começava a ver as alternativas para trocar de emprego, de endereço e de estilo de vida. Nascia um novo homem.

Pensei muito, tive tempo para isso, por mais que eu gostasse de todos os meus colegas de trabalho e adorasse a UFSCar, um clique na minha cabeça me dizia que era hora de mudança. O câncer me fez abrir os olhos para uma série de imperfeições na minha personalidade, isso foi muito bom, mesmo doente, eu ei a viver melhor. Por outro lado, o câncer me deixou menos tolerante com ambientes que elitizavam até mesmo saudações matinais. Não sei exatamente o que acontece, acho que nem Freud explicaria isso, mas há na engenharia química uma empáfia asquerosa que desfila na arela de plataforma alta, com pompa e sofisticação. Fazendo cara de pastel que nem a cidadã Nívea Valle Del Maestro, que por sinal, é engenheira química. Está vendo! I rest my case. Esse pedestal não era e nem nunca foi para mim. Ciente de que na minha idade, mudanças nunca eram fáceis, mas também, não eram impossíveis, comecei a traçar um plano para atingir o meu objetivo. Doente de câncer era que nem condenado solto em liberdade condicional, daqueles com tornozeleira eletrônica. Ninguém queria por perto. Eu era um funcionário de alto risco, em tratamento oncológico, com direito a mancha suspeita no pulmão, um preocupante aneurisma cardíaco, atrofia hipocampal, varizes intensas no cólon, só até onde eu sabia. Mais problemas do que Lada Laika dos anos noventa. Depois do episódio envolvendo os guardas municipais Cícero Hilário Roza Neto e Roberto Guilhermino da

Silva, frente à minha iração por eles, me deu vontade de tentar concurso público para investigador da polícia, motivação não faltava, mas eu seguramente reprovaria no exame médico. Não bastasse isso, eu já não era mais um garoto, faria quarenta e nove anos dentro de seis meses.

O importante, porém, era voltar a pensar no futuro, diferente, renovado, tudo novo. Se isso fosse fácil, que graça teria? Qualquer previsão futura era proibitória no período mais intenso do tratamento, fazia até mal. Depois que me recuperei da fortíssima pneumonia, entretanto, eu voltei a trabalhar e a fazer planos, sem medo de me arriscar em novas empreitadas. Outro departamento, outra universidade, outra carreira, a única coisa que eu tinha certeza era que gostaria de continuar sendo funcionário público em algum outro lugar, depois de quinze anos trabalhando para o governo, era difícil mudar isso. Novos desafios trazem aprendizados que podem fazer grandes transformações. Eu me sentia na metade do caminho profissional, parecia ainda me restar tempo suficiente para começar de novo. A medida em que eu me sentia melhor e mais animado, o pensamento de mudança se materializava com mais força dentro de mim. Expor meu âmago de forma tão clara, era novidade, eu clamava por uma ruptura completa com o professor universitário que em oito de agosto de dois mil em dezenove descobria que tinha câncer. Um ano antes, minhas preocupações giravam em torno do que eu deixaria de fazer na universidade, por estar doente. Um ano depois, tudo o que eu queria era não ter mais as mesmas preocupações herdadas do ado antes do câncer, a vida daquele jeito simplesmente não valia a pena. Não havia nada de muito errado na minha profissão, nem comigo, a sensação que eu tinha era de não mais me encaixar no esquema antigo, como uma roupa que fica apertada ou folgada demais. Tinha que buscar o meu novo horizonte no trabalho, essa era a questão que mais me balançava em julho, quando o mês já se sentia meio agosto.

Renascer era assim mesmo, voltei a pensar como o adolescente que queria ser piloto da Academia da Força Aérea, mas descobriu que precisava usar óculos. Naquela época, depois que aceitei o fato e desisti da AFA, cada dia eu escolhia uma profissão diferente, fiquei perdidão. Falei que ia fazer Estatística, depois mudei para Economia, daí foi a vez da Agronomia, por fim achei que a minha praia era a Engenharia, primeiro ei para engenharia mecânica, tempos mais

tarde estava fazendo engenharia química, pulei para engenharia civil e acabei me formando em engenharia elétrica. O fato era que eu deveria ter feito Agronomia. Não fiz. adas mais de três décadas, lá estava eu de novo, atrás de um rumo diferente, cheio de cabelos brancos, com barriga de desembargador e papada de porco. Entrei no meu computador, ei a procurar concursos e me deu vontade de prestar tudo, Polícia Federal, IBAMA, Banco do Brasil, Universidade Federal de Capim Verde, Universidade Estadual do Trevo de Quatro Folhas, Prefeitura de Serafim da Silva, a maré não estava para peixe, o Capitão Covid queria privatizar até o hino nacional, mas procurando bem, ainda havia vagas públicas. A pressão das provas não me assustava, nem um pouco, eu já tinha emprego, muito bom por sinal. Ser aprovado seria, nada mais, nada menos, do que lucro, isso mesmo, lucro. O que me fazia relutar era a questão do exame de saúde, a última avaliação médica que eu fiz foi aos quase trinta e oito anos quando ei no concurso da UFSCar. Época em que eu corria oito quilômetros todos os dias, vestia M, tinha topete, bebia cerveja na janta e enchia o prato de pimenta. Those days are gone.

Especialistas do mundo todo previam que o Brasil e os Estados Unidos virariam num futuro próximo emissários mundiais de covid-19, se fosse mantida a política de imunização de rebanho proposta pelos respectivos governos, ou seja, quem morrer, morreu, quem sobreviver, estará imune. Nada de máscara hospitalar, nem distanciamento social, nem álcool em gel, nem nada. Desse jeito, o prognóstico para os dois países seria viver uma hecatombe no próximo ano, uma pandemia dentro da pandemia. Isso mesmo, uma epidemia turbinada. Os gringos tinham a esperança de que Donald Trump não fosse reeleito nas eleições que se aproximavam, isso mudaria tudo, nós, aqui no Brasil, em compensação, estávamos lascados. O Donald Trump daqui parecia um 747 mergulhando de nariz em cima das nossas cabeças, ou um elefante enfurecido numa loja de cristais, como preferirem. Colecionava mortes como se fossem figurinhas de um álbum da Copa do Mundo, se divertia com a desgraça do povo. Fazia graça. Pegou coronavírus, mas não para valer. Aí, não vale. Ficou mais fanatizado ainda por cloroquina, segundo ele, o único caminho para a salvação. Além de banho de sol. Aliás, seu fanatismo insano, sua mente diabólica e maquiavélica, sua personalidade sádica e perversa, ao se somarem, criaram um monstro que era até maior do que seu próprio criador, era o Adolfnaro Hitler, o maior genocida dos trópicos. Vizinhos mais equilibrados e balanceados como a Argentina pareciam anos luz de distância do Brasil, a geografia aderia à relatividade. O

país, pouco a pouco, se isolava, virando uma ilha do terror.

Por uns dias, o Brasil vivia uma pausa na doutrina do ódio, com o Capitão Corona fora de circulação, isolado por covid-19, sem poder semear discórdias diariamente, o povo respirava aliviado. O polêmico deputado federal que virou presidente da noite para o dia, arrancava suspiros de iração dos seus seguidores, rédea curta e cabresto de couro, comandante e comandados davam uma trégua muito bem-vinda para o país. O momento era complicado demais, um pouco de tranquilidade fazia bem, na sexta-feira, dia vinte e quatro de julho, o número de mortes pelo coronavírus chegava a oitenta e cinco mil. A pratica do bem dizia que a pacificação era uma obra divina, pois paz significava reconciliação, e Deus era o autor da paz e da reconciliação. Não fui eu que disse isso. As pessoas estavam cansadas de tantos conflitos, desde que a ultradireita assumiu democraticamente o poder, era a primeira vez que o cachimbo da paz foi o. O cessar-fogo foi visto como uma oportunidade para olhar pelo Brasil, tentando enxergar as questões mais urgentes, como falta de saúde, falta de emprego e fogo no meio ambiente. Se, internamente, o país agonizava em meio a uma infecção generalizada, externamente, nossa imagem era péssima, por causa da pandemia, o GP do Brasil de fórmula um foi cancelado, sinal dos novos tempos. O país já era um Pária diante dos olhos do mundo. Quando o jornal The Washington Post publicou editorial classificando o presidente brasileiro como o pior líder mundial no combate ao coronavírus, não se imaginavam as consequências a longo e médio prazo. Realizado desde o ano em que eu nasci, ficar de fora do calendário da fórmula um foi só a ponta do iceberg. O começo do pesadelo.

O pelotão de fuzilamento preparava, apontava e enfiava os anos de chumbo goela a dentro do cidadão, a força das urnas criou um Brasil carrancudo e de suástica tatuada na testa, igual à que o revoltado assassino Charles Manson ostentava. Aquele país do samba, futebol, carnaval e alto astral, que andava de Fusca e tinha uma nega chamada Tereza, em tão pouco tempo, virou coisa do ado. O mundo não entendia essa guinada do brasileiro que havia trocado a doçura da banana pela acidez do abacaxi. Nem eu entendia. Eu pensava em política, xingava um monte, mas não me julgava correto. Ser contra o atual governo era o que me parecia certo, eu me sentia confortável com a minha

decisão. Só isso. Minha vida, entretanto, era mais florida do que a média nacional, tinha mais pétalas do que espinhos. Tinha plena consciência disso. Tanto que no dia vinte e quatro de julho, na hora do almoço, eu quis comer pastel, e comi pastel. Nada me faltava, o isolamento social exigia prudência, pouco antes do meio dia, encomendei oito pastéis na Pastelaria Thomazi, e fui buscar de Fusca. O endereço do melhor pastel da cidade ficava em frente à estação ferroviária, na Praça Antônio Prado, em uma esquina próxima ao centro da cidade. A massa era deliciosa, tinha gosto de ado, levei para casa dois pastéis de carne, dois de queijo, dois de palmito e dois de pizza. Almocei um de cada recheio e meus pais dividiram os outros quatro. O molho que acompanhou os pastéis estava saborosíssimo, só faltou um caldo de cana bem gelado para completar a minha viagem no tempo. Pastel com caldo de cana era a diversão de domingo na minha infância feliz, o primeiro paulista da família.

A terra é redonda, certo? Você acredita nisso, né? Pois é, enquanto eu aguardava os oito pastéis fritarem, um cidadão sem máscara hospitalar que também aguardava seu lanche ao meu lado, saiu com a seguinte pérola:

- Conversa fiada que a Terra é redonda, isso é coisa de...

Comunista? Americano? Marciano? Felizmente, acho que algum santo medicamento da quimioterapia agiu rápido no meu organismo, me tirando de órbita e me poupando do filósofo de esquina. Não consigo ser rude nessas horas, liguei o módulo "entra por um ouvido, sai pelo outro", e fiquei balançando a cabeça, concordando com tudo. A ideia de uma Terra esférica é de Pitágoras, remonta de quinhentos anos antes de Cristo e foi validada pelo grande filósofo Aristóteles alguns séculos depois. Resumidamente, a noção baseou-se em observações que ele fez sobre quais constelações podia ver no céu enquanto viajava cada vez mais longe do equador. O planeta é redondo por causa da gravidade. Não é uma esfera perfeita por causa da força centrífuga resultante da rotação em torno de seu eixo norte-sul. Essa força deforma a esfera em um elipsoide oblato. A Terra gira livre no espaço por causa da maneira como foi formada. Bom, vou parar por aqui antes que eu escreva alguma grande besteira.

Noves fora, a Terra é redonda sim, até que provem o contrário.

A primeira circum-navegação aérea em torno da Terra foi concluída em mil novecentos e vinte e quatro por quatro aviadores de uma equipe de oito homens do Serviço Aéreo do Exército dos Estados Unidos, o precursor da Força Aérea dos Estados Unidos. Para quem continua cético sobre o fato do nosso planeta ser redondo, existe muito material disponível sobre essa viagem, inclusive na internet. Mesmo assim, o iluminado guru do governo brasileiro afirmou em entrevista que, abre aspas, "Não estudei o assunto da terra plana. Só assisti a uns vídeos de experimentos que mostram a planicidade das superfícies aquáticas, e não consegui encontrar, até agora, nada que os refute", assim, na lata. Quando eu fui para a China, havia duas possibilidades de voo que eu podia pegar, um para a esquerda, ando por Los Angeles, e outro pela direita, com escala inicial em Paris. Escolhi o da direita, mas poderia ter ido pela esquerda, graças ao fato da Terra ser redonda. Enfim, redonda, plana ou quadrada, nosso planeta estava uma loucura em dois mil e vinte, quase setecentos mil mortos por coronavírus no final de julho. Redondo eu fiquei de tanto comer pastel, nem o guru kuru kuru, cloaca de urubu, questionaria a minha esfericidade. Duvidar que a Terra seja redonda não era tão grave assim, o problema era ficar falando para os outros, muita coragem. Ainda por cima sem máscara hospitalar, me contaminando com um papo furado sem pé nem cabeça.

Girando e transladando, a Terra seguia seu rumo, indiferente ao coronavírus, julho chegava ao fim, o inverno seco deixava o céu de São Carlos lindíssimo, um azul que me inspirava na minha recuperação. Eu me sentia melhor a cada dia, mais disposto, mais integrado com os arredores, mais dentro da sociedade. A boa novidade era voltar a pensar no futuro, a fazer planos, a querer reinventar a minha própria vida dali em diante. Foi duro, mas foi necessário, o tratamento contra o câncer se aproximava do fim, nos próximos cinco anos eu aria por exames regulares de acompanhamento, checagem disso e daquilo, mas estando saudável, o tempo seria muito bem aproveitado. Eu desejava muito, eu desejava tudo, eu queria tudo novo, eu queria ficar bom e não adoecer de novo, achava que a minha cota de doença estava quitada. No começo de tudo, pensei que retomar a minha vida antiga e o fio da meada, me deixaria feliz. Quando tudo completava um ano, porém, o ado já não me parecia mais tão interessante,

após a metamorfose, bom seria um rumo na vida com cheiro de novo, cheio de novas descobertas, daqueles que revelam novidades diariamente. Deus me dava de presente o meu futuro de volta. Nessa Terra redonda, que girava sem parar, para mim, o futuro era a sexta-feira da semana seguinte, dia sete de agosto no calendário. Dia da esperada consulta com o Doutor Luiz Agenor, meu oncologista.

EPÍLOGO!

Eu não morri. A morte me sondou bem de perto, pensei muito nela, sem medo, nem ressentimento, como quem se prepara para o pior se tudo desse errado. Não queria morrer e ser pego de surpresa, cheio de pecados na bagagem, felizmente, deu tudo certo, não foi fácil, ninguém disse que ia ser. Morrer seria muito ruim para mim, interromperia um lindo processo de renovação de valores e de êxtase com o futuro, algo me dizia que o câncer não me levaria para o túmulo, tive essa impressão desde o começo. Não raro, ei muito mal, sofri durante o duro tratamento, por alguma ironia, entretanto, a única vez em que, de fato, eu achei que fosse morrer, foi por causa da segunda pneumonia. Na noite do dia vinte e sete de abril eu estava bastante debilitado, a intensa falta de ar associada às fortes dores no corpo, à febre e aos outros sintomas, encontrou um organismo fragilizado pela quimioterapia, sem vontade de encarar mais uma batalha. Pior do que isso, porém, foi o fator psicológico, eu achei que estivesse com covid-19, tinha quase certeza, além disso, fazia parte do grupo de risco, após ar o final de semana piorando a cada hora, entreguei os pontos. A televisão só falava em coronavírus, nas vítimas da doença, na morte cruel, diziam que a impressão era de morrer afogado no seco. Eu tinha medo, no fundo, achava injusto ter pego covid-19, bem no final do tratamento, após a inevitável expectativa pela cura. Gradativamente, a indisposição deu lugar a sensações novas que eu nunca tinha experimentado antes, de um relaxamento que parecia fluidificar o meu corpo inteiro, alterando a minha percepção da realidade. Fiquei a maior parte do tempo em silêncio.

Deitado de barriga para cima na cama, completamente entregue e de olhos abertos, via o teto diante de mim cada vez mais distante, sumindo no breu do quarto, virando escuridão, irreversivelmente, enquanto lágrimas escorriam discretamente do meu rosto, eu nada podia fazer. Uma indescritível paz de espírito tomou conta de cada átomo do meu corpo e ocupou toda a minha mente, pensei nos meus pais, no meu irmão e em sua família, lamentei estar deixando os meus sobrinhos pequenos. Jamais esquecerei a tristeza que eu senti ao pensar no Caio e na Laura com a emoção de quem estava partindo. O silêncio absoluto revelava verdades que pertenciam a um presente encerrado, meu tempo se

esgotava, eu nada queria, de certa forma, havia uma gratidão latente e cautelosa pela vida que eu tive e que terminava. Minha existência jazia no frio da solidão, imaginei minha família ao meu lado, estar sozinho naquele momento não significava um abandono, mas eu sentia a falta deles. Vivenciar a morte estava sendo bem menos doloroso do que imaginei, era tudo muito tranquilo, meu coração batia, a necessidade de respirar deixava de ser um compromisso vital, eu não me movia, nem tinha a intenção de me mover. Minha vida era brasa que se extinguia, eu tinha plena consciência disso. Não tive visões de túnel, nem de luzes, nem de portões dourados, nem de anjos ou entes falecidos, nada disso, simplesmente fui apagando e adormecendo, despedindo-me dos meus dias no plano terreno, sentindo-me bem, sem fronteiras, nem contornos, na mais absoluta paz. Mergulhava em um sono diferente, com ares de ida sem volta. Havia uma leveza no ar que combinava com a coragem de partir sozinho, a noite, entretanto, acabou revelando um fim que não aconteceu, de manhã, pouco depois das oito, acordei para um dia de sol e céu azul, eu estava mal, mas vivo. Fiz anotações e agradeci a Deus. Só isso.

Se não morri, também não dormi, tenho quase certeza disso, nem desmaiei, naquela noite o que aconteceu comigo foi uma novidade que eu não entendia e nem sabia explicar. Foi como se eu só existisse no pensamento. Não houve confusão mental, longe disso, os sentidos é que estavam alterados, a sensação que eu tive foi de vaporizar dentro do quarto, a ponto de não sentir meu contato com a cama. Tenho uma teoria, com base na minha crença religiosa, eu acho que fui desconectado por um certo tempo e fiquei aos cuidados de uma equipe de algum hospital espírita. Ou pronto socorro espiritual, eu realmente acho. Exames revelariam um estrago enorme nos meus dois pulmões, somado à quimioterapia, ao dar entrada na Unidade de Pronto Atendimento da UNIMED, nem sei como sobrevivi. Esse foi sem dúvida o meu maior desafio desde a cirurgia, ou de toda a minha vida talvez. Na fase áurea do coronavírus, com picos da doença pipocando pelo mundo, a minha pneumonia com cara de covid-19 me deixou literalmente de cama por mais de quarenta e cinco dias. Eu mal e porcamente parava em pé, juntando as minhas forças, o máximo que dava era para circular lentamente dentro do apartamento, qualquer coisa além disso me derrubava. A falta de vitalidade me assustou bastante, eu estava vulnerável demais por conta do tratamento, o sentimento de mortalidade me fez questionar a experiência do câncer. Aumentou ainda mais a minha vontade de viver, de seguir adiante em direção a um futuro novinho em folha que me aguardava de braços abertos e

sorriso alvo de orelha a orelha.

Vivo eu continuei até o início de agosto, que começou com o aniversário do Caião. No dia dois a festinha dele foi por chamada de vídeo, que nem a da Laurinha, um mês antes. Meus sobrinhos pulavam de alegria, o festejo diferente, remoto, parecia não incomodar as crianças que, com aquela sabedoria que a gente perde ao longo da vida adulta, curtiam de montão. O bolo de laranja não tinha cobertura, a pedido do aniversariante, a velinha soltava pequenas faíscas, havia salgadinhos, a mesa estava toda arrumada, não faltou nada, muito menos empolgação. Em nenhum momento nós nos demos conta do isolamento, da distância meramente geográfica, estávamos unidos, mais do que nunca, pelo embalo da alegria do Caio, que completava oito anos de idade no ano mais desafiador de todos. Àquela altura eu já bebia uma latinha de cerveja por semana, aos domingos, o álcool em gel tinha, então, a companhia etílica da loira gelada. Quase um arsenal contra o coronavírus. Meu irmão sempre abria um espumante nas festinhas dos meus sobrinhos, os pequenos adoravam retirar a rolha junto com o pai. O estouro do champanhe fazia parte de uma tradição de família.

- Depois da pandemia, o único lugar onde não vão me encontrar é em casa!

Risonha, minha cunhada parecia se divertir tanto quanto as crianças, estava com o cabelo bem curto, aliás, cortado pelo meu irmão que, na quarentena, demonstrava vocações que eu desconhecia. Prometi para mim mesmo que manteria o tom daquele início de agosto no texto que ainda restava dessa trama centrada na minha luta contra o câncer. Sendo assim, apaguei o Capitão Pinico da face da Terra, se não havia nada de bom a acrescentar, que ficasse de fora. De mãos dadas com ele, foram embora também, o ministério de arlequins do terror, a galera verde oliva do brucutu enguiçado, a engenheira química com cara de pastel, o engenheiro civil, formado, sabichão dos sabichões, o desembargador sem pescoço, zebu das galáxias, e o gado empadinha de chicória com jiló, todos sem máscara hospitalar. Esse mundo contaminado, carrancudo e malassombrado já não cabia mais nessa história rumando ao final feliz.

Infelizes estavam os eleitores arrependidos "eu não pensei que ele fosse assim!", repetiam, indignados. Pensavam sim, só não raciocinaram na hora de votar, o deputado polêmico que virou presidente só mudou a escala de sua insensatez humana, ou melhor, desumana. Nesse mundo de provas e de expiações, ouvi dizer por aí que nem o Egito do antigo testamento teve duas pragas ao mesmo tempo. Aos trancos e barrancos, o Brasil tentava sobreviver ao Capitão e ao coronavírus, um mais mortal do que o outro, uma união que causou muita desgraça. A matemática era simples, ao trocar ciência por crendice, ao apostar todas as fichas do país em um tratamento via cloroquina, ao entrar em seguidos conflitos internacionais, ao promover aglomerações, ao ameaçar quem seguia o isolamento e o distanciamento social, ao se negar a usar máscara hospitalar em público, o atual presidente dava um contraexemplo que matava muita gente. Debitado de sua conta, o número de mortes aumentava como uma progressão faminta, o colapso na saúde assustava todo mundo, menos o Capitão, que de nada entendia. Enquanto eu me curava, o presidente brasileiro parecia ser uma bomba relógio prestes a explodir, sua delinquência não encontrava limites, não havia oposição, mesmo quem não votou nele, pagava a conta. A democracia estava em retrocesso, a os largos. O início de uma eclosão social ou uma quartelada eram questão de tempo. Não dava mais para o Capitão, ele simplesmente não sabia e nem conseguia governar no regime democrático. Agora sim, não falo mais sobre política.

O hiato profissional, forçado, foi muito bem-vindo na minha vida, reacendeu antigas paixões dos tempos em que eu ainda sonhava em ser piloto da Força Aérea. Ao final do tratamento eu parecia um jovem em busca do horizonte de trabalho, de um novo ganha-pão, só que daqueles que despertam o brilho no olhar. Eu estava motivado, querendo mudar tudo, não só o jeito de pensar, mas também, a forma de agir, o contexto do meu dia a dia, enfim, eu queria romper com boa parte do meu ado, que só me servia bem antes do câncer. O desafio de sobreviver ao câncer não terminava com o fim do tratamento, o compromisso com a alegria e o prazer de viver cada dia como se fosse o último, soavam como um pacto de sangue com a felicidade. Dentre as várias descobertas e revelações do período, o caminho da simplicidade era o que me parecia mais apropriado dali em diante, quanto menos complicado ou mais descomplicado, melhor. Sofisticação, só no humor, soberba nem pensar. Meu ambiente de trabalho era

muito afetado pela vaidade, arrogância e falta de humildade, gente importante sem importância nenhuma elitizavam tudo, na UFSCar, até bombom Sonho de Valsa vinha embrulhado em partitura de Strauss. O sonho de trabalhar numa das melhores federais do Brasil, depois do bisturi, da morfina, do ópio e dos quimioterápicos, simplesmente, perdeu a graça. Isso não era uma demonstração de ingratidão, tive todo o apoio dos meus colegas de trabalho, mas a luz que havia antes, se apagou. Nas asas da imaginação, o piloto da AFA que não aprendeu a pilotar cismou em ser investigador da polícia, não daria moleza para os infratores, deslizes não seriam perdoados. Queria mesmo era integrar um time de profissionais da categoria dos guardas municipais de Santos, pena que a minha saúde já não acompanhava mais o sonho.

Não sei qual dos dois era maior, ruptura ou rompimento, teria que medir com uma trena, mas seja lá qual for, foi o que aconteceu na minha linha do tempo. A princípio, chamei isso de descontinuidade, era o que eu achava no começo dessa minha saga contra o câncer. Só que o tempo ou, lições foram aprendidas e eu mudei de ideia, muito mais do que uma interrupção no meu ado, com pinta de irregularidade de percurso, abriu-se um verdadeiro cânion entre o antes e o depois da doença. Uma metamorfose gradual e definitiva tomou conta de mim. Nunca fui falante, depois da experiência do câncer, eu queria falar menos ainda. Sempre gostei de estrada, depois do câncer, eu queria viver na estrada, devorando quilômetros que nem pipoca. Do ado, igualzinho como era antes, eu só queria a pimenta, o resto tinha que ser diferente. Na época em que estudei em Vancouver, no Canadá, eu pedia pizza de pepperoni pelo telefone, e me entregavam pizza de queijo. Daí eu pedia de frango com espinafre, mas me entregavam de queijo. Não importava o sabor, ninguém me entendia pelo telefone e eu acabei me entupindo de pizza de queijo. Resolvi então só pedir pizza de queijo dali em diante, ei a me sentir muito bem e a viver melhor. Facilitava as coisas. Era isso, diz o dito popular que na vida, a gente dança conforme a música, saber escolher as batalhas do dia é sinal de sabedoria. Em minha nova concepção de vida, remar contra a maré me parecia desperdício demais, tanto de tempo quanto de energia, se a pizza era para ser de queijo, que fosse. O negócio era levar a vida como um trem da alegria. Em meio a gargalhadas e braçadas de felicidade.

Eis que chega o dia da minha consulta pós-quimioterapia, sete de agosto. Às cinco da tarde em ponto eu aguardava o meu horário sozinho na sala de espera. Nessa época do ano, os dias em São Carlos eram claros, de céu completamente azul, uma beleza que por si só já era prova suficiente da existência de Deus, na minha opinião. Por falar em Deus, mais do que fé, por Ele eu sentia uma gratidão tremenda enquanto os minutos me aproximavam da tão esperada consulta com o doutor Luiz Agenor, meu oncologista. A espera não foi longa, fui tomado por uma emoção muito forte quando a atendente me conduziu até a sala do jovem médico, última porta à esquerda, de um longo corredor. Meu coração batia no ritmo de samba-enredo campeão, meus exames haviam dado algumas observações, mas nada se referia a novos tumores, meu maior temor. Após um curto diálogo, diante do meu oncologista, sentado a uma distância segura de sua mesa, cumprindo os protocolos de cuidados em função da pandemia, ouvi a frase que ecoará para sempre em meu coração.

- Vida normal daqui por diante! Você não precisa mais fazer quimioterapia.

Não faltou nada, era tudo o que eu queria ouvir do meu médico, a combinação de vogais e de consoantes mais perfeita que já ou pelos meus ouvidos. Num e de mágica, me vi projetado para a minha primeira consulta com ele, naquela ocasião, eu estava bastante assustado, meio perdido, sem saber direito como proceder. A quimioterapia não estava nos meus planos, meu câncer era bem mais sério do que eu pensava, não me dava conta disso. Minha maior vitória de todas tinha sido aquela, ados quase dez meses me curando de um câncer de cólon, tendo de longe os dias mais difíceis da minha vida, todo o meu esforço era recompensado, eu chegava ao fim do tratamento. Começar do zero era o que mais me balançava enquanto eu me despedia do doutor Luiz, pronto para cair de novo na longa estrada da vida.

Curiosamente, para a minha total surpresa, naquele momento tão aguardado, eu estava feliz, irradiante, mas ao mesmo tempo, sereno, não pude evitar a lembrança dos que ficaram pelo caminho, das tantas outras histórias que não tiveram o mesmo final feliz da minha. Sinal dos novos tempos, minha

consistência espiritual era outra. Não havia lugar para a tristeza, nem para lamentos, mas em sinal de respeito, compartilhei a minha vitória, em pensamento, com os que aram pelo mesmo processo que eu ei, e não sobreviveram. Que eles tenham encontrado paz e alento ao lado de Deus. O sol estava baixo quando deixei o consultório, mais um dia chegava ao fim, outro viria logo em seguida, esse era o meu presente. Chorei compulsivamente no carro, de alegria, que transbordava pelas janelas trepidantes e ruidosas do Fusca. Família, amigos, colegas, alunos, vizinhos, a notícia da minha cura foi logo dividida com todos que acompanharam de perto a minha luta contra o câncer. Algumas conquistas fizeram a diferença na minha vida, nenhuma, porém, poderia ser comparada ao feito pessoal de aguentar com firmeza a cirurgia, as doze seções de quimioterapia, a lavagem intestinal, as duas pneumonias, as fortes dores, as indisposições, eu estava feliz comigo mesmo. Nas horas vagas disso tudo, tinha também a pandemia, o isolamento social, no dia oito de agosto, o Brasil atingia a triste marca de cem mil mortos por covid-19, número oficial, pouco confiável. Infelizmente, na verdade, devia ser bem mais do que isso a quantidade de vítimas. Estados Unidos e Brasil eram os países mais mortais do mundo, não tinha para ninguém, o terceiro colocado estava longe dos dois. O país mais rico do mundo, berço do povo mais orgulhoso de todos, tinha no pódio da pandemia a companhia da décima sexta economia mundial, o Brasil em frangalhos era o retrato de uma engrenagem enferrujada e inerte.

A felicidade que eu sentia, um ano após receber o diagnóstico do câncer, era só uma fração do que eu gostaria que ela fosse. Desde o início da pandemia, cem mil brasileiros morreram vítimas de covid-19, não havia clima para comemorações no dia oito de agosto de dois mil e vinte. Eu finalmente estava livre da quimioterapia, o desenvolvimento da vacina avançava rápido, o mundo todo corria atrás da vacinação contra o coronavírus, países da Europa previam o início da imunização para o final do ano. Por aqui, estávamos totalmente de fora dessa corrida, investindo milhões em tratamento precoce sem comprovação científica, despejando dinheiro no Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército para a produção de cloroquina. Enquanto eu me curava, o governo brasileiro zombava diariamente da vacinação, dizendo que a imunização podia "mudar o DNA" da pessoa, além disso, dizia haver, na vacina, um "controle por chip" por parte de comunistas e, se não bastasse isso, referia-se a "enzima do demônio" sobre o mecanismo de funcionamento do imunizante. O Brasil estava num mato sem cachorro, quem não negava a ciência e queria a vacina se via

preso dentro de casa sem nada poder fazer. Não havia nada de bom além do horizonte, só previsões de caos e de muito mais mortes. Eu havia vencido o câncer, uma dura batalha, voltava a pensar como cidadão, tentando ser otimista, se Deus é, de fato, brasileiro, ele a de olhar por nós nesse momento tão desesperador. Falei que não iria mais falar sobre política, mas estou falando, minhas promessas têm prazo de validade curtíssimo.

No final de dois mil e dezoito começavam as mudanças no funcionamento do meu intestino, o primeiro alerta não me preocupou nem um pouco. Foi só no primeiro semestre de dois mil e dezenove, sofrendo para cumprir a minha carga didática matinal, que a luz vermelha acendeu. A dificuldade para eliminar as fezes de manhã, cólicas e eventuais sangramentos me alertaram para o problema, sem me preocupar. Havia em mim um sentimento de que minha saúde geral era muito boa, nada de muito grave poderia estar acontecendo no meu organismo. Os meses seguintes mostrariam que eu estava errado. Em dezenove de junho eu fiz uma colonoscopia e o resultado assustou. No dia oito de agosto o susto se completou, eu descobria que tinha câncer. Não sei exatamente quanto tempo eu convivi com o tumor maligno, sei, porém, que no dia vinte e três de setembro, uma segunda-feira, eu fiquei livre dele, graças a uma cirurgia bem-sucedida. Terminava um drama e começava outro, duas semanas depois a biópsia da peça retirada do meu intestino revelou metástase, tive que me submeter ao tratamento oncológico através de quimioterapia. No dia cinco de novembro eu me submeti a mais uma cirurgia, para implantação de um cateter. De novembro até agosto do ano seguinte, houve uma gestação completa, nascia para o mundo um novo homem, dono de um novo horizonte, cheio de luz. Nesse ínterim, a vida continuou, do jeito que dava, teve Natal em Curitiba e viagem de carro, teve compras em Porto Ferreira e lombo de dourado em Cachoeira de Emas, teve também capítulo de livro técnico e quatro artigos científicos submetidos para revistas da engenharia química, três deles já aceitos. Entre seções de quimioterapia, dores excruciantes, náuseas, mal-estar, isso e aquilo, minha fé em dias melhores sempre me levou adiante, rumo ao amanhã.

Amanhã era o dia seguinte, simplesmente isso, meu futuro era esse, resignado, eu aceitava o fato, sem revolta nem indignação. O sol se elevava no horizonte enquanto mais um dia de batalha começava para mim, um seguido do outro. Se

por um lado, foi mais difícil do que eu imaginei, por outro, sempre fui auxiliado, por gente de carne e osso que nem eu e você, e por um exército do bem no plano espiritual. Chegará o dia em que encontrarei o sono eterno, por hora, porém, os dados continuam rolando, minha missão continua. Deve haver alguma razão para isso. Os médicos Daniel Luporini, Edilson Abrantes e Luiz Agenor, em três etapas, salvaram a minha vida, detectando e retirando o tumor, e minimizando as chances de que o câncer voltasse a me aporrinhar. Sei que tenho a predisposição genética para o desenvolvimento de tumores, sei também que não adianta eu ficar pensando no futuro e deixar de viver o presente, agora eu estou aqui, trocando ideia com você, amanhã, só Deus sabe. Viva a aleatoriedade da vida, viva os dias que virão, de céu bonito, em vários tons de azul. Se chegar à velhice, quero um trailer só para mim, aposentado, zanzarei pelo Brasil, descobrindo novidades, praias bonitas, chapadões, serras e cerrado. Enquanto isso, vou vivendo um dia de cada vez, sem botar a carroça na frente dos burros, fazendo o que me der na telha, ou quase isso. ei muito tempo tentando prever o amanhã, imaginando como ele seria, me projetando adiante. Eu era péssimo nisso, a decisão de uma noite gerava risos na manhã seguinte. Veio então o câncer, que não estava nos meus planos, e mudou tudo, tive que reaprender a encarar o futuro. Lições de vida, foram várias, o câncer me ensinou muita coisa, ajudou a melhorar a minha relação com o tempo, ainda tenho muito o que aprender, mas já dei os primeiros os.

Desde o final do ano ado, diariamente eu paro o que estiver fazendo para ver o pôr do sol da varanda do apartamento. Me relaxa, eu durmo melhor. Virou um hábito do câncer, o pôr do sol em São Carlos é espetacular, nessa época do ano, de inverno seco, vários tons de vermelho se impõem a um lilás exuberante, que pode tender a um azul, ao gosto do freguês, beleza pura, uma poesia recitada em cores. Pequenas descobertas, se é que se pode chamar tamanha beleza de algo pequeno, assumiram dimensões continentais na minha vida durante o tratamento, minha sensibilidade e percepção mudaram bastante. Ficar olhando para o sol enquanto ele sumia no horizonte era algo que preenchia uma lacuna na minha existência, afastado da sociedade. Diante dos meus olhos, parecia que o grande astro mergulhava no cerrado, um vizinho próximo ao prédio, como quem termina o dia feliz com a missão cumprida. Um espetáculo completo e suficiente, eu não fazia outra coisa a não ser olhar para ele. Enquanto eu me curava, Deus me enchia de mimos, o pôr do sol de São Carlos era o meu preferido, a dor não dava trégua, as náuseas continuavam, meu estado geral não

empolgava, mas os últimos raios de sol do dia me levavam para um lugar onde nada disso importava. Minha mente deixava tudo de lado e desconectava, o sofrimento ia embora porque sofrer, naquele momento, era pecado. ei a aguardar com alegria a chegada do entardecer, o frescor da noite era sinônimo de mais uma vitória, de mais um dia vencido, de mais um o dado em direção à cura.

Eu não venci sozinho, a batalha foi dura demais para mim, precisei de ajuda, como já disse aqui. Sou solteiro, minha mãe foi a cuidadora perfeita, graças a ela tive a melhor qualidade de vida possível, e ainda consegui engordar dez quilos. Meu pai garantiu o meu transporte, as várias idas e vindas durante o tratamento, e cuidou dos meus alunos de pós-graduação. Sempre que tive condições, eu trabalhei, muito antes da pandemia e do isolamento social, eu já aderia ao esquema do home office, minha produção não foi a mesma, mas eu nem liguei. O importante era o grau de normalidade que eu conseguia sempre que não havia sofrimento. O Flavio, a Camila e os meus sobrinhos, o Caio e a Laura, apesar de viverem em Curitiba, mantiveram comigo uma relação em que a distância era meramente geográfica. Através do pensamento positivo, recebi de tios, primos, demais parentes, amigos, colegas de trabalho e orientados, só para citar alguns, muita força, muito axé, o que era difícil ficava menos difícil com o apoio que eu recebia. Solidariedade não faltou comigo. Os enfermeiros e enfermeiras da Santa Casa me encheram de cuidados, carinho e afeto, dispenso descrever aqui o papel que eles tiveram nessa história, nem tudo se traduz em palavras. A medida em que a quimioterapia prosseguia, eu virava um veterano, orientando, dando dicas e tudo mais. Reei para vários dos meus colegas de tratamento a ótima dica da nutricionista Marcya, bochechos com chá de camomila tiravam o gosto de metal na boca depois das injeções, melhorando o paladar, que ficava bastante alterado. Eu, que sempre gostei de comer, penei com isso.

Se eu tivesse que elencar o maior vilão do período em que fiz quimioterapia, ele seria sem sombra de dúvida a dor inável na região do cateter, no ombro e no braço direito, justo o que eu uso para escrever. A dor foi como um freio de mão puxado, eu queria ir adiante, mas ela não me deixava, tive que me arrastar com essa dor, me entupindo de tramadol, um opioide sintético de ação central que fazia a minha mente girar girassóis pintados em papel de parede. Nem

sempre respeitei a dosagem prescrita, a tentação era muito grande, o prazer de tomar o medicamento era maior ainda, nesse aspecto específico, prefiro não entrar em detalhes. Tirei o remédio da cabeça assim que cessaram as injeções, não tenho queda para vícios. Mas que dava prazer, dava. Meu emocional ficava muito abalado com a dor, talvez o desafio de aguentar me levasse muito próximo do meu próprio limite, eu chorava à toa. O choro era do tipo rompante, que travava na garganta até explodir para fora, a tradução perfeita do meu sofrimento. Náuseas, febre, falta de paladar, refluxo, formigamentos, sensibilidade ao frio, soluço, nenhum outro efeito colateral me derrubava tanto quanto a dor na região das injeções. O ganho de peso foi a questão mais tranquila, bochechudo e barrigudo, eu tocaria o barco sem grandes problemas, não fossem as dores. Bom, para não dizer que ficar mais gordo não teve consequências, tudo o que era M no meu guarda-roupa teve que virar G ou GG. Comprei um pijama XGG e me diverti muito com a experiência. Na Santa Casa, o meu ganho de peso fazia enorme sucesso entre os pacientes. Logo que terminaram as injeções eu comecei a murchar e sigo murchando, já não sou mais XGG, talvez eu seja um G dependendo da boa vontade da fita métrica.

Livre do câncer, gradualmente de volta à normalidade, ou ao novo normal imposto pelo coronavírus, chegou o doze de agosto, dia que apareceu em um dos meus vários sonhos. Não levei esse fato muito à sério, mas fiquei na expectativa o dia todo. Logo após o almoço eu fui até a Santa Casa para a limpeza do cateter, tirando um inchaço inesperado durante o procedimento, nada demais aconteceu. Pouco antes das quatro da tarde eu ei em consulta com o meu cirurgião, o doutor Edilson Abrantes. Era a primeira vez que ele via uma imagem interna do meu intestino após a operação, ficou muito satisfeito. O brilho dos grampos usados para me remendar por dentro chamou a minha atenção. Que futuro brilhante era esse? Um brilho legítimo, dentro de mim. Acima de tudo, chegava a hora de retirar o cateter do meu organismo, conversamos por algum tempo sobre a pequena cirurgia e os trâmites do pré-operatório. Nenhuma novidade para mim, eu já sabia tudo, saí do consultório com um pedido para exames de sangue, agendei uma consulta com o anestesista, enfim, era a história dando voltas e se repetindo. Lembrei-me da viagem para Belém, dias antes de ar pela mesma cirurgia, só que para implantar o Porth-a-Cath. Fechava-se um ciclo, dez meses de convívio, doze seções de quimioterapia, meu tratamento chegava ao fim.

O filho do Doutor Marcos, o Otário, Ovário, Olávio ou Otávio, sei lá, morador do condomínio Parque Faber I, fazia todo o tipo de barulho que ele tinha direito, não respeitou, não teve compaixão, não ligou para nada. O Tavinho do papai não estava nem aí. Após a terceira reclamação por causa do barulho excessivo, ou a incluir em seu repertório, gestos obscenos coreografados com baixeza da grande sacada de sua casa. Vez ou outra, falava alto em inglês só para que todos soubessem o quanto ele era membro de uma elite privilegiada. Em plena pandemia, com pessoas presas dentro de casa, o som da guitarra maltratava impiedosamente. Adiantava chamar a polícia? Só se o Tavinho fosse negro e pobre, como ele não era nem uma coisa e nem a outra, a resposta era não, não adiantava. A lei só funciona para o mais fraco. Tentamos de tudo, mas nada funcionou. Talvez um dia a família abastada aprenda a conviver de forma civilizada com a vizinhança. A quimioterapia me deixava com muita dor de cabeça, o som alto e estridente me fez sofrer e chorar várias vezes. Não desejo absolutamente nada de ruim para esses infelizes, sinceramente, comportamentos como esses vêm se proliferando como os Gremlins daquele filme (de mesmo nome). Essa ultradireita que fazia arminha com a mão e que tocava guitarra mal e alto, não respeitava nada, nem vizinhos, nem pacientes oncológicos e nem Golden Retrievers. A empatia pelo próximo virou motivo de piada, saiu de moda para muitos, como dizem por aí, E DAÍ? E daí que os tempos mudam, o mundo dá muitas voltas, o egoísmo nunca triunfou na História, muito menos nessa que eu estou quase terminando de contar.

Reclamei de tudo o que eu achei que deveria reclamar, não medi palavras, meti a boca no trombone, sem dó nem piedade. Achei que fosse morrer por conta da pneumonia com toques de covid-19, não poupei comentários ácidos, já que não morri, agora era hora de me redimir e fazer justiça. Meus queridos orientados de pesquisa, Luana, Guilherme, Luan, Kaio e Mário estiveram ao meu lado, fisicamente, em orações ou no pensamento, desde o diagnóstico do câncer. Mesmo diante da pressão dos prazos, dos resultados, dos mais variados tipos de cobrança, deles eu só tive atenção, carinho e compreensão, o ponto final dessa história não poderia estar em melhor companhia. O mesmo digo dos meus colegas de departamento, do setor de saúde e de recursos humanos da UFSCar, que demonstraram humanidade antes de mais nada. Não foi fácil, teria sido bem mais difícil, porém, não fossem essas pessoas e outras tantas do meu trabalho,

que eu esqueci, por estar profundamente emocionado. Meu futuro era uma página totalmente em branco, sem pautas, talvez reservasse novidades profissionais, ou talvez não, minha vontade era de recomeçar em outro contexto. Estava nas mãos de Deus, pedi à Ele que me desse algum sinal, uma luz, sei lá, estou aguardando. Seja lá o que vier depois, sou outro, dos pés à cabeça, minha biografia deu uma guinada com o câncer, ainda que tudo fique como era antes, eu não sou mais o mesmo.

O espírito do guerreiro, que eu julgava não ter, nunca aceitou a derrota e lutou bravamente, chego ao final dessa história feliz comigo mesmo. Fui muito elogiado por meu comportamento, mesmo que não tivesse sido, eu me elogiaria. Não me revoltei, não culpei ninguém, nem me fiz de coitado, busquei, com serenidade, vencer as etapas que me levariam à cura. Fiz anotações, como um diário de bordo, desde o dia em que fui internado para a cirurgia no intestino. Logo que me recuperei, comecei a digitar essas linhas, além de me fazerem bem, eu queria compartilhar a minha experiência do câncer com outras pessoas. Segundo a Organização Mundial da Saúde, a OMS, o câncer é a segunda principal causa de morte no mundo todo, cerca de um em cada seis habitantes morre devido à doença. Os números são assustadores, todo ano morre o equivalente à população de um pequeno país, do tamanho de Portugal. Muitos têm contato com a doença, seja em primeira mão como paciente ou no convívio com um ente querido através de seu diagnóstico e tratamento. Eu pensei que jamais teria, mas tive. É verdade dizer que o câncer pode inspirar uma renovada empolgação pelo futuro, gratidão pela vida, desejo de alcançar novos objetivos e maior proximidade com as pessoas amadas. O paciente a a transformar a sua essência humana, a buscar em cada ato singelo da natureza a beleza da graça de estar vivo, a benção de Deus por poder estar em mais um dia, vencendo, ou melhor, conquistando as suas vinte e quatro horas.

Em São Carlos, as pessoas já diziam "antigamente" para os dias antes do coronovírus. Referindo-se àqueles tempos em que a gente ainda podia se abraçar, ficar junto, espirrar em público, comer fora, andar sem máscara, viajar, poucos se davam conta de como era bom. O mundo moderno compartilhou celulares e computadores em uma imensa rede, as distâncias sumiram, o ser humano mergulhou de cabeça em uma realidade virtual e se isolou. Veio então o

isolamento social, obrigatório, daí, deu saudade de estar com os outros, a vida coletiva que socializa o indivíduo tornou-se perigosa. Quando começou a pandemia por aqui, em março, eu já evitava aglomerações por conta da quimioterapia que fragilizava o meu sistema imunológico. Nunca gostei de ambientes com muita gente, sempre fui meio bicho do mato e avesso à contato físico, mas ei a sentir falta de multidões, de ver pessoas circulando, conversando, esbarrando em mim. Mundo estranho esse. Todos têm razão, todos estão certos, a culpa é do outro, o outro é que não sabe nada, ser de esquerda é que é bom, ou melhor, ser de direita é que é bom. Gente infalível, reis da cocada preta, daí, pinta um tal de coronavírus pelo caminho e ninguém sabe bem o que fazer. Bastou algo pequenininho, invisível, para derrubar a arrogância do homem com relação à vida. Que lições sejam aprendidas e eternizadas.

Contagem regressiva para o fim dessa história toda. Depois de muitas idas e vindas à Santa Casa de São Carlos e um monte de viagens no tempo, começavam os procedimentos para a retirada do meu cateter. Companheiro durante dez meses, o convívio com o meu vizinho de jugular nem sempre foi bom, mas seguramente, foi necessário. Ele cumpriu bem a sua função, chegava a hora de nos separarmos. Minha consulta com o anestesista foi na manhã do dia vinte e um de agosto, fazia sete graus quando saí de casa. A chuva fina e o céu cinzento, devido a uma frente fria arretada que atravessava o sudeste, contrastavam com a felicidade que eu sentia pela cirurgia que eu faria para a retirada do portocath. Era o último ato desse monólogo da vida, estrelado por mim, que você acompanhou até aqui. ar por consultas na época da pandemia era um verdadeiro exercício de paciência, na altura do campeonato, eu tinha muita. Minha única companhia na sala de espera da clínica de anestesia era uma jovem grávida e seu marido assustado. A cada termo assinado, álcool em gel nas mãos, checagem disso e daquilo, mesmo assim, foi rápido. Tudo certo para a cirurgia da segunda-feira, dia vinte e quatro de agosto, meu desquite amigável com o portocath já tinha data e horário, eu seria internado às oito da manhã e o procedimento seria às dez e meia. Praticamente onze meses depois que eu tirei o tumor, terminava meu último vínculo com a quimioterapia.

A segunda-feira amanheceu bem fria, logo depois que acordei, tomei um banho caprichado, me arrumei como se fosse à Missa e ei o celular para ler todas

as mensagens de apoio. Dessa vez eu fui dirigindo para o hospital vinte e quatro horas no maior alto astral, segui a rua XV de Novembro, virei à esquerda na Avenida São Carlos, depois à direita na rua Vinte e Oito de Setembro, achei vaga a umas duas quadras do hospital e estacionei. Por causa da pandemia, meu o ao grande prédio (quando digo "grande", lembre-se, eu sou do interior) foi pela Avenida São Carlos, um ritual danado, mais do que necessário devido às circunstâncias. De novo, graças ao meu plano de saúde conveniado junto à ADUFSCar, fiquei muito bem instalado em um confortável apartamento privativo no quarto andar, com bela vista, frigobar, televisão, escrivaninha, cama, poltrona e sofá. Mais uma vez eu me lembrava dos privilégios que eu tive durante o tratamento, foi duríssimo, mas poderia ter sido pior. E deu certo! A galera do plano espiritual e a do plano terreno mandaram muito bem, minha gratidão por essa turma só aumentava. Esse sentimento de proteção e de solidariedade fazem uma diferença danada para quem lida com uma doença grave. Às nove em ponto, duas enfermeiras foram checar meus sinais vitais.

- Pressão arterial 11:7! Que calmo! O senhor é muito zen!

Quem diria, eu zen! Pois é, eu realmente estava relaxado, depois do esfrega do câncer, dos mil e um sustos, de dois mil e vinte assombrando, das dores e do sofrimento, minha vida era outra, eu tinha que estar mais calmo. Vale dizer aqui que eu nunca tomei remédio para pressão, ela estava boa porque estava boa, sem artifícios. Talvez se tivessem medido a minha pressão depois que eu vesti o famigerado aventalzinho aberto atrás, os valores teriam sido outros. Realmente, lições foram aprendidas, muita água rolou desde que eu ei pela primeira cirurgia, a metamorfose foi grande, mas o tal do avental continuava sendo um desafio e tanto. Enfim, quem está na chuva é para se molhar, deixei o constrangimento de lado, continuei relaxado e às nove e meia eu fui levado na maca para aguardar a cirurgia na sala de recuperação.

Quando o cateter foi implantado em mim, no dia cinco de novembro ado, o pré-anestésico me derrubou e eu não me lembro de nada, saí do apartamento e voltei para ele com o ório no pescoço como se nada tivesse

acontecido. Dessa vez não, fiquei acordado até o derradeiro bate-papo com o anestesista, enquanto aguardava a minha vez na sala de recuperação, de novo, ao meu lado também aguardava uma senhora de idade e diante de min havia um garotinho de quatro anos. O menino chorava bastante, fiquei penalizado, ele recebia os cuidados de duas enfermeiras, mas não se acalmava. Vi o momento em que colocaram roupa nele, fazia frio, o choro era a tradução de um lamento doído pela falta da mãe. Felizmente, como tinha que ser, logo que a mãe entrou no recinto, toda equipada com aquelas roupas de hospital, a criança foi para os seus cuidados e imediatamente se acalmou. A cena me encheu de alegria, a reação do garotinho ao ver a mãe e ir para os braços dela foi digna de filme, daqueles que fazem suspirar. Era dez para as dez, o silêncio do menino de quatro anos foi um alívio, não pelo barulho que ele fazia, mas sim, pela paz que ele voltou a sentir. Mais uns minutinhos e eu fui levado para a sala de cirurgia, conversei rápido com o doutor Edilson, cumprimentei todos, por fim, veio o anestesista e a lembrança seguinte já foi na sala de recuperação, livre do cateter. O último elo que havia entre o meu organismo e a ala de quimioterapia da Santa Casa de São Carlos virava lixo hospitalar num dia frio de agosto.

Desde que retirei o portocath, minha vida melhorou exponencialmente, em dois tempos eu me recuperei da cirurgia e ela rapidamente virou ado. As limitações nos movimentos do pescoço durante os dez meses de convívio com o cateter ainda deixariam algumas sequelas, mas isso não era nada frente a benção divina por estar curado e bem. Minha rotina de médicos nos próximos dois anos seria, de agora em diante, de três em três meses, depois a frequência cairia até completar os cinco anos de acompanhamento. Problemas de memória e de déficit de concentração não me preocupavam, mas eu continuava a ter ambos. Não era raro esse tipo de sintoma em pacientes de quimioterapia, portanto, minha fé foi depositada no efeito positivo do tempo, vamos aguardar. No início disso tudo eu tinha planejado para o fim do meu tratamento uma comemoração daquelas que os ciganos fazem e que duram três dias e três noites, com churrasco, pimenta, cerveja e, principalmente, muita aglomeração. Eu não contava, naquela época, com a pandemia e o isolamento social, sendo assim, o momento tão espero da minha cura foi comemorado discretamente, mais em pensamento do que com festa. O importante foi aguentar tudo com resignação, ciente de que a vitória era chegar até o fim, eu venci o câncer, escrevi um ado do qual eu me orgulho e ganhei de volta o meu futuro. Com ele, novos planos, vida nova, com menos vícios morais e psicológicos, muito mais zen, com

muito mais axé.

Se você estiver vivendo dificuldades, não entre em desespero, nada vale mais do que a sua vida e a sua sanidade mental. Há momentos em que a gente gostaria de não mais existir, muita gente sofre mais do que eu e de que você nesse mundo, esteja ciente disso. A dor de uma doença, a falta de dinheiro para o básico, a fome, a miséria, a perda de um ente querido, lidar com o inesperado, o imprevisível, são provas que devemos aguentar, encontrando forças para isso, nos outros, em nós mesmos e em Deus. O câncer foi duro comigo, vencê-lo não foi bolinho, tudo junto com a pandemia, mas foi uma cruz que eu tive que carregar. Endireitou os meus pensamentos, amoleceu o meu coração e endureceu o meu couro. Mesmo quando eu xingo o governo e o guitarrista, noto uma certa ternura embutida na minha fúria. Na falta de um futuro para pensar, enquanto eu me tratava, descobri no meu ado um tesouro escondido, lá estava a felicidade que me fez querer mais, mais vida, mais viagens, mais pimenta, mais tudo. Lamento ter enchido você com parte da minha biografia nanica, desinteressante, mas compartilhar aquelas lembranças foi muito bom. Obrigado por ter me escutado. Por fim, abrir mão da vida e esperar a banda ar seria negar tudo de bom que eu vivi. Desistir é pecado, não importa a religião. Deus tem uma audição invejável, fale com ELE, use o coração nos diálogos, ELE responde, fique atento aos sinais. Há sempre com a gente uma falange de bons espíritos, para sintonizá-la, basta acertar o pensamento.

Deixe o paciente oncológico falar sobre o ado, é gostoso para ele, converse, escute com paciência. O câncer é uma pausa forçada na normalidade do dia a dia, lembranças fazem um bem danado para quem está na luta contra a doença. A mente busca incessantemente os bons momentos vividos na plenitude da saúde, eu revivi com enorme alegria cada anedota que eu contei aqui, compartilhá-las foi um mecanismo de defesa para manter o meu bom astral. Revisitando o ado, o paciente encontra forças e razão para continuar vivendo, ou melhor, para continuar querendo a vida acima de tudo, apesar da dor e do sofrimento. Altos e baixos fazem parte, os ciclos acontecem, independente da nossa vontade, depois da tempestade, a calmaria, acredite nisso. O que vale é mais um dia bom, mais um almoço gostoso, a gente encontra prazer nas pequenas coisas, na simplicidade sincera e autêntica, que enche de luz o coração. Confie cegamente,

sem questionamentos, no que Deus reserva para o futuro. Deixe o destino de cada um totalmente em suas mãos, ELE é o único que sabe o que faz. Aceite, siga em frente, contornando intempéries, esquivando-se com ginga, sem perder a pose, cada obstáculo vencido é uma vitória. Acima de tudo, esteja ao lado do paciente oncológico em todas as horas, seja sereno, seu equilíbrio emocional é muito importante para ele. A gente nunca sabe o que vem adiante. Eu vi a minha avó Olga partir, das pessoas que mais amei na vida, sei que foi bom para ela estar comigo na hora em que fechou os olhos para sempre. Esteja do lado da vida, até mesmo quando ela termina. Nada como uma consciência tranquila.

Antes de terminar, segundo a Bíblia, em A RECOMPENSA DO DISCÍPULO (II coríntios 4:16-18), "as aflições do momento presente são leves, comparadas com a grande e eterna glória que elas nos preparam. Não fixamos a nossa atenção nas coisas que estão à vista, mas naquelas que ainda se não veem. Pois o que se vê é ageiro, mas o que ainda se não vê é eterno". Dizia o apóstolo Paulo, "não desanime", seguro de si, mesmo quando seu corpo físico sofria os flagelos de uma perseguição debilitante. Ele tinha autoridade para dizer isso porque sabia com toda certeza que sua alma estava sendo renovada dia após dia pelo ministério do Espírito Santo. Nunca estamos sozinhos em nossas batalhas, há uma história que não se vê, que acontece em um mundo invisível, oculto nas entrelinhas da vida, que se conta sozinha, sussurrada em nossos ouvidos, tornando-se real quando se acredita nela. Nossa essência humana vai muito além da carne, da veste superficial, soma-se a ela a massa etérea envelopada pelos pensamentos, que também fica doente, mas que também se cura. O câncer me fez enxergar de perto, com um pouco mais de nitidez, essa história que se vive nas entrelinhas, sem se dar conta dela. Isso, por sua vez, fez com que eu me aproximasse de mim mesmo, do que eu também sou, mas que não vejo. Hoje eu tenho mais fé nessa existência duplicada, no exercício diário de sobrevivência que precisa ser estendido para o nosso interior. Ciente de que nada é por acaso, tudo acontece por alguma razão.

No mais, chego vivo e bem ao último parágrafo, fico por aqui. Eu sobrevivi ao câncer, revisitando o meu ado, tive a certeza de que fui feliz o suficiente para desejar a vida, a continuação dos meus dias, com expectativas de um futuro ainda melhor, de um homem renascido após a dura experiência. Guardo desse

período valiosas lições, a cada obstáculo superado algo mudava dentro de mim, a mão estendida que nunca me faltou encontrou a mão que eu estenderei com mais bondade e menos egoísmo aos que dela precisarem. A medida em que aumentava o meu vigor físico e a minha vitalidade, crescia em mim uma vontade incontida de me engajar em alguma atividade voltada ao câncer, no sentido de ajudar pacientes em tratamento quimioterápico. Cheguei a mencionar aqui algo sobre o transporte de doentes, quem sabe. Talvez optasse por um trabalho voluntário em algum abrigo da prefeitura, ou mesmo em lares de idosos, presídios, só sei que ao término do tratamento, eu tinha essa necessidade. Fui mais forte do que pensei e mais feliz do que imaginei, minha vida não parou, seguiu adiante, rumo a esse momento. Não queria ter sofrido, mas sofri, acho que paguei meus pecados, nunca duvidei da cura, sempre achei que ela chegaria, que eu seria abençoado com essa dádiva, mantive o pensamento positivo e fui recompensado. Não tenho dúvida de que a vontade de viver foi um santo remédio, nem sempre foi fácil, a mente é volúvel e instável por natureza, mas vale a pena batalhar para endireita-la. Era isso, termina aqui essa minha história, contei tudo o que eu queria. Já começa outra. Melhor do que chegar ao tão sonhado ponto final desse livro, foi ter você junto comigo até aqui. Vida que segue, adiante, até quando, só Deus sabe.

ENQUANTO ISSO

SINOPSE CONTRISTAÇÃO A PRIMEIRA LEMBRANÇA PRÓLOGO O SUSTO A CIRURGIA PRIMEIRO DIA DE QUIMIOTERAPIA MEU FUSCA ORIGINAL VIDA ANORMAL MEU DIA DE REI MEUS PECADOS NATAL EM CURITIBA VERÃO DE OITENTA E CINCO FELIZ ANO NOVO UMA PAUSA TORMENTA E CALMARIA MAGIC CARPET RIDE TUDO INDO

QUASE METADE MAIS DA METADE VETERANO CORONAVÍRUS JE NE REGRETTE RIEN MEU DESTINO ÚLTIMA SEÇÃO A SOMBRA DO CORONA TEMPO QUE NÃO A VENCENDO ETAPAS REMANDO EM ÁGUAS AGITADAS CONTAGEM REGRESSIVA TEMPOS DE ISOLAMENTO EPÍLOGO? EPÍLOGO!