PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
LILIANE PEREIRA BRAGA
De Oyó-Ilé a “Ilé-Yo”: Xangô e o patrimônio civilizatório nagô na identidade de um rapper afrodescendente
Mestrado em Psicologia Social
São Paulo 2007
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
LILIANE PEREIRA BRAGA
De Oyó-Ilé a “Ilé-Yo”: Xangô e o patrimônio civilizatório nagô na identidade de um rapper afrodescendente
Mestrado em Psicologia Social
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia Social, sob a orientação do Prof. Doutor Antonio da Costa Ciampa.
São Paulo 2007
Banca Examinadora
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Dedico este trabalho...
... A dona Jeraci. Mulher negra que criou seus filhos e filhas como catadora de papel – a exemplo de Carolina de Jesus – e que agora ajuda a criar os netos e as netas. Que a luta da avó pela sua emancipação inspire suas netas a buscarem suas próprias emancipações.
...Às crianças da Vila Primavera, periferia da zona leste paulistana – onde nasci e cresci e onde esta dissertação foi concebida, onde se estabeleceram meu avô mineiro e minha avó baiana, após algumas migrações. Onde meu pai e minha mãe constituíram família. O som da rua, das crianças brincando, alimentou esta pesquisa: crianças negras-brancas-pardas misturadas, crianças que moram em cortiços, em casas pequenas, médias e grandes, mas que têm a rua por quintal.
...Ao hip-hop, às hip-hoppers e aos hip-hoppers, ao candomblé e ao povo-desanto, que me ajudaram a conhecer quem sou, de onde eu sou e o caminho que quero seguir.
... Ao “Neguinho” e ao “Baiano”, amigos da Escola Estadual Beatriz do Rosário. Onde quer que estejam, que tenham buscado suas emancipações
...Ao Saulo, primo crescido, querido... A Isabelle, Isadora e Manoela, “priminhas” queridas. Pelas novas vidas. Vidas novas.
Agradeço Aos meus ancestrais À minha querida avó Tuta (Olídia), madrinha do primeiro batismo que recebi À minha família nuclear (Oswaldo e Maria Aparecida, Ligia e Luciana), pelo e material e emocional necessários à realização desta pesquisa À minha família estendida tios-avôs, tias-avós, tios e tias, primos e primas, amigos e amigas cujos nomes não estão aqui A Alexandre Linguanotes e Fernando Vieira (dizem que cunhado não é parente...rs) A Alain Garcia Artola, pela troca A Lina Gisela Artola Sola, Ramón García Repilado e a toda a família Artola Aos meninos do TNT, de Santiago de Cuba (Raulicer, Gerald, Hamlet) e ao coletivo “Zona Caliente” A Julio Moracen Naranjo, irmão cubano À minha amiga Cris Moscou, ao lado de quem tudo isto começou À Kátia Pavani Gomes, por todo o apoio A Ingrid Veronesi, Valéria Gomes, Fernanda Castello Branco, Cris Batista, Elcimar Pereira, Viviane Ferreira, Patty Marinho, Maria Tereza, minhas amigas A Alessandro Campos, colega do núcleo de pesquisa, amigo em todo lugar À Margot Videcoq – os ventos que a trouxeram e a levaram são os mesmos que nos mantêm próximas À Kátia Coelho que, a partir da PUC, tem me ajudado a continuar abrindo estradas À Miriam Benedeti e à Lenita Zampieri A Troy e à Sherie Brown, casal exemplar, irmãos na diáspora Ao Núcleo de Educação do Museu Afro Brasil e aos amigos que pude fazer lá Ao Professor Antonio da Costa Ciampa, pelo estímulo. Mas, principalmente, pelo conjunto de sua obra Aos colegas do Núcleo de Pesquisa em Identidade José Roberto Malufe À secretária do programa, Marlene, pelo socorro dentro e fora de hora À professora Josildeth Gomes Consorte e ao professor Juarez Xavier, por suas trajetórias. E por aceitarem compor a banca para avaliação desta pesquisa Ao Movimento Negro, pela formulação e aprovação da Lei 10.639. Que ela ajude a formar identidades com possibilidades emancipatórias em todo o território brasileiro Ao YOWLI Brasil e às jovens mulheres negras que o compõem, pelo desafio À Cidinha da Silva, pelos muitos aprendizados e pelas portas para o caminho da cura À Mãe Caçulinha (Olokum D´Oxum) e ao povo-de-santo da casa fundada por ela há cerca de 40 anos no bairro do Cangaíba (SP), o Abaçá Oxum Oxóssi. Ali fui acolhida em momentos de angústia, ali voltei para partilhar alegrias A Ian Kamau, poesia diaspórica À família de Ilícito, família nuclear e família estendida, de coração Por último, e principalmente, ao Ilícito. Pela pessoa que é, pela sua obra e pela disposição – não sem contra-sensos – em participar desta pesquisa Axé
RESUMO BRAGA, Liliane Pereira. De Oyó-Ilé a “Ilé-Yo”: Xangô e o patrimônio civilizatório nagô na identidade de um rapper afrodescendente. São Paulo, 213 p. (Dissertação de Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. A presente pesquisa procura compreender como o patrimônio civilizatório dos iorubás - conhecidos como nagôs no Brasil - possibilita que identidades afrodescendentes se constituam com um sentido emancipatório ao respeitarem a liberdade das diferenças com a valorização da igualdade social. O respeito à alteridade é valor fundamental entre os nagôs e o candomblé, um dos grandes depositários da sua tradição, dissemina esse valor principalmente por meio da mitologia iorubana. Retratada aqui como parte desse patrimônio civilizatório, tal mitologia traz na figura dos orixás a busca de uma sociedade em que haja espaço para a diversidade dos tipos humanos, de forma igualitária. Para compreender como a herança originária de um pedaço de África possibilita que identidades afrodescendentes se constituam com um sentido emancipatório, foi realizado um estudo de caso envolvendo a história de vida de Ilícito - um rapper que, em suas músicas, demonstra compartilhar muitos dos aspectos presentes no legado africano em questão. Entre eles, está a identificação com as figuras dos orixás, especialmente com Xangô. O enredo em torno desse orixá permite-nos explorar um pouco mais a questão do respeito à alteridade presente entre os nagôs. Como e teórico desta pesquisa, é utilizada a abordagem teóricometodológica de Antonio da Costa Ciampa, para quem identidade é o processo de metamorfose em busca da emancipação humana. Palavras-chaves: identidade; identidade afrodescendente; metamorfose humana; emancipação; nagôs; hip-hop; rap; negros; racismo; diáspora africana.
ABSTRACT BRAGA, Liliane Pereira. From the Oyó-Ilé to the “Ilé-Yo": Xangô and the civilizatory nagô patrimony in the identity of an afrodescendent rapper. São Paulo, 213 p. (Master's degree thesis). Pontifícia Universidade Católica at São Paulo. This research tried to understand how the civilizatory patrimony of the yorubas known as "nagôs" in Brazil – make it possible to constitute the afrodescendent identities with an emancipatory sense as they respect the freedom of the differences with the valorization of the social equality. The respect to diverseness is a fundamental value among the nagôs and the candomblé, one of the main receivers of its tradition, disseminates that value mainly through the yoruba mythology. This mythology is portrayed here as part of that civilizatory patrimony and encomes, in persona of the orixás, the search for a society in which there is space for the diversity of human types, in an equalitarian way. To understand how the original inheritance of a piece of Africa makes it possible to constitute the afrodescendent identities with a emancipatory sense, a case study was done which involves the life history of Ilícito - a rapper who demonstrates in his music to share many of the present aspects of the African legacy being studied. Among them, it is the identification with the persona of the orixás, especially with Xangô. The plot around that orixá allows us to explore a little more the subject of the respect to alteration among the nagôs. We used the theoretical-methodological approach of Antonio da Costa Ciampa as the theoretical for this research, in whose opinion identity is a metamorphosis process in search of human emancipation. Key words: identity; afrodescendent identity; human metamorphosis; emancipation; nagôs; hip-hop; rap; black; racism; African diaspora.
SUMÁRIO
1 Introdução: hip-hop, candomblé e a questão identitáriaErro! Indicador não definido. 2 Metodologia .............................................................. Erro! Indicador não definido. 2.1 A pertença identitária no Rap e o uso de história de vida como técnica de pesquisa ........................................................... Erro! Indicador não definido. 2.2 Identidade como metamorfose ......................... Erro! Indicador não definido. 2.3 A pesquisa qualitativa e a escolha pelo estudo de casoErro! Indicador não definido. 2.4 Do contato da pesquisadora com o tema ......... Erro! Indicador não definido. 3 Identidade ................................................................. Erro! Indicador não definido. 3.1 Identidade-metamorfose................................... Erro! Indicador não definido. 3.2 Identidade afrodescendente ............................. Erro! Indicador não definido. 4 Candomblé como herança dos patrimônios civilizatórios africanosErro! Indicador não definido. 4.1 Ilícito e o candomblé......................................... Erro! Indicador não definido. 4.2 O império nagô e o candomblé......................... Erro! Indicador não definido. 4.2.1 A oralidade, o gestual e a roda sagrada: transmissores de axé fora da esfera do terreiro ................................... Erro! Indicador não definido. 4.2.2 A importância dos mitos ........................ Erro! Indicador não definido. 4.2.2.1 O mito do ori: os seres humanos como autores do seu destinoErro! Indicador não definido. 4.3 Alteridade como valor do legado “nagô” ........... Erro! Indicador não definido. 5 Análise da entrevista da perspectiva étnica .............. Erro! Indicador não definido. 5.1 5.2 5.3 5.4 5.5 5.6
Etnicidade......................................................... Erro! Indicador não definido. O Brasil e a “cordialidade transracial”............... Erro! Indicador não definido. Mestiçagem e afrodescendência ...................... Erro! Indicador não definido. Pensando a questão da religiosidade............... Erro! Indicador não definido. Latinidade versus Negritude ............................. Erro! Indicador não definido. Índices e critérios de pertença étnica ............... Erro! Indicador não definido.
6 Análise da entrevista da perspectiva da pobreza...... Erro! Indicador não definido. 6.1 Pobreza versus qualidade de vida.................... Erro! Indicador não definido. 6.2 Pobreza versus racismo ................................... Erro! Indicador não definido. 7 Análise da entrevista da perspectiva da identidade .. Erro! Indicador não definido. 7.1 Por uma espiritualidade de muitas verdades.... Erro! Indicador não definido. 7.2 Hip-hop como mecanismo para conhecer as diferenças e chegar à afrodescendência ............................................. Erro! Indicador não definido. 7.3 Processos civilizatórios africanos e cultura brasileiraErro! Indicador não definido.
7.4 A questão racial brasileira é problema de todos os cidadãos brasileirosErro! Indicador não definido. 7.5 Identidade como processo................................ Erro! Indicador não definido. 7.6 Do nome ao futebol, do futebol ao rap, do rap à pluralidade musicalErro! Indicador não definido. 7.7 A nordestinidade como mais um elemento de identidadeErro! Indicador não definido. 7.8 Hip-hop como uma das expressões da “roda sagrada”Erro! Indicador não definido. 7.9 Ser ilícito em lugar de estar em um manicômio Erro! Indicador não definido. 7.10 A questão do negro e do branco ...................... Erro! Indicador não definido. 7.11 De como o candomblé apareceu nas entrevistasErro! Indicador não definido. 7.12 Xangô: de como a figura do orixá se “descola” do panteão para possibilitar afirmação de identidades.................................. Erro! Indicador não definido. 7.13 Dos mitos iorubanos para o contexto histórico da escravidãoErro! Indicador não definido. 7.14 O extermínio do iorubá no Brasil: a repulsa de Ilícito pela imposição de um padrão particular como padrão universal ......... Erro! Indicador não definido. 7.15 Chuta que é macumba: a diferença entre o homem livre, o doente e o inconsciente...................................................... Erro! Indicador não definido. 8 Considerações finais................................................. Erro! Indicador não definido. 9 Bibliografia ................................................................ Erro! Indicador não definido. 10 Anexos ...................................................................... Erro! Indicador não definido. Entrevista I ............................................ Erro! Indicador não definido. Entrevista II ........................................... Erro! Indicador não definido. Entrevista III .......................................... Erro! Indicador não definido.
... Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondia-me: - É pena você ser preta. (...) ... Um dia, um branco disse-me: - Se os pretos tivessem chegado ao mundo depois dos brancos, aí os brancos podiam protestar com razão. Mas, nem o branco nem o preto conhece a sua origem. O branco é que diz que é superior. Mas que superioridade apresenta o branco? Se o negro bebe pinga, o branco bebe. A enfermidade que atinge o preto, atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro também. A natureza não seleciona ninguem. (Carolina de Jesus. Trecho do livro “O quarto de despejo”)
...Murallas de negras y blancas manos protegen mi identidad (...) Arde en mi pecho, vive en mi techo, El derecho de andar con esta fusion a cuestas Que al final es la verdadera fuerza de mi respuesta al futuro (....) En este ajiaco1, somos todos condimientos del mismo sabor En cuestiones de raíces, somos mas parientes de sangre que de sol... (TNT, grupo de Santiago de Cuba. Trechos do rap “Raíces”)
1
Molho que se usa em várias partes do continente americano e cujo principal ingrediente é a pimenta. Como produto de arte culinária, é universal: é o cozido da Espanha, o “pot pourri” francês, o “minestrone” italiano... Caracteriza-se pelo uso das hortaliças próprias de cada território. Fernando Ortiz usou o termo como metáfora para a “síntese” das diferentes etnias que formam o povo cubano (Cf. ORTIZ, 1990).
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1 Introdução: hip-hop, candomblé e a questão identitária No dia 22 de janeiro de 2007, estive em um debate do qual participaram as rappers do filme “Antônia” e a diretora Tata Amaral. Eu tinha uma pergunta a fazer, que saiu mais ou menos assim: “Na matéria publicada na revista Raça1 deste mês, consta que Tata Amaral buscou em uma deusa grega o arquétipo de mulher jovem para as quatro personagens femininas do filme. Além de guerreira, essa deusa se relacionava livremente com os homens. Na mitologia africana a correspondente dela é Iansã. No filme, Quelinah e Leilah Moreno cantam um rap que fala de orixás2 e que cita Iansã. Levando-se em consideração que uma das facetas do racismo brasileiro é a desqualificação das culturas trazidas pelos africanos e a demonização do universo espiritual dos povos que vieram escravizados para o Brasil, eu queria saber de quem partiu a referência a orixás no filme”. Meu interesse era falar da herança positiva da valorização feminina presente no candomblé, uma vez que o filme encerra uma trilogia de Tata Amaral sobre a mulher. Mas fui cortada pelo moderador do debate e não pude fazer esta indagação. Quando comecei a aprender a respeito dos orixás, em um curso de pósgraduação3, me causou enorme alívio saber que as divindades existentes na costa ocidental da África (e que possivelmente algum ancestral meu tenha cultuado) não eram aquilo que eu ouvia dizer, que a “religião” da qual essas divindades fazem parte não correspondia às reduções e aos xingamentos
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Neusa Barbosa, Revista Raça, Ano 11, nº 106. Divindades do panteão iorubá, grupo étnico que vive na costa ocidental da África, e de cujo império Oyó foi o maior e mais poderoso dos reinos. A cidade de Oyó, ou Oyó-Ilé, foi a maior cidade dessa parte do continente africano e seu apogeu foi no século XVIII (Cf. Adékóyà, 1999, p. 30). 3 Especialização lato lensu em Jornalismo Cultural (Cogeae-Puc/SP), concluída em 2000. 2
2 ofensivos que eu já havia ouvido tanto contra pessoas de minha família como de familiares meus (afrodescendentes4) contra outras pessoas. Mas, em contrapartida, também me trouxe um questionamento: entender de onde vinha tal distorção em relação às religiões (e também às culturas) de matriz africana. Talvez Tata Amaral soubesse da existência de uma deusa africana análoga à deusa grega citada por ela na entrevista... Talvez sim, talvez não. Fiquei sem saber, porque ela não fez comentário algum a respeito. Um ou outro detalhe me levaram a pensar que a menção à Iansã no filme havia sido idéia da diretora (também autora do roteiro). Juntando a entrevista que li, o nome da personagem de Leilah (Bárbara, nome da santa do catolicismo relacionada com a orixá citada), a imagem de São Jorge-Ogum que aparece ao lado de um vaso com espadas-de-são-jorge, a pintura de uma mulher negra, aparentemente usando o adê (coroa) de Oxum – orixá do amor e da fecundidade –, na casa da personagem que engravida, pressupus que as referências ao universo afro-cultural-religioso no filme eram intencionais, no sentido de mostrar que o hip-hop valoriza essa herança, tanto por conviver com ela (mesmo que indiretamente, à medida em que os terreiros de candomblé estão espalhados pelas periferias das cidades do Brasil) como por combater o racismo em suas diferentes vertentes. O filme também traz a presença das religiões protestantes na Brasilândia, bairro periférico da zona norte de São Paulo: assim como candomblé, umbanda, catolicismo, as religiões protestantes também estão lá. E é relativo a esse ponto que a pergunta que eu fiz no debate vem se relacionar com a minha dissertação de mestrado, como será explicitado a seguir. 4
Segundo XAVIER (2000), o termo não está no dicionário. Porém, como prefixo, “afro” exige hífen somente na constituição de adjetivos pátrios. Não há hífen nos demais casos compostos (p. 5, nota de
3 Três das quatro rappers quiseram fazer considerações a respeito de minha pergunta. Primeiro, Quelinah, a qual pontuou que a referência aos orixás vinha depois da referência a Deus, mas que era, sim, uma forma de falar da cultura afro-brasileira. Em seguida, Leilah, que fez menção à minha curiosidade-não-revelada, ao dizer que o nome de sua personagem foi escolhido por ela mesma, mas quando o fez não sabia da relação da santa com a orixá do candomblé. Uma das duas cantoras afirmou que mencionar orixás naquele rap havia sido idéia delas, que escreveram todos os raps cantados no filme sem interferência da diretora. Em terceiro, Cindy, cuja fala foi mais ou menos assim: “eu cresci na periferia, no meio de candomblé, umbanda, esses folclores todos. Mas eu sou evangélica. Queria pontuar isso porque eu também participei do filme, mas sou evangélica. E a música (que o grupo cantou no filme) falou de orixá, mas falou de Deus em primeiro lugar. Porque, quer vocês queiram, quer não, ele é o criador”. Ferreira (2000) comenta que apresentar as culturas africanas como folclóricas, primitivas e inferiores - se comparadas às culturas branco-européias - integra o processo de construção e manutenção do racismo e que “o africano tem sido considerado até como construtor de cultura, mesmo vista como folclórica, porém dificilmente como construtor de civilização” (pp. 52-53). Por esse motivo, a maioria das pessoas deixaria de incluir, na construção de sua identidade, “matrizes culturais africanas que, historicamente, são referências participantes da cultura de todo brasileiro (Ibid., p. 73). Cindy afirma pertencer a uma religião de matriz cristão-européia que há séculos se coloca como “superior” às demais religiões do planeta. E que, do
rodapé).
4 século XVI aos dias atuais, inferioriza e demoniza as heranças culturais africanas, fazendo desse um pensamento presente na subjetividade de cidadãos praticantes e não-praticantes do protestantismo na Europa, na América e na própria África. Na pesquisa que segue, esse universo simbólico de matriz africana presente no candomblé é olhado para além dos limites da religiosidade. Por essa razão, cabe a pergunta: por que um afrodescendente (ou alguém que queira valorizar a ascendência africana) se referencia em deuses gregos para pensar em “arquétipos5” relacionados a jovens negras brasileiras, se existem os orixás, inquices6 e outras divindades africanas oriundas de elaborações culturais tão sofisticadas quanto as de gregos, nórdicos e romanos? Cindy é negra de pele preta. Negra Li talvez seja um pouco mais clara. Quelinah e Leilah Moreno têm pele parda, como a autora desta pesquisa. Leilah usa cabelos tingidos de loiro. Por informações apresentadas no filme e na série homônima a ele exibida na TV, elas – assim como esta pesquisadora – se reconhecem como negras. E cantam rap - apesar de Leilah ter declarado que, antes do filme, não era familiarizada com o estilo, e sim com o “primo” dele, o R&B, cujo canto é melódico e não falado. O movimento hip-hop, do qual o rap faz parte, nasceu nos guetos de Nova York, feito por jamaicanos, afro-norte-americanos e latinos, na década de 70. Música, dança e arte visual são suas expressões, surgidas das “block parties”, ou festas de quarteirão, em que diversão e protesto, reivindicações anti-racistas e pró-direitos-civis tinham lugar. 5
Carl G. Jung designou esse termo para denominar as “imagens primordiais”, instância psíquica composta de imagens muito antigas; conceito psicossomático que une instinto e imagens; representação simbólica coletiva e histórica que aguarda o momento de se expressar na personalidade. (Cf. José Jorge de Morais ZACHARIAS, 1998, p. 69)
5 Cerca de 30 anos depois, o rap que predomina nos Estados Unidos não é mais o rap de protesto e, sim, a música comercial que fala de e/ou feita por “mulheres-objeto” e nas quais impera a ostentação capitalista, temas sensuais, etc... O protesto, lá, ficou para alguns poucos resistentes7... No restante da América Latina, ao contrário, o rap continua sendo a expressão dos que se sentem excluídos do processo político-econômico-social. E o rap vem sendo grande aliado das conquistas dos movimentos negros contemporâneos nessa região do planeta, por fortalecer a auto-estima de jovens afrodescendentes, ao falar de uma história que foi diminuída, ocultada e, quando dita, foi, propositadamente, distorcida. De 1996 a 2004, foram realizadas no Brasil 49 pesquisas acadêmicas envolvendo hip-hop8. Dessas, cinco se relacionam com o tema “identidade” (uma delas, na Psicologia Social, fazendo “um estudo psicossocial a partir de depoimentos”, focalizando em uma rapper mulher). Das 49 pesquisas, há duas apenas que trazem como foco questões relacionadas à “cultura negra” e uma delas fala em “questões raciais” no título. No portal da Capes, não constam pesquisas que relacionem hip-hop (ou rap), identidade afrodescendente e o patrimônio nagô, temas relacionados na pesquisa que aqui é apresentada e na qual figura um estudo de caso a partir da história de vida de Ilícito – que não pertence a nenhuma “comunidade-terreiro”, mas freqüentou toques para orixás e já tiraram os búzios para ele.
6
Divindades do povo bantu, complexo étnico africano que será melhor referenciado mais adiante. Como exemplos temos nomes como os rappers Mos Def e Talib Kweli e o grupo Dead Prez. 8 Levantamento realizado no portal da Capes - a fundação do Ministério da Educação que investe no desenvolvimento de pós-graduação no Brasil - com resumos de teses e dissertações defendidas de 1987 a 2004. De 1987 a 1995 não há registros de pesquisas sobre o tema em questão. Endereço: http://www.capes.gov.br/ 7
6 Ilícito não é preto e nem a pele parda tem. A mãe descende de italianos, cabelo loiro, olhos claros. O pai descende de índios e de negros e, possivelmente, de brancos também. Na cultura hip-hop, Ilícito tem o seu “ilé”9: faz versos, cria as bases musicais a partir da “batida universal do bumbo-ecaixa10”, sobre as quais faz caber as métricas de suas rimas. Empunha o microfone em shows - para fazer o seu “canto-falado” - e em palestras, oficinas, debates, para falar de negritude, anti-racismo e valorização das raízes negras, brancas e indígenas brasileiras ao lado de pretos, brancos, indígenas, japoneses, ciganos, árabes, judeus e de quem mais vier... “Yo”, no hip-hop, é um “grito de guerra”. E de “Oyó-Ilé a ‘Ilé-Yo’” procura compreender um percurso cheio de embates, que possibilitou a um rapper reconhecer a afrodescendência na construção de sua identidade a partir de um conjunto de significados herdados do patrimônio civilizatório nagô11 na sociedade brasileira e em sua história de vida.
9
Do iorubá, “casa” (Nei LOPES, 2004, p. 337). Usando as palavras de Ilícito. 11 Ribeiro (1996) nos informa que a denominação pela qual os iorubás ficaram conhecidos no Brasil provém da forma adotada pela França para chamar essa parte da população da República do Benin, colônia sa de onde veio a maior parte dos iorubás para o País (p. 245). 10
7
2 Metodologia Sobre o uso do termo “metodologia”, cabe aqui uma explicação. Como nos diz Queiroz (1983), trata-se de um termo usado nas ciências sociais para designar a totalidade dos procedimentos de investigação e das técnicas utilizadas em uma pesquisa, assim como o conjunto de instrumentos empregados para se resolver um problema. Traz, também, como nos diz a autora, outra acepção, relacionada com a apreensão do sentido íntimo do que se pretende efetuar, assim como das operações a serem realizadas no decorrer do trabalho. Para essa finalidade, implica também a busca de um desvendamento do significado profundo existente nos objetivos da pesquisa e nos procedimentos dela, incluindo aí a própria linguagem utilizada. Seria, então, a reflexão sobre o(s) caminho(s) seguido(s) pelo cientista em seu trabalho orientado pela práxis (e não por normas ou valores ideais), pela ação do cientista sobre a realidade (Queiroz, 1983, pp. 11-12). Este capítulo apresenta a metodologia deste trabalho nas acepções do termo aqui mencionadas. O interesse em realizar esta pesquisa partiu da constatação de que, dos grupos de rap ou rappers que mencionam positivamente o universo cultural afro-religioso em suas letras, poucos pertencem a esse universo. Os questionamentos surgidos a partir dessa constatação culminaram no problema que, posteriormente, resultou nesta pesquisa: como o patrimônio nagô, presente, sobretudo, no candomblé, pode colaborar na construção de identidades positivamente afirmadas para os afrodescendentes?
8
2.1
A pertença identitária no rap e o uso de história de vida como técnica de pesquisa O rapper, enquanto representante da música rap (que integra o
movimento hip-hop) que surgiu como movimento cultural de resistência e contestação social e que tem possibilitado a revitalização de reivindicações do movimento negro contemporâneo12, costuma falar de sua pertença identitária nas letras. A questão racial é uma constante nessa pertença, ao lado do lugar de origem – que pode ser expresso pelo nome do bairro, da cidade, do estado e/ou do país. No geral, as letras de rap revelam conflitos diários enfrentados pelas camadas menos privilegiadas da população: repressão policial, a realidade das favelas e subúrbios, precariedade e ineficiência dos meios de transporte coletivo, racismo, etc13. Por vezes, aparece também a questão da opção religiosa. O Rap Gospel é um estilo de rap já consagrado. E, dos rappers que não são protestantes, há os que falam de Jesus, há os que falam dos orixás, há os que falam de ambos. Um grupo de rap em especial chamou minha atenção, por causa das letras que procuram retratar uma parte da história que não costumava ser contada nas escolas brasileiras14 - falando da contribuição de negros e índios para a nossa sociedade - e por ter entre os seus interlocutores, ao lado de rappers pretos e pardos, um MC de pele branca que se vê como afrodescendente e se apresenta como um contumaz ativista anti-racismo e um crítico debatedor das questões referentes à miscigenação no País.
12
Micael HERSCHMANN, 2000, p. 192. Ibid., p. 188. 14 A Lei nº 10639, de 2003, que altera a Lei de Diretrizes Básicas da Educação, deve mudar esse quadro, com a obrigatoriedade do Ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira no País. 13
9 O encontro com o rapper desta pesquisa possibilitou o trabalho com um estudo de caso. E o procedimento que se mostrou mais adequado para este trabalho foi a história de vida. Chamada de “técnica da liberdade” por Roger Bastide, essa técnica “revela muito mais a realidade, mesmo que sob a aparente desordem, do que entrevistas muito dirigidas ou questionários” (Bastide apud Queiroz, 1983, p. 148). Ao ouvir a história de vida desse rapper, procuramos compreender as metamorfoses presentes na formação de sua identidade – metamorfose que, segundo a teoria aqui adotada, está presente em todos os seres humanos. “O singular materializa o universal”, a exemplo da pesquisa de Ciampa (19872004), autor da referida teoria, que será melhor explicada no próximo capítulo. A partir da fala do rapper escolhido, são buscados os elementos que respondam à pergunta formulada nesta pesquisa. Pela opção da técnica de história de vida, o que se procura é dar importância tanto ao que o sujeito pesquisado relata quanto ao ritmo de seus pensamentos e de suas recordações. Nas palavras de Queiroz, esta é uma técnica apropriada para a coleta de narrativas longas, com encadeamento de ações, de acontecimentos, de circunstâncias, no tempo; em que também se pretende conhecer de maneira profunda o modo de pensar do informante e, por meio dele, sua visão de mundo (Queiroz, 1983, p. 48). Além disso, essa técnica assegura ao informante falar sua própria linguagem e abordar seus próprios problemas, em contraposição ao uso da técnica de questionário fechado (Ibid., p. 71).
2.2
Identidade como metamorfose
10 O método da abordagem da identidade como metamorfose é o materialismo histórico formulado por Karl Marx, na perspectiva do filósofo alemão Jürgen Habermas (Ciampa, 1987-2004, p. 149), cuja análise sobre a individuação advinda de sua Teoria da Sociedade, explicitada no próximo capítulo, distingue ação comunicativa (orientada para o entendimento) e ação estratégica (voltada para fins). “Estar localizado em um determinado paradigma implica ver o mundo a partir de uma ótica específica”, como já disseram Burrel & Morgan (1979, p. 20). A ótica adotada nesta pesquisa, na divisão estabelecida pelos autores, é a do paradigma humanista radical, que se distingue por “sua preocupação em desenvolver uma sociologia da mudança radical a partir de uma perspectiva subjetivista” (Ibid., p. 25) e comprometida com uma visão de sociedade que enfatiza a necessidade de superar ou transcender as limitações impostas pelos arranjos sociais atuais. É uma teoria social desenvolvida para a crítica ao status quo15 e que se preocupa em articular formas que nos permitam transcender os “grilhões espirituais” que nos amarram à ordem social atual e, dessa forma, desenvolver o seu pleno potencial (Ibid., pp. 25-26). É nesse contexto que se enquadra o conceito de identidade de Ciampa, definido no sintagma identidade-metamorfose-emancipação. A proposta desta pesquisa sobre como o patrimônio civilizatório nagô pode contribuir na construção de identidade positivamente afirmada para um afrodescendente é identificar fragmentos emancipatórios presentes na construção da identidade desse rapper que se relacionem com o seu contato com a cultura nagô e com o
15
No caso brasileiro, a questão volta-se para a auto-estima rebaixada existente entre a parcela negra da população, que auxilia na manutenção do status quo, à medida que, “a nível individual, oferece e a toda a mecânica sócio-econômica que garante privilégios (por parte dos brancos) e prejuízos (por parte dos negros)” (Ribeiro, 1998, p. 244).
11 candomblé de matriz iorubá, aqui visto não apenas como religião, mas como “universo simbólico” – na expressão de Berger & Luckman (2005).
2.3
A pesquisa qualitativa e a escolha pelo estudo de caso As identidades constituem a sociedade, ao mesmo tempo em que as
identidades são, cada uma, constituídas por ela (Ciampa, 1987-2004, p. 127). Com esta observação, justificamos também a escolha pelo estudo de caso. Um único sujeito terá sua identidade analisada nesta pesquisa, levando-se em consideração que “cada indivíduo encarna as relações sociais, configurando uma identidade pessoal. Uma história de vida. Um projeto de vida (...) Uma identidade concretiza uma política, dá corpo a uma ideologia” (Ibid.). A proposta presente nesta pesquisa é dialogar com uma Psicologia Social que parta da materialidade histórica produzida por e produtora de homens. Nas palavras de Silvia Lane, “é dentro do materialismo histórico e da lógica dialética que vamos encontrar os pressupostos epistemológicos para a reconstrução de um conhecimento que atenda à realidade social e ao cotidiano de cada indivíduo e que permita uma intervenção efetiva na rede de relações sociais que define cada indivíduo - objeto da Psicologia Social” (2004, pp. 1516). Esta é também uma “pesquisa-ação”, em que “pesquisador e pesquisado se apresentam enquanto subjetividades que se materializam nas relações desenvolvidas, e na qual os papéis se confundem e se alternam, ambos objetos de análises e, portanto, descritos empiricamente”. É por meio da pesquisa-ação que se chega à “compreensão do indivíduo como manifestação da totalidade social, ou seja, o Indivíduo concreto” (Ibid., p. 18). Está em foco a
12 natureza histórico-social do indivíduo, pela qual não se concebe conhecer o ser humano isolando-o ou fragmentando-o, como se existisse de si e por si. A proposta da Psicologia Social que nos propomos a realizar nesta pesquisa é a de procurar conhecer o indivíduo no conjunto de suas relações sociais, tanto naquilo que lhe é específico como naquilo em que ele é manifestação grupal e social (Ibid., p. 19). Trata-se, portanto, de um estudo qualitativo: não nos interessam os dados estatísticos. Interessa-nos analisar o processo de formação da identidade de um rapper. Esse processo nos permitirá um mergulho na forma de pensar de um ser humano que, nesse processo, singulariza o universal – como mencionado anteriormente.
2.4
Do contato da pesquisadora com o tema Achamos relevante trazer algumas informações sobre a experiência
desta pesquisadora referente ao tópico da presente pesquisa: o meu contato com o hip-hop começou nos bailes da adolescência, no bairro de periferia no qual nasci e cresci. Os “inhos” dançados no baile eram chamados de hiphop, a música “falada” (em inglês) era chamada de hip-hop. Diante dos meus olhos essa cultura foi crescendo, se “abrasileirando”... As pichações foram ando a elaborados grafites, as coreografias diversificavam-se... E o meu contato com o hip-hop se fez mais intenso a partir 2001, como espectadora de shows e eventos relacionados ao assunto e como co-proponente16 de um projeto para o Ministério da Cultura do Brasil com a finalidade de promover um
16
Ao lado da cientista social e educadora Cristiane Moscou.
13 intercâmbio entre hip-hop cubano17 e hip-hop brasileiro. Como jornalista, o contato com o tema havia se iniciado alguns anos antes, quando do meu trabalho na rádio paulista Musical FM (105,7) e, posteriormente, rádio on-line Musical MPB. O meu trabalho com jornalismo e hip-hop se estendeu a veículos impressos e a outros meios de comunicação eletrônicos18. O sujeito escolhido para a presente pesquisa (de pseudônimo Ilícito) foi alguém com quem o primeiro contato se fez a partir de janeiro de 2004, por ocasião do início do projeto de intercâmbio mencionado anteriormente. De lá para cá, o contato foi preservado. Shows de rap e de estilos musicais variados e eventos como lançamentos de livros e debates foram espaços de encontros casuais que permitiram a esta pesquisadora acompanhar um pouco das andanças e das idéias de Ilícito, que poderão ser melhor conhecidas por meio das entrevistas realizadas e apresentadas na íntegra ao fim desta dissertação. Entre os pontos que marcam a trajetória de Ilícito (presentes em suas letras e nas entrevistas), estão a questão étnica e a questão da pobreza no Brasil – considerando-se também que essas questões estão presentes entre a parcela da população da qual ele provém. Daí a existência de dois capítulos que analisam as entrevistas realizadas a partir de tais perspectivas.
17
O contato desta pesquisadora com o hip-hop cubano serviu de ponto de partida para a elaboração do problema desta pesquisa, pela constatação de que a presença da religiosidade afro-cubana em letras de rap naquele país provinha da vivência dos jovens cubanos junto a esse universo. O meu questionamento sobre essa questão no Brasil acabou por me trazer ao tema presente. 18 Revista Super Interessante; jornais Brasil de Fato e Estação Hip-hop; sites das revistas Caros Amigos e Revista Raiz entre os veículos brasileiros. Entre os estrangeiros, a revista alemã Matices e o site norteamericano Bet.com.
14
3 Identidade 3.1
Identidade-metamorfose Quando chegamos ao mundo, acontecem transformações por meio das
quais deixamos de ser criança e nos tornamos adultos. Com a progressiva socialização e individuação, nos formamos enquanto seres humanos: nascemos humanizáveis e só mediante a interação com o outro nos tornamos humanos. Enquanto seres históricos e sociais, a metamorfose é um processo inescapável de constituição da identidade social da pessoa humana. Assim, a identidade pessoal não pode ser entendida como fenômeno meramente individual, mas, acima de tudo, relacional. Ela se constitui a partir de nossas relações
sociais,
definindo,
conseqüentemente,
nossa
localização
na
sociedade. É o que nos diz a teoria de identidade de Ciampa (1987-2004). Um rapper de pele branca que improvisava versos em um evento outro dia dizia “não é questão de cor, é questão de alma”. Ele se referia, possivelmente, a fazer rap sendo branco – rap, sendo “música de preto”, teoricamente, seria feito com mais “autenticidade” por pretos. Ele poderia estar querendo dizer algo como “pra fazer rap, não precisa ser preto” ou “se eu sinto ‘na alma’ o que o preto sente, eu posso fazer rap também”. Por que tirar a cor da questão? Pretos pensam em sua cor. Quando? Brancos pensam? Mestiços pensam? Ciampa nos diz que nascemos animais humanizáveis. Socialização e individuação nos constituem enquanto humanos e nos permitem construir identidades. Desta perspectiva, não é a “alma” o que nos faz humanos, uma
15 vez que podemos entender “alma” como construída pela socialização e pela individuação.
Cada indivíduo encarna as relações sociais, configurando uma identidade pessoal. Uma história de vida. Um projeto de vida. Uma vida-que-nem-sempre-évivida, no emaranhado das relações sociais. Uma identidade concretiza uma política, dá corpo a uma ideologia. No seu conjunto, as identidades constituem a sociedade, ao mesmo tempo em que são constituídas, cada uma por ela. A questão da identidade, assim, deve ser vista não como questão apenas científica, nem meramente acadêmica: é sobretudo uma questão social, uma questão política. (Ciampa, 1987-2004, p. 127)
No processo de compreensão da identidade de Ilícito, sua história de vida é analisada partindo do pressuposto de que “a identidade, individual ou coletiva, é sempre a história da metamorfose em busca de emancipação que nos humanize” e que a concretização desse processo emancipatório se dá como ação política - explícita ou não (Ciampa, 2003). Essas idéias serão elucidadas para que seja possível prosseguir nesse intuito. À medida que o indivíduo vai adquirindo capacidade de agir e de falar, vai também ando a se reconhecer e a ser reconhecido pelo outro como alguém que pode afirmar ‘eu’ de si mesmo. Esse ‘eu’, constitutivo da identidade do indivíduo, forma-se e transforma-se constantemente. Identidade, na teoria desenvolvida por Ciampa (1987-2004) e adotada nesta pesquisa, é metamorfose; resultante tanto do processo de socialização como de individuação. A identidade pessoal, então, é um conceito inter-relacionado à
16 integração de todos os aspectos do desenvolvimento humano: a subjetividade do indivíduo é articulada com a objetividade da natureza, a normatividade da sociedade e a intersubjetividade da linguagem (Ciampa, 1987-2004). No pesquisar sobre identidade, a questão é de compreensão, de entendimento. “Precisamos captar os significados implícitos, considerar o jogo das aparências. A preocupação é com o que se oculta, fundamentalmente com o desvelamento do que se mostra velado” (Ibid.,, p. 139). Como expõe o autor,
Ao estudar a identidade de alguém, (...) estuda-se uma determinada formação material, na sua atividade, com sua consciência, não como três coisas justapostas [identidade, atividade e consciência], mas presença de todas em cada uma delas, como uma unidade. Com isto, o que se está querendo afirmar é a materialidade da identidade. (Ibid., p.151)
Uma identidade-metamorfose, portanto, seria a unidade da atividade, da consciência e da identidade – as três categorias científicas eleitas por Ciampa, com especial atenção para esta última (Ibid., p. 146 e p.151). Há também um “caráter transversal” nesta pesquisa. O sujeito que aqui é
estudado
e
que
está
sendo
abordado
pelo
viés
da
identidade
afrodescendente é um afrodescendente que é visto como branco. Ao estudarmos a sua identidade, no entanto, aparecem questões comuns à identidade de afrodescendentes em geral - preconceito, estigma, exclusão, como apontado por Ciampa (2003).
17 Ser rapper e ter tom de pele, cabelo e olhos que denotam ascendência européia trazem para Ilícito implicações relativas à ambigüidade vivida por ele ao transitar entre esses “dois mundos”, como poderá ser verificado na fala do próprio em outros capítulos desta dissertação.
É preciso, então, captar os
sentidos da metamorfose para o sujeito em questão para compreender a formação de sua identidade social. Reproduzo, aqui, a formulação de Ciampa (2003): quando pensamos na identidade de afrodescendentes, “a abolição da escravidão foi um momento importante de emancipação para seus ancestrais. Se numa sociedade escravocrata aparecia como utopia a libertação dos escravos, qual a utopia hoje em nossas sociedades para esses descendentes que, em sua maioria, se tornaram ‘homens livres e pobres’?”. A questão que se faz presente é ouvir as respostas de Ilícito. Outra questão é compreender como se dá a emancipação de um afrodescendente em contato com o patrimônio civilizatório nagô presente na cultura brasileira. A emancipação é o que dá sentido ético à metamorfose e pode ser impedida ou prejudicada pela violência, pela coerção, invertendo a metamorfose como desumanização (Ciampa, 2003). A possibilidade de desobstrução do caminho da emancipação é um dos aspectos que a história de vida de Ilícito nos ajuda a compreender, iluminada pela teoria de identidade de Ciampa – que dialoga estreitamente com o trabalho de dois outros autores: o alemão Jürgen Habermas (1929-) e o norte-americano George Herbert Mead (1864-1931). Para
Mead,
a
identidade
de
indivíduos
socializados
forma-se
simultaneamente no meio do entendimento lingüístico com outros e no meio do
18 entendimento “intra-subjetivo-histórico-vital” consigo mesmo (apud Habermas, 1990, p. 187).
En la conversación ocurren cambios definidos, de los que nadie tiene conciencia. Es necesaria la investigación de los hombres de ciência, para descubrir que tales procesos se han llevado a cabo. Esto rige también para otras fases de la organización humana.” (Mead, 1972, p.218)
O conceito meadiano de identidade delineada intersubjetivamente foi utilizado por Habermas para o desenvolvimento de sua Teoria da Ação Comunicativa, pela qual o autor apresenta as condições sociais que devem estar presentes na formação da identidade para que o indivíduo seja autônomo e emancipado. Na leitura de Habermas sobre o processo de individuação social na visão dos indivíduos atingidos por ele, exige-se dele tanto a autonomia como uma conduta consciente de vida (grifos do autor). Paralelamente à diferenciação de identidades singulares, o crescimento da autonomia pessoal é o que torna possível medir o que ele chama de “uma individuação crescente”. (Habermas, 1990, p. 219). No indivíduo, são múltiplas personagens que ora se conservam, ora se sucedem; ora coexistem, ora se alternam. Essas diferentes maneiras de se estruturar as personagens “indicam como que modos de produção da identidade (...); quando há predominância de uma, talvez se pudesse falar num modo dominante de produção” (Ciampa, 1987-2004, p. 156).
19 Uma identidade é a articulação de várias personagens, articulação de igualdades e diferenças, constituindo e constituída por uma história pessoal. “Identidade é história (...). Não há personagens fora de uma história, assim como não há história (ao menos história humana) sem personagens” (Ibid., p. 157). Como nos explicita Ciampa,
... personagens são momentos da identidade, degraus que se sucedem, círculos que se voltam sobre si em um movimento, ao mesmo tempo, de progressão e de regressão. (...) O que determina o desenvolvimento da identidade de alguém são as condições históricas, sociais, materiais dadas, incluídas as condições do próprio indivíduo. (Ibid., p. 198)
Na Teoria da Ação Comunicativa de Habermas, em que o agir está voltado para o entendimento (esfera que ele chama de “mundo da vida”), o falante pretende, enquanto ator, ser reconhecido simultaneamente como vontade autônoma e como ser individual. “No agir comunicativo, cada um reconhece a própria autonomia no outro” (Habermas, 1990, p. 224). Na visão dos indivíduos socializados, a dissolução dos mundos vitais tradicionais (“mundo da vida”) que se reflete na decomposição das cosmovisões religiosas, das ordens estratificadas de dominação e das instituições aglutinadoras de funções que ainda cunham a sociedade em seu todo na sociedade individualizada19, seria um processo que caminha junto com
19
Há traduções de textos de Habermas em que o termo usado é “individualizado” no lugar de “individuado”. Preferimos o uso de “individuação” à “individualização”, para distinguir o conceito trabalhado nesta pesquisa do uso “individualizar” relacionado a práticas egocêntricas. Na agem em questão, no entanto, procurou-se respeitar o termo utilizado na citação transcrita.
20 a perda de apoios convencionais e junto com a emancipação frente a dependências naturais (Ibid., pp. 227-228). Encarar a des-tradicionalização do mundo da vida (uma das formas como é descrito o processo de modernização social pela sociologia) como “conseqüência do destino” impõe aos indivíduos uma diferenciação de situações de vida multiplicadas e expectativas de comportamento conflitantes, sobrecarregando-os com novas realizações de coordenação e de integração. O número crescente de decisões que o indivíduo precisa tomar o sobrecarrega: qual é a escola a ser freqüentada? A profissão escolhida? (Ibid., p. 229).
Na sociedade individualizada o indivíduo precisa aprender (...) a se compreender a si mesmo como um centro de ação, como uma secretaria de planejamento em relação ao seu currículo, suas capacidades, parcerias, etc. A ‘sociedade’ precisa ser manipulada individualmente como uma variável sob condições de uma história de vida a ser construída. (Beck20 apud Habermas, 1990, pp. 229-230 )
Nas palavras de Habermas, “soltura social não é sinônimo de emancipação bem-sucedida”, mesmo que o indivíduo singular se torne cada vez mais uma “unidade de reprodução social”. A inclusão crescente num número cada vez maior de sistemas de funções não significa, para ele, um crescimento da autonomia – quando muito, significaria uma modificação no modo do controle social (Ibid., p. 230). À luz de Mead, Habermas propõe que, para produzir um novo tipo de ligação social entre os sujeitos individualizados, é necessário que os
21 participantes criem suas formas de vida integradas socialmente reconhecendose reciprocamente como sujeitos capazes de agir autonomamente, como sujeitos que são responsáveis pela continuidade de sua vida, assumida de maneira responsável. A referida “produção de um novo tipo de ligação social”, posterior ao processo de individuação que ocorre intersubjetivamente (e, portanto, impossível sem o outro) é o que proporcionará a emancipação do indivíduo em relação ao controle social.
Esse novo tipo de ligação social teria que ser pensado como realização própria dos indivíduos [grifos do autor]. Mead já mostrou, no entanto, que para isso não basta uma formação convencional de identidade (...). Este indivíduo, ao mesmo tempo liberado e só, não dispõe, para a elaboração racional de uma necessidade crescente de decisão, de nenhum critério a não ser as preferências próprias, reguladas pelo imperativo natural da auto-afirmação. Uma instância-eu destituída de todas as dimensões normativas e reduzida a realizações de adaptação cognitiva forma, é verdade, um complemento funcional aos subsistemas comandados por meios; não pode, porém, substituir as realizações próprias da integração social, que um mundo da vida racionalizado exige dos indivíduos. Somente uma identidade-eu pósconvencional [grifo nosso] poderia satisfazer a essas exigências. E esta somente pode formar-se no bojo de uma individuação progressiva. (Habermas, 1990, pp. 231-232)
Os princípios habermasianos de ética libertária e moral igualitária presentes no conceito de identidade-eu pós-convencional integram o conceito de agir comunicativo de Habermas (1990), em que “as suposições de autodeterminação e de auto-realização mantêm sentido intersubjetivo: quem 20
U. BECK, Sociedade de risco. A caminho de uma outra modernidade, Ffm., 2001, p. 216.
22 julga e age moralmente tem de poder esperar o assentimento de uma comunidade de comunicação ilimitada e quem se realiza numa história de vida assumida responsavelmente tem de poder esperar o reconhecimento dessa mesma comunidade”. Para o autor, “minha identidade própria, minha autocompreensão como um ser individuado que age autonomamente, só pode estabilizar-se se eu for reconhecido como pessoa e como esta pessoa”. Sob o agir estratégico (em que, para Habermas, a “ordem sistêmica” – e não o “mundo da vida” - determina a ação do indivíduo), o Selbst (si mesmo) da autodeterminação e da auto-realização cai fora das relações intersubjetivas. Quem age estrategicamente não se alimentaria mais, segundo ele, de um mundo da vida compartilhado intersubjetivamente; “como que fora do mundo, ele se vê perante o mundo objetivo e decide somente conforme preferências subjetivas”. Neste caso, o indivíduo não dependeria de um reconhecimento por parte de outros. A autonomia se transformaria em livre-arbítrio e a individuação do sujeito socializado no isolamento de um sujeito libertado, “que se possui a si mesmo”, como expõe Habermas (1990, pp. 226-227). Para o filósofo alemão, “os pressupostos pragmáticos gerais do agir comunicativo formam reservas semânticas das quais as sociedades históricas extraem, cada uma à sua maneira, idéias acerca do espírito, da alma, concepções de pessoa, conceitos de ação, consciência moral, etc., ando a articulá-las” (Ibid., p. 225). A preocupação de Habermas com o que ele chama de “colonização do mundo da vida” (em que a “ordem sistêmica” predomina na vida do indivíduo) integra a visão de sociedade presente nesta pesquisa, que enfatiza a necessidade de superar ou transcender as limitações impostas pelos arranjos sociais atuais. É mantendo o sentido intersubjetivo da autodeterminação e da
23 auto-realização, pelas trocas que se dão no “mundo da vida”, que essa superação – e, conseqüentemente, a formação de uma identidade-eu-pósconvencional – se faz possível. Neste trabalho, o sagrado é um importante aspecto entre os observados na história de vida de Ilícito. A sua identidade se constrói em constante diálogo com a visão de mundo do sagrado que carrega consigo. Para o psicólogo Ricardo Franklin Ferreira,
(...) a experiência psicológica encerra um caráter de construção permanente, em que as especificidades das experiências pessoais determinam a maneira como o indivíduo constrói suas referências de mundo, incluindo aquelas através das quais ele pode reconhecer-se como um determinado indivíduo – sua identidade. (Ferreira, 2000, pp. 45-46)
Como nos ensina Ferreira, a identidade não se reduz a uma representação do indivíduo a distingui-lo de outros. Em relação à identidade do afrodescendente em uma sociedade hegemônica de valores “brancos”, é preciso pensar que a identidade é uma referência em torno da qual a pessoa se constitui (Ibid., p. 47). Se adotarmos o pressuposto de Ferreira, de que as qualidades “negritude” e “africanidade” são aspectos constitutivos e essenciais das construções simbólicas de brasileiros e brasileiras, incluindo sua identidade, independente de seu aspecto físico, entendemos também que a visão deformada de qualidades que permitiu ao europeu colonizador legitimar a dominação e o genocídio históricos sobre povos não-brancos determina
24 dificuldades
para
o
desenvolvimento
da
identidade
dos
brasileiros
afrodescendentes (Ibid., p. 47).
3.2
Identidade afrodescendente A respeito de teorias psicológicas e da relação dialética entre identidade
subjetiva e atribuições sociais de identidade, Berger & Luckman (2005) apontam para uma questão que convém mencionar. Para eles, as teorias psicológicas fornecem a ligação teórica entre a identidade e o mundo, elas servem para “legitimar os procedimentos de conservação da identidade e da reparação da identidade estabelecidos na sociedade”. Assim, as teorias psicológicas poderiam ser adequadas ou inadequadas empiricamente, no que se refere ao seu valor como “esquemas interpretativos aplicáveis pelo perito ou pelo leigo a fenômenos empíricos da vida cotidiana”. Os autores entendem que uma das maneiras de dizer que uma determinada teoria psicológica é adequada consiste em dizer que ela “reflete a realidade psicológica que pretende explicar”.
Na medida em que as teorias psicológicas são elementos da definição social da realidade, sua capacidade de gerar a realidade é uma característica, de que participam com outras teorias legitimadoras. Contudo, seu poder realizador é particularmente grande, porque é atualizado por processos de formação de identidade emocionalmente carregados. Se uma teoria se torna socialmente estabelecida (isto é, torna-se geralmente reconhecida como uma interpretação adequada da realidade objetiva), tende forçosamente a se realizar nos fenômenos que pretende interpretar.
25 (Berger & Luckman, 2005, p. 234)
Dessa perspectiva, o grau de identificação de um sujeito com uma determinada psicologia varia com as condições de interiorização dessa psicologia por parte do sujeito; dependendo, segundo Berger & Luckman, de essa interiorização ter ocorrido durante a socialização primária ou a socialização secundária21. A questão da adequação das teorias psicológicas se faz presente nesta pesquisa para que seja levado em consideração que, ao falarmos de afrodescendência em países de colonização européia, falamos da necessidade de se pensar a negação da perspectiva negro-africana e da sua humanidade. A intenção deste subcapítulo é nos introduzir a essa perspectiva. Nos diversos ambientes freqüentados pelo brasileiro para a construção da identidade (seja ele doméstico, escolar, de trabalho ou de lazer), o único modelo disponível é o racista e capitalista, fundado na dupla opressão classe/cor22. Segundo Ribeiro,
Souza (1983)23 aponta para o fato de que a construção de identidades individuais nas sociedades em que vencedor é sinônimo de branco, a primeira regra para os afrodescendentes é a negação, o expurgo de qualquer mancha negra, a eliminação dos sinais de negritude. (SOUZA apud RIBEIRO, 2004, p. 155) 21
Socialização primária é definida pelos autores como a primeira socialização que o indivíduo experimenta na infância, em virtude da qual se torna membro da sociedade. Socialização secundária seria qualquer processo subseqüente que introduz um indivíduo já socializado em novos setores do mundo objetivo de sua sociedade (Berger & Luckman, 2005, p. 175). 22 Cf. Ronilda RIBEIRO, 2004, p. 155.
26
Esses “sinais” estão tanto nas características físicas (cabelo crespo, nariz largo, tom de pele preto ou pardo) quanto nas práticas culturais/religiosas das quais afrodescendentes procuram se afastar, distanciando-se da dor causada pelo preconceito herdado, de brinde, junto com a ascendência negra. A identidade afrodescendente24 traduz a luta do negro e seus descendentes para serem reconhecidos como gente25. Dentro dessa luta, está o reconhecimento de que o candomblé é parte significativa do legado cultural dos povos africanos que vieram escravizados para o Brasil e grande depositário do patrimônio civilizatório “importado” pelo nosso país com a vinda de milhões de pessoas escravizadas, que aqui chegaram durante cerca de 350 anos. A escravidão no Brasil fez com que as religiões de diferentes povos africanos entrassem em contato. A estratégia do colonizador de separar pessoas do mesmo grupo étnico a fim de evitar ou dificultar que se rebelassem contra os escravizadores e o sistema escravista levou à troca entre elementos culturais de diferentes povos fosse inevitável. Dessa maneira, sobrepamse e fundiram-se ritos de origem distinta num amálgama comum de que surgiram as religiões de matrizes africanas e afro-brasileiras – que recebem 23
Neusa SOUZA. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1983. 24 A opção, neste trabalho, pelo uso de “identidade afrodescendente” em lugar de “identidade negra” decorre do ponto de vista de que o termo afrodescendente “tem a dimensão política de um projeto de identidade para um ‘segmento excluído’ do bem-estar social e que reivindica o exercício da cidadania” (Xavier, 2000, p. 9) e também diz respeito ao reconhecimento de uma etnia de descendência africana (Cunha Jr. apud Xavier, 2000, p. 10), em detrimento do termo “negro” que “homogeneíza” uma população de culturas diversas ao referir-se a ela pelo termo criado por europeus para referir-se à sua cor de pele. 25 Segundo o dicionário Houaiss, uma das significações para o termo “gente” é “o gênero humano”. Da perspectiva dos portugueses, foi necessário criar uma palavra diferente para humanos considerados “pagãos” por não seguirem os dogmas do catolicismo cristão - também chamados de “gentios” (HOUAISS, 2006). “Gentílico” é a palavra da língua portuguesa para denominar o que é próprio de
27 nomes distintos em função do lugar e do modelo de suas práticas rituais. O candomblé prevalece na Bahia, no Rio de Janeiro e em São Paulo. O seu panteão é constituído por orixás, inquices e voduns – divindades dos povos iorubá, banto e jeje, respectivamente26. Permanências e transformações se deram e continuam a acontecer nas religiões que possuem matrizes africanas e nas religiões que se formaram de heranças africanas com outras matrizes, formando o conjunto das religiões afro-brasileiras. Uma religião que foi discriminada, numa tentativa de impedi-la de ser professada, deve compartilhar da premissa da liberdade religiosa – até mesmo pelos fatores históricos que condicionaram a sua existência no contexto brasileiro. A demonização das religiões em questão nega a liberdade religiosa. Como afirma Ciampa (2003), “um fundamentalista convicto [contrário, portanto, à liberdade religiosa] não deve concordar com a noção de metamorfose e emancipação; pelo menos para a sua identidade, que seria a encarnação da Verdade Absoluta, conseqüentemente eterna”. O pensamento de Ciampa se alinha ao de Habermas (1990), para quem uma identidade pós-convencional caminha no sentido oposto ao de aprisionamento a dogmas, uma vez que se caracteriza por uma autonomia crescente. Como um afrodescendente que luta pelo seu reconhecimento pode integrar criticamente a tradição de seu povo, de maneira a distinguir autonomia de heteronomia? Nesse sentido, seria possível dizer que metamorfose e
“gentio” e também para dizer-se do nome que designa a nação à qual se pertence. Outros povos possuem como “gentílicos” palavras que significam “ser humano”, como apontado mais adiante. 26 Cf. NÚCLEO DE EDUCAÇÃO DO MUSEU AFRO BRASIL, Roteiro de visita ao acervo, As religiões afro-brasileiras.
28 emancipação fazem parte dos significados partilhados pelo legado nagô presente no candomblé? Para responder a essas perguntas, a “tradição”, no que se refere aos afro-brasileiros, precisa ser olhada por autores que valorizam as raízes africanas da identidade afrodescendente na diáspora. Para a filosofia bantu, o sentido de pertencimento (the sense of belonging)27 constitui a essência da identidade (Mukuna, 2006, p. 159). Pertencer, assim, pode aqui ser entendido como fazer parte. “Bantu”, no uso de Mukuna, diz respeito ao “conjunto das tribos que ocupavam o vale do rio Congo e, particularmente, a área que definimos como ‘zona de interação cultural’, que se estende pelos dois lados da fronteira Congo-Angola” (Ibid., p. 23). No verbete relativo ao termo no “Novo Dicionário Banto do Brasil”, Nei Lopes (2004) define “banto” (com variação na grafia) como sendo “cada um dos membros da grande família etnolinguística à qual pertenciam, entre outros, os escravos no Brasil chamados angolas, congos, cabindas, benguelas, moçambiques, etc”. E que, hoje, englobariam “inúmeros idiomas falados na África Central, Centro-Ocidental, Austral e parte da África Oriental”. Os bantus e os sudaneses28 são os dois grandes grupos africanos que foram trazidos como escravos ao Brasil. E a distinção entre eles, para Mukuna, é uma distinção essencialmente lingüística, uma vez que estudos têm demonstrado o princípio da unidade cultural em termos de conceitos fundamentais da concepção de mundo pelos africanos. Dessa perspectiva, ser 27
No livro, a expressão em português usada é “o sentido de posse” e, entre aspas, aparece o original em inglês (“the sense of belonging”). Optei por traduzir o verbo “to belong” como “pertencer”, por entender o termo como sendo mais adequado ao intuito desta pesquisa, após assistir à palestra de Kazadi wa Mukuna na Semana da Consciência Negra da PUC-SP, em novembro de 2006, e notar que ele também o utiliza.
29 “bantu-descendente” ou “sudanês-descendente” implicaria visões de mundo muito próximas – com exceção de diferenças menores específicas dentro desses espaços29. Mukuna nos diz que, “para o africano, o ser é concebido como um elemento constitutivo do cosmo criado por sua comunidade, sua tribo, seu clã, sua família e pelo conjunto de normas e valores próprios dessas instituições”
30
. Em outras palavras, o “eu” africano só existe quando está
enquadrado por outros elementos (sociedade, mito, terra, etc.) que o completam. Da perspectiva harbemasiana, pode-se dizer que o “eu” se completa pela socialização e pela individuação, uma vez que, como aponta Mukuna, o conjunto de valores vitais da tradição do ser humano africano completa sua identidade31. Essa “visão de mundo” está presente na fala de Ilícito, sujeito desta pesquisa. E está presente no candomblé, que muitos brasileiros conhecem por “macumba” – denominação inicial da religiosidade afro-carioca que ganhou forte conotação pejorativa32. No Brasil e na América em geral, foram divulgadas idéias sobre a prática religiosa africana (e afro-brasileira) a partir de fatos resultantes de um processo de anomia, como cita Mourão no prefácio do livro de Mukuna (2006, pp.17-18). Entre tais idéias, está “o conceito de ‘feiticeiro’, que não é mais do que o desenvolvimento de uma faceta do adivinho ou do curandeiro tradicional, cujas práticas são uma resposta à situação de desestruturação social, quer estruturalmente, quer psicologicamente”. Esta é parte da idéia que muitos brasileiros têm e que os distancia de sua ancestralidade africana. Mesmo entre 28
Designação dada aos povos africanos localizados a oeste, entre o Saara e Camarões (Nei LOPES, 2004, p. 634). Mais detalhes em nota constante do capítulo 4. 29 Kazadi wa MUKUNA, 2006, pp. 17-18. 30 Ibid., p. 167 31 Ibid., p. 168.
30 os que valorizam as características físicas negro-africanas, uma grande parte quer distanciar-se de uma herança cultural tida como inferior e ligada a práticas “demoníacas”. Mourão alerta para a construção européia que também atuou na distorção em relação à cosmovisão dos povos africanos: o “surgimento” de um “conceito autônomo” de religião - quando, na verdade, para os africanos, a religião emerge “no plano do cotidiano em todos os momentos da vida”. A integração ser humano-natureza-sociedade constitui a prática do sagrado que se dá na vida cotidiana, segundo essa cosmovisão. Como nos alerta Ronilda Iyakemi Ribeiro, um olhar “africano” para essa história nos possibilita estabelecer um contraponto com o olhar europeu:
Construído com base na antropologia, na lingüística e na história oral, tal olhar [africano] questionou a imagem de uma África bárbara e inculta, sem história e sem ado, ao expor evidências do florescimento no continente africano de grandes civilizações e culturas, entre as quais a egípcia, a etíope, a ioruba e a haussa33. (Ribeiro, 2004, p. 149)
Se a ética é o que dá sentido à emancipação na teoria de Identidade formulada por Ciampa, para a “tradição” afrodescendente é ela que faz com que os direitos e as obrigações vinculados ao estatuto do indivíduo e da comunidade sejam rigorosamente observados. “O homem de axé, o muntu34 e congêneres têm de se manter nos limites de seus direitos e deveres. O descumprimento das obrigações afeta ao mesmo tempo o indivíduo e o grupo”
32
Termo usado para designar todas as práticas de magia popular e tradicional, com ou sem cerimônias religiosas (Ronilda RIBEIRO, 2004, p. 151). 33 Dessas, a escravidão trouxe para o Brasil as culturas iorubás e a haussa. 34 Termo multilinguístico banto cujo significado é “ser humano” (mu-ntu, plural ba-ntu). Nei LOPES, 2004, p. 459.
31 (Sodré, 1988, p. 88). Muntu, ser humano. Ao ter consciência de sua humanidade desde o étimo da palavra que o nomeia, esse “ser humano” aprende, desde muito cedo, que sem a comunidade ele não existe. O singular (indivíduo) depende do particular (comunidade) para ser universal (humano). O contexto histórico de ter sido feito escravo e ter sofrido com a desumanização por gerações seguidas fez nascer a luta pelo reconhecimento de sua identidade, a fim de manter a humanidade que lhe foi negada. No pós-abolição, a busca de manter uma identidade por parte de afrodescendentes nas Américas implicou a configuração de uma forma de ser e viver, de um convívio social que pode ser visto hoje nas periferias de diferentes partes do Brasil. Essa identidade a por uma sociabilidade voltada para o espaço da rua e de organizações associativas em torno do que costumamos ver como “atividades de lazer” (para os africanos, as relações entre “trabalho” e “lazer” teriam outras perspectivas, diferentes das dos europeus trazidas ao Brasil com a colonização). Sodré tece um quadro rememorativo da construção dessa identidade:
(...) Era esse o drama da identidade na diáspora que informava as festas, as danças, os cultos (...). Os lugares criados pelo ritmo eram pequenos espaços de ‘acerto’ ou transação, onde as classes e etnias subalternas tanto se esforçavam pela apropriação de alguma parte do produto social (empregos, pequenos negócios) como por uma apropriação polimorfa do espaço social (ou seja, aproveitar por mil ‘jeitinhos’ os interstícios das relações sociais de produção), em busca de um lugar próprio, de uma identidade, em suma. O carnaval, o futebol, as festas religiosas foram jogos que os negros tomaram aos portugueses para constituir lugares de identidade e transação social.
32 (Sodré, 1988, p. 139)
O padrão do “indivíduo total” é o que regula a ação na cosmovisão negra, segundo Sodré, quando, em seu livro, ele nos fala dos “lugares da alegria” para o negro-brasileiro. Trata-se da visão de um sujeito articulado consigo mesmo e com os outros em comunidade. “O que diz a esse sujeito a intuição de mundo negra é que o jogo, mesmo fora do poder, tem a força de promover uma certa integração da existência [grifo meu], a exemplo de uma instância, quase orgânica, da vida” (Ibid., p. 143). Nessa concepção, o “jogo” não é sinônimo de descompromisso, informalidade. O “jogo” é outra forma de relacionar-se35. O hip-hop, como expressão afrodescendente na diáspora, traz marcas da identidade que nos remete a esse “lugar da alegria”, “lugar do jogo” da sociabiliade negro-africana pontuada por Sodré. Na luta anti-racista que se manifesta com música, dança e artes visuais, o hip-hop tem se mostrado um importante meio de expressão desse movimento de configuração da identidade afrodescendente, tão complexo nas sociedades multirraciais – e nas quais a construção da identidade afrodescendente é fundamental, como nos aponta Xavier (2000, p. v). No artigo intitulado “Psicoterapia e religiões brasileiras de matriz africana”, Ronilda Iyakemi Ribeiro apresenta aspectos da noção de pessoa da perspectiva do grupo iorubá, que se relacionam com o mu-ntu apresentado por Sodré, quando fala dos conceitos iorubá de saúde, doença e cura: 35
Sodré chama de “jogo” o conceito “de uma outra perspectiva quanto à consciência de si, em que viver e morrer, alegria e dor não estão radicalmente separados, pois fazem parte de uma mesma força de engendramento, de um mesmo poder de realização (...). O culto aos deuses, com seus rituais – onde
33
(...) felicidade [para os iorubás] é ser forte. Ser forte é estar carregado de axé, a força vital. Ser forte é ser saudável e isso inclui estar bem fisicamente, ou seja, com saúde física, estar bem situado socialmente, dispor de recursos econômicos satisfatórios, bons amigos, boa vida conjugal...(...) Considerando que a saúde individual integra um sistema de trocas energéticas que inclui o entorno, qualquer desequilíbrio é desequilíbrio energético. (Ribeiro, 2005, p. 186)
Para restaurar esse equilíbrio, recorre-se à medicina tradicional iorubá que é indissociável da magia, definida como “arte e ciência de preservar ou restaurar a saúde através de recursos e forças naturais” (Dopamu apud Ribeiro, 2005, p. 187). O uso das folhas está entre esses recursos naturais, realizados por meio de rituais, uma vez que certas substâncias naturais possuem qualidades de significado oculto – para além de seus princípios ativos comprovados cientificamente (Ribeiro, 2005, p. 188). Completando a noção de pessoa, para os iorubás, supõe-se saudável o indivíduo que, de modo solidário, realiza o próprio destino (Ribeiro, 2005, p. 188). Os conceitos apresentados por Ronilda Ribeiro, assim como os de Sodré, falam de uma identidade negro-africana presente no candomblé, mote desta pesquisa para compreender a contribuição do legado nagô para a construção da identidade afrodescendente do rapper aqui analisado, que se traduz tanto em uma luta anti-racista como no que a autora chama de “reapropriação dos valores de origem”, ocasionada pela descoberta de um
vigora a linguagem não-conceitual dos gestos, imagens, movimentos corporais, cânticos – é a matriz de
34 grupo de pertença, que “permite ao indivíduo a reorganização perceptual que lhe possibilita perceber-se novo num mundo igualmente novo” (Ribeiro, 1998, pp. 242-243). Ao falar em identidade afrodescendente no Brasil (ou em outros países da diáspora africana), procurando o diálogo com a perspectiva de autores que olham da perspectiva negro-africana-brasileira, estamos trilhando o percurso que nos sugere a pergunta de Munanga: “qual seria o método científico capaz de captar o fenômeno da identidade em seus diversos aspectos e contextos e em sua dinâmica?” (1988, p. 146). A resposta a essa pergunta se dará durante esta pesquisa, que intenciona compreender o processo de construção de uma identidade afrodescendente “positivamente afirmada”36 – que se orgulhe tanto de suas características fenotípicas como das elaborações culturais legadas por essa ascendência.
todo jogo” (1988, p. 115-116). 36 Ferreira (2000) é quem traz o conceito em questão.
35
4 Candomblé como herança dos patrimônios civilizatórios africanos Para além das marcas espalhadas pela sociedade, as religiões de matrizes africanas são os grandes depositários dos patrimônios civilizatórios das culturas que vieram com as populações escravizadas de África para a América. No Brasil, a religião de matriz iorubana mais conhecida é o candomblé37. Para chegar até ela, faremos um breve percurso histórico. A história da civilização negra é a mais antiga do mundo. O homem, como o conhecemos hoje, surge na África, por volta de 150.000 a.C. O primeiro ser humano era, portanto, negro. Na Europa, o homem só foi aparecer por volta de 40.000 a.C, por motivo das correntes migratórias desde o centro sul da África em direção ao norte até o mar Mediterrâneo (Cf. Luz, 2000, p. 25). A partir de imigrações e trocas culturais, o processo histórico resultou na formação das diferentes sociedades existentes nas diversas partes do planeta.
Há estudiosos que afirmam que, no século XV, quando os portugueses chegaram à África, a civilização negra era muito mais avançada em valores e tecnologias que a européia. Entre esses avanços, estavam técnicas metalúrgicas de plantio, colheita, criação, comércio e navegação – os africanos teriam sido os primeiros a chegarem à América, antes mesmo dos europeus –, além de suas elaborações religiosas, filosóficas, científicas e estéticas, incluídas em um “processo civilizatório negro” que as ideologias racistas e colonialistas tentaram historicamente apagar (Ibid., p. 27).
37
Ribeiro (1996, p. 213), citando Bastide, utiliza os termos “candomblé” e “xangô” para as religiões de nações do grupo sudanês (iorubá e jeje) e “candomblé de caboclo” e “candomblé de angola” para as de nação bantu.
36
Ao advento da escravidão de africanos para o Novo Mundo opõe-se a luta de indivíduos escravizados e portadores de culturas que lhes permitiram resistir à escravidão. Dessa resistência resulta a afirmação existencial do homem negro, que implica na “continuidade transatlântica de seus princípios e valores transcendentes” – no Brasil, vivemos hoje esses princípios e valores que, mesmo tendo ado por transformações, não tiveram alterada em sua totalidade “a dinâmica constituinte de um mesmo continuum” (Ibid., p. 31). Foi com as instituições religiosas e da irradiação a partir delas para a sociedade brasileira que o legado de valores africanos permitiu essa continuidade transatlântica. Essa “trajetória” dialoga com a forma de organização social de diferentes grupos africanos, para os quais espiritualidade e vida cotidiana não se separam. Desse patrimônio herdamos práticas sociais e culturais que são “extensão” das práticas dos terreiros de candomblé38.
[No terreiro de candomblé] guardavam-se conteúdos patrimoniais valiosos (o axé, os princípios cósmicos, a ética dos ancestrais, mas também ensinamentos do xirê – os ritmos e as formas dramáticas que se desdobram ludicamente na sociedade abrangente. Na verdade, os grupos de festa, os cordões e blocos carnavalescos, os ranchos, sempre estiveram vinculados direta ou indiretamente (através dos músicos,
38
“Os cultos negros são, de fato, reservatórios de ritmos e jogos, suscetíveis de confluência para o âmbito da sociedade global. No rito nagô, a palavra xirê designa a ordem em que são entoadas nas festas as cantigas para os orixás, mas também a própria festividade, o ludismo. Os ritmos que chegam à sociedade global são, no fundo, expansões da atmosfera do xirê” (Sodré, 1988, p. 128).
37 compositores ou pessoas de influência) ao candomblé. (...) Cada casa de culto tinha o seu bloco carnavalesco. ... Em quintais diversos realizavam-se reuniões de jongo (canto e dança de linha mística com pontos e desafios, de onde se deriva o samba de partido alto), caxambu (forma semelhante ao jongo, mas com diferenças rítmicas) e rodas de samba39. (Sodré, 1988, p. 135)
A oralidade, a gestualidade, as “rodas sagradas”, presentes na capoeira, no jongo, nas rodas de samba... Um grande número de marcas sociais oriundas dos patrimônios civilizatórios presentes na identidade nacional brasileira provém das culturas iorubá, fon e bantu – às quais pertenciam os maiores contingentes populacionais de africanos vindos para o Brasil durante os cerca de 350 anos em que perduraram o tráfico negreiro para o país. Foi na dimensão da religiosidade que as identidades dessas diferentes culturas puderam se manter, mesmo que de forma reelaborada. Quando se fala em candomblé, fala-se em pelo menos sete nações40 diferentes. O reconhecimento das diferentes nações está associado ao idioma que é usado para referir-se ao nome das divindades, alimentos e roupas, cânticos rituais e histórias (Cf. Ribeiro, 1996, p. 213-214). Segundo Lody41 (apud Ribeiro, 1996), as nações foram organizadas em: Kêtu-nagô (idioma iorubá); Jexá ou Ijexá (iorubá); Jeje (fon); Angola (banto); Angola-Congo [ou 39
Foi a partir das festas da mãe-de-santo conhecida como Tia Ciata, no Rio de Janeiro, que o mercado fonográfico conhece o primeiro samba de que se tem registro, “Pelo telefone”, de Donga. Os músicos que participaram dessa gravação foram “recrutados” entre os freqüentadores da casa: Donga, João da Baiana, Pixinguinha, Sinhô, Caninha, Heitor dos Prazeres e outros (Sodré, 1988 p. 136-137). A gravação data do ano de 1916 (Para mais detalhes, ver Enciclopédia da música brasileira, 1998, p. 616). 40 O uso do termo “nação” faz alusão ao fato de que os terreiros, além de tentarem reproduzir os padrões africanos de culto, possuíam uma identidade grupal (étnica) como nos reinos da África (Cf. Gonçalves da Silva, 2005, p.65)
38 somente Angola] (banto); Caboclo (modelo afro-brasileiro) e Jeje-nagô (união dos elementos iorubá e fon)42. Vagner Gonçalves da Silva (2005) nos informa que os sudaneses43 (entre os quais se encontram os iorubás) foram os grupos que predominaram no século XIX no Brasil. Nesse período, as condições urbanas, históricas e sociais de perseguição aos cultos diminuem em relação ao período colonial – no qual os bantos é que haviam sido majoritários. Condições como essas favoreceram para que a estrutura religiosa dos povos de língua iorubá fornecesse
ao
candomblé
sua
infra-estrutura
de
organização,
mas
influenciadas pelas contribuições dos demais grupos étnicos. Desse processo teriam resultado os modelos jeje-nagô e o angola, reconhecidos por ele como os mais praticados no candomblé.
4.1
41
Ilícito e o candomblé
Raul LODY. candomblé . Religião e resistência cultural. São Paulo, Editora Ática, 1987. Apesar de considerar as religiões africanas como politeístas (diferente da perspectiva desta pesquisa) e de se referir genericamente por “religiões afro-brasileiras” às religiões de matriz africana e as formadas com referências culturais adquiridas no Brasil, a obra de Vagner Gonçalves da Silva (2005) é uma das referências indicadas para os que quiserem mais informações sobre o processo histórico das religiões formadas do encontro entre tradições africanas, catolicismo português e crenças indígenas brasileiras. 43 “Sudaneses” é a denominação dos grupos originários da África Ocidental e que viviam em territórios hoje denominados de Nigéria, Benin (ex-Daomé) e Togo. Incluem os povos iorubás ou nagôs (subdivididos em keto, ijexá, egbá, etc.), os jejes (ewe ou fon), os fanti-achantis e nações islamizadas como os haussás, tapas, peuls, fulas e mandingas. Por “bantos” são chamadas as populações com origem no atual Congo, Angola e Moçambique e incluem os povos angolas, caçanjes e bengalas, entre outros. Estima-se que o maior número de escravizados seja proveniente do grupo banto, que também foi o que exerceu maior influência sobre a cultura brasileira, deixando marcas na música, na língua, na culinária, etc. (Gonçalves da Silva, 2005, p. 27-28). Xavier (2000, p. 89) diz que os bantos “foram os povoadores do país, na fase mais ‘hard’ da escravidão brasileira”, trazidos ao Brasil durante os cerca de três séculos e meio em que aqui perdurou o tráfico negreiro. 42
39 Na fala do sujeito desta pesquisa, há a presença dos orixás – divindades do panteão ioruba – Oxóssi, Iansã, Oxum, Ogum e Xangô, além de referências a Zambi44 e a Pretos-Velhos45, ambos relacionados à matriz banto. Ilícito é um “simpatizante” do candomblé , alguém que não vive a sua espiritualidade dentro do terreiro, mas no universo da “percepção percebida” – ível pelo contato indireto com as tradições do candomblé . Ao recorrer aos búzios, ele teve contato com quais seriam, possivelmente, os seus orixás (em entrevista, foram mencionados Oxóssi e Iansã). Em suas letras, aparecem com mais freqüência nomes de orixás iorubanos do que nomes de divindades/entidades das práticas religiosas de influência banto. Em se tratando, nesta pesquisa, de compreender como o patrimônio nagô, presente no candomblé , ajuda na construção da identidade afrodescendente de Ilícito (e, a partir da teoria de identidade aqui utilizada, como ele pode ser emancipatório na construção dessa identidade), o recorte metodológico adotado neste capítulo propõe um aprofundamento em dois temas: -
O patrimônio civilizatório das culturas iorubás, por ser ela a cultura de onde provém a identidade kêtu/nagô que, no Brasil, é o “locus” dos orixás, dentre eles, Xangô, a divindade de maior referencial para o sujeito desta pesquisa.
-
A importância dos mitos para os iorubás ou nagôs – como ficaram conhecidos no Brasil os povos de uma parte da costa
44
Zambi é como ficou conhecida no Brasil a divindade suprema dos cultos de origem banto e da umbanda. O nome provém do termo multilinguístico banto “Nzambi”, que significa “Ser supremo”. Zambi corresponde à divindade iorubana Olorum e ao Deus católico (Lopes, 2004, p. 693). 45 Já os Pretos-Velhos são entidades da umbanda, tidos como “espíritos purificados de antigos escravos. São sempre exemplos de bondade, carinho e sabedoria, agindo como ancestrais protetores, aconselhando e oestando, quando necessário” (Lopes, 2004, p. 543).
40 ocidental da África – permitindo-nos conhecer um pouco mais da relação do sujeito desta pesquisa com aspectos desse patrimônio civilizatório.
4.2
O império nagô e o candomblé A presença de um panteão nagô em território brasileiro traduz uma
continuidade civilizatória transatlântica desde a África (Cf. Luz, 2000, p. 50). O império nagô46 tinha duas cidades que possuíam significado especial: Oyó, a capital política, e Ilé Ifé47, a cidade sagrada. Esta, a cidade mais antiga48. Na mesma região em que ela está situada, esteve também o povo nok – do qual escavações arqueológicas demonstraram haver ali resquícios de uma civilização que datam de 4 mil anos (Ibid, p. 106). Para Xavier (2000), a cultura desenvolvida pelo povo nok atesta o grau de desenvolvimento dessa civilização: vegetais e animais variados foram por eles domesticados e responsáveis por uma grande produção de cerâmica, ferro e esculturas, chegando até as esculturas de barro. O período clássico dessa cultura teria sido entre 900 a.C e os séculos II ou III da era atual. Ainda
46
Cada cidade do império nagô se caracteriza tradicionalmente pelo culto ao seu orixá patrono. Xangô é o patrono de Oyó; Oxóssi, de Ketu; Oxum, de Oshogbo; Odudua, de Ilé Ifé e assim por diante (Luz, 2000, p. 104). Segundo Adékoyà (1999), entre os reinos que se desenvolveram nas terras dos iorubás até 1800 estão Owu, Ijebu, Ijexá, Pópó, Egba, Sabé, Dassa, Egbado, Igbomina, Ekiti e Ondó. Esse autor informa ainda que houve povoamentos iorubanos que não se desenvolveram em reinos (1999, p. 28-40). 47 “Ilé-Ifé é considerada a cidade onde ocorreu a criação do mundo. (...) Talvez Ifé não seja o local de origem da humanidade, mas bem pode ser um desses locais, uma vez que as descobertas feitas em Asselar – esqueletos de tipo negróide de várias épocas, alguns extremamente antigos – sugerem que o foco original desse tipo humano foi precisamente entre o Saara e a África Meridional” (Ribeiro, 1996, p. 8485). 48 Segundo Hofbauer (2006), métodos de radiocarbono usados por arqueólogos fizeram com que estipulassem o seu surgimento entre os séculos IX e XII (“ou até antes”), por ser o período em que teriam registros da presença de povoado nessa região (p. 295). Para Adékoyà (1999), Ilé-Ifé era habitada possivelmente desde o século VI d.C, “a data mais antiga fornecida pelo método de radiocarbono a materiais recolhidos em escavações na cidade” (p. 20).
41 segundo esse autor, os artefatos encontrados na região datariam de antes de 3900 a.C e são associados a períodos remotos da história do Continente. A tecnologia do ferro, conhecida pelos nok, potencializou a produção de sua cultura. Com ela, eles puderam produzir lâminas, pontas de lanças e flechas, argolas para braços, pulsos e tornozelos (Ibid.). Os traços que ligam a cultura nok aos iorubás estariam relacionados à conexão existente entre a arte nok e a arte da fase clássica de Ifé, a cidade sagrada iorubana. Apesar de não haver estudos que assegurem essa relação, o “link” entre essas culturas é pressuposto pelos que confirmam a presença antiga de iorubanos49 em terras próximas às que haviam sido habitadas pelo povo nok, como o historiador Alberto da Costa e Silva, onde hoje se localiza a Nigéria (Ibid.). Segundo Bertaux50 (apud Xavier, 2000), o povo iorubá foi o único povo africano que espontaneamente se aglomerou em grandes cidades, realizadas em bases urbanas. Esse povo teria desenvolvido instituições políticas baseadas em laços familiares e ancestrais. Cada cidade e vilarejo dividia-se em várias linhagens familiares e os seus chefes eram escolhidos segundo a idade ou pela proximidade genealógica com um grande ancestral, fundador do primeiro núcleo familiar daquela árvore. Aos mais velhos cabiam as responsabilidades religiosas, judiciárias e as principais decisões políticas. Mas, como afirma Xavier, o núcleo central da organização dos iorubás é a família.
49
Alguns autores falam na presença de iorubanos na região desde o ano 1000 (ver XAVIER, 2000, p. 106). 50 P. BERTEAUX. África desde la prehistoria hasta los estados actuales. História Universal Siglo XXI, 3 ed., 1974.
42 Os laços familiares são as ligas que atam toda a estrutura política, social, cultural e religiosa desse povo. No seio da família e nas suas múltiplas inter-relações repousam os mecanismo que movem toda a engrenagem do complexo civilizatório iorubá. (Xavier, 2000, p. 107)
A sociedade iorubá é patriarcal e os laços de parentesco determinados por vínculo consangüíneo ou pelo casamento “constituem uma das maiores forças na vida tradicional africana e controlam as relações entre as pessoas da comunidade, determinando o comportamento de cada indivíduo em relação aos demais” (Ribeiro, 1996, p. 91). Mas, além de estender-se horizontalmente, o sistema de parentesco se estende também verticalmente, incluindo os falecidos e os ainda não nascidos. “É forte o senso de pertença histórica, o sentimento de posse de profundas raízes e o senso de sagrada obrigação para com os anteados51” (Ibid., p.92). As famílias são quase sempre numerosas e cada indivíduo é considerado parte de um todo e seu nascimento físico é apenas o primeiro o para o ingresso em sua comunidade, havendo rituais de integração ao grupo. “O ocorrido ao indivíduo ocorreu a seu grupo e o ocorrido ao grupo, ocorreu ao indivíduo: somos porque sou e por sermos sou” (Ibid., p. 92). Para Luz (2000), a ancianidade é o maior dos valores da “visão de mundo do sagrado” do povo iorubá. Dentre esses valores, o indivíduo deve valorizar-se a si próprio em primeiro lugar, à família, em segundo, mas a ancianidade prevaleceria na organização do espaço de poder em nível
43 comunitário. Luz (2000, p. 93), citando Fadipe52, diz que a ancianidade é “que assegura a continuidade, a estabilidade e permanência política e social das instituições, e que garante os valores de lealdade, cooperação, ajuda mútua e liderança”. Outro valor civilizatório iorubá: no plano institucional, o poder masculino e feminino se complementam e se entrelaçam. Essa complementaridade se verifica nos cultos dos diferentes grupos e sociedades secretas iorubás, entre elas, no culto aos ancestrais masculinos (Egunguns), em que, embora as mulheres não façam parte do segredo, elas possuem títulos e postos de grande significado; no culto Gelede53, dedicado aos ancestrais femininos e no culto aos orixás, em que, em geral, são as mulheres que têm o ao segredo; os homens, porém, possuem importante funções e títulos honoríficos (Cf. Luz, 2000, p. 40).
4.2.1 A oralidade, o gestual e a roda sagrada: transmissores de axé fora da esfera do terreiro
As contações de histórias, os antigos pregoeiros que ainda hoje am pelos bairros de periferia de São Paulo, a corporalidade do contato, que faz com que brasileiros sejam vistos como um povo caloroso, acolhedor, as rodas
51
“Serão os filhos que representarão os pais depois da morte, e os cultuarão como ancestrais, mantendo continuamente presente a sua existência” (Luz, 2000, p. 40). 52 Apud Vivaldo da Costa LIMA. A família de santo nos candomblés jeje-nagôs da Bahia: um estudo de relações intergrupais. Salvador-BA: UFBA. (Tese de MS em Ciências Sociais), 1977, 208 p. 53 “A Sociedade Gelede, integrada por homens e mulheres, cultua as Iya-agba, também chamadas Yami, que simbolizam aspectos coletivos do poder ancestral feminino. Dirigidas pelas erelu, mulheres detentoras dos segredos e poderes de Iyami, (...) o culto tem por finalidade apaziguar seu furor; propiciar os poderes místicos femininos; favorecer a fertilidade e a fecundidade e reiterar normas sociais de conduta. Seu festival é realizado anualmente, por ocasião da colheita do inhame, e dura sete dias. No Brasil, a festa de Gelede, realizada no candomblé do Engenho Velho, era comemorada no dia 8 de dezembro, em Boa Viagem (Bahia), sob a condução da ialorixá Maria Júlia Figueiredo, que recebia o nobre título de Iyalode-erelu (Ribeiro, 1996, p. 159).
44 de samba, os pagodes de mesa... Esses são alguns exemplos de como a oralidade, o gestual e a roda marcam a identidade do povo brasileiro. Para a historiadora Antonieta Antonacci (2002, p. 176), trata-se de corpos que trazem “memória” e, nela, saberes, crenças e costumes. “Entre nós, tais corpos e culturas refizeram-se, colorindo, musicalizando, encantando nosso cotidiano”, por exemplo, com os chamados “cantos-falados” (embolada, repente, moda-deviola, ladainha e outras cantorias) que, vindo aos dias de hoje, chegam ao rap – conexão que é feita por Ilícito, como será visto mais adiante. O som e a fala, para os iorubás, se constituem em “expressões da força individualizada nos seres do aiyê [terra]”. Todos os seres possuem força, axé, e falam e escutam – incluindo-se aí dos elementos minerais aos vegetais, dos animais aos seres humanos (Luz, 2000, p. 454). Sodré também nos fala a esse respeito:
... a transmissão de axé implica na comunicação de um cosmos que já inclui ado e futuro. Nesse processo, a palavra pronunciada é muito importante, porque pressupõe hálito – logo, vida e história do emissor. Não têm aí vigência, no entanto, mecanismos de lógica analítica ou da razão instrumental, pois a transmissão se opera pelo deslocamento espacial de um conjunto simbólico – gestos, danças, gritos, palavras – em que o corpo do indivíduo tem papel fundamental. A língua deixa de ser regida pelo sentido finalístico (isto é, por seu valor de troca semântico), para atingir a esfera própria do símbolo (a instauração ou a recriação de uma ordem) e tornar-se veículo condutor de força. (1988, p. 96)
45 Culturas tradicionais do mundo todo podem apresentar esses mesmos elementos. O que se apresenta, aqui, é a necessidade de apontar que valores estão por trás desses elementos no patrimônio civilizatório dos nagôs. Como nos informa Xavier (2000), a oralidade “tem como função a comunicação cotidiana, a formação da identidade, a preservação do saber ancestral via transmissão oral, a formação da herança cultural, a constituição da memória coletiva daquela tradição e a transmissão do patrimônio cultural às gerações futuras” (p. 108). A importância da oralidade está em uma forma peculiar de sociabilidade, que preserva a importância do contato pessoal com os mais velhos como forma de aprendizado a respeito da vida. Essa sociabilidade própria do grupo humano em questão (os nagôs) traduz-se no candomblé na questão da iniciação, quando pensamos que, no terreiro, os ensinamentos provêm de alguém mais velho, que por mais tempo recebeu outros ensinamentos de alguém também mais velho que ele, e assim sucessivamente. Entre os iorubás, a tradição também está vinculada à dinamicidade de sua cosmologia, “a propulsão de todo o sistema cosmográfico, tanto nas dimensões religiosas quanto na vida social do povo iorubá”. A palavra, entre esse grupo, mobilizou o movimento perpétuo da criação cósmica: ela é um dos agentes de renovação da existência (Ibid., p. 113-114). A sociabilidade por meio da cultura oral e gestual, em que a dança e o movimento conformam símbolos importantes na comunicação e no contato com o sagrado, está entre as particularidades presentes em diferentes povos africanos que foram vistas como inferiores pelos europeus e usadas entre os argumentos usados para justificar a escravidão.
46 A “roda sagrada” marca muito das expressões coletivas brasileiras. Futebol, samba e capoeira são alguns dos exemplos. A dramatização temporalespacial na “cultura negra”, o ritmo do universo, o ciclo vital, o ciclo dos nascimentos, morte, renascimentos, a agem do dia e das noites... Tudo isso é representado pela roda. Como aprofundamento, peguemos o exemplo da capoeira, que se caracteriza por “imprimir uma cadência, um ritmo de envolvimento, procurando criar o vazio para o adversário para então arrematar sobre ele o golpe inusitado. O vazio está onde não se espera” (Luz, 2000, p. 489-490). A “roda” também é o lugar onde os filhos-de-santo e os orixás incorporados dançam no xirê – onde, portanto, se encontram unidos todos esses elementos: a oralidade (pelas cantigas) e as danças e sistemas gestuais, combinados com códigos e repertórios de cores, vestuário, jóias, emblemas... (Ibid., p. 458).
4.2.2 A importância dos mitos
Campbell considera que os mitos “são pistas para as potencialidades espirituais da vida humana” (Campbell & Moyers, 1990, p. 6). O autor também entende o mito como sendo a abertura secreta através da qual as inexauríveis energias do cosmos penetram nas manifestações culturais humanas. Segundo ele, no mundo habitado, “em todas as épocas e sob todas as circunstâncias, os mitos humanos têm florescido” (1997, p. 15). Entre o povo iorubá, ao contrário das civilizações ocidentais, os mitos nunca deixaram de constituir forte referência em sua cultura e formas de organização social.
47 Segundo Prandi (2001), os mitos dos orixás fazem parte dos poemas oraculares cultivados pelos babalaôs54 e falam da criação do mundo, de como ele foi repartido entre os orixás e relatam inúmeras situações envolvendo deuses, homens, animais, plantas, elementos da natureza e da vida em sociedade:
Na sociedade tradicional iorubá, sociedade não histórica, é pelo mito que se alcança o ado e se explica a origem de tudo, é pelo mito que se interpreta o presente e se prediz o futuro, nesta e na outra vida. (Prandi, 2001, p. 24)
Esse corpo mítico é transmitido oralmente, uma vez que esse é um dos fundamentos das sociedades iorubanas. Salami (1997) pontua que a compreensão do discurso iorubá, no entanto, exige um esforço de “interpretação exegética” de seus mitos e não uma desmitificação (p. 67). Para ele, os povos iorubás têm no mito muito de suas bases de realidade.
A narrativa remete o ouvinte ao universo onde o mito se constitui e é impregnada de mistério religioso. Ao desencadear sentimentos de reverência, respeito e amor pelo Divino, o mito favorece que o grupo firme e reafirme sua sociabilidade e identidade. (Ibid., p. 66)
54
Os babalaôs, ou “pais do segredo”, são os sacerdotes do oráculo de Ifá (Orunmilá), a quem é transmitido “todo o conhecimento necessário para o desvendamento dos mistérios sobre a origem e o governo do mundo dos homens e da natureza” (Prandi, 2001, p. 17)
48
4.2.2.1 O mito do ori: os seres humanos como autores do seu destino O diálogo mais profundo entre mito e identidade se dará no capítulo referente à análise da identidade. Para dar início a esse diálogo, no entanto, vejamos o mito iorubano que fala de como os seres humanos são autores de seu destino.
Oxalá e Ijalá são as divindades modeladoras do ori55. Cada ser criado escolhe livremente o próprio ori e o próprio Odu – signo regente de seu destino. Ijalá, embora notável em sua habilidade, não é muito responsável e, por isso, muitas vezes modela cabeças defeituosas: pode esquecer de colocar alguns acabamentos ou detalhes necessários, como pode, ao levá-los ao forno para queimar, deixá-las por tempo demasiado ou insuficiente. Tais cabeças tornam-se, assim, potencialmente fracas, incapazes de empreender a longa jornada para a terra, sem prejuízos. Se, desafortunadamente, um homem escolhe uma dessas cabeças malmodeladas, estará destinado a fracassar na vida. Durante sua jornada para a terra, a cabeça que permaneceu por tempo insuficiente ou demasiado no forno poderá não resistir à ação de uma chuva forte e chegará mais danificada ainda. Todo o esforço empreendido para obter sucesso na vida terrena terá grande parte de seus efeitos desviada para reparar tais estragos. Pelo contrário, se um homem tem a sorte de escolher uma das cabeças realmente boas, tornar-se-á próspero e bem-sucedido na terra, uma vez que sua cabeça chega intacta e seus esforços redundam em construção real de tudo aquilo que se proponha a realizar. O trabalho árduo trará ao homem afortunado em sua escolha excelentes resultados, já que nada é necessário despender para reparar a própria cabeça. Assim, para usufruir o sucesso potencial que a escolha de um bom ori
49 acarreta, o homem deve trabalhar arduamente. Aqueles, entretanto, que escolheram um mau ori têm poucas esperanças de progresso, ainda que em o tempo todo se esforçando. (Ribeiro, 1996, p. 110-111)
O mito do ori pode ser relacionado à idéia de identidade-metamorfose ao falar do homem enquanto autor de sua identidade e de quem dependem as decisões tomadas para que possa viver melhor. E essas decisões podem ser emancipatórias, dependendo dos caminhos que ele escolher. Usando os termos presentes no referencial teórico desta pesquisa, para que sua identidade seja emancipatória, ele deve ir à busca de uma autonomia em contraposição à heteronomia, deve buscar uma sociedade mais igualitária e democrática.
4.3
Alteridade como valor do legado “nagô” Para iniciar este subcapítulo, comecemos com a definição de alteridade:
Substantivo feminino. Natureza ou condição do que é outro, do que é distinto (Houaiss, 2006). O respeito à alteridade é uma das marcas da cultura iorubá. Alteridade que foi e continua sendo, no contexto mundial atual, uma questão que nos custa caro. No Brasil, o não-respeito à alteridade tem início com a chegada dos portugueses, com os valores presentes no cristianismo, cuja característica é a
55
Na tradição dos orixás, denominação da cabeça humana como sede do conhecimento e do espírito. Também, forma de consciência presente em toda a natureza, inclusive em animais e plantas, guiada por uma força específica que é o orixá (Nei LOPES, 2004, p. 498).
50 de se proclamar detentor da única verdade absoluta “revelada por Deus” (Cf. Luz, 2000, p. 191). Em sua tese de doutorado, Luz chama a atenção para a atuação dos portugueses no Brasil e para os valores civilizatórios opostos ao dos europeus presentes, originariamente, na África e na América. Segundo
o
autor,
uma
característica
marcante
da
política
implementada tanto pela Igreja – que compunha o governo colonial - como pelas instituições constituintes de tal governo é a identificação dela “pelos valores de uma cultura de imposição e redução da alteridade à desigualdade”.
Esse impulso à imposição, característico da cultura ocidental, se distingue completamente do impulso à aceitação da alteridade presente nas culturas dos diferentes povos da África e da América. Aqui, o outro é qualificado de estrangeiro, respeitado em sua diferença, merecedor de modo geral das honras de hospitalidade. Esta forma de lidar com a alteridade, por outro lado, realça a identidade própria do hospedeiro, que valoriza a diferença e assim destaca a sua pertinência grupal. (Luz, 2000, p. 189)
A respeito da concepção dos iorubás, Sodré aponta que os poderes decorrentes do axé (a autoridade) também dependem de um consenso comunitário: “são poderes sutis, que implicam energias poderosas, umas mais velhas que as outras, como também acontece na ontologia banto” (1988, p. 89).
51 Quem tem autoridade, nas sociedades iorubás, é o mais velho. Não pelo fator biológico exclusivamente, mas por causa de sua antiguidade iniciática56 ou de sabedoria. Um conceito fundamental iorubá (inalterado mesmo após os fatores históricos com europeus) é o conceito presente no aforismo “Ogbon ju agbara” (“a sabedoria é maior que a força física”). A sabedoria do iorubano, no entanto, não é a mesma do saber das letras – já (re)conhecidas por eles durante o período colonial –, mas a sabedoria ética, presente nos valores, mitos, liturgia, conhecimentos práticos e aforísticos, inseridos no “quadro da antiguidade ou da tradição”. Essa sabedoria, nos diz Sodré, “implica sempre (grifo nosso) em axé, pois saber é ser atravessado pela força – a absorção do axé é requisito indispensável à aquisição do conhecimento real” (Ibid., p. 9091). O mesmo autor (Ibid., p. 164) aponta que a “comunidade-terreiro” nos tem oferecido um antídoto para essa “dificuldade visceral do Ocidente em face da aproximação do real, territorial, das diferenças”. Para ele,
...não se trata de nenhuma comunidade fundada em ‘raça’ ou em ‘autenticidade nacional’, mas de afirmação de um espaço de alacridade, de jogo do cosmos com o mundo. Através dele, os negros [ou os que partilhem, por identificação, desse repertório] instauram ritmicamente lugares de acerto entre os homens, de
56
Iniciação, para os iorubás e os nagôs, está relacionado ao conceito de que o conhecimento é “prático”. Conhecer, saber, é experimentar, sentir, vivenciar. O conhecimento “alcança planos de elaboração e de poder inerente à lida com forças que dinamizam o mundo que são, de certa forma, indizíveis ou inefáveis; a palavra escrita é, portanto, incapaz de relatar” (Luz, 2000, p. 458). No Brasil, “iniciar-se” pode referirse ao ciclo relativo à raspagem da cabeça por parte de um filho-de-santo de uma casa de candomblé. Este termo é mais usado entre antropólogos. Entre o povo-de-santo, usa-se “fazer o santo”, como referido por Vanda Machado durante palestra no IV Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, em Salvador (BA), em novembro de 2006. Esse uso possivelmente se deva ao fato de que, ao fazer parte de um egbé, o período iniciático de um filho-de-santo compreende estágios anteriores e posteriores à feitura do santo e o conjunto dessas etapas é que integra o período total da iniciação.
52 reversibilidade entre os entes e assim expõem a ambivalência de toda identidade (que o Ocidente quer, no entanto, estável, universal, hegemônica) (Sodré, 1988, p. 164)
O aspecto social do candomblé também é um ponto que gostaríamos de ressaltar. A esse respeito, Hofbauer nos diz que
...As concepções iorubanas do sagrado e das relações de poder (princípio àse/axé) não apenas podiam servir [no pós-abolição] aos desprivilegiados de base de interpretação de sua realidade social, mas podiam também orientar e incentivar ações sociais eficazes que, dentro das regras impostas, proporcionassem os resultados ansiados. Além disso, não se deve esquecer de que as casas de candomblé constituíram, certamente, desde sempre, comunidades de solidariedade nas quais os adeptos podem também encontrar conforto e criar forças para enfrentar as discriminações e frustrações do dia-a-dia. E até hoje funcionam, nos bairros das periferias urbanas, freqüentemente como espaços de acolhimento que atendem pessoas à procura de conselho e ajuda para os mais diversos problemas pessoais. (Hofbauer, 2006, p. 327)
Sendo uma religião “aberta a todos” (Bernardo, 2003, p. 150) – um dia visto como religião étnica57 como reverso do racismo do qual foi e ainda é vítima e que afasta(va) os “não-negros” do terreiro –, o candomblé traz, em si, o respeito ao homem enquanto ser universal, no qual o respeito às diferenças é essencial.
57
Ou pela denominação homogeneizante que os europeus atribuíram aos descendentes de africanos no Brasil, religião “de negros”.
53 Uma nota antes de finalizar este capítulo, a partir dos escritos da educadora baiana Vanda Machado: no candomblé, “a crença e a observância dos ‘fundamentos’ (segredos da religião) não invalidam o espírito de insurgência característico do povo negro [ou afrodescendente, na denominação adotada nesta pesquisa]”. Aspectos culturais que podem parecer estáticos e conformistas, nos lembra a autora, “recriam-se a si mesmos, sempre que as relações que determinam a condição da existência sofrem interferência inadequada” (2002, p. 129).
5 Análise da entrevista da perspectiva étnica 5.1
Etnicidade Para Max Weber, a crença na (e não o fato da) origem comum constitui
o traço característico da etnicidade. O que Weber chama de “grupos étnicos” são os grupos humanos que alimentam a crença subjetiva na sua descendência comum em razão de semelhanças físicas, de costumes ou de ambas; ou por causa de memórias relativas à colonização e migração, sem importar
se
há
ou
não
relação
consangüínea.
“Ethnic
hip
(Gemeinsamkeit) differs from the kinship group precisely by being a presumed identity, not a group with concrete social action, like the latter”58 (Weber, 1968, p. 389). Nesse sentido, a pertença59 étnica não constitui um grupo: ela facilita a formação de grupos de muitos tipos, especialmente na esfera política. Seria
58
“Pertença étnica se diferencia dos grupos de parentesco exatamente por ser uma identidade presumida, não um grupo com ação social concreta, como este último” (tradução nossa). 59 No texto em inglês, o termo usado é “hip”, qualidade ou estado de membro ou sócio, aqui traduzido como “pertença”.
54 pela comunidade política que as crenças na etnicidade comum seriam estimuladas e essa crença tenderia a persistir mesmo após a desintegração da comunidade política, a menos que existam entre seus membros diferenças drásticas nos costumes, no tipo físico ou, principalmente, na linguagem (Cf. Weber, 1968, p. 389). A definição de Weber parece adequada para a questão dos afrodescendentes no Brasileiro – em que indivíduos, por iniciativa pessoal (às vezes fruto de discussões no interior da família), decidem fazer parte de um grupo em função de interesses políticos, interesses relacionados a direitos iguais para uma parcela da população que é historicamente discriminada nos vários níveis da sociedade. A mistura entre diferentes grupos humanos também é um dos elementos que nos faz refletir nessa direção: a filiação, portanto, não bastaria para definir uma identidade étnica. Dependendo do grupo ou das circunstâncias, ela pode ser mais útil ou menos útil para “determinar a pertença”, afirmam Poutignat & Streiff-Fenart (1997). Para os autores, é preciso também que a identidade seja manifestada. “Na maioria dos casos, a exibição de certos atributos que são considerados como a marca de origem comum basta por si mesma para corroborar a idéia do laço genealógico presumido”. O que diferenciaria a identidade étnica de outras formas de identidade coletivas (religiosas ou políticas) é que ela seria orientada para o ado (Ibid., p. 162). Falar uma língua comum, viver em um mesmo território, compartilhar, tradicionalmente, uma mesma religião. Essas são dimensões classicamente levadas em conta para definir o grupo étnico que, da perspectiva dos autores
55 em questão, ariam a funcionar como recursos que podem ser mobilizados para manter ou criar o mito da origem comum.
Embora determinados atributos culturais (como a língua) estejam em melhor posição para serem nisso utilizados, nenhum pode merecer o crédito de uma validade universal e essencial para a identificação étnica. Nem o fato de falarem uma mesma língua, nem a contigüidade territorial, nem a semelhança dos costumes representam por si próprios atributos étnicos. Apenas se tornam isso quando utilizados como marcadores de pertença por aqueles que reivindicam uma origem comum. (Poutignat e Streiff-Fenart, 1997, p. 163)
É o caso dos descendentes dos imigrados e os povos em diáspora, em que o território de origem constitui um recurso sempre disponível, mesmo quando as semelhanças culturais e lingüísticas já se apagaram (Ibid., p. 163). Entre os povos em diáspora, estão os diferentes grupos de africanos levados forçadamente ao Novo Mundo com a escravidão. Ilícito apresenta a questão étnica como elemento central para a problemática social brasileira. “[No Brasil há] O lance de não saber respeitar as etnias, muito mais que a [questão da] pigmentação e a cor da pele. As etnias indígenas, africanas, européias, árabes, toda a influência mundial... A raça do planeta tá aqui. Todas [as raças]. Os orientais... tudo. É [preciso] saber respeitar isso. E o mais loco disso é que já se misturaram de uma forma que eu vejo que foi tão agressiva quanto a norte-americana, e talvez até muito mais, porque trabalhou no inconsciente do povo, tá ligado?, mas que é loco, [aqui] é o caldeirão das raças, caldeirão do mundo”.
56 “Agressiva”. É assim que ele se refere à mistura de raças levada a cabo no Brasil em grande parte pela ideologia racial elaborada a partir do fim do século XIX até meados do XX pela elite brasileira, baseada no ideário do embranquecimento e responsável por alienar negros e mestiços do processo de identidade de ambos (Cf. Munanga, 2004, p. 15). O processo em questão, no entanto, é melhor desenvolvido no capítulo referente à análise das entrevistas da perspectiva da identidade do sujeito desta pesquisa.
5.2
O Brasil e a “cordialidade transracial” No Brasil, raça para Sansone (2004) se entrelaça com etnicidade: a
“raça” existe e é praticada graças a um conjunto de símbolos étnicos, ao o que a identificação étnica é freqüentemente racializada – adquire conotações fenotípicas. O autor está entre os pesquisadores que “abominam” o termo – e, por isso, o utiliza entre aspas – mas entende que, para além da popularidade e da indeterminação que ele tem no País, raça é uma das muitas maneiras de expressar e vivenciar a etnicidade, colocando-se a ênfase no fenótipo. Sansone chama a esse processo de “racialização”. Para o autor, “devemos desconstruir o significado de negritude e da branquidade no contexto de nossos locais de pesquisa, e devemos insistir em (processos de) racialização, em vez de entrarmos em sintonia com o clima popular e começarmos a usar ‘raça’ sem nenhum questionamento de sua naturalidade intrínseca” (Ibid.) . A tese de Sansone é de que, em toda a América Latina, as relações interétnicas e a racialização dos grupos sociais ocorreram segundo um padrão comum, que se caracteriza por uma tradição de casamentos mistos, muito difundidos entre pessoas de fenótipos diferentes, por um continuum racial ou
57 de cor, em vez de um sistema polarizado de classificação racial, por uma cordialidade transracial nas horas de lazer, entre as classes mais baixas, por uma longa história de sincretismo no campo da religião e da cultura popular, e por uma organização política relativamente fraca com base na raça e na etnicidade, a despeito de uma longa história de discriminação racial. Para esse autor, os negros, e às vezes, os índios, não são vistos e tendem a não ver a si mesmos como constituindo uma comunidade étnica e entre as razões disso estaria a desvalorização e a conotação negativa existente sobre o negro na América Latina (Cf. Sansone, 2004, p. 19)60. Sansone coloca que o tipo de relações raciais que se podem considerar típicas da América Latina deu margem à manipulação da identidade racial (a qual Ilícito se referiu quando mencionou a atuação da mistura no inconsciente da população), sobretudo no plano individual, e tendeu a não fomentar a mobilização étnica e a formação de grupos étnicos (Ibid., p. 20). Nas últimas décadas, no entanto, a atitude dos cientistas sociais para com as relações raciais na América Latina se modificou. Os estudiosos latino-americanos se tornaram mais críticos (1) quanto ao sistema de relações raciais dos países da região, (2) em relação aos mitos raciais nacionais (as “identidades nacionais” que suprimem as identidades étnicas, como apontará Munanga mais adiante) e (3) à tendência a excluir cor e a etnia como variáveis na explicação de fenômenos sociais como a pobreza (Sansone, 2004, p.21). Nessa perspectiva,
60
Para Bacelar, professor da Universidade Federal da Bahia, há uma “confusão conceitual” na ponte feita entre raça e etnia por Sansone. Bacelar pontua que o que pode ser assinalado aí é que “a identidade cultural (negra) não estabelece uma relação causal com as formulações coletivas da identidade racial da militância negra”. Para ele, o indivíduo pode ser rastafari, membro de um grupo cultural negro ou do candomblé, o que não quer dizer que ele problematize a questão racial ou se envolva necessariamente com os “movimentos negros” (Jeferson BACELAR, 2004).
58 Sansone alerta que o Brasil – antigamente retratado como um paraíso racial, com sua enorme população negra –, ou a ser visto como um inferno racial. A partir dessa observação, voltamos às formulações de Ilícito: “Eu luto contra o racismo. Luto contra as diferenças, as indiferenças, minha luta é baseada no lance étnico, tá ligado?, de como a sociedade brasileira, onde o racismo é implantado nas leis e foi jogado pro povo, como lidar [com] e respeitar as etnias. É problema étnico”. A esse respeito, Josildeth Consorte escreve que a assunção de uma “identidade negra” (aqui, afrodescendente) é condição essencial à luta contra o racismo no Brasil (1999, p. 117). E que os “mestiços”, ao negarem a mestiçagem como um valor e compartilharem de uma identidade afrodescendente, como é o caso de Ilícito, têm papel fundamental nessa luta. É o caso da luta presente no movimento hip-hop, que tem procurado fazer-se cada vez mais presente na cena política brasileira (eleitoral, inclusive: em 2006, candidatos a cargos no Legislativo de várias cidades saíram levantando a bandeira racial e, em São Paulo, um desses candidatos era um rapper – Aliado G, candidato pelo PC do B a Deputado Estadual). Na direção do que Consorte chama de “assunção de uma identidade negra”, Ilícito diz eu acho que [negritude] é um lance que vai além da cor da pele, é um lance de uma poesia que fala “que a pele negra não seja escudo para os que habitam na senzala do silêncio porque nascer negro é conseqüência, ser é consciência”.
5.3
Mestiçagem e afrodescendência A fala do rapper presente nesta pesquisa dá a entender que, quando é
visto como “negro”, é mais pela atitude (fazer música de preto, manifestar idéias críticas ao “poder branco hereditário”) do que pelo fenótipo.
59 Pra mim, o mais difícil, foi me assumir como branco, tá ligado? (...) O lance tá na ligação da pigmentação, né? Vai muito mais além dos traços e... se falar ‘sou afro-descendente’, eu sou, entendeu? Agora, é visível que eu sou branco, entendeu? Isso aí, pra mim, foi difícil de assumir. Negritude versus branquidade. Essa parece ser a problemática apontada por Ilícito que, ao ter pele branca, é branco. Mas, pelos “traços”, é mestiço de negro com branco. Afrodescendente, no termo usado por ele. A mestiçagem está entre os legados do ideário do branqueamento implantado no Brasil pelos colonizadores portugueses. O processo de branqueamento físico da sociedade fracassou, mas o seu ideal, por meio de mecanismos psicológicos, não. Segundo Munanga (2004), esse ideal “prejudica qualquer busca de identidade baseada na negritude e na mestiçagem, já que todos sonham ingressar um dia na identidade branca, por julgarem superior”. Munanga critica os que tentam encaminhar a discussão em torno da identidade “mestiça”, enxergando nessa proposta uma nova “sutileza ideológica” para recuperar a idéia de unidade nacional não alcançada pelo fracasso do branqueamento físico. “Essa proposta de uma nova identidade mestiça, única, vai na contramão dos movimentos negros e outras chamadas minorias, que lutam para a construção de uma sociedade plural e de identidades múltiplas” (2004, p. 16). A utilização do termo “afrodescendente”, empregado por Ilícito, seria uma das possibilidades de se criar um “consenso” em torno da questão negra. Consenso esse que a identidade “negra” ou “mestiça” não estaria conseguindo criar, como pontua o autor. Ilícito se identifica com uma identidade “mestiça”? Será que, para ele, uma possível condição social “comum” de negros pobres e brancos pobres neutraliza o racismo? “Sou branco”, ele diz. Mas também diz: “sou
60 afrodescendente”. Será que isso se deveu à já referida condição social de situação de pobreza? “Não sou esse branco que cê tá falando”. Não ser “esse branco” faz referência ao sistema “hereditário escravocrata” herdado do Brasil colônia até os dias de hoje. Diz, também, respeito à situação de classe. Mas, nas palavras dele, “o branco continua superior em tudo”. “Tudo”, aí, extrapola a situação social. A mistura não neutraliza o que enxerga como racismo na sociedade brasileira. Na visão de Ilícito, ela foi agressiva no País, trabalhou no inconsciente do povo. Que desconhece as suas origens, como o rapper coloca quando fala que perguntava ao meu pai e aos amigos negros sobre a origem dos povos negros presentes no Brasil e ouvia como resposta que vinham da “Cafelândia” (em referência às plantações de café do interior de São Paulo de onde vieram parte dos negros para a capital do estado), enquanto o que ele queria saber era de que etnias africanas eles provinham. Para Ilícito, a mistura que atuou no inconsciente do povo brasileiro foi a que levou a sua população ao ideal do branqueamento, a “mestiçagem perversa” como a chama Sansone. Em meio a essa mistura, a gente comum se vê dentro do que ele chama de continuum racial, definição do pesquisador para a gradação de cores da população brasileira, fruto das muitas misturas de raça (Cf. Sansone, 2004, p. 24). O autor aponta para o fato de que, para o povo, não há diferença entre cultura, etnia e raça; as distinções entre os três termos desaparecem pela influência dos meios de comunicação de massa. Sansone aponta ainda para o fato de que a maioria das definições de negritude empregada por estudiosos e por órgãos de governo na América Latina teriam pouca ou nenhuma correspondência com as definições usadas na vida cotidiana pela gente comum, negra e não-negra (Ibid., p. 25). É no sentido
61 dessa constatação, já apontada pelo Movimento Negro brasileiro, que o uso do termo “afrodescendente” foi escolhido para essa pesquisa. E Ilícito faz referência a esse fato quando diz que
Assim como o negro teve várias definições [várias nomenclaturas], eu, fazendo música de preto [rap], também tem várias definições. Quando eu ando pelo Brasil, me chamam de várias formas, tá ligado? O último foi ‘africano de pele clara’.
Falar da variedade de nomenclaturas relativas aos diferentes tons de pele no Brasil é refletir sobre a importância dada ao fenótipo como diferenciador nas relações sociais. As culturas vindas de África foram inferiorizadas. A colonização agiu no sentido de solapá-las e a República deu continuidade a essa tentativa. Como aponta Consorte (1999), o universo cultural que aqui se construiu a partir de matrizes africanas não combinava com o projeto de país comprometido com a civilização ocidental que se desejava implantar. Ao longo dos anos 30, o samba, a capoeira e, sobretudo, o candomblé foram alvos de dura perseguição policial (p. 113-114). A introdução do conceito de raça na reflexão sobre o negro no Brasil se dá no fim do século XIX, quando se pretendeu compreender a diversidade que caracterizava os africanos e seus descendentes da perspectiva dos seus atributos físicos. Por esse viés, as manifestações culturais dos negros eram analisadas a partir das capacidades intelectuais geneticamente herdadas. Essa tradição, herdada do evolucionismo, foi combatida pela crítica culturalista, responsável por deslocar a ótica biologizante para a ótica da cultura e dissociar raça de cultura. Essa dissociação, no entanto, não impediu que as relações
62 sociais entre pretos, mestiços e brancos continuassem a ser mediadas pelo preconceito racial (Consorte, 1998). É com a agem de objeto a sujeito das pesquisas sobre o negro no Brasil e com o início da discussão sobre o problema de sua identidade que a dimensão étnica entra em pauta, apontando um novo referencial de abordagem para o tema – em que estão presentes as idéias de comunidade de origem, língua, religião, costumes e, principalmente, sentimento de pertença (Ibid.) . Esta última, talvez, a mais presente entre os que reinvidicam uma identidade afrodescendente no Brasil. As demais, ao que parece, am pelo processo de construção. Nas palavras de Consorte, “quer nos parecer que enquanto a utilização exclusiva do conceito de raça aponta para o ado, para uma forma distorcida de pensar a alteridade constituída pelo negro na sociedade brasileira, o conceito de etnia aponta para o futuro, para o que se deseja e busca construir” (Ibid.) . Pensar sobre a especificidade das culturas constituídas a partir das matrizes africanas no Brasil mostra-se um caminho adequado para essa reflexão. Para Sansone (2004), a peculiaridade das culturas e identidades negras (ou afrodescendentes) em relação a outras formas de identificação étnica e de produção cultural consiste em poder definir a cultura negra como a subcultura específica das pessoas de origem africana dentro de um sistema social que enfatize a cor, ou a ascendência a partir da cor, como um critério importante de diferenciação ou segregação das pessoas.
Para ele, convém considerar a
cultura negra como uma subcultura da cultura ocidental, muitas vezes quase submergida na cultura popular ou numa determinada cultura de classe baixa:
63 ela não é fixa nem completamente abrangente e resulta de um conjunto específico de relações sociais, neste caso entre grupos racialmente definidos como “brancos e negros” (Ibid., p. 23). Já para Munanga (2004), a particularidade da identidade negra está no fato de que “as culturas em diáspora têm de contar apenas com aqueles que resistiram, ou que elas conquistaram em seus novos territórios”. E essa identidade é sempre um processo e nunca um produto acabado. No que diz respeito
à
identidade
negra
construída
pelos
movimentos
negros
contemporâneos, essa construção é buscada
... a partir de peculiaridades do seu grupo: seu ado histórico como herdeiro dos escravizados africanos, sua situação como membros de grupo estigmatizado, racializado e excluído das posições de comando na sociedade cuja construção contou com seu trabalho gratuito, como membros de grupos étnico-racial que teve sua humanidade negada e a cultura inferiorizada. Essa identificação a por sua cor, ou seja, pela recuperação de sua negritude, física e culturalmente. (Munanga, 2004, p. 14)
Ao colocar no centro do debate a construção da diferença, a questão da identidade afrodescendente exige de nós, pesquisadores, um repensar dos elementos que entram no seu processo de construção. Utilizo do pensamento da professora Josildeth Gomes Consorte (1991) para falar em identidade afrodescendente – e não identidade negra, como colocado por ela, Munanga (2004) e Sansone (2004). Entre as questões a serem repensadas, estão as perguntas referentes aos lugares
por onde a a identidade do
afrodescendente brasileiro, se essa identidade pode ser considerada a partir
64 das múltiplas experiências vividas por ele aqui, neste solo brasileiro, e quais os espaços, as circunstâncias e que cara tem a cultura “negra” no Brasil. É caminhando por esse repensar que esta pesquisa se propõe a trilhar o percurso da etnicidade apontada por Ilícito.
5.4
Pensando a questão da religiosidade Há casos em que a religião pode desempenhar um papel central no
processo de definição do grupo étnico, particularmente quando ela se apóia num mito de eleição, ou quando ela é substituída por um código legal distintivo, regrando os aspectos mais íntimos da vida (Cf. Poutignat & Streiff-Fenart, 1997, p. 163). Sabemos, este é o caso do islã. E, em partes, também do candomblé, uma das muitas religiões afro-brasileiras, que tem como fundamento o culto aos ancestrais míticos do povo iorubá, os orixás. Ilícito vê uma relação existente entre o santo daime e o candomblé por ambas dizerem respeito a culto a ancestrais:
O daime, pelo que eu tô entendendo ultimamente, é uma parada que vem dos indígenas, ou pro ‘Negrão’, que é o Raimundo Irineu, depois do ‘Negrão’, foi pruns brancos. E hoje tá na mão da elite, não generalizando, porque várias tribos indígenas tem seu ritual do daime, que às vezes usam outros nomes.
Há “várias matrizes” do daime, nas palavras de Ilícito. A que ele freqüenta é mais ligada ao candomblé. Mas a diferença entre o candomblé e o daime, na opinião dele, está neste último “não ser tão fechado assim”. E em sendo ele um hip-hopper, sinônimo de ser universal, é preciso “não ser tão
65 fechado assim”. Como quando ele explica o processo “evolutivo” de alguém que a de “querer ser” do hip-hop a “ser” do hip-hop.
Ele [alguém hipotético] começou indo comprar um ‘kit’ na galeria [24 de Maio, em São Paulo]. Então ele ‘pára’ no estilo, e só fica a roupa, né? Pelo menos foi um início. Daí ele conhece o som. Depois ele quer entender do que aquele som tá falando, aí ele ouve um rap brasileiro, aí ele vai numa palestra, aí ele acha que é [play]boy, depois ele fala ‘não, eu sou branco; não, sou preto’. “Ser universal”, então, parece adquirir contornos de “abrir-se” para questões que estão sendo discutidas mundo-afora. E essas questões am pela discussão sobre “etnia”, na leitura que Ilícito traz do termo. Aí quando cê vê, depois de uns cinco, dez anos, dependendo da evolução de cada pessoa, ele não é mais um ‘kit’ hip-hop, ele já tá vivendo aquilo. Aquilo tá transformando ele pro mundo, pra ter uma visão universal da parada, entendeu? É isso que eu tô falando, que o hip-hop é o mecanismo, é o trabalho cultural...
O trabalho cultural do hip-hop leva a uma visão “universal” e que, para exemplificar, Ilícito traz a experiência do Ilê Ayê que, ensinando sobre as culturas africanas, possibilita que crianças e jovens afrodescendentes possam conhecer suas raízes africanas, o que os coloca em lugar de igualdade com os demais povos ao entenderem que os grupos humanos são diversos e por isso têm diferentes culturas, mas elas podem ser compartilhadas e merecem estar em lugar de igualdade na sociedade.
Pega das raízes africanas. O Ilê Ayê, lá da Bahia, tem um trabalho de base até a 4ª série, dentro do Ilê Ayê, com ensino da visão que eles têm, partindo das origens africanas que eles têm, e da tradição que eles têm no Brasil e da forma que eles imaginavam que deveria ser nas escolas públicas, principalmente voltado a essa coisa da questão étnica. Pelo que eu entendi, além do moleque estar ali no Ilê Ayê, ele tem a escola pública dele também. E no Ilê Ayê ele faz tambor, aprende a história dos orixás, entendeu?
66 O hip-hop é uma escola, como é o Ilê Ayê para a população inserida em seus projetos educacionais. O Ilê Ayê é a escola do “moleque” na Bahia. O hiphop é a escola do “cara que é universal”. “Não é tão fechado. O hip-hop agrega o mundo inteiro, tá ligado? Mas a por esse processo, que vai desde o negro, do indígena, a por todo esse processo das situações do País, dos caras que tão morrendo na rua, fala sobre o mundo da droga, sobre sexualidade. É uma parada infinita, sobre o preconceito, sobre racismo. Nesta pesquisa, o hip-hop é visto da perspectiva da manutenção de um referencial ioruba-nagô. Nesse sentido, assim como há um Ilê Ayê que é uma escola, há um “Ilê-Yô”, um hip-hop, que também o é. O contato com o sagrado é fundamental para Ilícito – como atestam as entrevistas realizadas com ele. Mas, para ele, o conjunto de significados presentes nas diferentes religiões devem possibilitar que a convivência entre os diferentes seja um valor a ser buscado. Por ter uma dimensão universal, por ser portador de cultura, o ser humano precisa buscar a convivência igualitária. Esse parece ser o seu pressuposto também quando pensa em termos de religiosidade.
5.5
Latinidade versus Negritude Ilícito entende que é discriminado no grupo negro, dentro do qual
convive. Na sua luta contra todas as formas de discriminação, ele entende que é preciso lembrar que, no hemisfério norte, todo brasileiro, branco ou negro, seria discriminado por ser latino. Além de ser discriminado entre os negros, por ser um branco que fala de negritude, é também discriminado entre os brancos.
67 E como no rap eles não queriam me aceitar porque eu sou branco, entendeu?, e quando eu vou falar de negritude dentro dum movimento negro isso choca, e quando eu chego na sociedade, um cara tatuado, branco, falando do lado dos preto, os cara fala ‘cê é loco, cê podia tá aqui’, só que naquele esquema eu não vou, tá ligado?, nessa parte eu não participo.
Negritude, assim como a branquidade, não é uma entidade dada, mas um constructo que pode variar no espaço e no tempo, e de um contexto para o outro. A identidade negra, como todas as etnicidades, é relacional e contingente. Branco e negro existem, em larga medida, em relação um ao outro; as “diferenças” entre negros e brancos variam conforme o contexto e precisam ser definidas em relação a sistemas nacionais específicos e a hierarquias globais de poder, que foram legitimados em termos raciais e que legitimam os termos raciais (Sansone, 2004, p. 24).
E aí é um grande conflito, entendeu? Cê acaba sendo discriminado pra caralho tamém, sabe? Eu sou uma minoria dentro do meu contingente, entendeu? E cê acha que é fácil? Cê acha q é fácil ser 1% de branco, 10% de branco numa parada de maioria preta, tá ligado? Por isso que eu falo assim, no lance do grupo, se os meninos do grupo (que são negros) não levar mais a parada, acabou. Porque eu não posso levar. Como que vai chegar uns caras (fala o nome do grupo, que menciona um Brasil negro), em que o líder é um galego, de zóio azul, zóio verde? Posso ter todo o conhecimento do mundo, experiência e o caralho, mas não tem quem güenta, essa parada. É muito forte sabe? Eu seguro a bronca, do que for preciso. Mas é contraditório demais. Então por isso que eu jogo muito a parada hoje pros caras, tá ligado? Contribui e contribuo da forma que eu puder enquanto precisar, agora, eu não vou sofrer mais, tá ligado?
O “sofrimento” de Ilícito demonstra que, para ele, branco pobre não é sinônimo de preto. A sua condição de classe não lhe dá uma identidade étnica diferente do que a sua cor de pele lhe impinge. A “elite branca” cobra de Ilícito o fato de ele estar “do lado de lá”. Os “pretos”, quando o vêem falando de negritude, ficam, de algum jeito, “chocados”. A nordestinidade deu mais (grifo nosso) identidade a Ilícito no hip-hop. Nordestinidade que, como demonstra o
68 capítulo sobre o patrimônio civilizatório iorubá, tem na oralidade – palavra e memória – das culturas negras o seu “núcleo pesado61”. Mas é o pai que é nordestino, não ele. Por que a dificuldade em ter na afrodescendência essa identidade também? Os traços que o identificam como afrodescendente não poderiam ser “usados” em sua auto-defesa, nos momentos de confronto com os que questionam sua negritude? Poutignat e Streiff-Fenart (1997) observam que a etnicidade pode ser vista como um modo de identificação em meio a possíveis outros, já que ela não remeteria a uma essência, mas a um conjunto de recursos disponíveis para a ação social.
De acordo com as situações nas quais ele se localiza e com as pessoas com quem interage, um indivíduo poderá assumir uma ou outra das identidades que lhe são disponíveis, pois o contexto particular no qual ele se encontra determina as identidades e as fidelidades apropriadas num dado momento. (Ibid., p. 166)
Nessa perspectiva, em determinadas situações, a etnicidade é um fator pertinente que influencia a interação; em outras situações, a interação é organizada de acordo com outros atributos, tais como a classe, a religião, o sexo, etc. Uma identidade étnica nunca é auto-explicativa: não podemos dar conta do fato de dizermos de alguém que ele é X (ou do fato de alguém dizer “eu sou X”) porque ele é X. Não se trata de saber quem é X, mas saber quando, como e por que a identificação X é preferida (Ibid., p. 166-167). Não ser “esse branco”, como diz Ilícito, ser afrodescendente (a filiação paterna e 61
Termo de Muniz SODRÉ (2000).
69 alguns dos traços herdados atestam isso) são identificações que Ilícito carrega consigo, ao lado da identificação de classe (ser “pobre”). A possibilidade de manipular sua própria identidade étnica e de escolher ou não realçá-la é desigual segundo os contextos nos quais as interações se situam. Nas situações em que a etnicidade se apresenta como um estatuto prescrito, os papéis étnicos são reificados sob a forma de uma sorte ou de um destino inevitável, e os indivíduos têm mínimas possibilidades de estabelecer uma distância subjetiva entre eles mesmos e seu jogo de cena (Ibid., p. 167). É o caso dos negros de pele preta e de mulatos no Brasil. Não parece ser, no entanto, o caso de Ilícito. A especificidade dessa questão no contexto brasileiro pode ser melhor compreendida quando lemos o que Munanga escreve sobre a ambigüidade raça/classe e a mestiçagem como mecanismos de aniquilação da identidade negra e afrobrasileira. Ele cita o pensamento de Marvin Harris62, para quem a classificação racial brasileira baseada na cor é ambígua, na medida em que expressaria pouco a importância da identidade racial em contraste com a importância assumida pela classe. “Daí a idéia comum entre os estudiosos norte-americanos”, lembra Munanga, “de que o brasileiro pode mudar de raça, ou melhor, de identificação racial, no decorrer de sua vida. Essa interpretação se aproxima dos ditados populares ‘dinheiro branqueia’ e ‘o preto rico é branco’ ou ‘branco pobre é preto’“. Por essa razão”, diz ele, “é que Oracy Nogueira63 pede cuidado na interpretação desses ditos, sempre empregados com certa
62
Munanga utiliza três estudos do autor, citados na referencia bibliográfica de seu livro. São eles: “Town and country in Brazil”. Nova York: University Press Columbia, 1956; “Padrões raciais nas Américas”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. “Patterns of race in the Américas”. Nova York: Walker, 1964. 63 Oracy NOGUEIRA. “Tanto preto quanto branco: Estudos de relações raciais”. São Paulo: T.A. Queiroz Editora, 1985.
70 ironia e cujo sentido mais exato seria: ‘o dinheiro compra tudo, até status para o negro’”, o que, segundo ele, está longe de ser uma negação do preconceito ou da discriminação (Munanga, 20004, p. 96). É para onde parece caminhar o pensamento de Ilícito quando fala de um sistema hereditário que se perpetua no Brasil. Na opinião dele, “o branco continua sendo superior em tudo”.
5.6
Índices e critérios de pertença étnica Os traços fisionômicos de Ilícito denotam sua afrodescendência. Já a
sua cor da pele demonstra que ele descende de europeus. Os chamados “índices” se fazem insuficientes para falar da pertença étnica de Ilícito. Tornase necessário então recorrer a outras informações para falar de sua etnicidade. Índices de pertença étnica precisam ser distinguidos de critérios de pertença étnica para a compreensão da dinâmica dos processos identitários (Poutignat e Streiff-Fenart, p. 150). Um, no entanto, não é idependente do outro. Os símbolos ligados a uma identidade étnica - reivindicados pelos membros ou estigmas impostos pelos outsiders - determinam em grande parte os traços comportamentais, língua falada, índices visuais que designam essa identidade étnica. Mas uma vez que essa identidade não se impõe como dado natural (e sim como uma divisão culturalmente elaborada do mundo social), a relação entre critérios e índices torna-se, freqüentemente, problemática. Para os autores, os índices perceptivos mediante os quais costumam-se realizar-se as identificações étnicas são equívocos.
É porque a informação transmitida pelos índices (traços fisionômicos, a cor da pele, o sotaque, etc) é freqüentemente insuficiente que os atores podem
71 conscientemente fornecer elementos complementares de informação, permitindo-lhes controlar, em certa medida, a apresentação de um Eu étnico específico. (Poutignat e Streiff-Fenart, p. 152)
Será que a observação dos autores, acerca da distinção entre critérios e índices da pertença étnica, poderia ajudar para que Ilícito diminuísse a sua angústia diante do fato de representar um grupo que leva a África e o “Afro Brasil” em seu nome? Convivendo com negros, fazendo “música de preto”, reivindicando respeito às diferenças do lado dos que, historicamente, tiveram esse direito negado, Ilícito possui os “critérios” de pertença étnica para identificar-se como negro? Para Ilícito, a questão do desrespeito às diferentes etnias é mais forte do que a questão da cor da pele. Ele propõe, nas suas letras de rap, o uso dos termos “negrígena” e “branquindíafro”, apontando para um caminho diferente daquele proposto pelo ideal homogeneizador do branqueamento, que permitiu com que, durante a escravidão, os mestiços (chamados de “mulatos”) recebessem tratamento privilegiado em relação aos negros. Favorecimento esse forjado num contexto que foi sempre altamente discriminador, tanto de atributos físicos como de pertenças étnicas. Indígenas, africanos e os seus descendentes foram historicamente submetidos a uma visão eurocêntrica e tiveram seus atributos corporais e seus modos de ser e viver avaliados por essa visão desde a colonização (Consorte, 1999, p. 108). Hoje, os afrodescendentes são filhos e filhas de pais e mães da classe pobre, na sua grande maioria, constituindo-se na maior vítima da discriminação racial, devido à ambigüidade cor/classe, além de serem mais numerosos que os “negros” (Cf. Munanga, 2004, p. 101).
72 Embora tenha havido uma resistência cultural dos povos indígenas e dos negros que para cá foram trazidos à força, suas identidades foram inibidas de manifestar-se em prol de uma suposta cultura nacional – que acabou por integrar as diversas resistências como símbolos da “identidade nacional”. Tal identidade deveria obedecer ao ideal do branqueamento, pensado pela elite política do país, e perseguido por negros e seus descendentes, ansiosos por escaparem dos efeitos da discriminação racial. A falta de unidade e de consciência coletiva entre os grupos politicamente excluídos foi conseqüência desse processo (Ibid., p. 109). A resistência a ele, na visão dos movimentos negros contemporâneos, am pelo resgate de um ado histórico negado e falsificado pela elite e pela recuperação de sua negritude, na sua complexidade biológica, cultural e ontológica. É a construção de uma sociedade plural, biológica e culturalmente, que defendem os movimentos negros contemporâneos (Ibid.,
p. 109-110).
Negá-la seria continuar o processo de formação de uma “identidade nacional” às custas da supressão das identidades étnicas, fato mencionado por Munanga e apontado por Ilícito, ao dizer que “o problema do Brasil é étnico”.
73
6 Análise da entrevista da perspectiva da pobreza Nas entrevistas realizadas com Ilícito, a palavra “pobre” foi mencionada algumas vezes, assim como “rico”, “elite”, “favela” e “desigualdade social”. A primeira vez que o termo “pobre” é mencionado por ele na entrevista, é em meio a uma fala sobre o atual momento do grupo, ao qual ele se refere como “época das colheitas”. Pergunto a ele o que quer dizer com a expressão, e ele responde que significa ser beneficiado com o fruto do próprio esforço. Entre as iniciativas em que Ilícito procura trabalhar a problemática social da região em que vive está a festa anual do time da região em que mora e para o qual torce. Na festa realizada no Dia da Criança há cinco anos, em que também se comemora o aniversário da torcida do time, distribuem-se presentes, além de haver a realização de uma confraternização com espetáculos culturais. Também a atuação de Ilícito nos saraus de poesia que freqüenta é importante para o fortalecimento do processo associativo comunitário em torno dos textos produzidos pelos moradores desse pedaço da zona sul de São Paulo e da auto-estima da população64. O raciocínio prossegue, até ele chegar ao trecho em que faz a ligação explícita do conteúdo de sua fala com a questão do capitalismo. “... são várias coisas que eu vejo que hoje o capitalismo condiciona (...) Essa coisa de condicionar dentro de uma lei, de uma forma de sociedade onde a felicidade gira em torno do bem material, entendeu? E que é um bem material que o cara
64
A respeito da importância das diferentes formas associativas comunitárias para a redução da pobreza, ver Spink, 1999.
74 acha que vai tê, vai tê, vai tê. E o pobre fica querendo tê e quando tem, se perde, porque nunca teve...”. Ilícito não procura a felicidade junto a bens materiais, mas entende que, para estar mais tranqüilo em alguns aspectos, precisaria de mais recursos financeiros. A sua condição social se encaixa no que ele chama de “pobre”, termo usado entre aspas por motivo da perspectiva adotada nesta pesquisa, de não “individualizar” a pobreza na figura do “pobre”
65
. Ilícito fala em poder dar
tranqüilidade para a família. Entre os ideais que permitiriam essa tranqüilidade está um plano de saúde – que só é um ideal por vivermos sob o capitalismo.
Tenho uma véinha de 86 ano (referindo-se à avó), minha mãe, meu pai, meu irmão, tano doente, a gente tem que ir nos postos do governo, entendeu? Eu queria ter um plano de saúde. Coisas que eu posso acreditar que eu posso mudar pra minha vida e pra minha família, ter um plano de saúde, poder pagá as conta... São coisas bestas, supérfluas, que, pra quem tem qualidade de vida, são detalhes. Poder se alimentá beeem... umas parada assim, sabe?
No livro “Desenvolvimento como liberdade”, o filósofo hindu Amartya Sen propõe que a pobreza seja vista como privação de capacidades básicas que ultraam a questão de falta de renda. Em determinado momento do texto, Sen explica que
Os papéis de heterogeneidades pessoais, diversidades ambientais, variações no clima social, diferenças de perspectivas relativas e distribuições na família tem de receber a séria atenção que merecem na elaboração das políticas públicas. (Sen, 2000, p. 133)
65
Nessa perspectiva, reduzir a pobreza ao “pobre” significa vê-lo como culpado e incompetente (Cf. Spink, 1999).
75 Nesses termos, um sistema público de saúde adequado tornaria desnecessária a verba para pagar um plano de saúde para a família de Ilícito. Uma organização comunitária em torno da questão produtiva e distributiva de alimentos seria útil para a boa alimentação da população do “pedaço” de São Paulo em que vive Ilícito e em muitos outros “pedaços” da cidade e do estado. A preocupação de Ilícito é genuína. A relação entre teoria e prática é o que parece estar longe de se fazer possível.
6.1
Pobreza versus qualidade de vida Outra das preocupações do MC retratado nesta pesquisa é fazer com
que o retorno de seu trabalho com o hip-hop possa melhorar a qualidade de vida de sua família. Ilícito falou em “coisas supérfluas” quando se referiu a itens que integram os quesitos para uma condição de vida psicológica e fisicamente saudável. As idas a casa de Ilícito no decorrer da pesquisa possibilitaram algum contato com o cotidiano dele e de sua família, bem como da sua dinâmica de trabalho, com a circulação por lá dos integrantes da produtora do grupo. De algum tempo pra cá, a família de Ilícito pode contar com os frutos do trabalho dele com o rap para ajudar a pagar as contas de casa. Ainda assim, nem sempre é possível pagá-las em dia. Os frutos colhidos até hoje permitem alguma melhora na vida cotidiana, mas de forma relativa. Exemplo: o dinheiro com o rap possibilitou a Ilícito comprar um carro, necessário para a família, principalmente se pensado em caso de necessidades como emergência médica. No entanto, são muito altas as despesas relativas a essa “comodidade” proporcionada pelo carro. Um sistema de transporte público adequado seria mais adequado à família de Ilícito do que a posse de um carro
76 diante dessas circustâncias. Ou, na impossibilidade do estado de oferecer um transporte público adequado, a adequação das cobranças de taxas e impostos aos cidadãos poderiam variar segundo a faixa de renda dos proprietários dos veículos – e não segundo apenas modelo ou ano dos veículos. Ilícito e seu grupo trabalham também no sentido de serem autônomos em relação à sua capacidade de produção nos diferentes trabalhos que realizam: gravação de disco, distribuição, negociação de shows e oficinas educativas, etc. Histórias como a que viveram quando do processo de trabalho relativo ao novo CD do grupo, cujo período entre gravação e lançamento durou cerca de quatro anos. O trabalho desenvolvido por Ilícito e os rapazes que trabalham com ele é feito entre “ricos” e “pobres”. Há shows e eventos que são realizados em lugares de freqüentação das classes média e alta. Também entre os parceiros musicais do grupo estão artistas de diferentes classes sociais. Os parceiros das classes altas são os que possibilitaram ao grupo a gravação de seu novo disco em um estúdio de alta geração. Circular por diferentes espaços, dar conta de uma platéia de centenas de pessoas em uma favela e, no outro dia, centenas de outras em uma casa de shows de classe média fazem parte do cotidiano do grupo – que procura manter a coerência entre o discurso presente nas letras e as atitudes do dia-a-dia. “A gente tem realmente um compromisso com a mensagem, entendeu? Eu vejo muito os cara entrando no ‘esqueminha’ (aspas nossas), porque há necessidade no nosso mundo. A gente nasceu pra ser ‘pobre’. Pra mudar isso aí na vida é um grande dilema (...) Cada um tem sua ética, faz o que acredita, eu caminho pelo certo, já não sei mais o que é errado também, acho que sabe o que é certo é quem tá ando pela
77 dificuldade. (...) Agora... Sou do hip-hop, eu não sou pop. O meu som é pra todos, entendeu? Pra pobre, rico, boy, preto, branco, girl... , tá ligado?”. Pobrerico. Preto-branco. Boy-girl. O som de Ilícito é para diferentes classes sociais, raças,
gêneros.
Ser
hip-hop,
para
ele,
é
fazer
som
para
todos,
democraticamente. Para o pobre mudar de classe, é que está o dilema.
A gente nasceu pra ser pobre. (...) Pra quem é pobre, precisa se levantar (...) na maioria das vezes, acaba seguindo a hierarquia, de criar monopólio, e fica sempre em torno de uma parada só e os rico... se comunicam entre si e ficam cada vez mais rico, e aí tem quem se segura dentro do universo que tem, e o outro fica mais pobre.
O olhar de Ilícito retorna de diferentes formas a essa questão. Para “quebrar” esse monopólio, Ilícito e seu grupo fundaram um selo e uma produtora, entendendo a importância da autonomia nesse processo e nas mudanças que são favoráveis à problemática social apontada por ele e seus parceiros. Obviamente, o processo é lento e sujeito a percalços como todo aprendizado autodidata. Estabelecer-se no mercado com um trabalho musical coerente e de qualidade também é parte desse longo processo.
O bagulho tá esse inferno (referindo-se às privações existentes entre a população de periferia que têm causado inveja e até mortes). Por isso que eu penso que gira em torno da obra, tá ligado? Tem que fazer um bagulho bem feito, que seja inquestionável desses universos de vaidade de que ‘se vale mais ou pesa menos’, tá ligado? Que seja uma parada sólida (em relação a sua obra), que contribui no país e pro mundo, tá ligado? Isso aí leva tempo. Muitos tão vivendo pro momento, pela moda, pela evolução tecnológica.
78 Os que vivem sob a ganância e a pressa dos modismos estão entre os que são vistos como “favelados de espírito”66. A favela positiva é a favela das letras de rap, que trabalha a auto-estima de seus moradores, os aspectos positivos do cotidiano dentro dela. A “favelização” negativa caminha na direção vista pelo conceito formulado pelo intelectual brasileiro Milton Santos, que se explicaria pela adoção de modelos de consumo recém-adotados. A falta de dinheiro líquido induziria os indivíduos a economizar nas despesas fixas com habitação, dando, portanto, preferência a outros tipos de consumo relacionados com hábitos “modernos” (aspas minhas)67, que é questionada por Ilícito e, de forma geral, pelo hip-hop brasileiro. Entre as diferentes formas de privação por que am as populações de periferia no Brasil estão a convivência com altos índices de violência, o crescimento populacional vertiginoso desacompanhado pela estrutura de serviços básicos (saúde, educação...) e, conseqüentemente, com piora relativa à qualidade de vida. Viver o hip-hop, para Ilícito, é relacionar-se diariamente com essas questões. É refletir sobre a pobreza, ou sobre “as pobrezas” e as possibilidades de minimizá-la(s). A vontade de Ilícito é ir para perto da natureza junto com a família, mudando-se da casa em que vivem. O que vai me dar qualidade de vida é dinheiro, tá ligado? É essas paradas material, tá ligado? Quero tirar logo minha família daqui, pra gente ir morar num sítio, todo mundo, com seus quarto, suas rede, cada um faz o que quer da vida. E já é.
66
A expressão foi retirada do livro do MC e escritor do Jardim Colombo (São Paulo), Dugueto Shabazz. Ver Dugueto SHABAZZ (2006). 67 Milton Santos, 1979.
79 A qualidade de vida buscada por Ilícito dialoga com a sua percepção dos problemáticos índices da região em que vive (extremo sul da cidade de São Paulo), que trabalha para tentar reduzi-los. No entanto, conquistar qualidade de vida com a ajuda material não implicaria ascensão social para Ilícito. O uso de artesanatos nos braços e no pescoço, por exemplo, diz respeito à forma como ele enxerga o mundo. “Vem do reggae, porque o nosso rap é um rap jamaicano, não é o rap gangsta68 norte-americano. (...) A gente sempre teve a ligação jamaicana. (Comer) Fruta, legume, tá ligado? Esses bagulho jamaicano, cor da África, tá ligado?”. Essa forma de ver o mundo se relaciona diretamente com a possibilidade de melhor qualidade de vida com as mudanças advindas do o a bens materiais. No caso desse o vir a aproximá-lo das classes mais altas, sua postura, quando olhada pela elite, continuaria a relacionar Ilícito entre os “pobres”. O estilo das roupas, a maneira de se portar (ele veste marcas das grifes que fabricam street-wear e tênis, comum entre os que, nas favelas brasileiras, conseguem trabalhar pelo menos para comer e se vestir) associada à maneira de falar dos jovens de periferia (“até pra falar errado tem que saber”, ele diz), com muitas gírias, estão entre os estereótipos criados em torno da pobreza. o à renda não implicaria perda desses estereótipos, no caso de Ilícito. O trecho da entrevista transcrito a seguir fala dessa visão de mundo: As coisas vão se subtraindo cada vez mais. A sua vida se subtrai em sentidos principalmente materiais (...) Essa é a lei do egoísta materialista... ar por cima com um rolo compressor. (...) é muito mais fácil ar com o seu carrão, não sei o que, mostrar tudo o que cê ganhou materialmente. Mas... espiritualmente é um bosta, sabe? Como pessoa, não contribui em nada, só quer ostentar. Eu acho ridículo isso aí. Quero ter tipo um barato pra ir pra cachuera, tá ligado?, pra mim acampar em Paranapiacaba... Minha família 68
Gangsta Rap é um subgênero dentro do hip-hop (conhecido também como G-funk) com letras violentas. Geralmente, os autores têm problemas com a lei, alguns inclusive têm ou já tiveram envolvimento com gangues. (fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Gangsta_Rap)
80 nunca ou um final de ano na praia, tá ligado? Uns baguio besta. E é um baguio que é mais espiritual, sabe. Eu conheço cara que compra até bolinha de baiseball, taco, tá ligado?, a luva... (ri). É muito... sei lá... acho que é cada um no seu skate, mas tipo enquanto os (rappers) norte-americanos ficam mostrando lá os brilhantes, tá ligado?, os ouros, tal... eu dou mais valor pro tiozinho que a aí direto e entorta os arames, que vende os bagulho artesanal. Acho da hora...
6.2
Pobreza versus racismo Para Ilícito, o racismo no Brasil está “implantado” e é “institucional”. E
dentro da “desigualdade social” do País estão todos: negro, favelado, nordestino. Que, para o mundo, são agregados sob o epíteto de “latinos”. Para Ilícito, os que estão excluídos do processo político deveriam se unir. No caso brasileiro, ele entende que o problema é étnico. Conseqüentemente, a pobreza teria um recorte racial69 que precisa ser observado e que é prejudicado pela sofisticada ideologia do branqueamento70. Ele demonstra estar atento às diferentes nuances do racismo brasileiro, como quando comenta que
a gente às vezes vai numas festas aí, nuns casarão, e os caras põem os preto pra tocar no fundo, reprodução da senzala, sabe? Da época dos casarão antigo. Cê pára no farol, o cara te dá um panfleto daquele que, pra você comprar o apartamento, cê vê lá um quarto de empregada, reprodução da época dos escravocrata.
Entre essas nuances, existem aquelas que chegam a ele diretamente por que lhe dizem respeito, e que o obrigam a repensar cotidianamente sobre o “dar a cara ao tapa” a que se sujeita com o seu ativismo em relação às desigualdades raciais brasileiras. A pele branca de Ilícito faz com que ele sofra preconceito no meio do Rap. Ilícito é afrodescendente e, também, descendente 69
A esse respeito, ver Cidinha da SILVA, 2000, p. 133. Ver, a esse respeito, capítulo 5 desta dissertação. Ver também Kabenguele MUNANGA (2004) e Iray CARONE & Maria Aparecida BENTO (2002).
70
81 de nordestino, mas é discriminado por brancos “não pobres”, que lhe dizem: “cê é loco, cê podia tá aqui”. Utilizando-se de sua cor de pele, Ilícito poderia estar do lado dos “privilegiados” mencionados por Bento & Carone. Há uma “identidade ambígua” que lhe causa conflito. Mas ele não se nega a enxergá-la, a relacionar-se com ela “encarando” as diferentes situações colocadas diante de si: do lugar de “branco” em uma sociedade racista, moldada pelo legado da colonização e da escravidão que forjou a cidadania do brasileiro71; mas também do “afrodescendente”. No contexto contemporâneo, o olhar que Ilícito tem para essa questão implica atenção: trata-se de refletir sobre o fenômeno das identidades sem se furtar à sua complexidade e ao processo histórico do qual derivam. Na seção Tendências e Debates da Folha de S. Paulo de 18 de novembro de 2006, o jornal perguntou a dois acadêmicos se o Brasil é um país racista. Antonio Sérgio Guimarães72, autor do artigo que respondia pelo “sim”, justifica sua resposta dizendo que
... somos um país racista, se por racismo entendermos a disseminação no nosso cotidiano de práticas de discriminação e de atitudes preconceituosas que atingem prioritariamente os pardos, os mestiços e os pretos. Práticas que diminuem as oportunidades dos negros de competir em condições de igualdade com pessoas mais claras em quase todos os âmbitos da vida social que resultam em poder ou riqueza. (Guimarães, 2006, p. A3)
71
A esse respeito, ver José Murilo de CARVALHO (2001). A outra acadêmica consultada, autora do artigo justificando o “não” à pergunta feita pelo jornal, não é pesquisadora do assunto.
72
82 O autor se refere às desigualdades presentes no Brasil como “desigualdades raciais”. Ilícito, em determinado momento da entrevista, diz que “o branco continua sendo superior em tudo no Brasil”. “Continua sendo superior”: ele se impôs como superior quando chegou, em 1522, e se manteve nesse lugar durante esses mais de 500 anos de história. Em outro momento do texto, Guimarães discorre sobre a questão:
As desigualdades raciais, ou seja, os diferenciais de renda, saúde, emprego, educação etc. entre brancos, de um lado, e pretos e pardos, de outro, são gritantes e estão muito bem documentados. A julgar pelos resultados, portanto, somos racistas. E esse é o modo como, no mundo atual, a sociologia e as instituições internacionais definem o racismo. Não é pelas intenções, pelas doutrinas ou pela consciência racial, mas pelo resultado de uma miríade de ações e omissões. (Ibid., p. A3)
A Conferência de Durban realizada em 2001 e tida como um dos acontecimentos internacionais mais importantes do final do século XX, em sua Declaração reconhece que a desigualdade de condições, incluindo-se aí condições
econômicas,
podem
“reproduzir
e
promover
o
racismo73”.
Desigualdade de renda pode ser totalmente diferente de desigualdade em outros espaços, como bem-estar, liberdade e diferentes aspectos da qualidade de vida, como saúde e longevidade (Sen, 2000, p. 116). Esses “outros espaços” são relacionados, para o autor, com “outras variáveis relevantes”. No caso brasileiro, a variável em questão diz respeito ao racismo, levantado por Ilícito. No capitalismo, “o dinheiro compra tudo, até status para o negro”
73
Sobre como o racismo se estrutura e se manifesta no Brasil, ver também Cidinha da SILVA, 2002.
83 (Munanga, 2004, p.96). Mas não o impede de ser “barrado” ao tentar entrar em determinados lugares, de ser seguido pelo segurança dentro de um shopping, ou mesmo de ser morto por um tiro de policiais ao dirigir um veículo que o torne “suspeito” de algum crime74. Essa “desigualdade em outros espaços” de Sen é a mesma que é sofrida pelos negros no Brasil. Conseqüência dos efeitos da discriminação hereditária75 que afeta pessoas discriminadas e suas estruturas psíquicas, como pontua Munanga76. Faz pouco mais de 20 anos que foi dado direito a voto à população analfabeta no Brasil. Segundo Alencastro, historiador e professor da Universidade de Sorbonne, “a proibição dos votos aos analfabetos (...) foi feita com o objetivo explícito de barrar a ascensão à cidadania aos ex-escravos (...). A maioria da população analfabeta adulta era negra”. Para ele, os negros estiveram excluídos da cidadania na maior parte do século 2077. Nesses termos, a fala de Ilícito parece corroborar com as proposições de Sen - quanto às diferentes formas de desigualdade – e de Guimarães, quanto à desigualdade racial no Brasil. A discriminação, como a sofrida pelos afrodescendentes no Brasil, está entre os aspectos colocados por Sen no fenômeno da pobreza “não homogênea”78 – e, conseqüentemente, fator a ser levado em consideração para a formulação de políticas públicas no País. Nos últimos vinte anos, os mapas comparativos entre a situação de trabalhadores brancos e negros acusaram que estes possuem déficit muito maior em todas as dimensões da
74
Acerca de mortalidade, o à educação, desemprego e violência entre afro-brasileiros ver Darien DAVIS (2000). 75 Luiz Felipe de ALENCASTRO In STRECKER, 9.7.2006, Caderno Mais!, p. 5 76 Ver Iray CARONE & Maria Aparecida BENTO, 2002, pp. 9-11. 77 Luiz Felipe de Alencastro In STRECKER, 9.7.2006, Caderno Mais!, p. 5 78 Outros autores que pensam a pobreza como fenômeno heterogêneo: Alinsky (1965), Castel (2000), Friedmann (1992) e Spink (1999)
84 vida (saúde, educação, trabalho...79) em relação a aqueles. Como os brancos saíram da escravidão com uma herança simbólica e concreta positiva, fez-se histórico o silêncio a respeito do lugar ocupado por esse grupo na trajetória do Brasil (Bento, 2002, p. 27) – fato que começou a ser questionado com os estudos de um grupo de psicólogas da USP na década de 9080. Ilícito,
fruto
de
um
casamento
inter-racial
(mãe
branca,
pai
afrodescendente), que lhe deu características fenotípicas de ambos, e criado em situação de pobreza em uma das muitas periferias paulistanas que têm em seu contingente uma população majoritariamente negra, carrega consigo questões referentes a um processo identitário complexo. Se por um lado, esse processo identitário não tem respostas rápidas, prontas, ele lhe permitiu olhar para a heterogeneidade da pobreza de seu país. Nessa heterogeneidade está o racismo e a necessidade de combatê-lo uma das bandeiras de luta de Ilícito. A igualdade de oportunidades real para todos em todas as esferas (dentre elas, a do desenvolvimento) foi colocada pelo Comitê Internacional81 de Durban como fundamental no caminho de erradicação do racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata82. As variações nos diferentes “climas sociais” mencionadas por Sen anteriormente, e as preocupações expostas por Ilícito, demonstram a necessidade de reflexões sobre “equidade”83 no Brasil: como pensar em
79
A esse respeito, ver Gomes & Paixão, 2006, pp. 31-40. Iray Carone, 2002, pp. 13-23. 81 Formado por membros da sociedade civil e de Ministérios de diferentes países. 82 III Conferencia Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância correlata (2001), p. 30 83 Conceito reintroduzido pela Teoria da Justiça de Rawls (1997) e mencionado no documento de Durban. 80
85 oportunidades iguais para pessoas que sofrem privação histórica em uma sociedade.
86
7 Análise da entrevista da perspectiva da identidade Acho que a melhor maneira de eu me apresentar é lendo Luiz Gama, que era um advogado, que entrou na política, [a] conheceu de perto, e era abolicionista.
É assim que Ilícito, 28 anos por ocasião de nossa primeira entrevista, responde à primeira parte da pergunta que lhe fiz: “Quem é você?”. Ele sai à procura de um texto. Pega as folhas impressas entre outros papéis em uma estante.
Este texto é de 1859. Na verdade, ele já [o] tinha escrito em [18]56 e foi publicado acho que em [18]59, e ele foi um dos maiores da luta abolicionista. E a mãe dele também, era Luiza Mahin, que lutou na Inconfidência dos Malês em 1835 na Bahia. E ele foi vendido pelo pai que era branco, fazendeiro, feudal, que perdeu toda a riqueza em jogos, ele era viciado em jogos e vendeu o filho como escravo, porque a mãe dele era negra. Depois ele veio pra cá, pro interior de São Paulo e venceu, tá ligado84?
Ilícito é quem traz a questão racial do negro e do branco logo nos minutos iniciais de nossa primeira entrevista. A pergunta é “quem é você”. E o texto que ele escolhe para iniciar a resposta a essa pergunta é, antes, introduzido por um preâmbulo, por uma apresentação de quem é o autor do texto. A história desse autor tem implicação na identificação de Ilícito com o texto. E a questão racial aí aparece duplamente: (1) por Luiz Gama
84
Natural de Salvador, onde nasceu em 1830, Luiz Gama foi vendido como escravo pelo pai em 1840, levado ao Rio de Janeiro e posteriormente a São Paulo, após atravessar a pé a Serra do Mar. Aos 17 anos, aprende a ler e a escrever. Doze anos depois, ele publica a primeira edição de seu único livro, “As primeiras trovas burlescas de Getulino”. Para a professora Ligia Ferreira, autora do texto de apresentação de Luiz Gama na publicação “Luiz Gama: poeta e cidadão – memória da luta negra em São Paulo” (Silva et al., [2004], p. 7-10), “Quem sou eu”, poema mais célebre de Luiz Gama, “zomba da pretensa brancura racial dos que, ‘embranquecidos’ socialmente, renegavam sua descendência africana”. Como advogado, Luiz Gama teria contribuído para a libertação de mais de 500 escravos. Foi, talvez, o único intelectual autodidata brasileiro a ar pela experiência da escravidão.
87 (1830/1882) ter sido alguém que foi escravizado, mas que lutou contra o sistema escravista destacando-se na luta abolicionista e (2) ao jogar luz sobre a origem desse poeta, advogado e jornalista, filho de pai branco e mãe negra, como Ilícito faz questão de nos informar.
Acho que a melhor forma de eu me apresentar nessa pergunta sua é... “Quem sou eu?”. “Quem sou eu? Que importa quem? Sou um trovador proscrito, que trago na fronte escrito essa palavra: ninguém”. É isso. Eu sou aqueles cara que fico... Sou o último do boteco.
“Trovador proscrito”. O dicionário nos ajuda a entender de que falou Luiz Gama e de que fala Ilícito.
Trovador: s.m. 1. designação dos poetas líricos dos séculos XII e XIII do sul da França, especialmente, de Provença. 2. Designação dos poetas líricos portugueses que, nos últimos séculos da Idade Média, seguiam o estilo dos poetas provençais. 3. Aquele que trova, poeta. 4. Poeta medieval; menestrel. (Aurélio, 2006, p. 795)
Proscrito: adj. 1. Que se proscreveu. 2. s.m. Aquele que foi desterrado. (Aurélio, 2006, p. 660)
O trecho que Ilícito utilizou para se apresentar é um pequeno texto que Luiz Gama usa para abrir o seu poema “Quem sou eu?”85, também conhecido como “Bodarrada”. Trata-se de um texto pelo qual é possível entender muito das “veleidades raciais” que impregnaram a sociedade brasileira no século XIX,
85
De autoria de A.E. ZALUAR, do livro “Dores e Flores”.
88 período da formação do Brasil com a Independência do País em relação a Coroa portuguesa, a Abolição da Escravidão e a Proclamação da República, como escreveu o poeta e jornalista Oswaldo de Camargo86 no texto de abertura do livro “O negro em versos” (Santos; Galas; Tavares, 2005). Naquele período, Luiz Gama representou o que Camargo chamou de “o melhor perguntador e respondedor sobre a questão racial brasileira, enrolada desde o início, uma confusão que agradava a muita gente, porque não exigia responsabilidade nenhuma na solução dos problemas do negro brasileiro”87 (Ibid., p. 15-16).
Nesse contexto de muitas misturas étnicas, marcado pela escravidão do homem negro pelo branco, a luta pela liberdade virá acompanhada da sua irmã identidade e vai lançar as grandes questões para a nova sociedade brasileira. Portanto, a questão de Luiz Gama levantada no seu famoso ‘Bodarrada’ parte dos negros para os brancos, fazendo-nos pensar que a partir de Quem sou eu? é que devemos identificar Quem somos nós? (Santos; Galas; Tavares, 2005, p. 28)
Na medida em que Ilícito vai se apresentando no decorrer das entrevistas, a preocupação quanto a “quem somos nós” aparece repetidas vezes. Quer no que se refere ao País, no que se refere à cidade de São Paulo, e no que se refere à “raça humana” ou a brancos, negros e indígenas.
86
Herdeiro das buscas culturais de negros que, no início do século XX, iniciaram a reavaliação da situação do elemento afro-brasileiro e partiram para uma tentativa de inseri-lo social e culturalmente, tendo como armas sobretudo agremiações de cultura, jornais alternativos para a coletividade, teatro negro, a Literatura, sobretudo escrita por poetas de temática afro-brasileira, como Lino Guedes e Solano Trindade. É autor dos livros “O carro do êxito” e “O negro escrito – apontamentos sobre a presença de negros e mulatos na literatura brasileira” (Santos; Galas; Tavares, 2005). 87 Sobre os problemas relativos aos negros brasileiros, nesta pesquisa, não serem tratados como problemas dos negros exclusivamente, ver comentário de Munanga nas próximas páginas.
89 Ilícito é um MC, um rapper. Um poeta do hip-hop. Que, de início, se apresenta como um “trovador proscrito”. Um trovador. A exemplo do Rap, a trova é uma composição popular. Esta chegou ao Brasil com os portugueses, a partir da tradição européia. Aquele, com os estadunidenses. Em uma história que inclui negros, latinos e jamaicanos moradores das periferias de Nova York. Proscrito. Desterrado, expulso, portanto, condenado. Mas que “fica”. É “o último do boteco”. Ser desterrado, destituído de sua terra, de seu país. Essa questão está presente quando ele fala sobre não sabermos de que povos indígenas (desterrados) eram as terras por nós hoje habitadas, não sabermos de onde são os africanos (desterrados) dos quais descendemos. Ao dizer-se “ninguém”, um “ninguém” que “fica”, que insiste em uma determinada luta, dá indícios do esforço pelo reconhecimento que é o que poderá lhe garantir qualidade de vida, como ele nos diz a seguir. Esse reconhecimento viria dos frutos colhidos com o trabalho junto aos que são as questões da sua vida.
A gente plantou, agora tem que colher né? E é o ciclo natural do ser humano que trabalha. Ser beneficiado com o fruto do esforço dele, né? É natural. Agora pra muitos, é o que tô falando, entendeu, vitória é qualidade de vida. Dar tranqüilidade pra minha família, poder continuar transformando o que tá à sua volta, entendeu, porque não adianta mudar pra você sendo que a sua volta tá a mesma merda, entendeu? Então pra mim essa situação continua a mesma, só que eu sou um ponto de ligação que posso transcender e levar muito mais coisas. E pras pessoas podê acreditar que eu posso levar isso a eles, eu tenho que tá bem. Só que o momento não tá bom pra ninguém. E aí que tá o mundo ilusório, da arte, da fama, de você achar que é antes de ser.
Mudar, mudar para melhor. Para Ilícito, não faz sentido mudar pessoalmente e não poder colaborar para uma mudança positiva em relação ao que está ao redor. E essa mudança diz respeito a conhecer e, assim, ter melhores condições de refletir sobre o que está em volta e, então, atuar.
90 Ainda sobre quem é ele, Ilícito responde:
E tem meu trabalho, que é a minha obra, [obra] da minha vida. Hoje como tudo é imediato, é só pesquisar. Minha vida é uma pesquisa. Uma alquimia, né? Que nem fazer um rango, adoro misturar os ingredientes. É isso. Minha vida tá em torno da minha obra. E minha obra não tá nem na metade, tá ligado?
E o que é a tua obra?, eu pergunto. A que Deus mandou pra mim. Só tó psicografando, cê tá ligado?, a parada. É bem isso assim, na verdade, é isso. Tudo que é feito tem uma força superior agindo sempre, responde. A obra é a que Deus mandou pra ele, mas ainda não sei de que deus ele fala. Logo em seguida, ele informa que não gosta de seguir dogmas e que sua religião é o Corinthians.
O pessoal almeja sucesso, almeja fama, Ibope, dinheiro, pá, acredito só num lance, que é qualidade de vida. Minha religião é o Corinthians e Deus é fiel.(...) O que age sobre mim são as forças superiores, que tá em tudo assim, não o homem. Só isso que eu não gosto. Cê se apega com as coisas que cê tá enraizado, né? É quando ele entra na questão do Rastafarianismo88 em sua vida:
Eu tenho o meu estilo de vida rasta, minha filosofia de vida rasta. Não como carne, sô vegetariano, não tão radical assim. Mas eu acho que na filosofia rasta cê alcança uma elevação espiritual e uma vida de conquista em várias outras coisas. Você se torna um rasta com o tempo, então o importante é partir de algum momento.(...) Convivo hoje muito com os irmãos islâmicos, tô
88
Filosofia religiosa surgida como movimento político na Jamaica, na década de 1930. Sua denominação homenageia o ras (príncipe) Tafari Makonen, sagrado imperador da Etiópia, com o título dinástico de Hailé Selassié I. O rastafarianismo propagou-se pelos guetos de Kingston, a capital jamaicana, e, em 1940, o líder Leonard Howell fundava na paróquia de Saint Thomas uma comunidade religiosa chamada The Pinnacle, destruída pela polícia em 1954, quando grande número de jovens, convertidos a essa filosofia, são julgados subversivos. Estreitamente ligado ao reggae, gênero musical surgido em seu contexto, o rastafarianismo deve a ele a sua difusão em escala planetária. Para os rastas, a ganja (maconha) tem status de erva santa e meio de comunicação com Jasrah, o Deus Supremo (Nei LOPES, 2004, p. 560).
91 ali com o Corão, com bastante presságios do Islão89, que eu acho que é uma religião de resistência... Ir prum templo, vô, sem nenhum problema; leio, pra mim, tudo é informação. Acho que a religião educa o povo, tá ligado? Muitos tão esperando Jesus voltar, pra mim ele já veio e tá voltando de novo, tá ligado? Minha família aqui é espírita, altas famílias são protestantes, outras, a maioria são católicos, eu tenho orixá no meu corpo, acredito nos primeiros habitantes da terra, na ligação forte com o candomblé. Gosto de tomar bebida de poder, tá ligado?
Ao falar da sua ligação com o Rastafarianismo, que ele não vê como religião, ele traz também a questão da convivência com a religiosidade alheia e com o exercício de suas próprias crenças – quando se refere ao candomblé, por exemplo, presente no tema desta pesquisa. Na vida de Ilícito, coexistem rastafarianismo, candomblé e santo daime90, introduzido por ele quando se referiu à “bebida de poder” do Daime, também conhecida como “ayahuasca”.
Gosto do Daime, leio muito [Pablo] Castañeda, lance de xamanismo91, de xamã, os “brujo” antigo. Eu ajo muito nessas coisas voltadas à terra memo, tá ligado? Reino Vegetal, alimentação vital. Que é da natureza, que é vital pro homem, se alimentar sem precisar se alimentar dos animais, entendeu? Alimentação vital, comida tradicional dos rastas. Que é baseada em legumes, ervas, frutas, entendeu? Coisas da terra, sem muito extrativismo animal. Mas não tão radical, né?
7.1
Por uma espiritualidade de muitas verdades “Não tão radical”. Ilícito não gosta de radicalismos, como as três
entrevistas realizadas com ele apontaram. E o sentido de “radicalismo” 89
O Aurélio traz “islã” ou “islame” para o conjunto dos mulçumanos, sua religião, cultura e civilização. Para a religião monoteísta fundada por Maomé, o dicionário traz o termo “islamismo” (AURÉLIO, 2006, p. 492) 90 A expressão se refere ao movimento religiosa que teve início entre as décadas de 20 e 40 no estado do Acre e, a partir de 80, expandiu-se por todo o Brasil e para o exterior. Santo Daime também é o nome que os participantes deste movimento religioso dão à bebida que, consumida durante os rituais, teria poder de cura e de transmissão de conhecimento (ROSE, 2005).
92 apreendido das entrevistas com Ilícito é próximo ao de “fundamentalismo”. Na perspectiva utilizada nesta pesquisa, a identidade humana é metamorfose. Metamorfose humana é a progressiva e infindável concretização histórica do vir-a-ser humano, que se dá sempre como superação das limitações das condições objetivas existentes em determinadas épocas e sociedades. Nós somos humanos porque amos por uma “metamorfose humana”, possível graças à nossa natureza humanizável e que se dá num mundo previamente humano (Ciampa, 1997).
A “metamorfose humana” de fato se concretiza durante todo o caminhar, quando o caminho inteiro se faz. Por essa razão, nascemos para começar. O início é como uma semente que, num certo sentido, oculta um segredo, o segredo da vida. Talvez por isso na tradição do Oriente se diz que é próprio dos sábios conhecer os segredos das sementes. Valendo-se dessa imagem, pode-se dizer que o segredo que constitui a semente da “metamorfose humana” é a emancipação; em conseqüência, desenvolver esta significa concretizar aquela. (Ibid.)
Ilícito nos mostra uma busca da autonomia quando escolhe não se prender a dogmas. Prender-se a um dogma seria um fundamentalismo, a recusa do que está para além de uma doutrina. E o que o ajudou a descobrir o caminho para essa escolha foi o Hip-hop. Podemos entender o fundamentalismo como uma pretensão de verdade absoluta que exclui toda e qualquer outra pretensão de verdade.
91
Conjunto de crenças e práticas associadas às atividades dos xamãs, espécie de sacerdote que recorre a forças ou entidades sobrenaturais para realizar curas, adivinhação, exorcismo, encantamentos, etc. (AURÉLIO, 2006, p. 826)
93 As tradições africanas que chegaram ao Brasil, dando origem ao candomblé, demonstraram que não é essa visão presente no cerne dessas tradições, uma vez que dialogaram com outras “pretensões de verdade”, do catolicismo português e das crenças indígenas.
Se cada representante de cada religião estiver indiscutivelmente convicto de que sua fé encarna a Verdade, a comunicação com o outro diferente – comunicação entendida como busca do entendimento comum – inviabiliza-se como tal, a menos que sempre esse outro seja desqualificado como portador de qualquer verdade e que, por isso, o único entendimento possível é o dele, fundamentalista. (Ciampa, 2004[b])
Ao chegar à África, os portugueses desqualificaram os africanos como portadores de qualquer verdade. Ao chegar ao Brasil, fizeram o mesmo com os indígenas. A ambos tentaram impor a sua verdade – do catolicismo – como a única verdade. Outros povos tiveram e têm atitudes semelhantes a essa, com experiências que aterrorizam o mundo atual. É dessa “imposição de uma verdade” que foge Ilícito e que ao mesmo tempo em que afirma que é um homem religioso, dando o referencial das diversas crenças que carrega, de outro lado, sua religião estaria no futebol, mais precisamente no Corinthians – proposição que pode ser interpretada como uma crítica às instituições religiosas dogmáticas e mercantilizadas, como ele nos dá pistas em uma de suas falas. Combater o fundamentalismo é necessário quando se busca por uma sociedade menos hierárquica e autoritária, mais igualitária e democrática. “Isso não é suficiente; porém é necessário, pois esse é o combate que pode unir
94 todos os que estão dominados e impedidos de continuar na diversificada busca emancipatória da infindável metamorfose humana” (Ibid.). Em todas as tradições é possível encontrar um sentido de emancipação. Elas trazem a presença “do humano se revelando, em sua diversidade, na multiciplidade de diferentes formações histórico-culturais” (Ibid.). No caso brasileiro, a formação histórico-cultural de religiões de constituição, em algum grau, “afro”, compreendem candomblé, umbanda, variações regionais e referentes aos seus grupos étnicos fundantes, mas também as diferentes crenças e filosofias resultantes da diáspora africana nas Américas – caso do rastafarianismo e do santo daime. E o que permite encontrar um sentido de emancipação nas diferentes tradições é que cada uma delas “pode nos libertar do etnocentrismo de nossos particularismos, sem o que nos tornamos fundamentalistas. Sem diferenças não há diálogo; há tão-só o eco do que se repete como mesmice e que nada cria” (Ibid.). Do ponto de vista psicossocial, o sentido da vida nos é dado pela noção que adquirimos de sagrado. Seja individual ou coletivamente, vivemos em busca de um sentido para nossas vidas decorrente do significado do sagrado que interiorizamos ao longo de nossa vivência, num processo que, ao mesmo tempo, é de socialização e de individualização (Ibid.). A noção de sagrado desenvolvida por Ilícito é, para ele, um referencial de grande valor: “minha vida é minha obra. Minha obra é Deus quem manda. Só estou psicografando”. Para ele, há uma força superior que age em tudo, que está em tudo. É tudo que tá ao redor, né? O ar, o béque (cigarro de maconha), a natureza, o sol... Tudo é deus pra mim. Tudo que é divindade que é sagrado, eu respeito. Tudo que é entidade. Eu acredito em toda essa parada (sopra a
95 fumaça do cigarro). Por isso que eu não tenho religião. Por causa disso. Minha religião é o Corinthians.
Ampliar a perspectiva dessa formação histórico-cultural das diferentes tradições na vida de Ilícito coube ao hip-hop. O hip-hop acaba sendo essa escola, do cara que é universal hoje, não é tão fechado por grupos, como o Movimento Negro ou uma entidade africana, o candomblé92... não é tão fechado. O hip-hop agrega o mundo inteiro, tá ligado?
Na experiência religiosa de Ilícito de contato com o sagrado, a preocupação em não seguir dogmas demonstra a existência de um sentido crítico em relação à forma de se apropriar da tradição. No caso do candomblé, tradição que lhe chega pela via indireta, por consulta já realizada aos búzios, por idas a toques para orixás, por conversa com uma e outra pessoa e leitura de textos a respeito... Para ele, é importante que não caiba a ninguém a “palavra final”. O espaço para o diferente precisa estar aberto, em direção contrária à crença do fundamentalista, para quem “é dele a última palavra, pois, dele, quem fala diferente está errado” (Ciampa, 2004[a]). Nesse sentido, a identidade postulada por Ilícito é o que Ciampa, baseado em Habermas, define como “identidade pós-covencional do eu”,
Identidade que hoje é possível somente sob a forma reflexiva. Por isso, nega a articulação com imagens de mundo, já que essa identidade não se apóia em conteúdos fixos, o que não significa não ter conteúdos, mas sim dispor de sistemas de interpretação cujo status é sempre ível de revisão. Daí se entender que a
92
Sobre o significa do candomblé enquanto sistema religioso e da forma como foi conceituado nesta pesquisa, ver capítulo 4.
96 identidade pós-convencional implica o procedimento comunitário de participação nos processos de aprendizagem criadores de normas e de valores. (Ciampa, s/d)
Ao criticar a normatividade vigente nas suas diferentes possibilidades de castração do humano, ao voltar-se sempre para o coletivo, ao desenvolver o seu entendimento próprio de sagrado – a partir de práticas que foram historicamente vilipendiadas pelas “normas vigentes” – Ilícito está apontando para o desenvolvimento de uma identidade pós-convencional. Ilícito luta contra a “colonização do mundo da vida”, ao negar que tudo não e de uma questão de eficiência e ao procurar um sentido para a sua vida. “A ordem sistêmica, além de incrementar a opressão e a exploração, cada vez mais amplia a colonização do mundo da vida, através de uma ação ideológica que afirma ser a busca de sentido uma questão sem sentido, pois tudo a a ser uma questão de eficiência” (Ciampa, 2002). Ilícito busca caminho contrário ao da internalização da coerção social pelos indivíduos que representa a degradação da vida social e das pessoas em suas relações cotidianas (Cf. Ciampa, 1997). Após algum tempo sem resposta, a segunda parte da pergunta foi refeita: quem você gostaria de ser?
Eu mesmo. Ser quem? E como é que é, eu mesmo? É essa coisa que eu me transformei aqui, mutante. Mutante? Como assim?
97 Que não pára de se transformar, meu. É que nem o hip-hop. O hip-hop não cresce o tempo inteiro? Os cara acha que é só música. Não é só música. Tem muita coisa acontecendo. Mutante memo.
7.2
Hip-hop como mecanismo para conhecer as diferenças e chegar à afrodescendência Ilícito, em vários momentos, apontou para a característica múltipla do
hip-hop. É o que ele traz quando fala sobre a diferença entre ser do hip-hop e ser hip-hop.
Ser hip-hop é dormir e acordar fazendo essa parada. Ser do hip-hop é só ir na galeria [referindo-se à galeria da Rua 24 de Maio, no centro de São Paulo] e comprar o kit, tá ligado? Agora, “ser hip-hop”, é você dormir e acordar fazendo essa parada, dentro de todo o universo que ele proporciona, tá ligado? Ser do hip-hop é só ir na galeria e comprar o kit, que é o que mais acontece. Mas penso que é positivo também, sabe?, porque... a pessoa tem que começar de algum ponto, tá ligado? É do bumbo, ou é da caixa, ou é da bombeta, é do estilo... aí depois é todo um processo de evolução que é natural. Pelo menos já pegou um ponto do... da matrix. Porque... acordar da parada é um processo também. O que a gente precisa pra fazer essa parada do hip-hop ligada à mente é fazer... é ter uma evolução, que é o que os elementos do hip-hop proporcionam. Toda a história, toda a atuação social, cultural, política, militância, é... educacional. Tudo que o hip-hop proporciona pra se transformar nessa evolução musical, ou da trança, ou da parada artística, pra você tomar um nível nacional, mundial, porque é o que os caras fazem lá fora. Quebrar essa barreira de falar assim “eu só sou do hip-hop”. Hiphop é um mecanismo, é a cultura que te transforma, pra você ser um artista de ponta como qualquer outro de outro estilo musical, por exemplo, no mundo da dança e assim também no mundo das artes plásticas, tá ligado?
Ilícito se autodenomina um hip-hopper. Um hip-hopper mutante. Pergunto a ele o que isso quer dizer.
É ser universal, mano. Todos os lugares do mundo que eu já fui, tem um irmão que é que nem eu. Iss´é da hora. Independente da etnia dele. O problema do Brasil é étnico, tá ligado? O lance de não saber respeitar as etnias. Muito mais que a pigmentação e a cor da pele, é respeitar as etnias, entendeu? As etnias indígenas, africanas, européias, árabes, toda a influência
98 mundial... Que a raça do planeta tá aqui. Todas. Os orientais... tudo. É saber respeitar isso93. Para se dar conta da existência das diferenças entre os grupos humanos e do não-respeito a elas, o hip-hop foi um mecanismo. O hip-hop é infinito, ser hip-hopper é ser universal. Ilícito é universal. Ele olha ao seu redor e, simultaneamente, olha pro mundo. Paul Gilroy (2001) possivelmente trataria Ilícito como um “intelectual orgânico”. Em sua análise sobre os negros da diáspora e da modernidade, o autor trata a música negra (“tradições inventadas de expressão musical”) como apoiadora do surgimento dessa “casta distinta” (que ele chama de “intelectual orgânico”) que tem se apresentado como guardiões temporários de uma sensibilidade cultural distinta e entrincheirada que também tem operado como um recurso político e filosófico (Gilroy, 2001, p. 163-164).
[Ainda que] as colônias de cada país que não perderam as suas origens [aqui no Brasil]. E o mais loco disso é que já se misturaram de uma forma que eu vejo que foi tão agressiva quanto à norte-americana e talvez até muito mais, porque trabalhou no inconsciente do povo, tá ligado? Mas que é loco, que [aqui] é o caldeirão das raças, caldeirão do mundo, e eu luto contra o racismo, acredito nisso, luto contra as diferenças, as indiferenças, minha luta é baseada no lance étnico, tá ligado?, de como a sociedade brasileira, onde o racismo é implantado nas leis e foi jogado pro povo, como lidar e respeitar as etnias. É problema étnico. Assim como o negro teve várias definições, eu fazendo música de preto também tem várias definições quando eu ando pelo Brasil, tá ligado? Me chamam de várias formas, tá ligado. O último foi “africano de pele clara”. Eu acho que é um lance que vai além da cor da pele, é um lance de uma poesia que fala “que a pele negra não seja escudo para os que habitam na senzala do silêncio, porque nascer negro é conseqüência, ser é consciência”. É isso. O conhecimento, que é a definição do quinto elemento, né?, dos cinco elementos que o hip-hop contém.
93
A respeito da análise conceitual de etnia nesta pesquisa, ver capítulo dedicado à análise da entrevista da perspectiva étnica.
99 A mistura de que fala Ilícito faz parte da crença que sustenta a ideologia racial brasileira (Telles, 2003). Mais adiante, ele fala em “embranqueamento”, ou “branqueamento” que, anteriormente à difusão do conceito de “democracia racial” propalado por Gilberto Freyre, sustentava-se na idéia de que a miscigenação era negativa (Ibid., p. 50-51). Ilícito também fala o que pensa sobre o que é ser negro quando se refere à poesia que cita. Ser negro, para ele, depende menos da cor da pele e mais da consciência que se tem do processo histórico, do patrimônio cultural do qual se partilha. Mas não é como “negro” que Ilícito se classifica. “Negro” é uma concepção associada à cor da pele. É por essa razão que ele diz que se se dissesse negro, chocaria seus interlocutores. “Mas se disser que eu sou afrodescendente, eu sou”. O psicólogo Ricardo Franklin Ferreira (2000, p. 140), ao analisar em sua tese de doutorado a identidade de um militante do Movimento Negro que fazia parte do meio acadêmico (João), concluiu que a noção de identidade afrodescendente (defendida por João) em lugar de identidade negra sugere
... um indivíduo que se constrói em torno de uma história de ancestralidade africana, uma concepção não necessariamente associada à cor de pele, tonalidade, matiz ou especificidades anatômicas. Valoriza uma de suas particularidades, o fato histórico de ter, cultural e fisicamente, raízes africanas, favorecendo muito mais um posicionamento afirmativo dos indivíduos em torno de valores pessoais do que uma atitude de negação e confronto para com um grupo de pessoas consideradas “contrárias”. (Ferreira, 2000, p. 140-141)
100 O conceito de identidade afrodescendente apontado por João (Ibid, p. 139) dialoga com o conceito de identidade que “se faz dentro de um exercício político”. Disso, Ferreira apreende que a identidade afrodescendente não é “uma mera representação de indivíduos com determinadas características físicas e cor de pele negra, mas um constructo pessoal, referência constituinte do mundo simbólico de pessoas, construído por meio de práticas sociais, contendo especificidades históricas e, principalmente, determinante de atos sociais” (Ibid., p. 139-140). Nesse sentido, a afrodescendência é uma referência “que pode ou não ser internalizada pelo indivíduo”. Se internalizada, poderia ser considerada como um valor a fazer parte da identidade do indivíduo.
...Pessoas com identidades pessoais articuladas em torno de valores semelhantes podem unir-se e mobilizar-se com muito mais consistência para causas comuns, como se fosse uma “bandeira” construída a partir de identidades já corporificadas pelos indivíduos. (Ibid., p. 140)
Ciampa, em seu texto “Políticas de Identidade e Identidades Políticas” (2002),
nos
diz
que
grupos
sociais
lutam
pela
afirmação
e
pelo
desenvolvimento de suas identidades coletivas, no esforço de controlar as condições de vida de seus membros, enquanto que os indivíduos buscam a transformação e o reconhecimento de suas identidades pessoais “na tentativa de resolver conflitos em face de expectativas sociais conflitantes”. Mais
101 adiante, ele traz como exemplo o estudo de Neuza Guareschi94 sobre Políticas de Identidade, em que a autora trata do tema de como determinados grupos sociais e culturais têm lutado para afirmar suas identidades (Guareschi apud Ciampa, 2002), referindo-se a “grupos com identidades discriminadas, marginalizadas ou oprimidas por setores dominantes ou elitizantes da sociedade” – situação encontrada na história de vida apresentada por Ilícito. Ciampa remete o trabalho de Guareschi à “chamada identidade negra”95. Ao lado de uma “identidade negra” haveria que se considerar uma “identidade branca”, não se podendo ignorar as políticas de identidade de setores dominantes ou elitizantes da sociedade. As formulações de Ilícito caminham paralelas a esse raciocínio (Ibid.).
O Brasil ficou preto, tá ligado?, e índio, aí os caras falou “porra mano, ficou preta essa porra aí, tem que deixar branco”. Aí trouxeram mais de 3 milhões de europeus96 com condições de trabalho, com pedaços de terra, já com sementes pra plantar, com apoio do governo, aí colocaram eles mais pro Sul, lá pros lados de Crisciúma, tá ligado?, e foram dando as terras mais produtivas, tá ligado? Foi diferente com o que aconteceu com os indígenas que ‘rancaram a terra deles; com os negros que vieram como... mercadoria. Entendeu? Então o quê? O país ficou preto. Ainda mesmo assim, nóis é preto, ainda continua sendo a segunda maior nação e mesmo assim não conseguiram embranquecer o País.
Ao apresentar a sua leitura do contexto histórico em que vieram para cá europeus e africanos, ao reconhecer na vinda dos europeus a política de embranquecimento que foi implantada no País e ao concluir que “ainda mesmo assim, nóis é preto”, Ilícito está falando do fato de o Brasil, sendo um país de 94
Neuza GUARESCHI. Políticas de identidade: novos enfoques e novos desafios para a psicologia social – in Psicologia & Sociedade, 12 (1/2): 110/124; jan/dez. 2000. 95 A explicação sobre a opção pelo uso de identidade afrodescendente nesta pesquisa está no subcapítulo 3.2.
102 população majoritariamente negra97, ainda continuar sofrendo com o racismo institucional.
Eu sei que minha família é descendente de italiano porque os italianos, os europeus vieram com uma condição melhor. Dentro desse processo de embranqueamento, que veio esses padrões que a gente tem, entendeu? Na televisão, por exemplo. Que é, é tudo padrão europeu, né? E norteamericanizado. E... E é isso. E eu acho que o rap que abre sua mente pra essas parada... E as influências com o sagrado, né?
Em contraposição ao fato de não saber de onde vieram os africanos que aqui foram escravizados98 e dos quais ele também descende, é possível imaginarmos o seguinte raciocínio: “epa, sei quem são meus ancestrais brancos. Epa, só tem branco na TV. Epa, não sei quem são meus ancestrais negros. E ninguém sabe me dizer quem foram, de onde vieram”. Ilícito não usou essas palavras na sua fala, mas a suposição de seus questionamentos demonstram ter caminhado nessa direção. Segundo Telles (2003), o branqueamento e a democracia racial são os dois pilares da ideologia racial do Brasil. A ideologia do branqueamento tentou afastar o temor que dominou o País no século XIX, de que a miscigenação – malvista em função das crenças pseudocientíficas de que a humanidade era dividida biologicamente em raças e os negros estariam na base dessa pirâmide – condenaria o Brasil ao subdesenvolvimento. Foi então que as elites 96
Darcy Ribeiro (2006, p.176) fala na chegada de 7 milhões de europeus que vêm ao Brasil por causa da crise do desemprego em seu continente de origem. Desses, 4 milhões e meio teriam se estabelecido definitivamente no país, principalmente em São Paulo. 97 Na denominação do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), para o qual a população negra brasileira é constituída por pessoas de pele preta e de pele parda. 98 “Com o primeiro disco do grupo, o objetivo era traçar o caminho da origem do povo brasileiro. De onde que veio essa galera? Eu perguntava pro meu pai, perguntava pros meninos do grupo, só sei que veio da Cafelândia, da Cafelândia, num sei... Mas que etnia africana? Então começamo a traçar a nossa história, do que é a periferia, a partir dos quilombos. Nós somo da rua, hip-hop é da rua, e aí [viemos] misturando essa parada, essa parada étnica do povo brasileiro” (Ilícito, em uma das entrevistas para a pesquisa).
103 brasileiras, com o apoio de pequena parcela da comunidade científica, decidiram que podiam eliminar a grande população de negros por meio de um processo de branqueamento que fazia uso da miscigenação, acompanhada de uma imigração européia maciça. O branqueamento se tornou uma “ideologia popular”, categorizando a qualidade do indivíduo com base na raça (Ibid, p. 6263). Quando o racismo científico entrou em decadência, a elite brasileira ou a defender a idéia de democracia racial. Os seus defensores se apóiam no fato de que se não há diferenças biológicas entre os diferentes povos que formam o País, então, não faz sentido dizer que haja divisão de grupos humanos hierarquicamente. A comprovação de uma possível não-existência de racismo no país estaria no processo histórico da miscigenação no Brasil, transformada por Gilberto Freyre no mais importante símbolo da nossa cultura. Para o autor de “Casa Grande & Senzala”99, as relações sociais entre negros e brancos no Brasil eram fluidas, desde o período da colonização em função do nascimento
de
cidadãos
brasileiros
“mestiços”.
Segundo
Freyre,
a
miscigenação foi possível por causa da falta de mulheres brancas para os colonizadores portugueses e também pela predisposição desses para a mescla cultural. Foi assim que, sob influência do antropólogo Franz Boas, Freyre apresentou na década de 30 “uma nova ideologia nacional”, em vigor no Brasil até a década de 90 – quando o Estado brasileiro reconheceu a existência do racismo no país e ou a implementar reformas raciais (Ibid., p. 62-63).
99
1933 é o ano da publicação do livro, tido como original à época por “considerar a contribuição africana como um fator cultural importante, embora secundário, à formação de nossa nacionalidade”. Nessa sociedade “culturalmente sincrética” de Freyre, as diferentes “etnias” que a formavam teriam contribuições diferentes qualitativamente. “Uma diferença que se basearia na centralidade do português
104 O que Ilícito faz com sua obra é buscar uma convivência igualitária entre as raças, a partir do respeito às diferenças, na tentativa de superação o racismo. Nessa linha de raciocínio também nos coloca Munanga, para quem a solução para o racismo não está na negação das diferenças ou na erradicação da raça, mas sim na luta e numa educação que busquem a convivência igualitária das diferenças. Segundo esse raciocínio, não é a raça o que cria problema, mas sim a diferença fenotípica por ela simbolizada (2005-2006, p. 56).
Todo brasileiro é afrodescendente100. Isso é uma música nova que eu tô fazendo. Todo brasileiro é afrodescendente, entendeu? Então é isso. Todo brasileiro é afrodescendente. Todo. É. É isso aí. Porque o Brasil é uma África. Né? Depois da Nigéria, eu acho que é onde tem mais concentração de negros no mundo. Isso fora do continente africano. E o Brasil não se vê, tá ligado? O Brasil não se vê, porque... o padrão estipulado é essa..., esse padrão norteamericano-europeu-nórdico, né? Mas assim..., é..., a presença africana no Brasil é muito forte e até a presença do Brasil na África é forte, entendeu101? Todo brasileiro é afrodescendente e tem que ter consciência disso, entendeu? Por exemplo, no meu caso, que... não tenho muita melanina, né, e várias definições, mas assim, é, é eu sou... Eu posso falar que eu sou afrodescendente, entendeu? Se eu falar que eu sou negro, os caras podem chocar um pouco, né, pela minha falta de melanina, mas pra mim, tamém, o que importa é o que eu sinto, né?, que eu sei o que eu sou. E o que importa é que alguém também ache que eu deva ser alguma coisa, se o cara achar que eu sou branco, tá bom, vou ser o branco, se o cara falar “cê é preto”, eu sou preto. Se o cara falar “cê é universal”, sou universal! “Cê é alienígena!” Eu sou alienígena! “Você é um fantasma, né?” Eu sou um fantasma, véio. Tá ligado? É isso. O que for necessário pra plantar o amor e as coisas fluírem, nóis se adapta, entendeu?
como responsável pela adaptação da civilização européia aos trópicos, através da assimilação da cultura indígena e da africana na formação nacional” (Muryatan BARBOSA, [2007]). 100 Alguns dias após a realização dessa entrevista, em uma atividade coletiva em que nos encontramos, ele veio até mim para me dizer que a música “Olhos Coloridos”, de Sandra de Sá, foi o que despertou nele esse pensamento, no verso que diz “todo brasileiro tem sangue crioulo” (Cf. Olhos Coloridos. Sandra de Sá. Sandra Sá. Faixa 5, n. 103.0689 RCA-Victor. 1986). 101 Para o historiador Alberto da Costa e Silva ([2007], p. 67), estabeleceram-se padrões culturais comuns nas “duas margens do Atlântico”, cidades e vilarejos costeiros ligados pelo tráfico de escravos. Entre eles, padrões relacionados a habitação, cozinha, vestimentas, festas, ou seja, “em quase todos os modos de vida”.
105 Em outro momento da entrevista, ele diz: Então assim, eu não tô mais pra provar porra nenhuma pra ninguém, sabe?, não quero saber se as pessoas acham se eu sou branco, se sou preto, tá ligado?, e foda-se, eu sou universal, a raça é humana, quem vim bater de frente comigo, eu tô preparado pra qualquer fita... Eu sou positivo, não sou esse lado negativo. E o rap, o dia-a-dia dos monstros, o mundo capitalista, me deixou um monstro, tá ligado?
Dos sentimentos expressos nesses dois trechos, chamam a atenção quando ele diz que “o que importa é o que eu sinto”, próximo à fala sobre a questão da sua afrodescendência; mas também a questão de ser universal – que reaparece quando ele diz que a raça é humana. O fator histórico que “aprisionou” os afrodescendentes à margem dos direitos básicos da humanidade, marginalizando-os por todos esses séculos de história e nesse pouco mais de um século de fim da escravidão no Brasil, parece exercer papel fundamental na luta de Ilícito pelo fim das diferenças como razão de discriminação, e pela valorização daquele que, ao ser visto como “o diferente”, foi excluído, estigmatizado. Um sentimento de identificação o une ao que foi visto como diferente, pela luta do reconhecimento da sua diferença de forma não hierarquizada, mas igual. Afinal, somos todos humanos, o homem, no seu multiverso102, é universal.
7.3
Processos civilizatórios africanos e cultura brasileira Uma das perspectivas para se falar da forte presença africana no Brasil
– que permite uma reflexão sobre a afrodescendência dos brasileiros – está na concepção de um “processo civilizatório” desenvolvida por Joel Rufino (2000). O autor nos fala que nós, brasileiros, nos encontramos diante de um processo
106 civilizatório (grifo nosso) em que as culturas negras representam o “núcleo pesado”.
Ao dizer civilização, queremos significar encontro prolongado de culturas distintas gerando produtos novos e sofisticados – como foi o caso, por exemplo, do Egito faraônico, do Renascimento ou da Revolução Americana; e ao dizer culturas, nomeamos campos-de-força em que se condensam as representações e os sentidos. Essa percepção é antiga no pensamento brasileiro, vem pelo menos da segunda metade do século ado, quando se tratou de projetar a Nação designando um lugar para a maioria negra e mestiça excluída da “cultura”. Nos anos 70, com a emergência dos movimentos negros, acentuou-se o que diferenciava negros de brancos, mas isso só funciona como tática – digamos assim – de luta organizada contra o racismo. Efetivamente, negros e brancos são, no Brasil, desiguais sociais e, freqüentemente, muito desiguais. Democracia racial nunca ou aqui de atroz ironia. No campo das representações e dos gestos – das expressões sinceras – não há diferenças importantes entre o brasileiro negro e o branco. A discriminação dos nãobrancos fica sendo entre nós, portanto, uma espécie de esquizofrenia – a divisão de mente com a subseqüente rejeição de uma das partes e substituição da visão realista por fantasias e delírios. (Rufino, [2000], p. 377)
Quando Ilícito nos diz que “o Brasil é uma África que não se vê”, ele se refere ao projeto da Nação que designou um lugar para a maioria negra e mestiça excluída da “cultura”. Mas se as culturas negras são o “núcleo pesado” do nosso processo civilizatório, porque do encontro prolongado delas com as culturas dos portugueses e dos indígenas nasceu esse produto sofisticado que 102
Aplicando o termo usado por Xavier (2000).
107 é o patrimônio cultural da sociedade brasileira, então, brancos(as) e negros(as) brasileiros(as) se “igualam” por trazerem em si essas “expressões sinceras”. Dessa perspectiva, todo brasileiro é afrodescendente. Uma das formas que Ilícito vê de combate às diferentes formas de discriminação que sofrem afrodescendentes é partilhando desse conjunto de significados e promovendo uma reflexão sobre a mistura conformadora da sociedade brasileira. Não da perspectiva biologizante ou fenotípica (pela qual ele é discriminado), mas da perspectiva cultural.
Não dá pra você falar que cê é preto, simplesmente, ou que você é índio simplesmente, ou se você é branco, ou se você é nordestino, porque é tanta influência, e tanta contribuição que a gente teve... É diferente por exemplo em Kingstom, que... 100% da favela é preta, se aparece um branco é uma vez na vida, então cê entende que ali é um contingente, entendeu?, africano, mesmo, entendeu?, aí cê define. Mas São Paulo? O que cê define em São Paulo? Não tem mais [o que definir]. O que que é a sua família? Já ficou branco e preto, o que que você é, entendeu? Que nem já foi falado num debate do Movimento Negro, aí um cara falou que era preto, o outro falou que era branco, “minha mãe é branca o meu pai é preto”, um negócio assim. Então alguém perguntou “e eu sou o quê? Cor de ...103? Então eu vou embora dessa .... Vão todo mundo se ..., que eu vou embora”. Entendeu? “Então minha cor é de ...?”. Racista tem que se .... Vai se ..., mano. Racista, não importa se é branco, se é preto, índio, da onde ele saiu, tá ligado?, é racista, tem que se ..., mano, e eu não fiquei lá porque não concordo com isso aí, sou ser humano, entendeu?
A discriminação a que Ilícito se refere nesse trecho da entrevista é, para ele, uma atitude racista. Sabemos que na definição de racismo para o Movimento Negro brasileiro, somente um grupo hegemônico pode ser racista contra outro grupo humano de uma determinada sociedade104. Sejam racistas, sejam preconceituosas ou de discriminação, tais atitudes não dizem respeito
103
Reticências foi a forma escolhida por Ilícito para ocuparem, no corpo da dissertação, o lugar de palavras utilizadas por ele como xingamentos. 104 Para uma explicação mais detalhada a respeito, ver Xavier, 2000.
108 apenas ao indivíduo ou ao grupo contra o qual são dirigidas, mas a todos os membros da sociedade a que pertencem.
7.4
A questão racial brasileira é problema de todos os cidadãos brasileiros Em entrevista a Ciampa, por ocasião dos 500 anos da chegada dos
portugueses ao Brasil, Kabenguele Munanga formulou uma longa resposta a respeito da discussão sobre a quem competiria a reflexão sobre a problemática referente ao negro no Brasil e à participação de negros e não negros nesse debate.
Sempre achei errado falar do “problema do negro na sociedade brasileira”, pois o negro não cria – como nunca criou – problemas para a sociedade. Pelo contrário, ele ajudou a desenvolver a economia, criar riquezas, povoar o território e construir a cultura e a identidade do País. A própria sociedade brasileira é que tem uma enorme dívida histórica com o negro. Há problemas, sim, mas devemos entendê-los como problemas da sociedade brasileira em relação ao negro e não o contrário. (...) Vejo o preconceito, a discriminação e o racismo antinegros como problema da sociedade brasileira, ou seja, como problema nacional cuja solução depende da participação de todos os cidadãos. No campo da pesquisa social, da reflexão crítica e das propostas de transformação da sociedade, devemos contar com a participação de todos, sem discriminação de cor, sexo ou religião. (Ciampa & Munanga, 2000, p. 9)
Segundo a visão do antropólogo, “todos – vítimas e não vítimas do racismo – temos o direito – e até a obrigação – de tecer nossas reflexões sobre
109 os fenômenos sociais nacionais, independentemente de nossa origem social, racial, sexual e religiosa” (Ciampa & Munanga, 2000, p. 9-10). Nesse sentido, “desqualificar a reflexão dos brancos sobre os não-brancos e vice-versa seria despojar alguém de seus direitos de cidadãos brasileiros perante uma questão nacional” (Ibid., p.9-10). Quando Ilícito traz seu ponto de vista sobre a discriminação que sofrem os que não têm pele escura em atividades do Movimento Negro ou de debatedores das questões raciais no País, ele também fala do processo histórico em que as culturas e o modo de vida do negro foram historicamente desmerecidos, encobertos, diminuídos, e do qual partilhamos todos, brasileiros e brasileiras. As diferenças estão aí. Diferenças que, para ele, deveriam ser pensadas menos da perspectiva fenotípica, da aparência, do tom da pele, e mais pela diversidade cultural dos diferentes grupos que formam este país; menos pelas características biológicas e mais pela perspectiva histórica:
Tem “blackitude105”, tem agora até branquitude, que é o que eu faço, entendeu? Tá ligado? A minha atitude é de branquitude. Quem tinha que combater a doença, não era o índio, nem o negro, era o branco, porque foi ele que fez a merda. Todas as raças já foram escravas, mas ele que fez a merda. Quem tinha que ter movimento, era branco, pra rebater a merda que eles feiz com o povo oprimido, com os latinos, com os indígenas, na América indígena, com os africanos... Quem tinha que tá lutando contra essa parada era os brancos. E eles são os últimos a conscientizar disso. Como que eles querem formar nóis numa faculdade, pra ser doente? Pra escravizar o nosso povo? Tá ligado? Eles estudam a vida inteira pra ser um escravocrata? Então eu não quero estudar, não quero formação de coisa nenhuma, entendeu? sabe?, eu vou viver no submundo, vou viver em vários mundos, em vários subsubmundos. Tá ligado?
105
Ilícito aqui se refere ao coletivo da Bahia de nome “Blackitude”, que entende o hip-hop como desdobramento do movimento negro. “Da sua forma, a Blackitude concebe a arte como forma de luta contra o racismo que vitima o povo africano onde quer que ele se encontre. Por isso Blackitude: blacks + atitutde, blacks com atitude” (Maca, 2005).
110 Atitude de “branquitude106”, para Ilícito, é a atitude do branco em – reconhecendo o seu papel histórico na conformação do Brasil – engajar-se politicamente na luta contra o racismo. Na Psicologia Social, “branquitude” é o conceito relacionado aos traços da identidade racial do branco brasileiro a partir das idéias sobre branqueamento. Alguns pontos da branquitude são a não-percepção da discriminação e o desconforto por parte dos brancos quando têm de abordar assuntos raciais; a raça não é vista como diferença, mas como hierarquia e as fronteiras entre negros e brancos são sempre elaboradas e contraditórias (Bento, 2002). Essa concepção de Ilícito demonstra que ele não vê a questão racial no Brasil como “um problema do negro” e que o seu raciocínio se alinha com a idéia de reconhecer a sua branquitude, ou seja, a existência da omissão do branco em relação à problemática resultante dos cerca de 400 anos de escravidão do negro para a sociedade brasileira. Evitar focalizar o branco é evitar discutir as diferentes dimensões do privilégio. Mesmo em situação de pobreza, o branco tem o privilégio simbólico da brancura107. Além disso, há benefícios concretos e simbólicos em se evitar caracterizar o lugar ocupado pelo branco na história do Brasil (Cf. Bento, 2002, p. 27). Para Bento (Ibid.), no entanto, a referência da questão dos negros no Brasil como problema “do outro” está relacionada à noção de que o humano universal é o branco. A psicóloga nos informa que, para Janet Helms108, a evolução de uma possível identidade racial branca não-racista pode ser 106
Na Psicologia Social, “branquitude” é o conceito relacionado aos traços da identidade racial do branco brasileiro a partir das idéias sobre branqueamento. Alguns pontos da branquitude são a não-percepção da discriminação e o desconforto por parte dos brancos quando têm de abordar assuntos raciais; a raça não é vista como diferença, mas como hierarquia e as fronteiras entre negros e brancos são sempre elaboradas e contraditórias (Bento, 2002). 107 Discussão também presente no capítulo sobre etnia.
111 alcançada se a pessoa aceitar sua própria branquitude, e as implicações culturais, políticas, socioeconômicas de ser branca, definindo uma visão do eu como um ser racial. “Ó véio, eu sou branco sim, mas não sou esse branco que tu tá falando não, véio”. Com essa frase usada por Ilícito em uma discussão em que ele foi “discriminado” por ser branco, ele fala de seu reconhecimento histórico do papel do branco na problemática racial brasileira e de seu engajamento na luta contra o racismo no Brasil. Para Ilícito, é conflitante a situação dos que apontam para o branco e dizem “você é branco” e, do outro lado, dos que dizem “você é louco, poderia estar aqui”. Ao terem essa atitude diante do posicionamento de Ilícito, esses indivíduos demonstram introjeção do ideário racista pelo qual ser negro é estar fora da cultura hegemônica e da qual os próprios afrodescendentes são “vítimas”. Se o negro está inserido em um meio social em que apreende que ser negro não é bom porque os referenciais associados a essa identificação étnica são negativos, os brancos inseridos nesse mesmo meio social também terão esse ideário tatuado em seu imaginário. A “identificação étnica que a a ser reprimida em função de um contexto desfavorável” que leva um indivíduo negro a se esforçar para aderir a uma cultura hegemônica está presente também no imaginário do indivíduo branco. O racismo que pode gerar ambigüidade e conflito identificatório em um indivíduo negro pode também gerar ambigüidade e conflito identificatório em um indivíduo (visto como) branco, mas e que não se identifica com o grupo de pertença que lhe é atribuído (Cf. Ferreira, 2001, p. 29-30).
108
Apud Bento (2002)
112
Como no Rap, eles não queriam me aceitar porque eu sou branco, entendeu, e quando eu vou falar de negritude dentro dum movimento negro, isso choca, e quando eu chego na sociedade, um cara tatuado, branco, falando do lado dos preto, os cara fala “cê é loco, cê podia tá aqui”. Só que naquele esquema eu não vou, tá ligado? Nessa parte eu não participo. E aí é um grande conflito, entendeu? Cê acaba sendo discriminado pra caralho tamém, sabe? Porque meu contingente, eu sou uma minoria dentro do meu contingente, entendeu? E cê acha que é fácil? Cê acha que é fácil ser 1% de branco, 10% de branco numa parada de maioria preta?
Ilícito é minoria dentre os brancos brasileiros, ao reconhecer a sua branquitude, ao entender que todo brasileiro é afrodescendente, que ele é afrodescendente mesmo tendo pele, cabelo e olhos claros e traços nem-tãonegróides-assim. Ilícito é minoria dentro do Hip-hop, por ter a pele branca e estar, entre os pretos, falando de negritude, anti-racismo, defendendo o lugar de Zumbi dos Palmares entre os heróis da história do Brasil, participando de eata no dia 20 de novembro109 e subindo no palco entre lideranças e ativistas do Movimento Negro para “fazer o movimento” que a grande maioria dos brancos do País não fazem.
7.5
Identidade como processo A emancipação de Ilícito está presente na luta contra a opressão
econômica (o sistema capitalista que impõe regras de consumo e comportamento com base na exclusão de uns e inclusão de outros), que ele enxergou como sendo, no caso brasileiro, intrínseca ao processo histórico de
109
Dia Nacional da Consciência Negra, decretado por lei feriado em algumas cidades brasileiras. A data é celebrada em lembrança à morte de Zumbi dos Palmares, ocorrida em 1695. Segundo Lopes (2004), sua criação foi resultado do trabalho da militância negra, a partir da campanha deflagrada em 1971, no Rio Grande do Sul, pelo Grupo Palmares, sob a liderança do poeta Oliveira Silveira. A data foi estabelecida por assembléia nacional do Movimento Negro Unificado (MNU) realizada em Salvador (BA), em 4 de novembro de 1975 (p. 235).
113 formação do País, a partir da exploração da mão-de-obra de africanos escravizados e que nunca tiveram sua contribuição e sua diversidade cultural e humana reconhecidas nesse processo - e a quem tardiamente começaram a ser destinadas políticas reparativas pelos danos causados pelos cerca de três séculos e meio de escravidão. Ilícito não tem uma comunidade de referência no grupo humano no qual a sociedade o enquadraria por suas características físicas mais evidentes em termos fenotípicos. Na abordagem relacional da identidade, o reconhecimento entre os indivíduos de um mesmo grupo é por onde se dá essa consciência de si necessária à construção identitária dentro do grupo em questão. “O conhecimento de si é dado pelo reconhecimento recíproco dos indivíduos identificados através de um determinado grupo social que existe objetivamente, com sua história, suas tradições, suas normas, seus interesses, etc.” (Ciampa, 2004[a], p. 64). O autor nos alerta que um grupo pode existir objetivamente, mas seus componentes podem não se identificar como seus membros, e nem se reconhecerem reciprocamente. Talvez esse seja o caso de Ilícito em relação ao grupo racial branco: ele precisa se defender, ao ser chamado de “branco”, dizendo não ser “esse branco” de que se está falando. E o grupo racial branco, ao vê-lo com sua identidade visual, com sua fala ao lado dos negros, lhe diz “você é louco, você poderia estar do lado de cá”. Diferença e igualdade são a primeira noção de identidade. No decorrer da vida, nos diferenciamos e nos igualamos conforme os vários grupos sociais de que fazemos parte. Por exemplo,
sendo brasileiros, partilhamos
características em comum em contraposição a estrangeiros; sendo homem ou
114 mulher, partilhamos características relacionados a questões de gênero (Ibid., p. 64). Para entender a idéia de identidade constituída pelos grupos de que fazemos parte, é necessário refletir antes como um grupo que existe objetivamente. Isso se dá por meio das relações que seus membros estabelecem entre si e com o meio onde vivem; em outras palavras, pela sua prática (Ibid.). “...Nós somos nossas ações, nós nos fazemos pela prática”. Isso nos coloca diante de um complicado problema teórico: a resposta à pergunta “Quem sou eu” é uma representação da identidade. “Torna-se necessário partir da representação, como um produto, para analisar o próprio processo de produção” (Ibid.), para não se incorrer no risco de olhar a identidade como um “dado” pré-existente a ser pesquisado. Assumir-se branco foi um processo.
Pra mim, o processo mais difícil da coisa foi me assumir como branco. O lance tá na ligação muito da pigmentação né? Vai muito mais além dos traços e... se falar “sou afro-descendente”, eu sou, entendeu? Agora, é visível que eu sou branco, entendeu? Agora, isso aí, pra mim, foi difícil de assumir. Até fiz um refrão esses dias que eu vou usar que é, é... “não tenha medo em dizer que tu é preto/ não tem espanto em dizer que tu é branco/ não seja omisso em dizer que tu é índio/ nos toca-disco corre sangue nordestino / não tenha medo em dizer que tu é preto/ não tenha espanto em dizer que tu é branco/ não seja omisso em dizer que tu é índio/ nos toca disco-disco corre sangue nordestino” (ele rapeia, percutindo na mesa). É... que é bem isso, pra mim foi um processo. Porque um lance que eu não aceitava dessa coisa do branco que, que... que era esse lance de todos caras que... essa dominação, toda essas... sistema hereditário. A visão que ainda foi implantada pros dias de hoje, entendeu? E ainda... o branco continua sendo superior em tudo né?
Em fala trazida anteriormente, Ilícito diz que o importante – a respeito de sua pertença identitária – é o que ele sente. Isolar essa fala neste momento nos dá possibilidade para pensar no complexo processo de construção da
115 identidade humana, de metamorfose, de vida-morte-e-vida de Ilícito. Ilícito traz um sentimento de pertença no que diz respeito à identidade afrodescendente. A
presença/consciência
da
mistura
lhe
permite
concretizar
essa
afrodescendência. Apoiando este raciocínio, estão as teorias psicológicas e antropológicas aqui citadas (ver Ciampa (2001), Ferreira (2001), Munanga (2005-2006)).
Assim, tipo, o lance que eu faço assim... é o lance de... um ofício, sabe? Uns nasce pra ser comerciante, outros... eu nasci pra fazer essa parada entendeu? E vou usar, tipo, do lado da arte, desde a poesia, chegando no ritmo, o que eu puder pra mim viver disso. Aí eu, o lance que eu falo que é coletivo, é terceira pessoa porque, no lance da arte no caso, que é o ofício que eu escolhi, é uma parada que eu posso fazer trezentas mil idéias, sabe? E de diversas formas. Pode ar todas, todos os universos, eu tu ele nós vós eles, tá ligado? Mas é o público que decide. Por isso que eu falo que é coletivo. (...) E a parada que me, que eu sempre propus, da forma que eu vim, desde que eu era pivete, foi sempre o trabalho coletivo, eu acho que nada se faz sozinho, entendeu? E eu sempre fiz trabalho em grupo, hoje eu chego num momento em que eu também tenho que fazer alguma coisa minha pra mostrar o meu “eu” pras pessoas também, entendeu? Mas eu só vou conseguir fazer isso quando essa parada coletiva estiver bem estabelecida, entendeu? Vai ser dessa vitória coletiva, entendeu, que eu também talvez vou poder mostrar mais meu “eu”. (...) Tudo é um processo, da hora que Deus quer, que jah quer, dessa força quer. Ou quando a gente consegue abrir todos os caminhos, entendeu? É sempre assim, muito loco.
“Estar cada vez melhor” diz respeito, antes de tudo, à sua preocupação com o coletivo. Apesar de considerar que “pra nóis nunca foi fácil” (em referência aos que vivem nas grandes periferias), é possível agir para “abrir os caminhos”. “Abrir os caminhos” começa pela ação. Há que se ter em consideração, no entanto, o grande número de referências de Ilícito à questão espiritual – o que nos leva a inferir que tal afirmação possa ser interpretada também nesse sentido.
116 A segunda constatação da pesquisa sobre identidade de Ciampa (2004[a]) é que o homem não está liberado de suas condições históricas, o que, para o autor, nos coloca um problema e uma tarefa. O problema: não é possível dissociar o estudo da identidade do indivíduo do da sociedade. “As possibilidades de diferentes configurações de identidade estão relacionadas com as diferentes configurações da ordem social” (Ibid., p. 72). Com isso,
O fato de vivermos sob o capitalismo e a complexidade crescente da sociedade moderna impedem-nos de ser verdadeiramente sujeitos. A tendência geral do capitalismo é constituir o homem como mero e do capital, que o determina, negando-o enquanto homem, já que se torna algo coisificado (torna-se trabalhadormercadoria e não trabalha autonomamente; torna-se capitalista-propriedade do capital e não proprietário das coisas). (Ciampa, 2004[a], p. 72)
Para que Ilícito chegasse a esse entendimento a respeito da sua “tarefa”, foi preciso antes começar a conhecer o contexto histórico no qual estava inserido, a história que não lhe havia sido contada e que o hip-hop o ajudou a “desvendar”.
Então assim, eu acho que foi tudo isso assim, a história de Palmares110 é... depois chegou na... eu já escrevia bastante as coisas e... e o rap, crescer no Capão e escutar rap... Aí já tem o lance do canto falado, que eu peguei do forró do meu pai, né, samba e forró, então pra mim é tudo uma coisa só assim.
110
Clóvis Moura (2004) definiu Palmares como “a maior manifestação de rebeldia e organização política, militar e econômica contra o escravismo na América Latina”. Palmares teria perdurado por quase cem anos e, nesse período, teria sido responsável pela desestabilização do sistema escravista na região (p. 347).
117 Hoje eu vejo isso como uma coisa só, mas o rap foi o que abriu a mente, eu comecei a entender a parada, entendeu? É foda, é mó responsa fazer rap.
Se o homem é universal, não cabe ao branco nem ao negro querer ocupar esse lugar. Historicamente, procurou-se impor o “padrão branco”. Mas a luta seja pela identidade negra, seja pela identidade afrodescente, não é a da imposição do padrão negro ou afrodescendente. É a luta pela diversidade, o homem na sua diversidade é que é universal. O funcionamento da sociedade capitalista inviabiliza a convivência das diferenças, dividindo, segregando, acentuando as diferenças e distanciando indivíduos de uma mesma sociedade.
7.6
Do nome ao futebol, do futebol ao rap, do rap à pluralidade musical Ilícito é alguém que se apresenta por meio de sua obra. Em nenhum
momento de nossas duas primeiras entrevistas Ilícito usou o nome pelo qual é conhecido no rap ou o nome com o qual foi registrado por seus pais para falar sobre quem era ele. Em nossa terceira e última entrevista foi que eu perguntei a ele a esse respeito. O nome pelo qual você é conhecido, eu queria que você falasse um pouco sobre ele.
Acho que é de, de... Boa pergunta... De moleque mesmo, de moleque e acho que na escola. Acho que é isso. E tamém eu tirei o “inho”, né? cê vê que inho não funciona né? Todos os “inho” é estranho. Eu tirei esse negócio de “inho”, essa coisa no diminutivo. Não gosto nem que chame de “neguinho”, tá ligado? “Qualé neguinho?”. Tá tirando? [Foi] O povo que mais sofreu. Não vira, né? Tudo que tem “inho” não vira, né?
118 O apelido herdado na infância, dos amigos de escola, é o nome que o acompanhou quando começou sua atuação no Hip-hop e pelo qual é conhecido. Sua mãe às vezes o chama pelo nome-apelido. Pergunto pelo nome com o qual foi registrado.
Foi o meu pai [quem escolheu], por causa do jogador do Corinthians. De 1978.
Ele, então, começa a falar sobre a sua experiência como jogador de futebol e, dela, sua derivação para a música – considerada herança paterna.
E eu jogava bem futebol, era pra mim ser profissional se eu tivesse tido um acompanhamento assim desde pivete, e não tivesse interferido os problema que a gente teve, familiar tal, não tivesse interferido no meu ciclo, eu tinha certeza que eu ia ser profissional, jogava muita bola. Aí depois com as frustração, jogar em tanto lugar, comecei a cantar rap e desliguei do futebol.
Ele detalha a trajetória que não lhe permitiu prosseguir no futebol. Nela, lembranças amargas, ressentimentos; mas também um sentimento de que o caminho seguido foi um misto entre fazer escolhas e ser escolhido.
Eu cuidava do bar do meu pai... E aí eu ficava no bar à tarde. E eu ficava no bar à tarde assim, que ele ia dormir, ele dorme, dormia à tarde, e eu ficava no bar. Aí saía do bar e ia jogar bola. Ficava fazendo pipa pra comprar chuteira e eu jogava no “Pequeninos do Jóquei”, minha mãe me pôs. Aí [joguei] no “Pequeninos do Jóquei” e na rua. Jogava na escola, quadra também. Eu acho que tem uma coisa que eu fico chateado, que meu pai nunca foi me ver jogar, entendeu? Acho que isso me feriu muito. Minha mãe fez o que ela pôde. Desde chuteira, de tentar comprar as coisas, não tinha grana, o meu pai não “sortava” o dinheiro, nem as caneleira... Eu andava nos pano do futebol porque eu vendia os pipa e comprava os baguio, eu acho que esse negócio do meu pai de não ter [me] acompanhado, eu acho que pesou também. O amigo do meu pai levou eu pra jogar lá na Portuguesa lá, aí eu ei nos testes, fiquei lá jogando uns dois meses e foi quando teve problema aqui, que meu pai teve que ir pro Ceará, aí não tinha uma pessoa pra mim poder ficar, e nem um alojamento, não teve um acompanhamento pra mim ficar num alojamento da Portuguesa, tal, na época, aí fui pro Ceará, fiquei lá, ei uns dois anos, ou
119 um ano... Um ano, o meu pai ficou um ano. Eu nem lembro, que eu era pequeno. E aí quando eu voltei foi mais duro ainda, porque a gente não voltou pra cá, né? Hoje nóis tem paiz aqui porque eu e meu irmão crescemos entendeu? E porque tem a sintonia da quebrada e ninguém mais mexe, mas antes o meu pai já comeu o diabo que o pão amassou aqui. E a gente voltou pra cá depois de ficar perambulando. Que a gente resolveu as coisas que tinham problemas. Teve uma época mais sofrida assim. Porque meu pai ou por vários probl..., a gente arrendou um bar, pagava aluguel, e trabalhava que nem um cachorro, sabe?, e lá era moleque, assim, lá eu sofri pra caramba. O meu pai foi preso, e eu estudava de manhã e trabalhava no boteco até às duas da manhã, eu estudava das 7h às 11h, então foi a época que eu fui largando mesmo a parada [referindo-se ao futebol]... Nóis morava numa casa em oito, com dois cômodos, foi uma época bem difícil, eu acho que isso que foi me afastando do futebol. Ainda tentei jogar, depois fui pra várzea, ó meu... Ó como que é meu, minha perna... porque na várzea é roçadeira, né? Aí eu falei “não, não güento isso aqui não”. Então eu parei de jogar. Mas é... eu gostava muito, tinha mó potencial. Tem um cunhado meu né, que minha irmã teve uma filha com ele, minha sobrinha, e ele trabalha com isso aí, com futebol, né, de empresariar jogador tal, e ele sempre fala, “se você não tivesse viajado nas idéias, não tivesse parado tinha conseguido”. Ele me levou também em vários lugar, me ajudou bastante. Mas eu acho que o tava escrito, né, porque na época em que o meu pai me fez era a época em que ele era novão, ficava nas cantoria fazendo forró, né, minha mãe ficava em casa ele ia pros forró e tal, acho que isso aí já tava no sangue também, o lance da música, e calhou de nossa vida ser um pouco conturbada, aí veio o sofrimento, e o sofrimento gerou essas parada aí, né, essa forma de ser. Hoje a gente não tem muita grana, mas vive em paz, entendeu? Isso é que é importante.
Ao narrar os acontecimentos que afastaram Ilícito do futebol, ele vai nos revelando o percurso que o levou à música. Ele enxerga a música como herança paterna. Mas ele também entende a sua chegada até a música como fruto de sua trajetória pessoal, da consciência crítica que foi adquirindo com relação às coisas que se avam em sua vida, das dificuldades adas por ele e por sua família. Ele começou com o rap. Que abriu sua consciência e lhe fez ver a “árvore musical” que poderia ser explorada. Mas para fazer rap houve um elemento fundamental: o sofrimento.
7.7
A nordestinidade como mais um elemento de identidade
120 Quando perguntado a respeito da “veia artística”, Ilícito aponta a herança paterna:
Tem a ver com o meu pai sim. Porque sempre quando eu era pequeno ele tocava, né? Sempre ele tocou, fez forró, fez... e eu ia nos forró aqui quase todos com ele. Então eu lembro muito disso... Lembro das Diretas Já, 84/85, meu pai tocava nas campanhas do PSDB, a sanfona que meu pai tem é do Serra, o Serra é que deu pra ele. Eu lembro tudo disso. Das Diretas Já, dessas paradas. Eu era pequeno, mas eu lembro. E ia nos todo os forró com meu pai. Só que jogava bola, né? Jogava futebol. Depois nem o futebol, era uma ilusão... aí comecei a fazer, já escrevia umas letras... Minha família, meu pai é sanfoneiro, eu cresci no forró, conheço bastante forró, Bezerra da Silva, mas foi do Rap, fazendo uma coisa norteamericana-jamaicana, que eu fui voltando às origens. Hoje eu posso cantar um forrozinho. É loco. Foi muito nessa ligação, que a gente sempre tá fazendo e dizendo, da ligação nordestina, porque é isso que..., principalmente pra mim, né, me deu mais identidade dentro do hip-hop, pra mim falar da coisa nordestina, e um dia o Museu da Pessoa tava fazendo um seminário e convidou eu pra participar da mesa, pra falar sobre a questão indígena, a questão negra quilombola, e sobre o lance da periferia. Aí eu toquei no que fala da questão indígena eu fui falar sobre periferia. Lá, a gente, o grupo tocou e eles convidaram o Verdelins e Pardal e o Sebastião Marinho. E isso aí resultou em muitas outras coisas assim, uma visibilidade importante também nessa ligação do hip-hop e o rap com a embolada e o repente, né, o cordel, todo esse universo, porque eu faço o que o meu pai fazia antes, só que agora com a tecnologia, mas é o mesmo canto-falado, é isso que eu to fazendo. Se o cara tocar um pandeiro, eu faço uma embolada em forma de rap, se tocar a sanfona, eu canto e se o DJ soltar uma batida de bumbo-e-caixa, eu rimo, se o cara soltar um drum’n’bass111 eu rimo, se o cara tocar um grime eu rimo, se vim um tambor do Espírito de Zumbi eu faço um som, tá ligado? Fui no Maranhão, fiz um som ao vivo com os cara, fui em Teresina também fiz, então... na Bahia, dá pra fazer com o Olodum. É infinito, é um universo... Minha vida era regrada tudo pelo inverso. Era tudo o ”contrapunto” de tudo. Desde o som que eu faço é o inverso. Os caras quer fazer um som mais pesado, gangsta, o meu é “cangsta”, do cangaço. Eu “inverto” tudo. Né, essa idéia de não fazer a mesmice do que já existe, que era tudo era cópia duma cópia, então eu mesmo não ser uma cópia duma cópia. Com essas idéia, tá ligado?, inverter todas as parada. E confundir a mente. A mesmice é tipo você vê um pensamento radical e não querer abrir o leque, tá ligado? E ficar vivendo num universo fechado, numa mesmice, num ego, tal, sendo que a parada não é desse jeito. Tem muita coisa lá acontecendo e você tá fechado num canto achando que é o dono, que tem o dom da razão, aí depois morre na dúvida, tá 111
Drum´n´Bass (também abreviado como D&B ou DNB) é um estilo de música eletrônica que surgiu na metade dos anos 90 na Inglaterra. O gênero é caracterizado por batidas rápidas, próximas a 170 BPM (http://pt.wikipedia.org/wiki/Drum_and_Bass, o em 17 de agosto de 2007).
121 ligado? É abrir o leque, sabe?, assumir os erro, não ter medo, não ter vergonha, medo de pedir perdão, nem dó. Tem muita gente numa mesmice, fechado.
Ao falar de sua fuga da “mesmice”, Ilícito nos remete ao uso que Ciampa faz do termo, quando define que a mesmice ocorreria da re-posição da identidade que pode se dar como consciente busca de estabilidade ou inconsciente compulsão a repetição. O que sustenta a mesmice é o impedimento da emancipação (Lima, 2005, p. 85). Ao fugir da mesmice, no conceito formulado por Ciampa, Ilícito estaria desimpedido a emancipar-se. Ao conceito de “mesmice” se contrapõe a “mesmidade”, pela qual se expressaria a alterização, que se refere à superação da personagem vivida pelo indivíduo e que se torna possível a partir da possibilidade de formular projetos de identidade, cujos conteúdos não estejam prévia e autoritariamente definidos (Ibid., p. 86).
Sabemos que a criação de novas normas, novos valores e projetos na esfera universal encontram grandes dificuldades de concretização e superação no nível coletivo, entretanto, no nível individual essa transformação torna-se mais facilmente possível, ainda que, muitas vezes, de forma parcial ou fragmentada. (Ibid., p. 86)
A cada minuto, o hip-hop dá vazão à criação de novas normas na esfera universal. A cada minuto, um jovem, em algum lugar do planeta, procura esses novos valores no nível individual. A cada vez que um deles conquiste esse objetivo, mesmo que parcialmente, a humanidade tem uma chance a mais de
122 caminhar rumo à emancipação. Daí o fato de cada identidade configurar-se enquanto um projeto político.
7.8
Hip-hop como uma das expressões da “roda sagrada”
É isso que é o rap, entendeu, que eu falo pros moleque. O rap não é uma musiquinha prucê... não é uma musiquinha, cara. Rap é revolução, é transformação, entendeu? E... Não tem como, pelo menos, você, na minha concepção, né?, é não tem como o cara querer fazer rap se ele não foi oprimido. Só quem sofreu alguma opressão que vai pegar essa indignação e transformá-la. Eu costumo falar assim “mano, cê não sofreu, não tem como você cantar rap. Vai cantar reggae então, tá ligado? Mesmo que o reggae seja uma música de resistência, entendeu? Só que o reggae teve uma característica que dentro dessa música de resistência eles plantaram o amor. E hoje o reggae é paz, entendeu? O rap não, ficou tachado como uma música marginalizada, e pesada que bate contra as regras universais em termos de sociedade no mundo, então o rap é a quebra da sociedade, entendeu? Então quem faz rap é esses excluídos, cara que sofreu, que já foi preso, pobres, então assim, é... quando eu conheci o rap, foi nesse processo de transformação, e de injustiças que a minha família sofreu e... se não eu teria cantado o forró do meu pai, entendeu? Tem muitas letras de conteúdo [no forró], entendeu? Mas o rap foi o que abriu o portal, entendeu? Foi quando eu entendi toda a manipulação governamental, a história que não era contada, os heróis que não eram nossos, entendeu?
O hip-hop foi e tem sido o mecanismo para Ilícito, a ferramenta. E ele devolve para o hip-hop aquilo que ele lhe tem proporcionado, com suas oficinas,
a
organização
das
festas
na
quebrada
(revertendo
lazer,
entretenimento, o jogo lúdico nas palavras de Muniz Sodré (1988), a população de onde ele provém. A circularidade está presente na vida de Ilícito. A “roda sagrada” do candomblé está presente no hip-hop112, assim como na capoeira, no samba113... Não só na circularidade, na continuidade, no ciclo vida-e-mortemorte-e-vida da metamorfose-emancipação, mas também na sacralidade de que o hip-hop é parte: ele é revitalização a quem o acompanha, ele é fonte de 112
Não me refiro, aqui, exclusivamente à dança original de rua e todos os seus estilos, mas a algo relacionado ao hip-hop na sua integridade, relacionado a todos os seus cinco elementos – DJ, MC, grafite, break dancing e conhecimento.
123 um outro “axé114”, do “axé” simbólico que re(tro)alimenta o ciclo diário de milhares de jovens espalhados pelas periferias de todo o Brasil e por todas as periferias do mundo. E entre as “forças intelectuais” de ação do hip-hop encontra-se o candomblé115 que, em sua estrutura, permite esse “acionamento” por parte mesmo dos que não são filhos-de-santo de um egbé. Cabe a lembrança de que, no candomblé, não é o indivíduo quem decide ser ou não ser filho-de-santo de uma casa. Pelo menos no que diz respeito a fazer o santo116, é preciso que haja uma necessidade para isso, revelada pelo oráculo. Já ouvi de mães-de-santo diferentes comentários a esse respeito. Na contrapartida disso, Ilícito não quer se iniciar. Mas preserva para si o direito de professar parte da sua fé na direção do candomblé, a partir de um caminho pessoal, sem partilhar de ensinamentos junto a um sacerdote, junto a alguém portador de ogbon117. E nesse caminho pessoal, é na direção de Xangô que ele sente uma vibração maior – que, no candomblé, poderia ser explicada de muitas formas que não necessariamente ser filho desse orixá ou ter a sua cabeça em disputa por esse orixá.
O MC é uma evolução do canto falado, por isso que o rapper é o erudito, como que é o repentista que toca viola, entendeu? É o erudito, aquele 113
Ver capítulo referente aos patrimônios civilizatórios dos povos iorubás e candomblé. A definição de axé para os iorubás e para o povo-de-santo também pode ser encontrada no capítulo já mencionado. 115 Utilizando a definição da professora Josildeth Gomes Consorte por ocasião do exame de qualificação desta pesquisa, realizado no dia 08 de abril de 2007. 116 Alguém que queira fazer parte de uma família-de-santo, mesmo que não tenha necessidade de raspar a cabeça para o orixá, tem espaço para essa “negociação” com o sacerdote da casa, o que significa dizer que isso varia de terreiro para terreiro. 117 Ogbon é “sabedoria” para os iorubás, a sabedoria que não se adquire junto aos livros, mas “da experiência estética (valores, mitos, liturgia, conhecimentos práticos e aforísticos) que se insere no quadro da antiguidade e da tradição”. Repetindo o que já está registrado no capítulo referente ao candomblé, “essa sabedoria implica sempre em axé, pois saber é ser atravessado pela força – a absorção do axé é requisito indispensável à aquisição do conhecimento do real” (Sodré, 1988, p. 90). 114
124 cara que estudou pra produzir no computador, fazer as bases, escrever a letra, videoclip, é o rapper. Agora, o MC, ele além de ser um rapper, é o cara que se aprofundou nas técnicas base, nos trabalhos de respiração, nas métricas, nas orações, nos motes, nas formas dobradas e desdobradas de rimar, aprendeu sextilha, decassílabo, ou por vários universos. Eu tô falando da coisa regional. São vários ritmos, tá ligado? Que se for pegar um lundu, jongo, é, o coco, é... o maracatu, a própria mandinga da capoeira, é infinito. Se você for pegar só os toques de capoeira, são bento grande, tá ligado?, são bento pequeno, angola, cavalaria, é uma infinidade de ritmos, entendeu? Nós faiz música, mano, e é universal. Faz [música] num tambor, o que você me der a gente [ele e os demais MC´s de rap] desempenha, chegô num nível musical que a gente é universal, mano. Uma ladainha, um berimbau, um tambor, uma batida do nagô118, no congado, sei lá, vam´bora, entendeu? Isso que é você chegar num nível musical num lance raiz e saber contar história, tipo o lance do griot119 de reproduzir os anteados, coisa que foi ada de pai pra filho, entendeu? Só que o mundo muda, a tecnologia muda, é sempre uma nova roupagem pra se manter na parada, entendeu? E dentro dessa nova roupagem, por exemplo, bumbo e caixa universal120 hoje, que é essa parada do hip-hop. Então esse que é o grande lance de fazê arte, de fazê música, de podê levá um conforto e entretenimento pras pessoas, só que o hiphop fala sério. É um movimento nacionalista-político-social-culturaleducacional, mais do que nunca, tá ligado?, e a coisa vai indo dessa forma. Viajo nessa parada, o canto falado universal e da batida universal, que tipo, é o universo da batida quebrada e o universo do canto falado. Então pra mim vai do coco à embolada, do rojão ao ragga, tá ligado? É o universo do canto falado. Se eu falar só da cantoria do repentista, é mais de cem modalidade, tá ligado? Eu não sou roqueiro e depois faço rap e depois viro raphip-hop no samba, tá ligado? Tem uma linha de como você fazer uma embolada, um repente na viola, um... é tudo uma linha, tipo tem que ser respeitada essa linha. O MC é uma evolução das tradições orais africanas. Assim como os contos litúrgicos, presentes no âmbito das comunidades-terreiro, o patrimônio oral das narrativas e gêneros da cultura negra também se desenvolveram no território da diáspora africana e no Brasil com os contadores de história, “seja
118
Entre os ritmos nagôs disseminados na música brasileira estão o afoxé e o ijexá. Ver Lopes, 2004. “Termo do vocabulário franco-africano, criado na época colonial, para designar o narrador, cantor, cronista e genealogista que, pela tradição oral, transmite a história de personagens e famílias importantes às quais, em geral, está a serviço. Presente sobretudo na África Ocidental, notadamente onde se desenvolveram os faustosos impérios medievais africanos (Gana, Mali, Songai, etc.), recebe denominações variadas: dyéli ou diali, entre os bambaras e mandingas; guéssére, entre os saracolês; wambabé, entre os peúles; aouloubé, entre os tucolores; e guéwel (do árabe qawwal), entre os uolofes” (LOPES, 2004, p. 310). A cultura dos griots tem aparecido nos trabalhos de diferentes rappers brasileiros. Um exemplo está em BRAGA (2006). 120 A explicação para o termo está na Entrevista III, nos Anexos. 119
125 referente aos antigos reinos e dinastias africanas, como os contos de divertimento pedagógico” (Luz, 2000, p. 469). A fonte estruturadora das cantorias nordestinas são a narrativa oral da tradição da arte poética dos orikis121 e das cantigas de sotaque ou demanda. Trata-se de um gênero “lítero-musical”, nas palavras de Luz.
No espaço da poética, ou da poesia, onde a tradição européia procurava caracterizar-se como “universal”, a cantoria é atravessada por uma verdadeira luta ideológica”, abrindo espaço na sociedade oficial, atuando em um terreno em que precisará afirmar seus princípios primordiais, característicos da tradição negra e dos valores africanos emergentes. (Ibid., p. 469)
Lundu, coco, jongo, maracatu, o samba, os vários ritmos da capoeira... Os exemplos dados por Ilícito integram os vários gêneros da música negra.
7.9
Ser ilícito em lugar de estar em um manicômio
O coletivo é o trabalho legal, sabe?, é o trabalho social, é o que a gente busca dentro da sociedade, esse lance de cidadania, de humanidade, de lidar com vários tipos de pessoas, idosos, crianças, mais velhos... Pessoas especiais, políticos, toda camada da sociedade pra constituir uma parada sólida, uma base sólida, agora eu, tá ligado?, sou o inverso disso, corro na ilegalidade. E isso é uma realidade, tá ligado? Pra mim é o controle da loucura, tá ligado? Pros caras não me prenderem num manicômio, num presídio, num me pôr num estoque [referindo-se ao trabalho de estoquista que já fez] ou dentro dum escritório, tá ligado?, ou então fazer com que eu não faça alguma besteira por dinheiro, tá ligado?, giro em torno disso, a gente vai tentando buscar outros artifícios e outras imunidades pra não cair nessa armadilha, entende?
121
Espécie de cântico de louvor da tradição iorubá geralmente declamado ao ritmo de um tambor. É usado para ressaltar atributos e realizações de um orixá, um indivíduo, uma família ou uma cidade (Cf. Lopes, 2004, p. 499).
126 Voltar a ser estoquista, “viver para o trabalho” em vez de “trabalhar para viver”, é o que Ilícito não quer mais. Para isso, “controla a loucura” na qual a própria cidade em que mora o coloca, no qual o “esquema” capitalista tenta aprisioná-lo.
Quando eu saio pra rua, [tudo] gira em torno de muitas coisas que perante a lei e a sociedade não é legal, entendeu? Eu já sou um cara ilegal. No rap, eu assusto, tá ligado?, aí chego na elite, eu assusto, tá ligado?, assusto meus parcero, sabe?, eu já sou um cara problemático por natureza e hoje eu tenho que controlar a loucura sabe?, sabe? Mas eu acho que a minha ilegalidade me leva a não entrar nesse... eu não quero falar sistema, porque sistema não existe, mas nesse esquema, tá ligado? Nessa coisinha podre que gira em torno da vaidade, do dinheiro, da fama, sabe? O trabalho que a gente desenvolveu dentro da cultura hip-hop, entendeu? [Com o anonimato] num causa problema. Mas todo o problema fosse o ilícito, tava bão, tá ligado? Que pelo menos o ilícito tá tentando ser um cara legal. Pelo menos o Ilícito tá tentando ser um cara legal. Agora tem outros ilícitos que... Já perdeu as esperança...Tô me referindo ao ilícito geral. O ilícito é um personagem que vai servir pra muita gente. O Brasil é ilegal. O mundo é ilegal. A legalidade e a ilegalidade corre junto, tá ligado? Hoje, quantos, quantos num vivem refugiados, o problema dos refugiados no mundo, imagina, os caras que tão tentando se firmar num, nos paises, Aí, é... 50% da corporação policial é ilegal. 50% dos políticos do país é ilegal. Tá ligado? Qual a empresa no país hoje que tá totalmente legal? É... os nossos recursos naturais tá ilegal, tá ligado. Então, tem isso, começa o Brasil é ilegal.
O trabalho com o hip-hop o ajuda a controlar a loucura. “Controlar” implica estar na “ilegalidade”. O não-controle seria algo para além da “ilegalidade”, possivelmente, correr o risco de ser um a mais nas estatísticas das mortes em bairros de periferia. À “ilegalidade” da visão de Ilícito soma-se o princípio do não-dualismo, das forças que não são vistas como contrárias, mas como complementares. Como no legado nagô presente no candomblé.
É isso que eu falo, assim, pra mim, as duas energias correm juntos memo, não tem o mal, o negativo, o positivo, a legalidade e a ilegalidade... o brasileiro tem essa origem, todo brasileiro é contraditório e ilegal.
127
Um julgamento moral referenciado na idéia dos dualismos (e favorecedor de maniqueísmos) prenderia Ilícito à noção do “aquele-que-deuerrado-e-que-não-tem-conserto”, “quem é bom, é bom”, “quem é mau, é mau”, “quem nasce pra dar certo, progride; quem não nasce, só afunda”. O pensamento da complementaridade, a possibilidade de que em cada contexto o referencial possibilite variadas leituras, favorece a metamorfose, indica, em si, autonomia em relação à normatividade moral vigente.
7.10
A questão do negro e do branco
Desde que eu comecei no hip-hop, não tem como, você não bater com a questão negra. Desde quando eu comecei fazer hip-hop eu entendo essa questão negra porque o hip-hop, quem cai de cabeça na raiz, sabe?, que também tem um ligação das músicas, né?, que som que não é negro? Entendeu? Que cachaça que não é negra? Do negro, aqui é a comida, aí o samba, tudo, tudo tem uma ligação com isso, sabe. E acho que também foi uma das formas que eu pude também expressar e ser diferente dentro do hiphop que eu vejo. De eu ter assumido fortemente a questão da africanidade aí, depois, dentro da africanidade, eu trouxe a questão indígena e a questão do branco também, né? [Quando o grupo começou, a gente era visto como] Um bando de baderneiro revoltado quereno confrontar o governo aí, a elite, a burguesia, a sociedade. De 95 pra cá, depois de muitas vitórias do Movimento Negro, o rap foi um dos mecanismos, uma das coisas principais desse processo, entendeu. De aceitação do negro do Brasil, que já vem desde a década de 70, né, de lutar pela imagem do negro no Brasil e foi bem no meio desse processo. Tipo assim, o cara fala muito do negro e do indígena, ainda muito pouco, mas não fala do branco, como tendo feito parte do processo. Como se o, o branco no processo, só veio pra atrapalhar. A gente tem que lidar com as diferenças, sabe? Hoje tem playboy fazendo rap, a elite ouve rap, e dança funk, tá ligado? Sempre teve essa ligação da elite com o pobre, sempre teve essa coisa do cara querer fazer o que a gente faz. E também, além do hip-hop, o cara que evolui espiritualmente ele não vai ficar se apegando a certos detalhes.
Com a pergunta/afirmação sobre “que som que não é negro”, Ilícito expõe o seu referencial cultural identificatório. E a sua escolha foi fazer “música de preto”. Percebeu que para lidar com as diferenças, é preciso falar do branco
128 (afinal, ele não é o “padrão de homem universal, invisível” que a ideologia racial racista tenta nos fazer crer que é). Para que sejam respeitadas as diferenças, o branco precisa saber que ele é diferente também. E a busca do respeito prossegue, até que todos se saibam humanos e não seja mais preciso “se apegar a detalhes”...
7.11
De como o candomblé apareceu nas entrevistas O processo de conhecimento, de evolução, para Ilícito, é semelhante ao
que se dá com a religião. Mas na experiência de vida dele as crenças religiosas são vividas em um trabalho espiritual buscado autonomamente, em que ele próprio faz o seu contato/diálogo com o sagrado. Xangô, assim como o assunto candomblé, aparece de forma espontânea nas entrevistas. Nas letras das músicas de seu grupo, o orixá patrono de Oyó também é referência constante. A ligação de Ilícito com esse orixá será fruto de investigação mais detalhada logo mais adiante. Em nossa terceira entrevista, eu retomo o assunto dos orixás, pedindo que ele fale a partir das referências a eles feitas nas letras dos raps do grupo:
Os orixás na minha vida, acho que vem de pequeno mesmo. Nas festas de São Cosme e Damião122, eu não perdia uma. Porque tinha um terreiro aqui que era da família123 e hoje eles são da igreja dessas aí dos crente aí. E aqui tinha dois times, um deles tinha o terreiro no fundo. E a festa de São Cosme e Damião era todo ano né?, então essa foi a que eu acho que eu mais lembro assim, a referência de tá participando bastante das festas que tinham lá. E aí depois quando eu conheci a história de Palmares que começou isso aí, 94, 95, a gente fundou o grupo, né?, e aí ele [o grupo] que mostrou esse caminho. E aí que chego em Xangô, e chego em Ogum e Oxóssi. Aí vem falando, em 122
Santos gêmeos católicos que, no Brasil, foram associados aos Ibejis – orixás “menores” da tradição nagô, protetores dos gêmeos. São comemorados a 27 de setembro (Cf. Lopes, 2004). 123 As festas eram realizadas na casa do tio de Ilícito, irmão da mãe dele, casado com uma mãe-de-santo.
129 Zambi... É pra se entender, pra mim entender o lance de Palmares, dos reis, eu tive que entender os orixás, porque era regido pelos orixás, entendeu?
Xangô, Ogum, Oxóssi e Zambi estavam no enunciado da pergunta feita a Ilícito, por serem os orixás (à exceção de Zambi, que é um inquice124) citados nas músicas ouvidas nos CDs e nos shows do grupo. Os orixás citados são os mesmos que aparecem quando Ilícito narra a sucessão dos reinos da República de Palmares125, mencionando que Acotirene, Gangazumba e Zumbi foram “declarados” líderes de Palmares por Oxóssi, Xangô e Ogum, respectivamente. Para entender Palmares ele sentiu necessidade de saber sobre os orixás e, após esse contato inicial, os orixás foram “transformando” a sua vida, como ele nos conta a seguir.
Então, aí foi transformando a minha vida, né? Por exemplo, minha religião é o Corinthians e Deus é Fiel, entendeu? Mas assim, eu não tenho religião e eu sou a minha religião, eu sou o meu templo. Eu sou religioso, entende? Então eu gosto de todas as religiões. Agora, eu não tenho essa coisa de ser doutrinado e não aceito alguém ficar me falando as coisas, entendeu? Falando que eu tenho que fazer isso e aquilo, aí quando entra o lance do dízimo e da grana, essa coisa que as igrejas pegam, eu já não gosto. Eu fui batizado, fiz catecismo, essas parada, igreja católica, que vem de família, o Brasil é católico e tal, mas depois que... eu comecei a estudar a escravidão no Brasil, não tem como gostar da igreja católica126.
Os orixás foram transformando a vida de Ilícito, no que diz respeito à sua visão do processo histórico no qual africanos e suas culturas foram inferiorizados, coisificados, mas também em relação às suas práticas religiosas autônomas – como ficará evidente mais adiante. Quando Ilícito afirma “eu sou o meu templo”, ele está dialogando com conceitos-chave do povo iorubá e, portanto, da matriz do candomblé nagô. 124 125
Ver capítulo sobre patrimônios civilizatórios dos iorubás no candomblé. A narrativa está na transcrição das entrevistas na íntegra, em “Anexos”.
130 Para os iorubás, o ser humano é a mais importante das criaturas de Deus. E ele é o veículo responsável por ativar as energias do sagrado, ele é o manipulador do axé. Nesse sentido, o ser humano é também um templo. É do livro de Ronilda Ribeiro (1996) que extraímos os conceitos de “axé” e “natureza humana” que nos ajudarão a compreender a relação aqui estabelecida. Axé: força do invisível, força mágico-sagrada de toda divindade, de todo ser animado, de toda coisa (Maupoil apud Elbein dos Santos, 1986)127. No reino animal, o axé está presente no sangue propriamente dito, animal e humano. O axé é indispensável na restauração da força. Todo ritual realiza implante da força ou revitalização e a “presença das entidades sobrenaturais é favorecida pela atividade ritual, ocasião privilegiada da transferência e redistribuição do axé” (Cf. Ribeiro, 1996, p. 107-109). No que diz respeito à “natureza humana”, para os iorubás, os seres humanos são constituídos dos elementos ara (corpo físico), ojiji (“sombra”, representação visível da essência espiritual), okan (sede do pensamento, da inteligência e da ação), emi (princípio vital associado à respiração) e ori, a essência real do ser. Falamos resumidamente dos quatro primeiros, para nos determos na relação do ori com a fala de Ilícito. O ori “guia e ajuda a pessoa antes do nascimento, durante toda a vida e após a morte”. O significado literal de ori é “cabeça física”, símbolo da cabeça interior (“ori inu”). “Orise” é a palavra usada para se referir a Deus como “fonte da qual se originam os seres”. O ori é uma entidade parcialmente
126
A respeito do papel da igreja católica no Brasil colonial, ver RIBEIRO, 2006. Juana ELBEIN DOS SANTOS. Os nagô e a morte: Pàdè, Àsèsè e o Culto de Égun na Bahia. Petrópolis, Vozes, 1986.
127
131 independente, considerado uma divindade em si próprio, sendo cultuado entre outras entidades com o recebimento de oferendas e orações (Ibid., p. 109-110). Enquanto portador e manipulador de axé, enquanto ser que carrega, na sua constituição, a divindade ori, os humanos podem ser interpretados como “templos ambulantes” da perspectiva iorubá. Também no candomblé é possível encontrar eco para a proposição de Ilícito. O ato de “dar de comer ao orixá”,
...resume a religião: se o crente não alimentar o Deus, ele deixa de exisitr. Ou no limite, a teologia fica invertida, o ser humano é que cria e sustenta a divindade. Na verdade, qualquer Deus que existiu ou existirá na história da humanidade depende do crente para existir, mas o candomblé é a única religião cujos rituais item isso abertamente. Dar de comer ao orixá é alimentar o deus interior. É fortalecer seu conjunto de características, sem pré-julgamentos, sem qualificações do tipo “bom” ou “mau”. (Carmo, 2006, p. 21)
Minha bíblia, minha bíblia é os álbuns do Corinthians, tá ligado? Aí eu acendo a minha vela pra Preto Véio e Exu ali, e agradeço aos orixás, porque são energias da terra, é tudo energia, entendeu? São energias da natureza e.... E essa coisa de materializar mesmo, né?, e de te elevar prum plano espiritual, de saber que aqui é uma das agens e é isso que eu gosto do candomblé, do lance dos orixás, que aqui é só uma agem, que existe sim uma outra vida e que também a gente tem que aprender a lidar com as forças da natureza e os orixás são simplesmente isso. É, lá, Zambi com Olorum deu um poder pra cada um, tá ligado?, e cada um tem um poder que esses irmãos juntos ninguém segura, isso é os orixás, entendeu? São vários irmãos, cada um o pai deu um poder e eles junto é uma família que... [é] invencível. E esse lance também que a igreja católica e as igrejas convencionais, não todas, as igrejas modernas, separam o bem e o mal, o céu e a terra, tá ligado?, e... os orixás é tudo isso e mais um pouco, entendeu?, os caras tão separando e o bem e o mal, né?, são duas forças, são duas energias que tem que saber lidar. No candomblé ninguém separa o bem e o mal, são duas energias que tem que
132 saber lidar. E que nem eu vi lá no Museu Afro Brasil128 que... como que era a frase do, de Exu... É... É... “Eu não sou santo, eu não sou deus, eu também não sou o mal, não sou o diabo, eu sou Exu”129, tá ligado? Eu queria até saber, lembrar a frase, “eu sou exu, abro os caminhos. [Para o que ] tiver na minha frente, bem e o mal...”, entendeu? E... Os orixás me encantam. Acendendo vela dentro de casa para orixás e para Pretos-Velhos130, Ilícito se propõe a fazer a sua forma de oferenda particular, o seu agradecimento particular. Ao entender os orixás enquanto “energias da terra, energias da natureza”, ele se refere ao fato de a natureza ser morada dos orixás. “Se a natureza é um lugar sagrado, tudo a a ser sagrado, uma vez que tudo é natureza” (Zacharias, ano 1998, p. 204), pensamento presente em outro momento da fala de Ilícito, já mencionada nesta pesquisa.
A mitologia própria de cada divindade está relacionada a algum aspecto da natureza, seja da forma mineral, vegetal, animal ou seus processos, como a doença e a cura. Além disso, como cada ser humano é criado a partir de um elemento da natureza e possui a essência deste elemento, que é o axé do orixá correspondente, a divindade também habita o ori (cabeça) de cada um... (Ibid., p. 204)
A respeito do dualismo com o qual Ilícito não se identifica, Carmo (2006) escreve que essa concepção chegou ao judaísmo e, deste, ao cristianismo pela Grécia, influenciada pelos zoroastristas persas. Segundo ele, os gregos 128
Localizado no Parque do Ibirapuera (São Paulo – SP). “Não sou preto, branco ou vermelho. Tenho as cores e formas que quiser. Não sou diabo nem santo, sou exu!”. Mario Cravo Neto, “Saudação a Exu” (São Paulo, 2006, p. 117). Para os iorubás, Exu é o responsável pela dinamização das duas polaridades (masculino e feminino) que torna a individualização possível, ao movimentar o sistema, transportar a fala, propiciar os contatos, acelerar as trocas (Muniz SODRÉ, 2000, p. 456). 129
133 tinham um panteão de divindades muito semelhantes às do candomblé atual, com “deuses guerreiros, sensuais, justos, mas ao mesmo tempo ciumentos, possessivos e cheios de tramas”.
A vantagem de um panteão de deuses diferenciados sobre a forma dualista é bem evidente. Os adoradores não ficam presos a fórmulas massificantes do “bem” e do “mal”, mas, ao identificar-se com muitos orixás e guias, desenvolvem as características dessas entidades. (...) O que o candomblé não encoraja é o pensamento de que há pessoas integralmente boas e outras integralmente más. (...) A diferença, portanto, entre o cristianismo e o candomblé é que nas religiões cristãs o indivíduo é instado a abandonar os defeitos (e até é menosprezado por causa deles), enquanto no candomblé os defeitos são aceitos como parte essencial da personalidade do indivíduo, com o mesmo respeito que pelas suas qualidades.131 (Carmo, 2006, p. 24-25)
7.12
Xangô: de como a figura do orixá se “descola” do panteão para possibilitar afirmação de identidades Ilícito tinha a manga da blusa arregaçada na primeira vez em que o vi,
em um palco. A mão que empunhava o microfone era a mesma da tatuagem que me saltou aos olhos: um oxé de Xangô132. Um machado estilizado, portando duas lâminas. Trata-se do emblema de Xangô que, segundo Pierre Verger (2000), representa freqüentemente um personagem que carrega o fogo
130
Ancestrais do complexo cultural banto. Ainda segundo Carmos (2006, p. 25), o limite desse princípio do candomblé é a injustiça. “Um indivíduo pode ser esperto, mas não pode ser injusto. Pode ser sensual, amante de várias mulheres, mas não pode tomar a mulher do seu amigo, porque isso lhe traria a ira daquele, e, naturalmente, do orixá que preside a vida do amigo”. 132 Além dessa, ele tem outras quatro tatuagens. Segundo ele, para cada vitória, uma tatuagem é feita. 131
134 na cabeça e esse fogo é, ao mesmo tempo, o machado de dupla lâmina (p. 308). Verger nos informa que
(...) trata-se de um aspecto da cerimônia denominada ajere, na qual os iniciados de Xangô devem levar na cabeça um alguidar furado (ajere) no qual as chamas se elevam. Os iniciados não devem ser afetados por isso. Essa prova demonstra que o transe não é simulado e é completada por outra, denominada akara, na qual os iniciados devem engolir o fogo sob a forma de mechas inflamadas, enfiando-as com suas mãos em potes que contêm azeite-de-dendê fervendo. (Ibid.)
A cerimônia é realizada entre os iorubás. O quarto rei de Oyó é reivindicado como um ancestral nesse território e, das narrativas coletadas por Verger, quando vivo, tinha o poder de fazer o raio cair quando bem entendesse (Ibid.) . Xangô, diferente dos orixás relacionados ao mito de criação, foi um ancestral divinizado. No Brasil, é um orixá amplamente difundido. Em Recife, seu nome é utilizado para designar o culto de matriz iorubá. No candomblé, durante a sua dança, Xangô “empunha o seu oxê com altivez. Mais tarde, o ritmo acelera-se e, por gestos, o deus parece tirar de uma bolsa imaginária as pedras de raio, lançando-as na terra. Em seguida, sua dança evidencia o caráter libertino e atrevido do Orixá” (Ibid.,p. 320):
Com Xangô que eu não sei explicar, entende? Porque eu gosto muito assim, eu não sei explicar o lance com Xangô. Eu acho que ele rege sobre mim sim. E... Assim, quando eu fui jogar os búzios com o pai de um amigo meu há muito tempo, ele falava que eu sou Iansã e Oxóssi, que é a mata. E Iansã, e
135 tal. Mas eu tenho uma ligação muito forte com Xangô. Eu gosto de todos os orixás, mas pra mim, comecei a entender a partir de gostar memo, né? E como é resquícios, aos poucos vai, né?, eu vou me reeducando, porque isso aí eu já sei tudo, só preciso vim trazendo as lembranças, tal.
A relação de Ilícito com os orixás é afetiva. O “seu” Xangô não é o Xangô do xirê, que dançando incorporado no corpo de um filho-de-santo, reproduz simbolicamente as agens míticas presentes na liturgia do candomblé. Não é o orixá Xangô para o qual se fazem oferendas em busca de justiça ou da conquista da pessoa por quem se está apaixonado, mas de quem não tem a atenção. Ildásio Tavares (2002), em livro dedicado ao orixá Xangô, informa que, mais que um orixá guerreiro, Xangô é um orixá justiceiro.
...Com sua grandeza e majestade guerreira, com seu papel de justiceiro, Xangô serviu muito mais ao povo negro do que a figura pacificadora de Oxalá. Símbolo supremo de vida, de realeza do negro, de luta, de tenacidade e de erotismo, Xangô, sem dúvida, figura como o intenso fogo que alimentou a resistência escrava, que aqueceu, que temperou, que vivificou e solidificou a coesão negra... (Ibid., 69)
O “guerreiro” e o “justiceiro” são figuras com quem Ilícito tem identificação.
Essas características estavam presentes no Rei Xangô, no
homem de nome Xangô, antes que ele fosse divinizado, como nos conta a lenda133 a seguir:
133
A autoria da história, segundo Verger (2000), é de Martiniano do Bonfim, natural da Bahia, mas que havia vivido na Nigéria. Martiniano do BONFIM. “Os ministros de Xangô”. In: O Negro no Brasil. Rio de Janeiro, 1940.
136 Béri, mais tarde denominado Xangô, conquistou Oyó, se impôs ao rei Arogangan e governou em seu lugar. Dois guerreiros, Timi Agbali-Olofa-Ina e GbonkaEbiri, vão aprender com ele a tática da guerra. Voltam-se em seguida contra Xangô, que não os pode vencer. Xangô, sem que ninguém soubesse como, desaparece em meio às tribos estupefatas. Houve grande clamor na terra e, mal Xangô desapareceu, uma tempestade de violência jamais vista abateu-se sobre o mundo, acompanhada de trovões, raios e relâmpagos... Os homens da nação Nagô (Iorubá) sentiram medo e exclamaram: “Xangô tornou-se rei”. Os dois guerreiros que haviam provocado o desaparecimento de Xangô regressaram a seus países de origem. Os ministros de Xangô, os Mangba, instituíram o culto do Orixá, atribuindo-lhe no céu as mesmas preferências que ele tivera na terra por certos animais como o carneiro, e por certos comestíveis como o quiabo etc. Daí se origina a divinização de Xangô. ado algum tempo, formou-se um conselho de ministros encarregados de manter seu culto. Esse conselho foi organizado com os doze ministros que, na terra, o haviam acompanhado, seis do lado direito, seis do lado esquerdo. Esses ministros, antigos reis, príncipes e governantes dos territórios conquistados pela bravura de Xangô, não permitiram que se extinguisse a lembrança do herói na memória das gerações. É por este motivo que, num terreiro da Bahia, consagrado a Xangô Afonjá, doze ogãs, protetores do templo, têm o título de ministros de Xangô.134
134
Tavares (2000) informa que a criação do corpo dos obás de Xangô na Bahia é atribuída a Mãe Aninha, do Ilê Axé Opô Afonjá, em 1935. Segundo o autor, os obás de Xangô têm funções litúrgicas, principalmente no ciclo de festas dedicado a Xangô, mas também as exercem em todas as festas e cerimônias por sua “preeminência hierárquica”. Os obas têm ascendência sobre os ogãs, que são ministros dos outros orixás. Os obás seriam “ministros mais graduados”, reis de uma corte mítica de 12 reis iorubás sob a hegemonia do rei de Oyó, o “super-rei”, orixá, Xangô. Por ocasião do lançamento do livro de Tavares, entre os que ocupavam o cargo de obás de Xangô no Opô Afonjá estavam o escritor Jorge Amado, o pesquisador e escritor Muniz Sodré e o músico Dorival Caymmi (p.53-57).
137 O autor nos ajuda a compreender a identificação de Ilícito com a figura de Xangô:
Foi o egbé, a comunidade, e principalmente o culto ao vermelho135, centrado em Xangô, e em sua corte que engendraram a dinâmica de resistência dos escravos embasada no espírito de coesão e preservação identitária que os orixás possibilitam e a conseqüente imitação de suas ações, identificando-se o escravo com seu orixá e seguindo o seu odu, caminho, que é uma lenda, que é uma canção. (Ibid., p. 70-71)
Como “o rei dos reis” responsável por um longo período de apogeu no reino que governou (Oyó) em função de sua estratégia de guerra e da mobilização à coesão de seu povo, Xangô foi grande referência para os africanos e descendentes de africanos no Brasil, não só da etnia iorubá, mas também daqueles que com os iorubás conviveram e a eles se uniram na resistência à escravidão – muitas vezes, indivíduos de etnias inimigas em solo africano se uniram nesse novo contexto que engendraria também novas identidades. O homem guerreiro, referencial de liderança e justiça, faz de Xangô uma figura com que Ilícito se identifica. Para conhecer um pouco mais desse orixá podemos recorrer às suas insígnias. Os símbolos de Xangô mais comumente vistos são a coroa (expressando sua realeza), o xerê, chocalho de cobre que é usado durante o toque em devoção a Xangô, e o oxê, ou machado duplo que Tavares (2000) entende como, “além de símbolo do poder de Xangô sobre o raio e o trovão,
135
“As cores simbólicas ou heráldicas de Xangô são a vermelha, sua cor característica, representando o fogo, mais a branca, indicando sua origem em Oxalá, a marca da paternidade que não é renegada mas incorporada” (Tavares, 2002, 71).
138 como a resolução, a conciliação das polaridades como guerra x paz, masculino x feminino, inocente x culpado, bem x mal, e o oriental yin x yang” (p. 104-105). Faz-se necessário ressaltar ainda que cada orixá possui diversas qualidades que, a rigor, são outros orixás. Xangô possui doze qualidades diferentes, entre elas, o jovem, o velho e o rei. Mas os orixás também interagem: além do orixá principal, uma pessoa tem ainda o “adjuntó” (terceiro orixá) e pode ter outros orixás disputando a sua cabeça. Isso faz com que os modelos de comportamentos psicológicos do candomblé formem um número infinito de combinações possíveis. Se forem tomadas as qualidades já catalogadas, o número pode ultraar a casa dos dois quadrilhões. Disso se infere que um valor supremo do culto aos orixás é a valorização da diferença (Carmo, 2006, p.26-27).
Diferente das religiões de “unidade”, relacionadas a existência de um único Deus que se multiplica em atividades, campos de atuação e sub personalidades136, os orixás estão relacionados à diversidade da psique humana:
Um sistema que abarca várias personificações do divino se presta muito melhor à expressão da pluralidade de forças psíquicas, que atuam de maneiras diferentes, do que um sistema unitário, que deve, necessariamente, recorrer a atributos e atuações diversificadas e às vezes contraditórias da divindade. (Carmo, 1998, p. 86)
136
Como as classifica Zacharias (1998, p. 84), em contraposição às religiões de pluralidade, em que cada uma das divindades coexiste com “personificação própria”.
139 Dentre os aspectos da psique humana aos quais Xangô está relacionado, consta o seu atrevimento nas questões relacionadas ao amor e às conquistas. Como no mito que narra o encantamento simultâneo de Xangô por Iansã e Oxum:
Iansã foi mulher de Xangô. Oxum foi sua concubina. Ele sempre ficou com elas. Xangô era famoso por sua maestria com a espada. Sua fama de grande espadachim corria longe. Um dia chegaram três desconhecidos para aprender com ele. Xangô era desconfiado das coisas. Pressentiu a traição e começou a lutar com os três homens. Eles haviam acendido um fogo atrás do lugar onde seria a luta, pois queriam empurrar Xangô para lá. Xangô se defendia e lutava sem parar, mas eles o empurravam para o fogo, porque eram três contra um. Então Xangô reconheceu finalmente que seria derrotado e chamou Iansã e Oxum. Iansã soltou o relâmpago e Oxum deixou que corressem as águas. E os três subiram para o Orum. Os três se encantaram, agora em orixás. (Prandi, 2001, p. 276)
Não será possível, nesta pesquisa, dar real atenção a esse aspecto na mitologia iorubana. O que podemos afirmar é que as várias possibilidades de comportamento humano estão presentes nas ações dos orixás, fazendo com
140 que seus filhos tenham uma idéia aproximada do destino ao qual estão relacionados, com que características psicológicas estão mais afinados. No contexto desta pesquisa, cabe registrar que, ao saber que Xangô tem uma vida amorosa agitada, intensa, a figura de Xangô se fortaleceu como uma referência para Ilícito. Este mito, no entanto, mostra o guerreiro se dando conta de sua vencibilidade na guerra. Para a vencibilidade reconhecida, havia o caminho do orum, o mundo invisível dos iorubás – acompanhado de suas duas mulheres, sem idéia de pecado ou bigamia presentes, mas do arbítrio humano em que o limite é a injustiça. E levando-se em consideração a formulação de Campbell (Campbell & Moyers, 1988), para quem todos os mitos lidam com a transformação da consciência – quando se vinha pensando de um certo modo, é dado o caminho para se pensar de um modo diferente –, é a possibilidade de outros caminhos que está presente, contrariamente à idéia de um único caminho, de um dogma a ser seguido.
7.13
Dos mitos iorubanos para o contexto histórico da escravidão A referência de Ilícito em ter ado a querer conhecer mais sobre os
orixás a partir dos “resquícios” da história da República de Palmares nos remete ao processo que resultou no “filtro” pelo qual, no Brasil, reduziu-se o número de orixás em relação à quantidade de divindades presentes no território iorubano em África.
141 Como nos informa Tavares (2002), de um modo geral, durante a escravidão, os africanos concentraram suas “preferências” nos orixás guerreiros e nos orixás de fundamento de sua vida, cultura, raiz e coesão, pois
... o culto, no cativeiro, mais do que uma necessidade existencial, como na África, era um imperativo visceral de sobrevivência, estabelecendo íntimos laços culturais entre escravos que, às vezes, nem tinham esse culto em África, mas agruparam-se coesamente em torno dele na diáspora Brasil/Caribe. (Tavares, 2002, p. 62-63)
A divisão familiar e étnica aplicada pelos senhores de escravos portugueses aos africanos com a técnica de “dividir para conquistar” também limitou o panteão do candomblé. Como nos informa Zacharias (1998), na “Iorubalândia” (África Ocidental), fala-se na existência de cerca de 600 orixás. Ao Brasil, chegaram algo em torno de 50 orixás; desses, 16 são os mais cultuados no candomblé. “Muitos deles são reis e rainhas divinizados, o que confere uma dimensão mítica ao ser humano histórico” (p. 89). Ser um homem livre é a preocupação de Ilícito. Por isso ele entende que não tem que ser do candomblé para “cultivar” os orixás.
Chegam em mim e falam que eu tenho que ser do candomblé ou da umbanda, pra mim poder cultivar os orixás, sabe? Eu, eu não tenho religião, eu sou rasta como estilo de vida, entendeu?, pra amenizar as carne, comer mais fruta, e o cabelo, como forma de resistência, eu sou um homem livre, que é essa coisa do rastafári, né? Cê é um homem livre, nada te atinge, cê anda no ônibus, dane-se o povo olhar pro seu cabelo, se você é tatuado, se eu sou preto, se eu sou branco, tô ali, eu tô imune a qualquer coisa, nada me atinge. Andar na babilônia de São Paulo sem deixar as coisas atingirem você, entendeu? Cê aceita as coisa errada da Babilônia, não, você combate também.
142 Essa preocupação em ser um homem livre não o impede de se aproximar da religião. Um dos aspectos do candomblé é o acolhimento: os que queiram/necessitem de conforto espiritual ou mesmo que procurem pelo terreiro por se sentirem bem naquele ambiente, são bem-vindos. Essa forma de contato com a religião é bastante freqüente. Ao que as entrevistas demonstraram, sua concepção de convivência em sociedade dialoga com a organização social dos nagôs. Nessas sociedades, a organização hierárquica “obedece à regra que pressupõe a cooperação e complementaridade entre as pessoas”. Mas também exige uma especialização do conhecimento que cerca as atividades do trabalho, o que só se adquire com a experiência cotidiana e, portanto, só é possível acumular conhecimento com a idade (Salami, 1997, p. 86). Quando Ilícito se referiu ao fato de que os orixás, na vida dele, “são resquícios” que, ao reeducar-se, eles viriam na lembrança, ele se referiu ao fato de que
Já tá no DNA, né? Tá no inconsciente, já tá no nosso perispírito137, já tá no meu ectoplasma. Perispírito é a transição entre a alma e o espírito, entendeu? Já tá no meu ectoplasma, já tá entendeu? Agora só precisa trazer as lembranças. Isso aí já veio um preto-velho e falou, já tá no meu sangue, eu nasci pra ser isso mesmo, eu só venho trazendo através do conhecimento, da tradição oral, você vem trazendo, mas isso aí já tá em mim138. A não ser que eu não me preocupe com isso e não vá atrás, entendeu, me preocupe mais com o MP3. Aí eu não vou trazer isso. É justamente, eu não gosto de ser doutrinado numa religião, num papel que tá escrito e você tem que fazer aquilo se não cê não serve, que nem os maçon, sabe? Rasta é isso, não é religião, rastafarismo. 137
Para o espiritismo kardecista, trata-se do “laço” que une matéria e espírito. Envoltório sutil e perene da alma, que possibilita sua interação com os meios espiritual e físico. Empregada pela primeira vez por Allan Kardec, no item 93 de “O Livro dos Espíritos”. Alma e perispírito constituem o espírito (Fonte: guia de estudos e pesquisas a respeito do Homem, Espírito e Universo: http://www.guia.heu.nom.br/perispirito.htm. o em 17/08/2007). 138 Em situação relatada após essa entrevista, mas que ele próprio associou a esse momento da pesquisa, ele chegou à casa de um rapper em Salvador, Bahia, e sentiu que já havia estado ali antes. Ao comentar isso com o rapper que estava visitando, o comentário dele, que é filho-de-santo, teria sido: “é que somos filhos de orixás que chegam antes. Nossos espíritos chegam antes”.
143 É estilo de vida, é uma forma de ser, entendeu? E... que nem, os caras lêem o Antigo Testamente, lêem a Bíblia Sagrada.
O que Ilícito não quer para si é também o que a tradição iorubana não traz em si. Segundo Hofbauer (2006),
... na concepção de mundo iorubana as idéias morais, como o “bem” e o “mal”, são definidas pelos contextos específicos e não podem ser entendidas como princípios dogmáticos. (...) As “sociedades africanas tradicionais” não desenvolveram “doutrinas salvacionistas” nem políticas missionárias”. (Ibid., p.316)
Os textos sagrados que se baseiam em “princípios morais” necessitam da palavra escrita para existir. É por meio deles que pode haver uma divulgação da base “teológico-filosófica” de uma religião para além das fronteiras étnicas ou nacionais (Ibid., p. 317-318), configurando o que Goody139 (apud Hofbauer, 2006) chama de “religiões de conversão”. Um dos aspectos apontados por Hofbauer em sua análise trata da incorporação de divindades de vizinhos (inimigos) entre os grupos étnicos da África Ocidental – da qual os iorubás fazem parte – com o objetivo de aumentar a força do próprio grupo. Segundo o autor, “para ‘concepções teológicofilosóficas’ que não se fundamentam numa verdade dogmática absoluta – caso do relativismo existente entre “bem” e “mal” –, esses processos não constituem uma contradição” (Hofbauer, 2006, p. 320-321).
Uma parada que a gente viaja no daime é isso. ar várias entidades, de ter vários leques abertos, de ter várias linhagens, desde o mestre Irineu, 139
Jacky GOODY, “A lógica da escrita e a organização da sociedade. Lisboa, Edições 70, 1987.
144 mestre Sebastião, da linhagem dos indígenas lá da Amazônia, manipular planta de poder, hinos, cânticos e todo o ritual de dança com os instrumentos, sabe?, toda uma coisa de busca interior e de limpar o espírito e o corpo também e ar todas as entidades com o respeito do sagrado a todas as entidades. E é loco isso.
Vários leques abertos. Várias linhagens. Uma democratização do o ao sagrado presente na não-prevalência do monopólio do o a esse sagrado por parte do sacerdote (a agem das várias entidades se dá com o “e” oferecido por vários indivíduos e não por um sacerdote apenas). A recusa do fundamentalismo, necessária para a busca de uma sociedade mais igualitária e democrática, está presente também na democratização do o ao sagrado (Ciampa, 2004). Para tanto, também é necessário reconhecer a existência de uma grande variedade de experiências religiosas, inclusive singulares de cada indivíduo, as quais não podem ficar prisioneiras das instituições religiosas (Cf. James apud Ciampa, 2004[a]).
7.14
O extermínio do iorubá no Brasil: a repulsa de Ilícito pela imposição de um padrão particular como padrão universal
O Adoniran Barbosa fala ‘eu fiquei a vida inteira cantando errado e todo mundo ria de mim’. Um dia um descobriu, estorou, ‘e agora todo mundo tenta falar errado’. Até pra falar errado tem que saber entendeu? Uma das coisas que a sociedade tem preconceito com o rap é isso, que a gente fala muito na gíria, tem vários dialetos que... O (Geraldo) Alckmin lá acabou de inaugurar a biblioteca de língua portuguesa, tá ligado? Em 2006 eles conseguiram acabar de vez com o iorubá, o tupi guarani, cortar cada vez mais os dialetos e impor o português que é a quarta, quinta língua mais falada no mundo. Isso aí vem sendo feito desde o início do século 18, 19... Até 1900 e pouco, a gente falava vários dialetos que é uma parada que depois os tropicalistas vieram falando que a gente falava brasileiro e tal. Se um país fala tupi-guarani com mais de cem dialetos, pegando todas as etnias indígenas, pegando também todos os povos africanos que veio. Uma grande parte falava ioruba, porque foi a língua que tiveram que se adaptar, né?, pra que tivessem uma informação e mais comunicação entre os negros do Brasil, porque vieram de toda parte da África,
145 entendeu?, então a gente falava iorubá também140. Vieram cortando com o lance do português. Então o lance do brasileiro é de falar brasileiro, porque a gente mistura aqui todos esses costumes que foram cortados pela sociedade, pelo grande centro. E a elite não tem conhecimento.
A indignação de Ilícito com relação ao “extermínio” do iorubá no Brasil, consensuado nas práticas “invisíveis” de legitimação da língua dominante (historicamente considerada culta, com a negação da contribuição para o sistema morfológico, sintático, polissêmico das línguas africanas e indígenas na língua portuguesa falada no País), demonstra sua preocupação em que seja valorizada aqui a presença e a participação dos povos que foram historicamente discriminados pelo Estado brasileiro, quase que propondo um novo paradigma – o de uma pedagogia do reconhecimento da diferença, presente no patrimônio civilizatório dos iorubás.141 Ao propor três modelos de classificação para os indivíduos, Ilícito possibilitou a síntese do raciocínio desenvolvido no decorrer das entrevistas que buscavam compreender como se deu a metamorfose de sua identidade e como foi o processo em direção à sua emancipação.
7.15
Chuta que é macumba: a diferença entre o homem livre, o doente e o inconsciente Na visão de Ilícito, todos os homens nascem livres. Há os que ficam
doentes no decorrer da vida. Há os que se tornam inconscientes... O homem livre é o que luta contra a doença e o seu papel é combatê-la. No combate, não
140
A esse respeito ver CASTRO (2001). A respeito da relação entre saberes africanos no Brasil e novas pedagogias para a produção de conhecimento, sugiro a leitura de Vanda MACHADO, “Ilê Axé: vivências e invenção pedagógica – as crianças do Opô Afonjá”, Salvador (BA): EDUFBA, 2002; e Nelson PRETTO & SERPA Luiz Felipe, “Expressões de sabedoria: educação, vida e saberes – Mãe Stella de Oxóssi e Juvany Viana”, Salvador (BA): EDUFBA, 2002.
141
146 há possibilidade de “mesmice”, de reposição de uma identidade. No combate, estão, também, a metamorfose e a busca de autonomia:
Doente tem em todo lugar, independente da etnia e da raça, né? E infelizmente [eles] nascem pessoas livres... Tem três tipos de pessoas no mundo: o livre, o inconsciente e o doente, entendeu? O livre é o rasta... que nada atinge ele. E o papel desse rasta é não se acomodar, pra combater a doença. O inconsciente é aquele cara que é doente e não sabe?, porque ele segue simplesmente a hierarquia, as regras da sociedade e infelizmente o racismo no Brasil é institucional, se você seguir direitinho as regras você se torna um racista em potencial, entendeu? E... ´Tão, tem várias frases de efeito que cê sabe que tá no popular brasileiro e... E esse inconsciente às vezes fala “chuta que é macumba”, tá ligado? E ele não sabe o que ele tá falando, entendeu? Ele tá falando merda, ele tá equivocado, entendeu? Então esse é o inconsciente, ele é racista e não sabe. E tem o doente. O doente é esse memo, que cê tem que tratar ele. E o papel do homem livre é combater a doença, entendeu? [São os} Outros que se cuidaram e assumiram a vida como uma luta e não deixou ficar doente, que é o meu caso.
O inconsciente não sabe que está doente. Vivendo entre outros inconscientes, a doença fica ainda mais difícil de ser detectada. Chamar a um negro de macaco em uma partida de futebol, como aconteceu com o jogador Grafite na partida da Seleção Brasileira contra a Argentina em 2005. Desábato, o agressor, somente seguiu o que os padrões culturais de sua sociedade lhe prescreveram, tornando-se um “inconsciente”. Como “doentes”, temos os exemplos dos neofascistas, só acobertados por outros “doentes”. Seguir a hierarquia, como é o caso do inconsciente, é internalizar práticas sociais de forma heterônima, sem autonomia, portanto, sem emancipação possível. Lutar contra a doença, como Ilícito se refere ao racismo, é sinônimo de emancipar-se, de se soltar da “manilha e do libambo” instituídos pelos padrões sociais e culturais seculares impostos pelo “padrão universal branco”, em que o lugar do universal é ocupado por um grupo humano somente, cabendo aos demais a assimilação, a subordinação. A busca
147 da autonomia no processo de construção da identidade humana de Ilícito foi acompanhada pela narrativa de sua história de vida, quando se propôs a responder à pergunta sobre quem é e quem gostaria de ser. O hip-hop, como uma rede, uma matriz, viabiliza esse contato com o candomblé. Pelo hip-hop, como forma de linguagem, está se processando uma espécie de “visão mais universalista do candomblé”,142 do qual é possível alimentar-se “retoricamente” ou mesmo no desenvolvimento de um o ao sagrado particular, de forma a possibilitar a afirmação de identidades. Utilizando o conceito de Ferreira (2000), identidades “positivamente afirmadas”. Ilícito foi escolhido para esta pesquisa por ser considerado um sujeito emblemático. Outros hip-hoppers traziam o candomblé e os orixás em letras de rap, em estampas de camisetas... Dentre eles, os que não pertenciam a um egbé chamaram a atenção, exatamente por essa razão: se não são do candomblé, por que expressam essa questão? Ilícito aponta um caminho, caminho escolhido por outros, uma vez que o aumento gradativo dos que comparecem a toques de orixás como “assistência” (como são chamados os que vão para assistir à festa) e para consultas aos búzios têm aumentado gradativamente, enquanto o aumento do número de “iniciados” não se verifica143. A pretensão universal do candomblé, exemplificada no seu princípio de respeito à alteridade, está – no mesmo movimento da circularidade da “roda sagrada” – “dialogando” com o hip-hop que, como em um movimento de retribuição, difunde uma visão mais universalista desse sistema religioso e filosófico baseado no qual é preciso vivenciar o dia-a-dia para partilhar do axé. 142
Fazendo uso da proposta do professor Juarez Xavier, por ocasião do exame de qualificação desta pesquisa realizado em 08 de abril de 2007.
148 Nesse movimento, foi preciso morrer-para-viver-para-morrer-para-viver... Foi necessária a metamorfose.
A semana que vem você vai vim falar comigo e eu vou tá diferente, meu. Cada dia eu sou uma pessoa. Tento empilhar os livros no lugar e vejo que no final da noite as coisas que eu tentei concluir durante o dia estão... pelo menos, concluídas. No outro dia, mais um dia. E uma coisa de cada vez. Um tijolo de cada vez, entendeu?
Busca o texto do Luiz Gama de novo e recita o poema todo, “rapeando”: Amo o pobre, deixo o rico, Vivo como o Tico-tico; Não me envolvo em torvelinho. Vivo só no meu cantinho: Da grandeza sempre longe Como vive o pobre monge. Tenho mui poucos amigos, Porém bons, que são antigos, Fujo sempre à hipocrisia, À sandice, à fidalguia; Das manadas de Barões? Anjo Bento, antes trovões. Faço versos, não sou vate, Digo muito disparate, Mas só rendo obediência À virtude, à inteligência: Eis aqui o Getulino Que no pletro anda mofino. Sei que é louco e que é pateta Quem se mete a ser poeta; Que no século das luzes, Os birbantes mais lapuzes, Compram negros e comendas, Têm brasões, não – das Kalendas; E, com tretas e com furtos Vão subindo a os curtos; Fazem grossa pepineira. Só pela arte do Vieira, E com jeito e proteções, Galgam altas posições! Mas eu sempre vigiando Nessa súcia vou malhando De tratante, bem ou mal, Com semblante festival. Dou de rijo no pedante De pílulas fabricante, 143
Informação de Juarez Xavier. Vide nota anterior.
149 Que blasona arte divina, Com sulfatos de quinina, Trabusanas, xaropadas, E mil outras patacoadas, Que, sem pingo de rubor Diz a todos que é DOUTOR! Não tolero o magistrado, Que do brio descuidado, Vende a lei, trai a justiça - Faz a todos injustiça Com rigor deprime o pobre Presta abrigo ao rico, ao nobre, E só acha horrendo crime No mendigo, que deprime. - Neste dou com dupla força, Té que a manha perca ou torça. Fujo às léguas do lojista, - Do beato e do sacrista Crocodilos disfarçados, Que se fazem muito honrados Mas que, tendo ocasião, São mais feros que o Leão Fujo ao cego lisonjeiro, Que, qual ramo de salgueiro, Maleável, sem firmeza, Vive à lei da natureza Que, conforme sopra o vento, Dá mil voltas, num momento. O que sou, e como penso, Aqui vai com todo o senso, Posto que já veja irados Muitos lorpas enfunados, Vomitando maldições, Contra as minhas reflexões. Eu bem sei que sou qual Grilo, De maçante e mau estilo; E que os homens poderosos Desta arenga receosos Hão de chamar-me Tarelo, Bode negro, Mongibelo, Porém eu que não me abalo, Vou tangendo meu badalo, Com repique impertinente, Pondo a trote muita gente, Se negro sou, ou se sou bode, Pouco importa. O que isto pode? Bodes há de toda casta, Pois que a espécie é muito vasta... Há cinzentos, há rajados, Baios, pampas e malhados, Bodes negros, bodes brancos, E, sejamos todos francos, Uns plebeus e outros nobres, Bodes ricos, bodes pobres, Bodes sábios, importantes,
150 E também alguns tratantes... Aqui, nesta boa terra, Marram todos, tudo berra; Nobres Condes e Duquesas, Ricas Damas e Marquesas, Deputados, senadores, Gentis-homens, vereadores; Belas Damas emproadas, De nobrezas empantufadas; Repimpados principotes, Orgulhosos fidalgotes, Frades, Bispos, Cardeais, Fanfarrões imperiais, Gentes pobres, nobres gentes Em todos há meus parentes. Entre a brava militança Fulge e brilha alta bodança; Guardas, Cabos, Furriéis, Brigadeiros, Coronéis Destemidos Marechais, Rutilantes Generais, Capitães de mar-e-guerra - Tudo marra, tudo berra Na suprema eternidade, Onde habita a Divindade, Bodes há santificados, Que por nós são adorados. Entre o coro dos Anjinhos Também há muitos bodinhos O amante de Syringa Tinha pêlo e má catinga; O deus Mendes, pelas costas, Na cabeça tinha pontas; Jove, quando foi menino, Chupitou leite caprino; E segundo o antigo mito, Também Fauno foi cabrito. Nos domínios de Plutão, Guarda um bode o Alcorão; Nos lundus e nas modinhas São cantadas as bodinhas: Pois se todos têm rabicho, Para que tanto capricho? Haja paz, haja alegria, Folgue e brinque a bodaria; Cesse pois a matinada, Porque tudo é bodarrada!144
144
Para palavras inteligíveis e grafia correta dos versos, a partir da declamação de Ilícito houve conferência junto à versão do poema que consta do livro “O negro em versos: antologia da poesia negra brasileira” (SANTOS; GALAS; TAVARES, 2005).
151
8 Considerações finais O respeito às diferenças presente no patrimônio civilizatório dos iorubás – conhecidos no Brasil como nagôs – possibilita pensarmos em identidades
emancipatórias,
identidades
não
reguladas
por
uma
normatividade social coercitiva, por uma única verdade dogmática, mas pelo convívio entre os diferentes. Para ser emancipatória, a identidade precisa ser vivida como metamorfose resultante de escolhas autônomas, em contraposição à reposição provocada por coerção que impede a escolha do indivíduo (Ciampa). Ao mesmo tempo, precisa ser uma identidade pós-convencional, o que implica um projeto ético democrático (Habermas), que recusa qualquer forma de fundamentalismo, seja em África, Europa, Ásia, Oceania ou nas Américas... Não ser fundamentalista é possibilidade do candomblé, possibilidade não exclusiva dessa tradição – em que se concentra o patrimônio cultural nagô no Brasil. É possibilidade também de outras tradições, desde que não comprometidas com versões fundamentalistas, seja cristianismo, judaísmo, islamismo... O que de fato é fundamental é respeitar a diversidade humana, tratar e ser tratado como igual. Se há uma dimensão que pode ser considerada universal para todos os seres humanos, ela não é privilégio de nenhuma cultura particular. Historicamente, o branco foi colocado como padrão universal de humanidade. A luta dos afrodescedentes não é pela
152 imposição de um outro padrão. A identidade afrodescendente luta por ser reconhecida, na sua diversidade (não se trata de uma identidade cristalizada, trata-se de um processo). É uma luta contra as diferentes formas de fundamentalismo. Nesta pesquisa, foi apontado um conjunto de significados com pretensões democráticas de uma cultura particular e esses significados podem ser compartilhados com representantes de outras culturas. O conjunto de significados presente na cultura nagô mostra-se adequado para se pensar o conceito de emancipação aqui presente. Mas a condição para um diálogo democrático entre diferentes culturas é o processo, está em como ele se dá: é por meio de um processo democrático que se podem encontrar formas de compartilhar esse conjunto de significados com outros. É pelo compartilhar do conjunto de significados que estão presentes nas
culturas
africanas
e
afro-brasileiras
que
Ilícito
se
vê
como
afrodescendente. Ele busca jogar luz sobre essas culturas para que possam figurar ao lado das demais, nenhuma delas à sombra, todas expostas à luz. “Quem é periferia, diga yo! Quem é centro, diga yo! Quem é branco, negro, indígena, diga yo-yo-yo”, ele diz para a platéia nos shows. O “yo” do hip-hop se move na resistência às diferentes formas de opressão, na luta por direitos iguais para todos, em direção à democracia. Aspectos presentes no conjunto de significados das tradições dos descendentes de Ilé-Ifé, em seu contexto local em África e no contexto da diáspora provocada pela escravidão,
em
território
brasileiro.
Esse
conjunto
de
significados
compartilhados lhes possibilitou unirem-se a grupos humanos de diferentes
153 partes do continente africano – no Brasil, principalmente a jejes e bantos que, como foi explicitado nesta pesquisa, é o plural de “muntu”, ser humano. Esse conjunto de significados compartilhados conformou o candomblé em suas diferentes nações. Permitiu-lhes unirem-se, nos quilombos, na diversidade dos povos africanos, a indígenas e a brancos. Permite que as escolas de samba, as rodas de capoeira, o maracatu, o jongo e demais manifestações
de
matriz
negra
sejam
compartilhadas
por
todos,
independente da cor ou do credo. Dessa perspectiva, todo e qualquer ser humano pode ser “muntu”, pois todo e qualquer indivíduo é gente. Ilícito é uma pessoa que, como ele mesmo diz, a cada dia está diferente. Uma pretensa conclusão sobre a identidade de Ilícito não nos permite afirmar como ele vai ser: a direção que ele nos apontou no percurso da pesquisa é a direção da liberdade. Ele será sempre a busca de liberdade. “Uma porta abrindo-se em mais saídas”145, “muntu”, humano. Compreender a identidade afrodescendente de Ilícito é compreender a busca de uma sociedade em que a diversidade humana seja respeitada, em que todos possam ser tratados como iguais. É compreender um projeto ético de luta pela emancipação humana.
145
João Cabral de Melo Neto apud Antonio da Costa CIAMPA, 1987-2004, p. 36.
154
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1 Anexos Anexo 1: transcrição das entrevistas com o sujeito da pesquisa
Entrevista I Sexta-feira, 27 de outubro de 2006. Zona sul de São Paulo. Ilícito, 28 anos. Explico do que se trata a pesquisa e como serão realizadas as entrevistas. Havia uma preocupação dele em ser “mais claro nas idéias”, em “diluir mais as idéias” e “não viajar muito”. Perguntei se a preocupação era pelo tempo, já que a intenção era ouvir o que ele tivesse pra dizer da forma que ele quisesse dizer. Não responde. Faço a pergunta: “quem é você e quem você gostaria de ser”. Ele sai à procura de um texto, pega as folhas impressas e diz “do Luiz Gama”. Ilícito: Acho que a melhor maneira de eu me apresentar é lendo Luiz Gama, que era um advogado, que entrou na política, conheceu de perto e era abolicionista, este texto é de 1859. Na verdade, ele já tinha escrito em 56 e foi publicado acho que em 59, e ele foi um dos maiores da luta abolicionista. E a mãe dele também, era Luiza Mahin, que lutou na Inconfidência dos Malês em 1835 na Bahia e ele foi vendido pelo pai que era branco, fazendeiro, feudal, que perdeu toda a riqueza em jogos, ele era viciado em jogos e vendeu o filho como escravo, porque a mãe dele era negra. Depois ele veio pra cá, pro interior de São Paulo e venceu, tá ligado?, e aqui acho que a melhor forma de eu me apresentar nessa pergunta sua é... “Quem sou eu”. “Quem sou eu? que importa quem? sou um trovador proscrito, que trago na fronte escrito essa palavra: ninguém’. É isso. Eu sou aqueles cara que fico... sou o último do boteco. (silêncio de alguns segundos). Liliane: como é que isso? Ilícito: “na hora em que o boteco está fechando eu sou um dos últimos, tá ligado? Tipo, eu não tô preocupado com... (acende um cigarro) tô preocupado de viver, sabe? Os caras... por isso que o mundo tá... o pessoal almeja sucesso, almeja fama, ibope, dinheiro, pá, acredito só num lance que é qualidade de vida, minha religião é o Corinthians e Deus é fiel. (silêncio enquanto ele sopra a fumaça do cigarro, que sopra e não diz nada) Liliane: tudo isso é você? Ilícito: É. É. (alguns segundos de silêncio novamente) Liliane: e tem mais coisa? Ilícito: e tem meu trabalho, que é a minha obra, da minha vida. As pessoas só... hoje como tudo é imediato, é só pesquisar. Minha vida é uma pesquisa. Uma
162 alquimia, né? Que nem fazer um rango, adoro misturar os ingredientes assim. É isso. Minha vida tá em torno da minha obra. E minha obra não tá nem na metade, tá ligado? (silêncio) Liliane: e o que é a tua obra? (o celular dele toca, interrompemos pra ele atender. Ele desliga o aparelho. Voltamos à entrevista. Ele fica parado, esperando que eu recomece). Liliane: sua obra. Ilícito: oi? Liliane: sua vida gira em torno da sua obra e sua obra não tá nem na metade, é isso? O que é a sua obra? Ilícito: a que Deus mandou pra mim. Só tô psicografando, cê tá ligado?, a parada. É bem isso assim, na verdade, é isso. Tudo que é feito tem uma força superior agindo sempre. É isso. (silêncio) Liliane: e o nome disso qual é, dessa força superior pra você? Ilícito: é tudo que tá ao redor, né? O ar, o béque (cigarro de maconha), a natureza, o sol... tudo é Deus pra mim. Tudo que é divindade que é sagrado, eu respeito. Tudo que é entidade. Eu acredito em toda essa parada (sopra a fumaça do cigarro). Por isso que eu não tenho religião. Por causa disso. Minha religião é o Corinthians. Nesse sentido de não seguir dogma, não gosto de ninguém... (interrompe a frase). O que age sobre mim são as forças superiores, que tá em tudo assim, não o homem. Só isso que eu não gosto. Cê se apega com as coisas que cê tá enraizado, né?, que nem o Corinthians. Aí cê vai transformando isso assim. Meu não vai confundir que nem... pra confundir a mente dos que se diz sábio. É isso. Chapar a mente da galera. (silêncio de alguns segundos).
Liliane: eu queria pedir pra você falar mais dessa coisa do não ter religião. Ilícito: não, eu não disse que eu não tenho religião. Liliane: ah, tua religião é o Corinthians, desculpa... Ilícito: minha religião é o Corinthians. Eu não tenho essa religião dogma, né? Essa coisa... eu tenho o meu estilo de vida rasta, minha filosofia de vida rasta. Não como carne, sô vegetariano não tão radical assim. Mas eu acho que a... rasta cê alcança uma elevação espiritual e na vida de conquista em várias outras coisas que você se torna um rasta com o tempo, então o importante é partir de algum momento. Minha filosofia que eu, que eu me aproximo é o lance rasta. Convivo hoje muito com os irmãos islâmicos, tô ali com o Corão ali assim, com bastante presságios do islão, que eu acho que é uma religião de resistência, ir prum templo, vô, sem nenhum problema, leio, pra mim tudo é
163 informação. Acho que a religião educa o povo, tá ligado?, muitos tão esperando Jesus voltar pra mim ele já veio e tá voltando de novo, tá ligado? Minha família aqui é espírita, altas famílias são protestantes, outras, a maioria são católicos, eu tenho orixá no meu corpo, acredito nos primeiros habitantes da terra, na ligação forte com o candomblé. Gosto de tomar bebida de poder, tá ligado? Liliane: gosta de quê? Ilícito: bebida de poder, planta de poder, gosto do daime, leio muito Castanheda, lance de xamanismo, de Xamã, os “brujo” antigo do ..... (fala algo parecido com Ibé, não consegui entender). Eu ajo muito nessas coisas voltadas à terra memo, tá ligado?. Reino vegetal, alimentação vital. Que é da natureza, que é vital pro homem se alimentar sem precisar se alimentar dos animais, entendeu? Alimentação vital, comida tradicional dos rastas. Que é baseada em legumes, ervas, frutas, entendeu? Coisas da terra, sem muito extrativismo animal. Mas não tão radical, né? Liliane: e você pode falar um pouco mais dessa parte em que você falou de ter um orixá no seu corpo. Morando no seu corpo? Ilícito: não, tenho tatuado. Tenho tatuado Xangô. Eu cultivo muito os orixás. Tenho o maior respeito com o sincretismo religioso africano e também pra mim é um processo de trabalho espiritual. Você chega numa evolução e eu tô nesse processo. (sopra a fumaça e faz silêncio) Liliane: Fala mais desse processo. Ilícito: processo de conhecimento mesmo, né? É você chegar ao rito, finalmente. Tô num processo de conhecimento, de evolução mesmo assim. Que nem religião. Eu sou um cara religioso, tenho deus no coração, sou cristão, sem religião (ri e faz silêncio). Eu tava conversando com um ateísta ele falou “eu sou ateísta” e fez um discurso ateísta e tal, mas no final eu falei “firmeza, tal”. E aí ele falou mais uma parada e a gente voltou nessa parada “tu falou que tua religião é o corinthians, eu tenho muita fé no corinthians, sou fiel ao corinthians”, eu falei “pô, véio, se tu tem fé então cê não é ateu” (rindo), e ele falou “pelo corinthians...”, eu acho que o corinthians mudô, tá ligá (silêncio). Acho que tem uma força maior agindo sempre. O lance da poesia, por exemplo. O bagulho vem memo, sabe?, é uma psicografia, meio Chico Xavier a parada, várias forças. Uma parada que a gente viaja no daime é isso. Uma das organizações religiosas hoje, o lance dos hab... (não termina a frase), ar várias entidades, de ter vários leques abertos, de ter várias linhagens, desde o mestre Irineu, mestre Sebastião, da linhagem dos indígenas lá da Amazônia, manipular planta de poder, hinos, cânticos e todo o ritual de dança com os instrumentos, sabe?, toda uma coisa de busca interior e de limpar o espírito e o corpo também e ar todas as entidades com o respeito do sagrado a todas as entidades. E é loco isso. Liliane: isso é no daime? Ilícito: isso é no daime, por exemplo. Tem vários rituais indígenas, não só o daime. O daime é mais conhecido e universal hoje . Tem o “unipai”, que é da
164 tribo dos Kaxinawá. Tem cada tribo indígena mais no norte da Amazônia que usam planta de poder, cada um tem o seu ritual. Eu tive a satisfação de conhecer um jovem que veio estudar aqui, lá da tribo..., príncipe da tribo, né?, filho de um grande pajé, que ele tinha o ritual do “unipai”, eu gosto dessa parada de planta e poder. Tinha um bruxo, um amigo meu que já faleceu, que era paraplégico, ele viajava muito nesse lance de transcender. É loco. Hoje a gente vive na quebrada que é um lance quimical, eu na verdade curto mais um lance das plantas de poder. (Silêncio). Mais pra abrir a percepção, a consciência, entendeu?, pra lidar com as coisas do mundão, que hoje pra sair pro mundão, nossa, tem que ter mó mente mil grau, agir na pura calma (rapeia) ‘o processo é lento, o barato é loco’. Que nem eu tava ouvindo um repentista tem uma música que ele fala isso, né?, ‘o processo é lento, tô desarmado’. Mas a gente fala que é época das colheitas, né?, reparação, época das colheitas. É... Época das colheitas. Liliane: agora é época das colheitas? Como assim? Ilícito: É isso, entendeu? Como assim?! A gente plantou, agora tem que colher, né? E é o ciclo natural do ser humano que trabalha. Ser beneficiado com o fruto do esforço dele, né? É natural. Agora pra muitos, (é o que) tô falando entendeu?, vitória é qualidade de vida, dar tranquilidade pra minha família, poder continuar transformando o que tá a sua volta, entendeu?, porque não adianta mudar pra você sendo que a sua volta tá a mesma merda, entendeu?, então pra mim essa situação continua a mesma só que eu sou um ponto de ligação que posso transcender e levar muito mais coisas. E pras pessoas podê acreditar que eu posso levar isso a eles, eu tenho que tá bem. Só que o momento não tá bom pra ninguém. E aí que tá o mundo ilusório, da arte, da fama, de você achar que é antes de ser. Por isso que eu acho que a parada gira em torno da obra, do que você constrói. Tava ouvindo... eu fico ouvindo aqui uns tiozinhos... o Adoniran Barbosa fala ‘eu fiquei a vida inteira cantando errado e todo mundo ria de mim. Um dia um descobriu, estorou, e agora todo mundo tenta falar errado’. Não consegue, porque até pra falar errado tem que saber, entendeu? Uma das coisas que a sociedade tem preconceito com o rap é isso, que a gente fala muito na gíria, tem vários dialetos que... O Alckmin lá acabou de inaugurar a biblioteca de língua portuguesa, tá ligado?, em 2006 eles conseguiram acabar de vez com o iorubá, o tupi-guarani, cortar cada vez mais cortar os dialetos e impor o português que é a quarta, quinta língua mais falada no mundo. Isso aí vem sendo feito desde o início do século 18, 19 que os... (não completa a frase). Até 1900 e pouco, a gente falava vários dialetos que é uma parada que depois os tropicalistas vieram falando que a gente falava brasileiro e tal mas até ins...(não termina) se um país fala tupi-guarani com mais de cem dialetos, pegando todas as etnias indígenas, pegando também todos os povos africanos que veio que era (não termina), basicamente, uma grande parte falava iorubá porque foi a língua que tiveram que se adaptar, né?, pra que tivessem uma informação e mais comunicação entre os negros do Brasil, porque vieram de toda parte da África, entendeu? Então a gente falava iorubá, também. Vieram cortando com o lance do português. Então o lance do brasileiro é de falar brasileiro, porque a gente mistura aqui todos esses costumes que foram cortados pela sociedade, pelo grande centro. E a elite não tem conhecimento. A gente às vezes vai numas festas aí, nuns casarão, e os
165 caras põem os preto pra tocar no fundo, reprodução da senzala, sabe? Da época dos casarão antigo. Cê pára no farol os cara te dá um panfleto daquele que, pra você comprar o apartamento, cê vê lá um quarto de empregada, reprodução da época do escravocrata. São várias coisas que eu vejo que hoje o capitalismo condiciona e o capitalismo pelo capitalismo não transforma em nada, entendeu? E essa coisa de condicionar dentro de uma lei de uma forma de sociedade onde a felicidade gira em torno do bem material, entendeu?, e que é um bem material que o cara acha que vai tê, vai tê, vai tê e o rico quando tem não tem, e o pobre fica querendo tê e quando tem se perde porque nunca teve e aí rola todo um processo de adaptação. Muito louca essa parada. Então o lance que eu falei no início é o lance de transcender, o lance do espiritual, uma coisa que vai ficar pra vida, então é todo um (não termina)... Isso aí vai vim como conseqüência do trabalho que cê quer plantar, entendeu? Tenho uma véinha de 86 ano, minha mãe, meu pai, tano doente, meu irmão, a gente tem que ir nos postos do governo, entendeu? Eu queria ter um plano de saúde... esses barato que eu tava falando que eu viajo que é melhor falar da minha coisa que é legal, que é lícito, das coisas que eu posso acreditar que eu posso mudar pra minha vida e pra minha família, ter um plano de saúde, poder pagá as conta... são coisas bestas, supérfluas, que pra quem tem qualidade de vida são detalhes. Poder se alimentá beeem... umas parada assim, sabe? Outra coisa assim, o lance do meu trabalho, tem uma dimensão, essa parada, tentando cada vez tá melhor pras pessoas que ouve o meu som, porque a gente tem realmente um compromisso com a mensagem, entendeu?, é o lance coletivo do grupo e tal, e meu som, eu, pessoa, essa coisa que cê quer falar, ainda não acho (não termina), não tá (não termina) um pouco preparada pra ouvir, mas vai chegar o momento. Pra nóis nunca foi fácil, sabe?, as parada aqui é que nem uma lenda. Aí não tem jeito, “calma, vai sair, tem paciência. Tudo é um processo, da hora que Deus quer, que Jah quer, dessa força quer. Ou quando a gente consegue abrir todos os caminhos, entendeu? É sempre assim, muito loco (Silêncio). Liliane: então você é tudo isso? Ilícito: não sei se sou tudo isso. Nóis somos né. Faço parte dessa, desse... minúsculo grão de areia onde você é um ponto de ligação que brilha tá ligado?, às vezes cê tá na praia cê vê um grão de areia que brilha mais que os outro, entendeu, é um ponto de ligação que pode fazê com que a galera que tá ando olhe praquele tanto de areia, entendeu? (traga o cigarro e sopra. Longo silêncio). Cê num acha? Liliane: Quero continuar te ouvindo. Ilícito: ah... se cê continuar perguntando. Já tá ando a hora? Tô... no relógio. Tá acabando já, né? Liliane: Eu gostei dessa história do grão de areia que brilha e que faz com que as pessoas olhem, aquele grão de areia que brilha faz com que as pessoas olhem praquele monte de areia, é isso?
166 Ilícito: é. (ri e sopra a fumaça do cigarro). O problema que rola é quando esse grão de areia acha que ele é uma estrela (dá risada). Liliane: hmmmmm... Ilícito: quer brilhar demais. Por isso que tem uma música do Varal, que é uma banda de reggae aqui da quebrada, que ele fala (cantando) “desapegando do plano material seguindo os meus os sei que vou chegar, raggamuffin style the roots, raggamuffin black and blues, quero ver a queda da Babilônia, conquistar a paz para caminhar desapegando do plano material seguindo os meus os sei que vou chegar”. Liliane: “desapegando do plano material, seguindo os meus os sei que vou chegar”... (cantarola, em ritmo de reggae) Ilícito. É (pequeno silêncio). Enquanto os cara usa ouro, a gente usa a arte dos mestres que entorta arame (mostra os braços, cheio de pulseirinhas). “Cada um no seu skate”, que nem diz o Bocão (silêncio). Né não? (sorri e faz silêncio) Liliane (espero um pouco e pergunto): e que mais? Ilícito: mais o quê, meu? Liliane: e quem você gostaria de ser? Ilícito: eu mesmo. Ser quem? Liliane: e como é que é eu mesmo? Ilícito: É essa coisa que eu me transformei aqui, mutante. Liliane: mutante? Como assim? Ilícito: que não pára de se transformar, meu. É isso memo. (silêncio) Liliane: então me fala desse “não pára de se transformar”. Como é que é isso? Ilícito diz algo incompreensível, resmungando baixinho. “Sei lá, é que nem o hip-hop meu. O hip-hop não cresce o tempo inteiro? Os cara acha que é só música. Não é só música. Tem muita coisa acontecendo. Mutante memo”. (silêncio) Liliane: então você é mutante que nem o hip-hop? Ilícito: o hip-hop é mutante. Eu sou um hip-hoper mutante. Liliane: você é um hip-hopper mutante. Ilícito: com certeza.
167 Liliane: e o que é ser um hip-hopper? Ilícito: é ser universal, mano. Todos os lugares do mundo que eu já fui, tem um irmão que é que nem eu (assopra a fumaça do cigarro). Iss´é da hora. Independente da etnia dele. O problema do Brasil é étnico, tá ligado? O lance de não saber respeitar as etnias. Muito mais que a pigmentação e a cor da pele, é respeitar as etnias, entendeu? As etnias indígenas, africanas, européias, árabes, toda a influência mundial, que a raça do planeta tá aqui. Todas. Os orientais... tudo. É saber respeitar isso. (ainda que) as colônias de cada país que não perderam as suas origens. E o mais loco disso é que já se misturaram de uma forma que eu vejo que foi tão agressiva quanto a norteamericana e talvez até muito mais porque trabalhou no inconsciente do povo, tá ligado?, mas que é loco, que é o caldeirão das raças, caldeirão do mundo, e eu luto contra o racismo, acredito nisso, luto contra as diferenças, as indiferenças, minha luta é baseada no lance étnico, tá ligado?, de como a sociedade brasileira, onde o racismo é implantado nas leis e foi jogado pro povo, como lidar e respeitar as etnias, é problema étnico. Assim como o negro teve várias definições, eu fazendo música de preto também, tem várias definições quando eu ando pelo Brasil, tá ligado?, me chamam de várias formas, tá ligado. O último foi “africano de pele clara”. Eu acho que é um lance que vai além da cor da pele, é um lance da poesia de uma poesia que fala “que a pele negra não seja escudo para os que habitam na senzala do silêncio porque nascer negro é conseqüência, ser é consciência”. É isso. (Ele mexe a cadeira e o barulho não me deixa entender as duas primeiras palavras d frase seguinte). ... o conhecimento, que é a definição do quinto elemento, né?, dos cinco elementos que o hip-hop contém, tem uma música do [norte-americano] KRS-ONE que é “Nine Elements”, tem uma música que fala de 12 elementos, outra que fala que tem 20, então, com tantos elementos, elementos que queriam transformar em elementos, o [Áfrika] Bambaataa1, os caras falaram “não, é quatro elementos da forma original – o MC, o DJ, o b-boy, poping, locking, dança original, dança de rua; grafiteiro, e o conhecimento”. Cinco elementos. Pronto. E o conhecimento engloba tudo. Engloba tudo não: adiciona todas essas paradas que as pessoas acham que faz parte do hip-hop, tá ligado? Por isso que eu falo que é mutante, porque tô ouvindo bastante “crunk” do Lil John. Os muleques ainda não sabe o que é crunk. Mas é uma batida que os caras faz lá fora e eu acho bem loco... é do hip-hop. Lá fora tão fazendo “grime”, na Inglaterra. É hip-hop entendeu? Então tem coisa rolano... ouço muito break beat, eletro funk, viajo nuns crônico, que a gente faz aqui, crônico. Liliane: crônico? Ilícito: é. Viajo nesse lance de Luiz Gonzaga, sabe?, de criar um ritmo, sabe? A gente viaja, eu viajo nesse naipe. Criar um ritmo é da hora. Criar um ritmo, tá ligado? Em meia hora os cara tão criando umas parada. Tô ouvindo “double step”, é uma parada da Inglaterra também. Ragga-core é de fudê. Então tem muita coisa. Hoje os cara denominaro tudo black, né? Os muleque não sabe definir cada ritmo musical. Não sabe o que é um R&B, um Soul, um Funk ou o próprio funk do Rio de Janeiro, um volt mix, ouvir um tamborzão... os meleque 1
DJ do Bronx (Nova York) fundador do hip-hop. Maiores informações em: http://www.zulunation.com/afrika.html.
168 não define, é tudo black, tá ligado? Porque a mídia faz que nem fizeram com o break dance, é original funk, b-boy, b-girl, popping, locking. Original dança de rua. Aí vem um cara e fala “ah, é break dance”. Porque eles dançam no break da música, né? A mídia sempre fez isso. E fizeram com o black agora. Antigamente, o cara tinha que subir o morro para ouvir samba de verdade, partido alto, tinha que ir pras favelas ou prumas festa de 1000 grau pra ouvir show de rap. Agora inverteu. Tem que ir pra Vila Olímpia, mano (fala rindo). Só que a gente faz uma festa nem que seja uma vez por ano, mas a gente faz as nossas festas. E isso é mais importante, quando cê vê, várias quebradas tem a sua festa uma vez por ano e tá chegando num nível que em cada fim de semana tem uma festa em cada quebrada. Isso pra nóis é o mais importante. São Paulo é grande, o Brasil é grande (acende o cigarro). Aqui não é uma festa que é só pra intertê não, o bagulho é sério. A batida pode ser black, mas é verdade e traumatismo, a idéia é mil grau. E existe esse rap norte-americano que hoje é ostentação, e existe esse rap América Latina, o rap feito no mundo que... de resistência, não tanto europeu, mas da América Latina em si, tá ligado?, que a consciência dos hip-hoppers lá na Itália, na França tem essa consciência latina, não todos lá que eu acho que é outra dimensão, os caras tem as infra-estruturas, tem todo outro o. Mas existe um rap feito em Cuba, um rap feito na Argentina, no Chile, muito cabuloso, entendeu? Esse rap “undegrund” (sic), né?, por baixo da terra, isso que é louco meu. Poucos caras vivem essa cultura, em São Paulo memo não tá tendo muito CD de grupo aqui, difícil ouvi tudo assim, eu gosto de tá ouvindo coisa nova, ouvindo rima nova, idéias diferentes, é mais um lance de entrar nas favela e conhecer os moleque de perto, tá ligado?, é outro mundo do que o de quem só ouve 105, entendeu? Muitos caras que não teve o não conseguem gravar, existe um mundo do submundo além do terceiro mundo, do quarto mundo, sei lá. É loco. Por isso que eu... , o lance do rapper da França parceiro nosso, que ele fala “som universal, universal, universal” que é isso, cada pessoa é um universo, entendeu, difícil se tirar uma conclusão de uma cidade porque aquela cidade faz vinho, tá ligado?, e achar que as pessoas, todo mundo lá, fa vinho, entendeu? Que ali, aquela cidade é..., é Cubatão é poluída, cê tá... tipo assim, cada pessoa é um universo, entendeu?, você é uma cidade, um país inteiro, um universo, entendeu? O mais loco é como você consegue fazê uma parada universal que consiga chegar em cada universo que é o ser de cada pessoa, entendeu? E hoje com essa parada tecnológica, esse bagulho que você tem o a tudo, mas se você não saber procurar nesse... (não completa a frase) nessa informação rápida, cê não vai achar o grupo. E não vai entender a mensgem, entendeu? Isso que é loco. Tem cara que, pô, fala que ouve, que pesquisa pra caralho, mas não conhece Dead Prez2. Então tipo... Agora um moleque vai chegar de um, de outro, vai correr, dentro desses milhões de informação, que vai correndo bem divagarzinho (fala devagar) bilhões e bilhões de dados que vão sendo acionados até chegar nesse um que vai fazer o cara brilhar. Então são pontos de ligações, entendeu? E o Grupo, nosso som caminha nisso, até que esses pontos de ligação vai aumentando, vai aumentando, até que chega num nível de Zeca Pagodinho, Beth Carvalho, Leci Brandão, que são pessoas que já contesto, e que hoje, o povo já gosta e já é. Ninguém vai mudá mais isso, não é uma propaganda de cerveja vai mudá a 2
Grupo de rap “underground” dos Estados Unidos, representante do rap norte-americano que não se vendeu à mídia e que atua na luta anti-racismo e pró-direitos civis de negros e latinos nos EUA.
169 personalidade da pessoa. Quando cê vê a pessoa num todo, são muitas coisas, não só em cada casa que a música tem poder, mas... o projeto social do Zeca Pagodinho é de fudê, 400 crianças fazendo música, conservatório, tá ligado?, isso é que é loco, viajar nessa parada. Liliane: e esse universo que é você compreende tudo isso? Ilícito: não. A compreensão é lenta né? cê tem que ter uma reciclagem, tem que ir prum mar, tem que saber canalizá as paradas que é todo um processo. cê recita a letra dez vezes, sai andando, depois de duas horas cê pega ela recita mais duas veiz e esquece. No outro dia cê já aprende, já acorda recitando ela, tá ligado. Depois de uma semana cê já quase aprendeu, na outra cê já tá decorando, cê fica ouvindo, vai cadenciando, vai ficando melhor, cê vai fazendo show, vai melhorando, aparece novas melodias, é tudo um proc... é tudo sempr... vai evoluindo, né?, o lance é a evolução, né? Tem que pensar primeiro na evolução, pra depois poder revolucionar, tá ligado? Liliane: e você? Ilícito: o quê? Eu penso dessa forma também, são pensamentos coletivos. Que vença a maioria, e a maioria é o povo oprimido. Tá ali ó (aponta para o pôster), Glauber Rocha: “sou um artista, não me exijam coerência”. Só que eu não sou um artista eu sou um arteiro. Liliane: você é arteiro? Ilícito: é. Sou artista pros autistas. Arteiro pros artistas. Sou arteiro pros artistas... rapeia: “arteiro pra artista, frio e calculista. Altista, ativista, lê a capa de revista” (ri) Liliane: é uma letra? Ilícito: é o pedaço de uma letra. Liliane: tua? Ilícito: é. Liliane: do trabalho que é solo? Ilícito: É. Mais um personagem. Diretamente do reino vegetal. O planeta terra tá dentro dum cubo de vidro. (ri e faz silêncio) Liliane: personagem diretamente do reino vegetal que tá dentro do cubo de vidro... reino vegetal dentro do cubo de vidro? Ilícito: não, ele tá em outra elevação cósmica. É uns cara de sangue verde, tá ligado? Liliane: sangue verde?
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Ilícito: é (rindo). Já leu aquela poesia “De volta pra Pasárgada”? Liliane: que que tem a poesia? Ilícito: é então, tipo de volta pra Pasárgada. Liliane: pera aí, a poesia do Manuel Bandeira? Ilícito: vou me embora pra Pasárgada... Liliane: é essa, do Manuel Bandeira. “vou me embora pra Pasárgada, lá sou amigo do rei, lá tenho a mulher que eu quero...” Ilícito: é, é. Só que numa outra parada, num outro reino. Não é bem lá nesse. Lá até a polícia é diferente, lá tem o capitão Djamba. Aqui é a estrela do xerife, lá é a planta da erva. A erva natural, que é de Gênesis, só não sei os capítulos e os versículos. Se não eu te falava e cê pesquisava. Mas é Gênesis. Primeira agem. Naquele mais resumido cê vai entender. (ri). É esso o lance. Eu viajo nesse lance de reproduzir umas paradas que tá feita. Mas de reproduzir não de uma forma de você pegar catá e á assim, sabe?, lê o que tá escrito, borrinhá e fazê, não, eu não faço isso. Tiro minha conclusão daquilo que existe. Por exemplo, qual que era o objetivo com o primeiro disco, era traçar o caminho da origem do povo brasileiro. Da onde que veio essa galera? Eu perguntava pro meu pai, perguntava pra outros parceiros, só sei que veio da Cafelândia, da Cafelândia, num sei. Mas que etnia africana? Um parceiro meu que se islamizou agora, irmão, servo de Alá, ele tá se transformando, tem a mesma idade que eu e pô, africano que quando veio do interior de são Paulo não sabe de nada e agora tá buscando suas origens. É loco. Então começamo a traçar a nossa história do que é a periferia a partir dos quilombos. E é isso. Eu tô toda hora pegando dos estudo, das coisas da rua, misturando as parada que é..., eu sou da rua, nós somo da rua, hip-hop é da rua. E aí [vamos] misturando essa parada da onde traçá, essa parada étnica do povo brasileiro. Sempre traçando a história do povo. A mudança é aqui, né?, o rap é aqui. É mundial, pro cara lá fora quando ouvir uma faixa do novo CD do grupo, “pô, isso é feito no Brasil”, não é a reprodução de uma base norte-americana, tá ligado?, que é o que a maioria faz. Não que isso seja ruim, mas primeiro a gente tem que mostrar a nossa cara. Que eles sabem que aqui no Brasil (não completa a frase). Aí cê ouve os caras lá pegando a nossa parada, vai lá e faz do jeito deles, meu. Por que é que a gente não faz? Os caras sabe que aqui, o celeiro musical nosso é nervoso, meu. E é isso assim... sempre tirando conclusões daquilo que cê pesquiso, do que cê tá vendo, do que cê vive, e é isso. Por exemplo, eu não fiquei satisfeito com o disco anterior, no disco novo tem a música que fala que dos quilombos, porque os quilombos ainda existem no Brasil, muitos não-titulados, outros ainda que não são reconhecidos e o Brasil é um quilombo. Fora isso ainda tem o lance das tribos indígenas, que hoje também é um grande problema de como se firmar dentro da sociedade, porque a maioria são órgãos do governo que tão sempre interferindo, a maioria deles quer a terra, os proprietário, sempre um cara vai lá e quer tirar a tribo indígena e fazer como fez o... o... Dom Pedro I e seus amigos quando
171 descobriram (ri) é... a Bahia e fizeram um “resort” onde tinha uma tribo, tá ligado? É isso que os caras querem fazer o tempo inteiro. E a gente vem falando tipo... também da construção que não pára, entendeu, que aqui... já ouviu falar dos bate-laje? É uma parada do sul da Itália, lá dos sicilianos, dos calabreses, que é... minha família tem descendência lá daquela ponta da bota da Itália e lá tinha os bate-laje que na Itália, nesse lado mais pobre da Itália, pra fugir do imposto, então as pessoas, na Itália tinha uma lei que, não sei se existe ainda, que você só termina a casa quando você põe o telhado. Então eles nunca terminavam a casa, iam batendo laje, batendo laje, morava a família, tinha três andar, e ele falava “não, a casa não acabou ainda”, era uma das forma de não pagar imposto. Se você olhar agora na casa, a casa dos meus pais, é a mesma coisa (pronuncia esta palavra rindo), então isso te dá um pouco da origem, dessa trajetória e isso é uma viagem, tá ligado?, aqui a gente tá em terra indígena, tá ligado? (rindo). É isso. E o hip-hop que deu essa mente, tá ligado? Minha família, meu pai é sanfoneiro, eu cresci no forró, conheço bastante forró, Bezerra da Silva, mas foi do rap, fazendo uma coisa norte-americana-jamaicana, que eu fui voltando às origens. Hoje eu posso cantar um forrozinho. É loco. Fiz um retrocesso do processo, que é o “reprocesso”, que é o novo disco do Zé de Riba. Liliane: ah é? Ilícito (rindo): é. (sopra a fumaça do cigarro). É loco. E aí tinha o lance do... de fazer som universal, né?, nós faiz música, mano, e é universal. Faz (música) num tambor, o que você me der a gente desempenha, chegô num nível musical que a gente é universal, mano. Uma ladainha, um berimbau, um tambor, uma batida do nagô, no congado, sei lá, vam´bora, entendeu? Isso que é você chegar num nível musical num lance raiz e saber é... é... contar história, tipo o lance do griot de reproduzir os anteados, coisa que foi ada de pai pra filho, entendeu? Só que o mundo muda, a tecnologia muda, é sempre uma nova roupagem pra se manter na parada, entendeu? E dentro dessa nova roupagem, por exemplo, bumba e caixa universal hoje que é essa parada do hip-hop hoje é música eletrônica, os cara faiz rock no computador, tá ligado?, tão tem que ao mesmo tempo se adequar a esse mercado, continuar a fazer coisa boa mas não caí, né?, nessa indústria que exige, e ao mesmo tempo cê tê seu espaço pra podê pira numa música de 15 minuto, tá ligado? (silêncio). Mesmo que não vá vender. Então esse que é o grande lance de fazê arte de fazê música, de podê levá um conforto e entretenimento pras pessoas, só que o hip-hop fala sério. É um movimento nacionalista-político-social-culturaleducacional, mais do que nunca, tá ligado?, e a coisa vai indo dessa forma. Tem uns cara que precisa abri a mente, tá ligado?, “com altas parada” e tira as dor do coração, o sofrimento é individual, me diz quem sofreu mais, e abri a mente com a parada. Faz que nem o árabe, mano, tem um conhecimento de tudo um pouco, tá ligado. Eu viajo com essas parada. Cê vê Cuba? Como é socialista e é de primeiro mundo. Se tivesse o dinheiro que... que um país de primeiro mundo tem, ninguém segurava, entendeu? Se tivesse a infra-estrutura pelo menos, né? Aqueles moleques lá são aguçado... (silêncio) Liliane: e você?
172 Ilícito: ãh? Por que eu? Tira essa primeira pessoa, mano. Eu não acredito nessa parada primeira pessoa. Eu sô terceira pessoa. É nóis, mano. Sei lá... acho bem loco assim, até escrevo umas letras na primeira pessoa, às vezes cê fala um pouco da sua opinião, eu não sou esse rapper primeira pessoa que só fala dele. Eu sempre jogo uma idéia pra gente questionar. E a gente... Cada um vai tirando as suas conclusões. Mas eu não sou esse rapper primeira pessoa, eu não sô... minha parada é coletiva, eu escrevo pensano... como se um loco poderia pôr no meu lugar um personagem que entrar num personagem e viajar, entendeu? Ser o personagem... a que opinião serve pra todos. Que vai bateno em cada um de alguma forma. Quem tem meno (não termina). Quem tiver m... quem não tiver dor no coração vai se diverti, tá ligado? Os rancoroso vão sofrer um pouco, e as criança num pode ouvir, por exemplo. Tem coisas que as crianças não pode ouvir. Mas as crianças crescem e elas vão se preparar pra ouvir essa parada (ri). É isso. O lance de poder é... tá criando o tempo inteiro. Lance que, a periferia, tem muita coisa pra mostrá porque é isso, sabe?, demora tanto pra poder mostrar as parada, que eles vão criando, vão criando, e depois vem a enxurrada... enxurrada (diz, sussurrando). Liliane: e você na sua infância? Se preparou? Ilícito: eu penso que... a minha infância assim, hammm... foi ligada... ao futebol, assim. Eu jogava bola, ia pros clube, eu gostava de jogá bola, e como acabou o futebol, acabou a infância e aí fui trabalhar e eu depois eu lembro disso como a rua só, trabalho, rua... fui muito cedo pra rua trabalhar assim... e aí eu... como a rua... a gente chega na rua tipo aí ó... eu curti a minha infância mas trampando, fazendo uns corre, sempre fazendo uns corre, inventando coisa. Aí com uns 13, 14 já tava fazendo um..., já tinha uns grupo de rap assim já e já tava (não termina), a mente já tava mudando já. Trampava de boy já. Eu lembro que com uns 11, 12 já entregava lanche na Paulista. Entregava lanche na Paulista... Trabalhava num baguio na... na Galeria 2001 que chamava “Porto Mamão”. Aí a gente fazia os lanche e ia entregá os lanche de bandeja, tá ligado?, na Paulista, nos escritório. (foi) o primeiro trampo meu. Depois fui trampá de boy... Na Brigantonio Luiz Andero (sic), sabe? Ali na Avenida Brigantonio Luiz Andero (ri). Trampei de boy, de boy, depois de auxiliar de escritório p´a caralho, depois trabalhei numa fábrica de... (não completa), trabalhei na feira, fábrica de não sei o quê, lance de vidraçaria, ajudar na oficina, não sei o quê, vários bagulho, hmmm. Depois trabalhei uns anos de escravo dentro de um shopping, nu´as lojas de estoque, até que um dia assisti o “spock”, aí deu um “se toque” e saí de lá, foi quando a gente foi pra Itália, quando eu voltei da Itália se decidi que não ia ser mais escravo, e... tô em 2006 tentando ainda ser liberto (longo silêncio). É isso. Liliane: com quantos anos você tá? Ilícito: 28. (silêncio). O irmão dele interrompe pra dizer que chegaram dois colegas à procura dele. Liliane: a gente pára por aqui?
173 Ilícito: a semana que vem você vai vim falar comigo e eu vou tá diferente, meu (ri). Cada dia eu sou uma pessoa. Tento empilhar os livros no lugar e vejo que no final da noite as coisas que eu tentei concluir durante o dia estão... pelo menos, concluídas. No outro dia, mais um dia. E uma coisa de cada vez. Um tijolo de cada vez, entendeu? Semana que vem você vai vim falá comigo e eu vo tá outra pessoa. Essa coisa, eu acho que, o lance mutante que (não completa; busca o texto do Luiz Gama de novo e recita). É... “quem sou eu”, Luiz Gama, mais conhecido como “Bodarrada” (gargalha). Loco, né? Liliane: você pegou na Internet? Ilícito: fácil, né? Mas se o cara não souber quem é ele, nunca vai chegar. Liliane: tem até um glossário... Ilícito: tem tudo. Conta a vida dele... fala um pouco do que é as palavras difíceis. (corto a gravação e retomo. Ele está rindo). Ilícito: imagina os cara “olha o que esse cara tá falando, mano?”. Um texto de 1859, é da hora3... ?
Entrevista II Terça-feira, 7 de novembro de 2006. Na vez ada você tava falando dessa coisa da terceira pessoa4, do coletivo, e da questão da sua vida ser em torno da sua obra. Não é isso? Ilícito: ahã. Liliane: então pra além da obra, tem alguma coisa que você entende que faz parte dessa terceira pessoa, disso que é você na terceira pessoa? Ilícito: que é eu o quê? Liliane: você terceira pessoa, você e eles, plural? Ilícito: assim, tipo, o lance que eu faço assim... é o lance de... um ofício, sabe? Uns nasce pra ser comerciante, outros... eu nasci pra fazer essa parada, entendeu? E vou usar, tipo, do lado da arte, desde a poesia, chegando no ritmo, o que eu puder pra mim viver disso. Aí eu, o lance que eu falo que é coletivo, é terceira pessoa porque, no lance da arte no caso, que é o ofício que 3
O poema foi transcrito no fim do capítulo 7. Ele havia chamado de “terceira pessoa” o que corresponde gramaticalmente à primeira pessoa do plural. Usei o termo dele. 4
174 eu escolhi, é uma parada que eu posso fazer trezentas mil idéias, sabe?, e de diversas formas. Pode ar todas, todos os universos, eu tu ele nós vós eles, tá ligado? Mas é o público que decide. Por isso que eu falo que é coletivo. E a parada..., quando eu falo que gira em torno da obra, porque, por exemplo, eu acho que foi no ano ado que comemorou 100 anos, ou foi nesse ano, de Pixinguinha, então assim demorou muito pra o Brasil entender o que é Pixinguinha, depois de 100 anos, sei lá, da existência dele, as pessoas começam a entender um pouco essa parada. Então o lance de fazer arte é bem loco, como um cara que faz um carro, projeta um prédio, que fica por muito tempo, entendeu?, e é isso que eu quero fazer. Agora se eu acho que a parada hoje [e muito... , gira em torno do material, do dinheiro, da vaidade e do poder, tá ligado? E a parada que me, que eu sempre propus, da forma que eu vim, desde que eu era pivete, foi sempre o trabalho coletivo, eu acho que nada se faz sozinho, entendeu? E eu sempre fiz trabalho em grupo, hoje eu chego num momento em que eu também tenho que fazer alguma coisa minha pra mostrar o meu “eu” pras pessoas também, entendeu? Mas eu só vou conseguir fazer isso quando essa parada coletiva estiver bem estabelecida, entendeu? Acho que é uma coisa que ainda está em processo, tá em andamento. Muitas coisas tão acontecendo e tá tudo em torno de um desdobramento. Vai ser dessa vitória coletiva, entendeu, que eu também talvez vou poder mostrar mais meu “eu”, eu acho. Agora, a parada não gira em torno de uma pessoa só, sabe? São várias pessoas pra concluir uma parada que ainda é muito pouco do tamanho que é isso aqui, entendeu? L: agora, quando você vier a fazer o seu trabalho solo, pessoal, o que que você acha que vai ter de diferente desse trabalho que é coletivo? Ilícito: ah, totalmente diferente, porque o trabalho coletivo é o trabalho legal, sabe?, é o trabalho social, é o que a gente busca dentro da sociedade, esse lance de cidadania, de humanidade, de lidar com vários tipos de pessoas, idosos, crianças, mais velhos... pessoas especiais, políticos, toda camada da sociedade pra constituir uma parada sólida, uma base sólida, agora eu, tá ligado?, sou o inverso disso, corro na ilegalidade. E isso é uma realidade, tá ligado?, isso que é tipo... , pra mim é o controle da loucura, tá ligado?, até fui fazer um trampo lá que eu já falei, né?, quem usa não abusa e quem não usa não acusa que a gente, dentro do..., é o controle da loucura que eu falo que tipo assim, pros caras não me prenderem num manicômio, num presídio, num me por num estoque ou dentro dum escritório, tá ligado?, ou então fazer com que eu não faça alguma besteira por dinheiro, tá ligado?, giro em torno disso, a gente vai tentando buscar outros artifícios e outras imunidades pra não cair nessa armadilha, entende?, é isso o que eu tô fazendo. Mas minha realidade me puxa pra isso, porque quando um filho grita dentro de casa, tá ligado?, cê tem que fazer um corre. E aí quando eu saio pra rua, gira em torno de muitas coisas que perante a lei e a sociedade não é legal, entendeu? Eu já sou um cara ilegal. No rap, eu assusto, tá ligado?, aí chego na elite, eu assusto, tá ligado?, assusto meus parcero, sabe?, eu já sou um cara problemático por natureza e hoje eu tenho que controlar a loucura sabe?, cada dia tentar ser um cara melhor, sabe?, mas eu acho que a minha ilegalidade me leva a não entrar nesse... eu não quero falar sistema, porque sistema não existe, mas nesse esquema, tá ligado?, nessa coisinha podre que gira em torno da vaidade, do
175 dinheiro, da fama, sabe? Minha parada...,sei lá, o grupo legal, um grupo que eu projetei, vejo como um grupo que é feito pra tomar dimensão a nível de Brasil, se precisar ir lá beijar na boca da Hebe eu vou, já falei, tá ligado. Chego lá e beijo na boca dela, porque o grupo é pro Brasil ouvir, que nem outros rappers importantes precisam ser ouvidos, então a gente precisa saber quem são esses caras, entendeu? E o grupo, dentro dessa legalidade, eu tô pro que der e vier, tô preparado, tô pronto. Agora, pra não virar esse cocozinho que o Skank virou, tá ligado?, eu vou fazer um bagulho ao contrário, tá ligado?, os caras quer pop de quatro minutos, eu vou fazer uma depois de 15. Pra quem não tem saco de ouvir música de quatro, música pop. Só não quero entrar no esqueminha, de ser coadjuvante de outro artista, tá ligado? Eu faço uma história, que gira em torno do hip-hop, do grupo, de todos os grupos que a gente fez de base, de todas as entidades que a gente ou, aí depois vem o time de futebol, seis anos da....(não completa). Todos os países que a gente foi da Europa, o trabalho com outros grupos (ele fala dos grupos formados por rapazes de classe média)... O trabalho que a gente desenvolveu dentro da cultura hip-hop, entendeu? Então não é “pipoca”, não é um bando de moleque, sabe?, e as pessoas na maioria das vezes, vê a gente sangue bom, não vê a gente fazendo cara de mau, que nem os monstros do rap faz, e a gente sabe que a gente é bom do coração, a gente às vezes perde muito com essas fitas, tá ligado? Então assim, eu não tô mais pra provar porra nenhuma pra ninguém, sabe?, não quero saber se as pessoas acham se eu sou branco, se sou preto, tá ligado?, e foda-se, eu sou universal, a raça é humana, quem vim bater de frente comigo, eu tô preparado pra qualquer fita, e... sabe?, eu sou positivo, não sou esse lado negativo. E o rap, o dia-a-dia dos monstros, o mundo capitalista, me deixou um monstro, tá ligado? De chegar até a interferir dentro da minha família. Então eu não deixo mais, cara, desencano, tá ligado? A ilusão é uma ilusão. Só você ir pros bailes black à noite cê vê como que é a ilusão. Que é a reprodução norte-americana. E po, cada um no seu skate. Às vezes eu vou pro salão, lá, pra reprodução norte-americana, fumar maconha, catar umas minas, beijar na boca, tá ligado... o lance que eu encaro hoje é isso assim, fazer as paradas mais sérias, acumular as experiências que a gente acumulou em diversas oportunidades que a gente teve na vida e tentar ser um cara positivo a cada dia, agora... o meu trampo mesmo assim é pra pirar, é pra deixar... que nem o Raul Seixas falava “eu vim pra pirar a mente de voces”, tá ligado? Eu vejo muito os cara entrando no esqueminha, porque há necessidade no nosso mundo, a gente nasceu pra ser pobre, pra mudar isso aí na vida é um grande dilema. E muitos encaram isso como um trabalho, e é isso. E vai embora, e vai indo. Cada um tem sua ética, faz o que acredita, eu caminho pelo certo, já não sei mais o que é errado também, acho que sabe o que é certo é quem tá ando pela dificuldade. É isso que eu falo, assim, pra mim, as duas energias correm juntos memo, não tem o mal, o negativo, o positivo, a legalidade e a ilegalidade... o brasileiro tem essa origem, todo brasileiro é contraditório e ilegal, é isso. Agora... num sou pop, sou popular. Sou do hiphop, eu não sou pop. O único pop que eu gosto é dos popping, quando tão dançando depois dos locking... agora, o rap no Brasil caminha pro reggaton, pop, tá ligado? Caminha pras parada “crunk”, pop, sem letra, e é disso que... vixi... tô pra pirar a mente dos caras porque tô em outra pegada. L: e o que que é ser do hip-hop?
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Ilícito: ser do hip-hop é só ir na galeria e comprar o kit, tá ligado? Agora, “ser hip-hop”, é você dormir e acordar fazendo essa parada, dentro de todo o universo que ele proporciona, tá ligado? Ser do hip-hop é só ir na galeria e comprar o kit, que é o que mais acontece. Mas penso que é positivo também, sabe?, porque... a pessoa tem que começar de algum ponto, tá ligado?, é do bumbo, ou é da caixa, ou é da bombeta, é do estilo... aí depois é todo um processo de evolução que é natural. Pelo menos já pegou um ponto do... da matrix. Porque... acordar da parada é um processo também. Num vejo... o que a gente precisa pra fazer essa parada do hip-hop ligada à mente é fazer... é ter uma evolução, que é o que os elementos do hip-hop proporcionam. Toda a história, toda a atuação social, cultural, política, militância, é... educacional. Tudo que o hip-hop proporciona pra se transformar nessa evolução musical, ou da trança, ou da parada artística, pra você tomar um nível nacional, mundial, porque é o que os caras fazem lá fora. Quebrar essa barreira de falar assim “eu só sou do hip-hop”. Hip-hop é um mecanismo, é a cultura que te transforma, pra você ser um artista de ponta como qualquer outro de outro estilo musical, por exemplo. No mundo da dança e assim também no mundo das artes plásticas, tá ligado. L: e como é que é isso, o hip-hop te transforma? Ilícito: a gente tava num ponto desse aí, tipo do cara que cê falou, quer ser do hip-hop, o cara vai lá e compra o kit. É um cara tipo, ele quer ser do hip-hop, ainda não é hip-hop. Então ele começou indo comprar um kit na galeria. Então ele pára no estilo, e só fica a roupa né? Aí pelo menos foi um início. Daí ele conhece o som. Depois ele quer entender do que aquele som tá falando, aí ele ouve um rap brasileiro, aí ele vai numa palestra, aí ele acha que ele é boy, aí depois ele fala “não, eu sou branco; não, sou preto”, aí começa todo um... quando se vê, depois de uns cinco, dez anos, dependendo da evolução de cada pessoa, ele não é mais um kit hip-hop, ele já tá vivendo aquilo. Aquilo tá transformando ele pro mundo, pra ter uma visão universal da parada, entendeu?. É isso que eu tô falando, que o hip-hop é o mecanismo, é o trabalho cultural... Pegar das raízes africanas. O Ilê Ayê, la, que cê foi pra Bahia, tem um trabalho de base até a 4ª série, dentro do Ilê Ayê, com ensino da visão que eles têm, do sincretis... (não completa), da visão africana, partindo das origens africanas que eles têm e da tradição que eles tem no Brasil e da forma que eles imaginavam que deveria ser nas escolas públicas, principalmente voltado a essa coisa da questão étnica. Pelo que eu entendi, além do moleque estar ali no Ilê Ayê, ele tem a escola pública dele também. No Ilê Ayê faz tambor, aprende a historia dos orixás, entendeu? Então, o hip-hop acaba sendo essa escola, do cara que é universal hoje, não é tão fechado, por grupos, como o Movimento Negro ou uma entidade africana, o candomblé ... não é tão fechado. O hip-hop agrega o mundo inteiro, tá ligado? Mas a por esse processo, que vai desde o negro, do indígena, a por todo esse processo das situações do país, dos caras que tão morrendo na rua, fala sobre o mundo da droga, sobre sexualidade, então é um, é uma parada infinita, sobre o preconceito, sobre racismo, que na maioria das vezes a sociedade convive com isso, o governo também tem que conviver com isso, mas na hora de discutir os problemas, na base do problema, a sociedade torce o bico, e o hiphop tá sempre na militância, que é o lance desse hip-hop pop hoje, essa
177 música pop que é vendida, que a gente vê no Multishow, que a gente vê nas TVs tal, mas o hip-hop de verdade, feito na militância, que é essa parada desde a criação, de todos os seus quarteirões, sempre em algum lugar do mundo tem alguém se organizando e isso não mostra, mas a gente sabe que tem. E é nesse trabalho de base que vai aparecendo os artistas que a gente tem hoje de qualidade entendeu?, se não existisse isso, se não existisse esse trabalho de base, se não tivesse enraizado que nem, a visão que eles têm, dos norteamericanos, é que não tem mais isso, como se o hip-hop não tivesse mais a sua forma original, grafiteiro, tal, mas continua do mesmo jeito só que o que tá sendo vendido pro mundo é essa parada “business”, imitadora, de grana. Liliane: quer falar de dar aula? Ilícito: pra mim tá seno... o lance mais gostoso da minha vida, sempre foi. Sempre gostei de subir no palco, hoje pra mim é um desespero. Não sei porque... gosto mais de dar aula. Pros moleques, fazer trabalho de base. Ser mais livre nos pensamentos e ser ouvido também. Fazer uma troca sempre, aprender com os moleque, montar grupo, fazer show com os moleque... acho da hora esses baguio... por isso que eu não viajo muito nesses negócios de sucesso, fama, porque eu, se depender de onde isso vai levar, eu vou fazer sempre o meu bagulhozinho, tá ligado? Dá aula pros meus moleques... eu acredito nisso, sabe? Na hora que a chapa esquentar, eu vou pruma cidade que nem Embu das Artes, vou lá, pego a minha turminha... não tô muito nesse fervor aí, nessa busca... a única coisa que eu acredito nessa parada toda é que tipo... eu quero qualidade de vida, sabe? Só isso... qualidade de vida... pagar suas contas, poder morar bem, sabe?, ter uma locomoção pros seus velhinhos, a minha família é grande, eu tenho uma velhinha, uma avó, de 86, minha mãe, meu pai... preocupação de família, assim. E a gente sempre morou em coletivo aqui, sabe. Minha família sempre foi um quarteirão inteiro. Eu me preocupo só nisso, qualidade de vida assim, sabe? (silêncio de uns segundos) L: mas é a família da sua mãe, por parte de mãe? E por parte de pai? Ilícito: também mora na região. Meu pai foi o primeiro e trouxe todos eles, né? L: seu pai veio da onde? Ilícito: do Ceará. Ele é do Rio Grande do Norte, depois morava no Ceará e depois ele veio pra cá. Com 17, 18 anos. Aí depois ele veio trazendo toda a família. L: e você acha que o seu lado artista tem a ver com ele? Ilícito: tem a ver com o meu pai sim. Porque sempre quando eu era pequeno ele tocava, né? Sempre ele tocou, fez forró, fez... e eu ia nos forró aqui quase todos com ele. Então eu lembro muito disso... Lembro das Diretas Já, 84/85, meu pai tocava nas campanhas do PSDB, a sanfona que meu pai tem é do Serra, o Serra é que deu pra ele. L: nesse período aí? Ilícito: é. Eu lembro tudo disso. Das Diretas Já, dessas paradas. Eu era pequeno, mas eu lembro. E ia nos todo os forró com meu pai. Só que jogava bola, né? Jogava futebol. Depois nem o futebol, era uma ilusão... aí comecei a fazer, já escrevia umas letras... comecei a escrever com o meu primo que é
178 filho do meu padrinho. Aí ele não podia sair... meu padrinho é negro, minha madrinha, meus primo, tudo... e a gente cresceu junto aqui né? Só que... Eu vejo assim né (gagueja um pouco), não sei se eles gosta que eu falo isso, os moleque, não deixava ir pra rua, eles tinham muita disciplina com os muleque ir pro mundão, pra rua. Eu eu já era do mundão. E a gente fazia rap junto, começou a escrever junto, aí como eu comecei a sair pra rua pra cantar, eles não deixavam acho que ele sair assim pra cantar, pra fazer as doideira que eu... e eu sempre fui da rua. E o moleque tinha mó talento. Se ele tivesse corrido comigo até hoje, ele tava mil graus... só que, ele se adap... os muleque... os muleque manja computação, faz site, esses bagulho. Os muleque já entrou num outro universo e eu fui pra rua. Fiz o inverso. Minha vida era regrada tudo pelo inverso. Era tudo o contrapunto (sic) de tudo. Desdo som que eu faço é o inverso. Os caras quer fazer um som mais pesado, gangsta, o meu é “cangsta”, do cangaço. Eu invért..., eu inverto tudo. Né?, essa idéia de não fazer a mesmice do que já existe, que era tudo era cópia duma cópia, então eu mesmo não ser uma cópia duma cópia. Com essas idéia, tá ligado?, inverter todas as parada. E confundir a mente. L: mesmice? Ilícito: é... L: esse lance da mesmice, como é isso na sua visão? Ilícito: ah, a mesmice é tipo você vê um pensamento radical e não querer abrir o leque, tá ligado? E ficar vivendo num universo fechado, numa mesmice, num ego, tal, sendo que a parada não é desse jeito. Tem muita coisa lá acontecendo e você tá fechado num canto achando que é o dono, que tem o dom da razão, aí depois morre na dúvida, tá ligado? É abrir o leque, sabe?, assumir os erro, não te medo, não ter vergonha, medo de pedir perdão, nem dó. Tem muita gente numa mesmice, fechado num leque... ainda mais de possibilidade... e pra quem é pobre, precisa se levantar, tá ligado?, e aí na maioria das vezes acaba seguindo a hierarquia, de criar monopólio, e vira... e fica sempre em torno de uma parada só e os rico... se comunicam entre si e ficam cada vez mais rico, e aí tem quem se segura dentro do universo que tem, o outro fica mais pobre. O bagulho é esse inferno. Então, por isso que eu penso que gira em torno da obra, tá ligado?, tem que fazer um bagulho bem feito, que seja inquestionável dentro desse... desses universos de vaidade de que se vale mais ou pesa menos, tá ligado?, que seja uma parada sólida, que contribui na... no país e pro mundo, tá ligado? E isso aí leva tempo. Muitos tão vivendo pro momento, pela moda, pela evolução tecnológica. Mas é... além das coisas feitas há séculos e milhões de anos atrás, ainda permanece. Então eu penso ainda dessa forma. L: e pro futuro, como é o Ilícito que você vê? Ilícito: meu futuro é só permanecer vivo... tá ligado... porque na rua tá foda. (silêncio de alguns segundos). Eu penso isso... muita inveja, muito... muita... energia sinistra. Eu to... quero ficar vivo... só isso tá bom. (silêncio) L: envelhecer? Ilícito: hum?
179 L: pensa em envelhecer? Ilícito: só se for a carne só, que eu quero ficar vivo. (silêncio de alguns segundos). Pra não ser um morto-vivo. Prefiro ser um vivo-morto. Não, um morto-vivo... um Zumbi na verdade. Zumbi de todas as formas, entendeu? (silêncio) Ah, acho que essa parada é atemporal também, toda essa parada, tipo, cu’a, cu’a... a carne vai e o espírito tá aí meu. E o lance da arte tá ligado nisso, tem coisa que você pode imortalizar, entendeu? Agora que existe um outro plano, existe sim, né, meu? É que nem o moleque quando enfia o anel do “Senhor dos Anel” (sic) que ele entra naquele baguio meio vultuoso assim, acredito que tem um outro plano sim... com certeza... uma coisa que, sei lá... não vou contrariar a vontade de Deus, mas eu não vim pra ficar muito tempo nessa parada não... vim pra fazer uma parada bem loca e camba. Eu sinto isso, no coração assim... mas se também ficar veinho, não vou reclama não... (silêncio) L: e essa história de etnia? Você se vê, de alguma forma, dentro disso? Ilícito: com certeza. Tava falando pros caras lá, os caras “ah, que...”, os caras, pra se auto-int... autis... buscar auto-identidade “eu sou negro, não sei o quê”, eu falei pros caras, pra mim, o mais difícil, foi me assumir como branco, tá ligado? (ri). Só isso eu tenho pra falar. O que cê tinha perguntado? L: eu tinha perguntado.... Ilícito: sobre isso... pra mim, o processo mais difícil da coisa foi isso, me assumir como branco. L: e você é branco? Ilícito: sou. Porque... o lance tá na ligação muito da pigmentação, né? Vai muito mais além dos traços e... se falar “sou afrodescendente”, eu sou, entendeu? Agora, é visível que eu sou branco, entendeu? Agora, isso aí, pra mim, foi difícil de assumir. Até fiz um refrão esses dias que eu vou usar. É... que é bem isso, pra mim foi um processo. Porque um lance que eu não aceitava dessa coisa do branco que, que... que era esse lance de todos caras que... essa dominação, toda essas... sistema hereditário. A visão que ainda foi implantada pros dias de hoje, entendeu? E ainda... o branco continua sendo superior em tudo, né? Até tava na Ba... Tava na Bahia lá um cara veio discriminar assim, “ah, ceis...”, na hora que eu falei assim que o Ecad5 era lavagem de dinheiro, a mulher levantou! A mulher do Ecad, né?, Lógico, reacionária até umas hora, a mulher levantou. Ela atravessou no meio da minha palestra, aí um muleque falou assim “ah, ceis são branco, que se entendem!”, né? Aí eu falei pra ele “ó véio, eu sou branco sim, mas não sou esse branco que tu tá falando não , véio”. tá ligado? Aí depois ele falou assim “não tenha medo de dizer que t.. é.. não tenha.. não precisa ter vergonha de dizer que tu é branco que eu não tenho vergonha de dizer que eu sou negro, tá ligado?”, ele falou pra mim. Aí eu não quis estender a história que não valia a pena. Mas ele discriminou. E é isso que é um bagulho que é louco no Brasil, tipo, se o negro é discriminado, o racismo tá implantado, e é institucional, que é verídico, isso acontece diariamente no 5
Escritório Central de Arrecadação e Distribuição - sociedade civil, de natureza privada, instituída pela Lei Federal nº 5.988/73 e mantida pela atual Lei de Direitos Autorais brasileira – 9.610/98 para recolher direitos autorais da execução de músicas em veículos de comunicação no Brasil . (Fonte: www.ecad.org.br)
180 nosso país, do lado do negro, dentro da sociedade, desigualdade social, favelado, nordestino, latino, no mundo, tá ligado?, é, é, o Brasil precisa entender que nós somo latino e que se eu chegar lá nos Estados Unidos eu vo ser discriminado, como eu fui na Inglaterra, na França, e como eu sou às vezes quando vou num gueto, num bairro negro, tá ligado?, e, e os caras discriminam também, tá ligado? E como no rap eles não queriam me aceitar porque eu sou branco, entendeu?, e quando eu vou falar de negritude dentro dum movimento negro isso choca, e quando eu chego na sociedade, um cara tatuado, branco, falando do lado dos preto, os cara fala “ce é loco, cê podia tá aqui”, só que naquele esquema eu não vou, tá ligado?, nessa parte eu não participo. E aí é um grande conflito, entendeu? cê acaba sendo discriminado pra caralho tamem, sabe? O... porque meu contingente, eu sou uma minora dentro do meu contingente, entendeu? E cê acha que é fácil? cê acha que é fácil ser 1% de branco, 10% de branco numa parada de maioria preta, tá ligado? Por isso que eu falo assim, no lance do grupo, se os menino não levar mais a parada, acabou. Entendeu? Porque eu não posso levar. Como que vai chegar uns caras, em que o líder é um galego, de zóio azul, zóio verde? Posso ter todo o conhecimento do mundo, experiência e o caralho, mas não tem quem guenta, essa parada. Porque a... é muito forte sabe? Eu seguro a bronca, do que for preciso. Mas é, é... É... contraditório demais. Então por isso que eu jogo muito a parada hoje pros caras, tá ligado? Contribui e contribuo da forma que eu puder enquanto precisa, agora eu não vou sofrer mais, tá ligado? Não vou virar o monstro que eu tive que virar pra assumir várias broncas, tá ligado? Eu já... eu não preciso mais disso... L: que monstro é esse? Ilícito: ah, assim, o mundão, as responsa, tá ligado? Festa, show, tá ligado? Os baguio desestruturado, tá ligado?, o lance de você não ter uma empresa, um selo, você não ter um investimento, uma grana que gira, isso aí tudo pesa. Sabe? E você não ter uma equipe de trabalho bem elaborada, e às vezes cê não tem força de, de... hoje o grupo é bem equilibrado nos corre... então o lance dessa falta de estrutura né?, e isso cansa sabe? A, a... a viagem do, da Europa foi bem desgastante, que é aí que você sente que você tem que pensar grande mesmo e tomar dimensão... é isso, isso aí que cansa um pouco assim. Então cheguei a me desgastar muito, tá ligado?, a me estressar muito por várias fitas, é foda, cê num... além de cê ter que fazer todo o corre por trás, tá ligado?, de estrutura, tem que subir no palco ainda, então tá dormindo mal, tá ligado?, sabe?, monte de coisa assim... e... aí cê vai aprendendo com a vida também. Hoje vejo que não precisa disso. Tem que ter prazer de subir no palco e fazer o bagulho (pausa pra atender o telefone). L: como é, ter prazer de subir no palco? Ilícito: é, mais nesse naipe aí. Tem que ter prazer. Sofria muito pra fazer (silêncio). Agora hoje tá muito mais bem equilibrado, dividido. Continua ainda (pausa pra virar a fita)... o que vai me dar qualidade de vida é dinheiro, tá ligado? É essas paradas material, tá ligado? Quero tirar logo minha família daqui, a gente ir morar num sítio, todo mundo, com seus quarto, suas rede, cada um faz o que quer da vida, e já é. Agora assim, os caras têm um jogo pra ser jogado, eu ganho no jogo. (barulho de serra)
181 L: a sua família quer sair daqui? Ilícito: com certeza. Com certeza. L: a idéia do sítio, pra eles agrada também? Ilícito: a idéia de sair, ir pra um outro lugar, já, já agrada. L: faz quantos anos que vocês tão aqui? Ilícito: eu nasci aqui, nessa casa assim, só que a gente saiu por um tempo, e morou em vários lugares, por problemas daqui mesmo, e depois a gente voltou e tá aí. O meu pai não gosta, eu não gosto, minha mãe também não. A idéia é ir embora mesmo (fala abaixando o tom da voz). Eu sempre fui meio cigano, nômade, assim. Nunca fiquei mesmo muito num canto e os cantos que a gente sempre buscou foi mato memo, uma coisa hipponga mesmo. Minha mãe tem esse espírito hipponga batalhadora, meu pai também. Os dois ... mato, nadar, água. Não sei o que a gente tá fazendo nisso aqui. Eu já falei que aqui é especulação imobiliária. Isso aqui já é tudo especulação imobiliária, os caras quer fazer uma outra avenida, e aqui é uma das áreas onde mais cresce também em São Paulo. Então a gente tem que sair daqui e transformar isso aqui em uma parada... é... comercial, entendeu? Alugar as paradas e viver bem com o aluguel das paradas. Porque meu pai tá aqui há uns qua... sei lá, quarenta já, quarenta anos, então ele já mexeu aqui, já revirou essa casa, já subiu tudo. Começou com uma casinha lá no fundo e veio, tomando nessa direção. Quarenta anos de trabalho não é quarenta dias. Tem gente que tá há cinco anos e já tem um barraquinho já. Pré-construído (silêncio). L: e família sua? Da outra vez você falou alguma coisa sobre constituir família... Ilícito: eu também que... sempre fui... sei lá, sabe? Mas a rua me deixou um pouco meio sequelado, e agora eu tô mais nesse momento família mesmo. E eu acho que na vida cê só é... (serra). Artista é o caralho, que faz filho. Esse é um verdadeiro artista, tá ligado? Então, a vida só... só... só leva aquilo que cê deixa aí, né? Várias sementes de Abrahão, de Adão (ri). Várias sementes que vão ficando e... e... o lance de família que também é isso, sabe?, que chega uma época da vida que você tá descobrindo umas parada, tem um monte de gente ao seu redor, depois as coisas vão se subtraindo cada vez mais que a sua vida se subtrai em sentidos principalmente materiais, porque o espiritual não força, tá ligado?, e aí que cê vai ver que é a família mesmo que resta, tá ligado?, isso é natural da montanha, cê só monta aonde cê tem que descer, é natural... e a vida é assim mesmo, sabe? Ciclos e mudanças. Só que tem gente que não vê isso, só quer ir por cima da montanha. E pra ir por cima da montanha, cê tem que ar por cima daqueles que tavam... tá ligado? Essa é a lei do egoísta materialista... ar por cima com um rolo compressor. É o que os caras fazem... o que é muito mais é,... quando você a por cima e não pensa em nada disso, é muito mais fácil do que ficar pagando, pagando de idéia, ar com o seu carrão, não sei o quê, mostra tudo o que cê ganhou materialmente mas... espiritualmente é um bosta, sabe? Como pessoa, não contribui em nada, né?, só que ostentar. Eu acho ridículo isso aí. Quero ter tipo um barato pra ir pra cachuera, tá ligado?, pra mim acampar em Paranapiacaba, tá ligado? Minha família nunca ou um final de ano na praia, sabe?, uns baguio besta. E é um baguio que é mais... espiritual, sabe. A galera é muito... eu conheço cara que compra até bolinha de beiseball, taco, tá ligado?, a luva...
182 (ri) é muito... sei lá... acho que é cada um no seu skate, entendeu?, mas tipo enquanto os norte-americanos ficam mostrando lá os brilhantes, lá, tá ligado?, os ouros, tal tipo... eu dou mais valor pro tiozinho que a aí direto e entorta os arames, que vende os bagulho artesanal, assim, acho da hora... L: e desde quando você usa esses bagulho artesanal? Ilícito: desde sempre, né? Vem do reggae, porque o nosso rap do grupo é um rap jamaicano, não é o rap gangsta norte-americano, esse é o nosso diferencial de fazer rap. A gente sempre teve a ligação jamaicana. Fruta, legume, tá ligado? Esses bagulho jamaicano, cor da África, sempre foi o inverso... tá ligado? (silêncio de alguns segundos). Eu acho da hora, tipo o rap mesmo, original, é jamaicano. Os norte-americano como são bons nessa parte de vender as coisas, aí eles venderam, né? O rap... esse rap, né?, deles. Que eu acho da hora também. Eu acho da hora. Eu gosto assim. Só que tem um lance da, da indústria que é bem loco. Se você for nos bailes cê vê muito isso, sabe?, tipo, nos baile black, quando cê vai curtir os bailes tal, muito norte-americana a parada sabe?, o rap tá acontecendo em vários lugares do mundo, até rap chinês eu já ouvi, tá ligado? Principalmente esse rap latino-americano, que é bem loco né?, feito da América do Norte pra baixo, nem pro nosso rap também os cara na balada dá o valor do baguio. É muito norte-americano, é muito...Muito “Beyoncé” (referindo-se à cantora de rap afro-norte-americana que faz o estilo “mulher objeto”) demais sabe. E é loco também, aquela coisa que a gente já deve ter falado, que é essa coisa de transformar o black, né?, a indústria vem, que nem fez com o “breaking dance”, aí vem a indústria black. que a música “black music”, que já é um bagulho loco, aí vem a música negra, black, que o muleque não sabe o que é... e tem uma dancinha de lagartixa que até homem dança junto né?, é muito estranho... eu acho da hora, mas é... casco o bico. Aí às vezes vô na balada assim, vou dançar com as gatinhas, elas vêm com essa dancinha, eu cato na cintura, já dou logo um... tá ligado? Eu não sei dançar essas dancinhas que o cara quebra o ombro, dancinha black aí... mas sei que tipo a galera tipo dança R&B, crunk, grime (gêneros musicais surgidos nos Estados Unidos e na Europa a partir da diáspora africana), vai tocando, e ninguém diferencia, é tudo black. Então, tipo, não viajo nisso. Viajo nessa parada... é que, a gente foi fazer lá uma parada na praça Luiz Gonzaga os muleque falou “ó gostei da idéia que você falou do universal, batida universal”, que é o canto falado universal e da batida universal, que tipo, é o universo da batida quebrada e o universo do canto falado. Então pra mim falar os ritmos que é muito difícil, entendeu?. Que que cê quer cantar? Pra mim vai do coco à embolada, do rojão ao ragga, tá ligado? Então pra mim é o universo do canto falado. Se eu falar só da cantoria do repentista, é mais de cem modalidade. Tá ligado? Tem um disco do Teo Azevedo aqui ó que ele fala isso. Aí cê vai falar “ah, tamo falando das batidas lá de fora”. Então vamos falar das batidas que vem de fora. E das batidas regional? Então vamos falar das batidas regional. Então se for ver, o universo da batida quebrada, que vai do tambor ao bumbo-e-caixa. E é o universo do canto falado, que é várias formas de, de, de versar, várias formas de cantar. É infinito, sabe? Que é o lance de um rapper que fala “faço música” e minha música eu faço dentro desse universo, tá ligado? Agora tipo eu não sou... meu universo é o do canto falado. Eu não sou roqueiro e depois faço rap e depois viro rap-hip-hop no samba, tá ligado? Tipo eu tenho uma linha, uma linha de raciocínio, não é um bagulho
183 que eu..., tipo agora é o momento é tecno com b... com batida de rap, aí os caras vai fazer um tecno com b... (não completa) tá ligado? “faz um pancadão rimado” (como quem pede), aí os caras fazem um pancadão rimado. Não, não é assim, peraí... é todum... sabe...é... tem uma linha de como se fazer um tamborzão, um voltmix, os caras do Rio (de Janeiro). Tem uma linha de como você fazer uma embolada, um repente na viola, um... é tudo uma linha, tipo tem que ser respeitada essa linha, não é sair...(não completa). Tá ligado? L: e voltmix é o quê? Ilícito: é um ritmo do Rio, que nem aqueles tamborzão, pancadão voltmix. É... tem vários nomes. (vai procurar pelo cd e não encontra). Acho que emprestei esse CD... Acho que tá lá em cima, o do Teo Azevedo, que eu tava pesquisando outro dia, que ele fala de diversas paradas. L: ele é mineiro? Ilícito: boa pergunta... Ele é do Nordeste, não sei bem de que cidade. Mas só que ele é um grande produtor, né? E também cordelista. Já produziu muita gente desse..., da música nordestina, da cantoria, do repente, da embolada, e tem bastante projetos também é, em São Paulo, assim. Tem história, assim, tem historia, ele vive em São Paulo. Ele é bem conhecido. Há uma ligação entre hip-hop e o rap com a embolada e o repente, né?, o cordel, todo esse universo, porque eu faço o que o meu pai fazia antes, só que agora com a tecnologia, mas é o mesmo canto-falado, é isso que eu tô fazendo. Se o cara tocar um pandeiro, eu faço uma embolada em forma de rap, se tocar a sanfona, eu canto e se o DJ do grupo soltar uma batida de bumbo-e-caixa eu rimo, se o cara soltar um drum’n’bass eu rimo, se o cara tocar um grime eu rimo, se vim um tambor, eu faço um som, tá ligado. Fui no Maranhão, fiz um som ao vivo com os cara, fui em Teresina, também fiz, então... na Bahia, dá pra fazer com o Olodum. Viajei muito já acompanhando cortejo afro e rimando, nas batida do Quilombo Vivo6. Então é infinito, é um universo... O MC é uma evolução do canto falado, por isso que o rapper é o erudito, como que é o repentista que toca viola, entendeu? É o erudito, aquele cara que estudou pra produzir no computador, fazer as bases, escrever a letra, videoclip, é o rapper. Agora, o MC, ele além de ser um rapper, é o cara que se aprofundou nas técnicas base, nos trabalhos de respiração, nas métricas, nas orações, nos motes, nas formas dobradas e desdobradas de rimar, aprendeu sextilha, decassílabo, é... sabe?, ou por vários universos. Eu tô falando da coisa regional. Tipo, vai lá fora, por exemplo, eu gosto muito de ragga-core, grime muito me agrada, sabe?, que é essa batida feita pelos ingleses, o “dub step” eu tô ouvindo, o crunck que é a batida do Lil John que eu sempre falo, o próprio reggaton, que cê trouxe aqui, e esse rap feito na América Latina, a própria batida dos is, por exemplo, é outro tempo. Então são vários ritmos, meu, tá ligado? que se for pegar um lundu, jongo, é, o coco, é... sei lá, o maracatu, a própria mandinga da capoeira, é infinito. Se você for pegar só os toques de capoeira, são bento grande, tá ligado?, são bento pequeno, angola, não sei o que, cavalaria, é uma infinidade, entendeu?, de ritmos. Tem cara que ainda não consegue respirar esse universo. Então é ainda um, um, é um garimpo muito grande. É um espaço numa área muito ampla que você tem que tá 6
Grupo de rap de Salvador (BA).
184 explorando o tempo inteiro, entendeu? Sabe? E tem cara que tá muito fechado. E o papel do MC, hoje, no mundo, não é só pro tiozinho da antiga reproduzir coisa nova, que o hip-hop é tão loco que eles pega uma sanfona e reproduz uma parada antiga, mas é pra abrir o leque, memo. O cara poder viajar o mundo, fazer conexão com outros caras, de chegar em qualquer ritmo regional e mostrar que isso tá coligado porque é canto falado, entendeu? E cê chegar no ragga, cê chega num jungle, consegue rimar, é loco, entendeu? Então é infinito, é nisso que eu viajo. Eu rimo em tecno, tá ligado? Em house, em trance [estilos musicais estrangeiros], tá ligado? Tem uma parada que é, que é, que eu faço com as minhas músicas, que eu dobro e desdobro todas elas, se a batida é dobrada, eu desdobro o verso. Se a batida é desdobrada, eu dobro o meu verso. Então eu me adequo pra qualquer batida, não é aquele músico que fica pedindo o tom, “ah, que tom?”. Não, eu que dou o tom, de acordo com o tom que me deram, tá ligado? E você adapta qualquer coisa. Fora isso, se der algum problema que não der pra adaptar, sai fazendo um free-style, que é improvisando, tá ligado? Embolano... vai fazendo o que a alma manda, que é outro processo, tá ligado? O baguio é loco... eu viajo mesmo... e o foda que isso, pro hip-hop, pro MC, é natural, entendeu? Tem um moleque de 22 anos, ele é uma das promessas do rap brasileiro assim, muito bom na embolada e no emproviso, a gente conversa bastante. E é um moleque, não usa nada, moleque careta, novo, com uma puta base que trampa com um rapper de fora de São Paulo. E eu falei pra ele [o rapper com quem o MC citado trabalha] assim “vou levar o moleque pra São Paulo”. Aí ele falou “tu é doido, de levar o meu moleque pra São Paulo, ele vai voltar que nem você, mano”. Eu falei “é, pode crê, cê acha que eu vou deixar o seu moleque sequelado, mano? Já basta eu já. Se eu tivesse uma base sua, eu não taria assim, tá ligado?”. Ele dava risada. Porque... eu fiquei sequelado, tive que ir pro mundão. Isso que eu falo pra ele, não precisa ir pro mundão, ficar sequelado. Aqui cê tem toda base, é só você trabalhar e esperar a sua cota, entendeu? L: fala mais disso, desse negócio de ficar sequelado. Ilícito: ah, ficar sequelado porque eu já entrei em tudo que é buraco, mano. tá ligado? Tudo que é favela, tudo que é viela, tá ligado?, os lugares mais podre que cê possa imaginar eu já fui, mano, tanto aqui em São Paulo, tem criminoso, lugar de arma, fuzil, morro, tá ligado?, até nas festas lá fora, na Inglaterra, os caras só cheira anfetamina, nos scotch party, no... nas festas dos junky... tudo que cê possa imaginar eu já ei um pouco, tá ligado? cê acha que cê num fica sequelado? L: o sequelado tem uso direto com o uso de química? Ilícito: não uso de química, com experiências do mundão, tá ligado? Por exemplo, eu nunca usei química, a química que eu experimentei é êxtase. Nunca cheirei uma cocaína, nunca... e ácido, que eu odeio. tá ligado? Já tive experiência com ácido e eu odeio. Eu não tenho problema com isso, sabe. Sou a favor da regulamentação de todas as drogas e da legalização, tá ligado?, não da liberação e... e não tenho problema com isso. Agora, gosto muito de planta de poder, sabe?, e infelizmente a gente já não tem quase planta de poder porque até a maconha os cara mata antes tudo, ainda deixa ela carregada com um monte de coisa negativa (silêncio). Mas é, e... ei por todos esses universo aí, sabe?, então cê fica sequelado um pouco, tanto mental, corporal,
185 eu acho que já, o ar da Inglaterra já fode com a pessoa (ri), só de cê pisar naquele aeroporto. Então assim, ir em muita balada, dormir mal, ce... é,.... por exemplo, eu num... sabe... tem dez anos que eu num namoro, assim, sabe. Só ficar no mundão, com várias experiências, vários bagulhos que não me agradam assim, sabe? Vários bagulhos que te... já não consigo mais, sabe... que é esse mundo artístico, sei lá. As coisas que veio assim tão vultuosamente também pra gente aprender, tal (silêncio). L: e a história do mutante? Na outra entrevista você falou disso. Ilícito: ah, tipo... porque eu até falei pra você, na hora que tava saindo, tipo, tá diferente, sabe? Tô diferente. Essa coisa de n... mudar todo dia, assim. Toda hora tá se alterando, sabe. Aí eu risco o meu corpo, já... sempre alguma.... O cabelo cresceu mais um pouco, ou... sei lá. Eu acho q... sempre se alterando, sabe. Uma idéia, uma coisa nova, um princípio novo, é sempre tá mudando (silêncio de alguns segundos). L: essa idéia do mutante que tem numa música do grupo. É essa mesma idéia? É o mutante...? Ilícito: é o mutante também, sabe?, só que tem umas pessoas que tem uma mutação de construção e outros é uma mutação de destruição, entendeu? E... isso é constante também. Tipo um filhinho de papai burguês não é preso porque tem dez pra ir no lugar dele, entendeu? Então é, é... aí ele cresce mutante. Aí ele cai na cadeia, aí ele vira aquele monstro, sempre naquele universo, sei lá, simpatiza, e... tá ligado? Não conseguiram me transformar nisso, que não me conseguiram me transformar nisso (sic), ó o que eu tô v..virando. e isso, fiz isso, tô fazendo isso, até uma hora que a parada já tá por igual, entendeu? que nem o chamado “crime organizado” tá por igual hoje. Entendeu? São várias mutações... e o hip-hop é mutante. Por isso que não dá pra falar só de um elemento. Então o conhecimento agrega todos os elementos e todos que tão por vir, tá ligado. Outro dia eu trombei uns moleque dançando esse “streat dance”, que é essas danças do Shaft (o filme), esses filmes novos que saiu da nova dança desses pop... cê num conhece, mas nos baile black hoje..., principalmente esses pancadão da quebrada, que agrega o funk com os telão, com esses ãaa...é... esses novos pops desses dançarinos de hip-hop, essas coisas pop que tem na mídia, então hoje tem vários grupos que dança igual Beyoncé, então isso é uma cultura, tamém. Os b-boys da original dança de rua é uma outra forma, porque era as lagartixas antigamente, mas também não pode .... lagartixa, os cara tirava os pé de barro, mas os pé de barro era os cara que não tinha..., que dançavam muito na..., os b-boys no chão, mas não tinha o estilo porque não tinha o dinheiro pra comprar uma roupa, uma calça, porque b-boy tinha, usava adidas, os baguio da hora, tá ligado. Então era os chamado pé de barro, mas era os cara que dançavam mais. Então sempre teve lagartixa, sempre teve vários... L: lagartixa é o quê? Ilícito: lagartixa é os cara que dançava os inho, da época dos inho, depois que evoluiu. Antes quando chegou era balanço, né?, depois foi virando rap... e todo mundo dançava o balanço, que era uns inho. E isso era lagartixa, porque já tava chegando os b-boys, com a dança de rua original, então aqueles caras eram os lagartixas, entendeu? E sempre foi assim...
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L: entendi. Lembrei da minha adolescência agora. Ilícito: e sempre foi assim. E aí os moleque vem falar com você, cê vai o que, pa, entendeu? É uma cultura, porque as vezes tô chegando num, nuns baile desse tá tocando o seu som, tá ligado. É loco mano. cê vai critica, cê vai... entao cê tem que saber lidar com cada universo, cada..., cada lugar, cada lugar tem um jeito, sabe? Muito loco. E se você faz um som pra ser bairrista, então faz, agora o meu som é pra todos, entendeu? Pra pobre, rico, boy, preto, branco, girl... , tá ligado? E é isso que é loco. L: cê falou dessa história de riscar o corpo. Tava se referindo às tatuagens é isso? Ilícito: eu sigo a tradição tailandesa mesmo. sabe?, de, dos orientais. que é isso. Cada vitória, e cada feito importante é... é,... colocar no corpo, entendeu? E aí... ao longo do que você vai vivendo, se mantendo vivo, cada risco do seu corpo mostra um ciclo da sua vida e uma vitória. E são essas vitórias, que tá tatuada no seu corpo, que vai mostrar que você é um líder. que você é um griot, que é um cara que realmente tem importância, dentro do convívio, do espaço que você vive, entendeu? Isso aí vai mostrar... e eu acredito muito nessa parada de ligação, tatuado de vitórias. Cada vitória eu tatuo no meu corpo. L: e começou quando? Ilícito: ah, iss’aí começou quando eu tinha tinha 24 anos, meu. Tá ligado? Eu tava num momento de ligação espiritual muito forte e depois de lá eu não parei mais. A primeira que eu risquei foi... na Ilha do Mel. Risquei com uns caras “metal”. Na praia. Depois não parei mais. L: e quantas você tem mais ou menos? Ilícito: não sei, acho que é... uma, duas, três, quatro, cinco... é cinco. L: e sobre a questão negra? você começa a entender mais sobre isso quando? Ilícito: não, eu já tinha ligação, porque desde que eu comecei no hip-hop, não tem como, você não bater com a questão negra. Desde quando eu comecei fazer hip-hop eu entendo essa questão negra porque o hip-hop quem cai de cabeça na raiz, sabe?, que também tem um ligação das músicas, né?, que som que não é negro? Entendeu? Que cachaça que não é negra? Assim, né?, do negro, cachaça do Brasil, aqui é a comida, aí o samba, tudo, tudo tem uma ligação com... isso, sabe? E acho que também foi uma das formas que eu pude também expressar e ser diferente dentro do hip-hop que eu vejo, sabe? De eu ter assumido fortemente a questão da africanidade, enquanto muitos outros ficavam vivendo muito do submundo, aí, da rua, depois dentro da africanidade eu trouxe a questão indígena e a questão do branco também, né? Que a coisa que Cuba assume muito facilmente essa parada do branco europeu. Ele era... É loco, né?, tá ligado?, até imagino que é um problema pra afirmar isso. L: como é isso, de falar que é um problema? Ilícito: ah, tipo assim, o cara fala muito do negro e do indígena, ainda muito pouco, mas não fala do branco, como tendo feito parte do processo, tipo o
187 branco. Como se o, o branco no processo só veio pra atrapalhar hoje. E no, em Cuba os caras falam isso numa unanimidade, sabe? E hoje a gente, além disso tudo, a gente tem que lidar com as diferenças, sabe? Hoje tem playboy fazendo rap, a elite ouve rap, e dança funk, tá ligado?, toda lady deseja um quilombola na cama, é..., os pr..., sempre teve essa ligação da elite com o pobre, sempre teve essa coisa do cara querer fazer o que a gente faz. No final, querer ir pro reino dos pau grande, tá ligado?, sempre foi assim, é um lance hereditário que a gente tem que aprender a lidar com as diferenças. E o hip-hop não pode ser contraditório nessas horas. Único movimento no mundo que... e também, além do hip-hop, o cara que evolui espiritualmente ele não vai ficar se apegando a certos detalhes. (silêncio, fica mexendo com a cadeira). Cê entendeu o que eu tô falando? L: entendi. Ilícito: a partir do momento que não interfere a mim, que não a..., que não atinge a mim, tá suave, mano. O convívio é natural. Só não atravessa. Só não testa. L: e o que que precisa pra atingir você? Ilícito: sacar a energia do guerreiro, saber os momentos, de saber da sua origem, da onde cê veio, de saber a hora de pisar no... terreiro, entendeu? Não saber sacar isso, tem gente que não tem essa sensibilidade. L: pisar no terreiro quer dizer o quê? Ilícito: ah, vice-versa, sabe? Na hora que eu tô do lado de lá, num outro campo minado, por exemplo, eu sei onde eu piso. E vice-versa. E... tem muito “joselito”7 sem noção no mundão. E isso aí que rola umas intrigas. (silêncio) Que mesmo que hoje a coisa tá globalizada, aí, do jeito que falam, os caras cada um tem sua tribo. Independente do... de eu ser radical da minha tribo, que eu não esteja totalmente fechado pra ser universal, entendeu? Só que a minha riqueza tribal e riqueza cultural e tudo que eu ca..., e tudo que eu acumulei ao longo da minha vida e d.. e das experiência, que me vai preparar pra ir pro mundão, entendeu? Tano no mundão, não me impede ser universal de poder viver com todas as diferenças, mas cada um no seu limite. Então se o cara sabe da origem dele, se ele tem uma raiz e tem uma riqueza cultural, ele sabe o limite, agora o “joselito” sem noção, no mundão, tem uns que não sabe. Aí que rola as intriga e os conflito. (silêncio de alguns segundos) E até nós mesmo, que m... que fica meio “joselito” sem noção. L: como é isso? Ilícito: só ficar, viver a Babilônia de São Paulo direto assim, não precisa um ano, mas três meses de babilônia de São Paulo direto, já te consome e você fica joselito sem noção sabe? L: o que que você chama de Babilônia, São Paulo? Ilícito: ah, a fumaça da cidade queima mais neurônio, por exemplo, do que fumar um baseado.
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Gíria para “otário”
188 L: hmmm, entendi. Ilícito: basta a Babilônia, já te deixa... Por isso que precisa às vezes ir prum fundo do salão assim, acender uma... ver umas fumaças, ouvir um som pesado, sabe?, fazer uns hip-hop, sabe?, mexer os quadris, sabe?, essa parada? Por isso que as vezes tem que ter uns m..., umas paradas que tire a gente dessa babilônia. Por isso que é necessário um mar, é necessário ir pra cachoeira, mata, ir pro fundo do salão, dançar com uma africana, massagem tailandesa (ri). Alguma coisa que te leva, que te eleva pruma parada além do que a babilonia te corrói, te consome, tá ligado? Que em São Paulo é a babilônia. São Paulo é um puteiro, o Brasil é uma zona, estão estrupando (sic) a Amazônia tá ligado? E o ilícito é preso por causa da maconha sem amônia (fala em voz baixa). (ri) L: esse verso é seu? Ilícito: é. Do Ilícito. L: esse trabalho seu? Ilícito: é. Musicologia não autorizada. L: Musicologia... Ilícito: hã? L: Musicologia. Ilícito: é. E é... Uso muito dialeto nesse trampo, tá ligado? Muita coisa que muita gente não vai entender nada. É. (ele rapeia os versos: “da sete galo não restou nem o cabrito / na neurose do camelo, o zóio de lula ficou esquisito, obsessivo / na piolhagem rateando o mundão / mas se trombá a cobra criada, não foge não/ seu tromba de elefante / tamanduá bandeira / puga de gigante / vira lata de feira / salamandra de malandro / pombo correio / burro de carga / tartaruga que arrasta / urubu que gosta de carcaça / príncipe que virou sapo / vive de lagoa em lagoa / ave de rapina, rei do quinto dia útil pra fazer a boa/ fita dada é bodarrada / “cocoricó, cocoricó”, fui roubada / a sirene toca / a selva se agita / agiota, rato cinza de laboratório que é isca / a procura do lagarto que arrasta / na lei da fauna, um salve / a selva mata / rasta num arrasta / é lagarto que arrasta / um salve da fauna a selva mata / nativo por natureza / cachoeira não é cascata / rasta não arrasta / é lagarto que arrasta / rasta não arrasta, é lagarto que arrasta / um salve da fauna, a selva mata / nativo por natureza / cachoeira não é cascata / rasta não arrasta, é lagarto que arrasta”). Ilícito: entendeu? L: acho que sim... os animais todos também são do dialeto então? Salamandra é o quê? Ilícito: tudo é a linguagem de rua. Só que... é, é, é usando a fauna. L: a salamandra tá na linguagem de rua também? Ilícito: também. L: e quem é a salamandra na linguagem de rua?
189 Ilícito: salamandra de malandro? L: salamandra de malandro, né? É a expressão... Ilícito: ah, então, tipo, não preciso nem falar né?, e aquele cara que fica no corre e... o que o malandro quiser, ele tem cem pernas, tá ligado?, pra fazer o corre com o malandro, né?, aquele baba-ovo memo, salamandra de malandro. Entendeu? Salamandra não tem várias pernas? L: então esse som, do Ilícito, como chama? Ilícito: A Fauna. Mais “hippie” do que pra “hop”. L: tá... Ilícito: é porque hip-hop é essa coisa muito norte-americana, né?, então a coisa mais ligada à mata, Jamaica, hippie, essa coisa..., mais, tá ligado?, mas o outro universo, que é essa coisa rasta, então eu tô mais hippie do que pra hop, entendeu? Mas na verdade é hip-hop, mano. Né?, essa é a parada, sou hiphop mesmo. Não tô muito pra esse universo do gangsta, 50 Cent... mais pro.. tô mais pra... pra... pro outro universo. Clapton, Sisla, Damian Marley que eu gosto demais. L: ele é filho do Bob Marley? E ele faz rap? Ilícito: faz ragga. Ragga e reggae. Faz música né? Os caras tão num outro nível. Outro patamar. L: em relação a quem? Ilícito: ninguém não. A nível mundial. Fazem música pro mundo, né? O lance que... , a Jamaica pra cima lá, os caras não faiz música pro bairro dele. Música pra vender mil CDs, tá ligado? Os cara faiz música pro mundo. É outra visão. O mundo inteiro consome o som dos cara. Isso que é loco. Mesmo do mais pop ao undergrund, os cara já tem essa visão. Falo muito pela experiência com o selo francês que é parceiro nosso, os cara tem uma conexão mundial nervosa. Nova Iorque, Brasil, com a Europa, África, muito loco. (silêncio longo). Uma hora a gente tem que aprender, né?, com esses caras. Acho que já tá no meio do processo do aprendizado, sabe? E ... também da evolução musical, sabe? tá vindo um agora, ess... uma... uma nova geração bem pop memo, reprodução norte-americana, mas que vai ajudar a impulsionar o rap, entendeu? Vai ajudar pra caramba. L: quem tá nessa geração? Ilícito: ah, num sei. Num sei não. Não falo esses bagulho não porque... sempre causa... L: você quer o anonimato na pesquisa? Ilícito: é, coloca... Ilícito. Tá bom. L: usar o vulgo? Ilícito: é, Ilícito. (silêncio) É, porque aí... num causa problema. Mas é... se todo o problema fosse... o ilícito, tava bão, tá ligado? que pelo menos o ilícito tá tentando ser um cara legal. (ri)
190 L: como é isso? O ilícito tentando... Ilícito: se o problema no país fosse o ilícito, entendeu, tava bom. Tá ligado? Pelo menos o Ilícito tá tentando ser um cara legal. L: Legal em que sentido? De lei? Ilícito: ah, geral. Ilícito o que que é? Não é o ilegal? L: é. Ilícito: então. Pelo menos ele tá tentando ser um cara legal. (pausa).Agora tem outros ilícitos que... (ri) já perdeu as esperança... L: então espera aí, cê tá se referindo ao ilícito você? Ilícito: não! Tô me referindo ao ilícito geral. O ilícito é um personagem que vai servir pra muita gente. O Brasil é ilegal. O mundo é ilegal. A legalidade e a ilegalidade corre junto, tá ligado? Hoje, quantos, quantos num vivem refugiados, o problema dos refugiados no mundo, imagina, os caras que tão tentando se firmar num, nos países, por exemplo, os conhecidos na França vivem isso, um deles é do Congo e não pode voltar pro Congo, que eles tão em guerra civil há muito tempo, tá ligado?, os caras tão tentando regulamentar as documentação. Até os próprios brasileiros que vai pra fora, tá ligado?, um parceiro meu, pagou 2 mil pounds pra casar com uma... uma mina da Alemanha pra ter dupla nacionalidade, tá ligado?, européia, pra poder tá indo e vindo entendeu. É varias tretas. Até mesmo um árabe pra entrar hoje, ou que tenha um nome islão, ou que tenha um nome mulçumano, pra entrar nos Estados Unidos, tá ligado?, a fronteira lá, do México lá, muita treta mano. Aí, é... 50% da corporação policial é ilegal. 50% dos políticos do País é ilegal. Tá ligado? Qual a empresa no país hoje que tá totalmente legal? É... os nossos recursos naturais tá ilegal, tá ligado. Então, tem isso, começa o Brasil é ilegal. A dívida é eterna, até pouco tempo nós era Estados Unidos do Brasil. tá ligado? Agora nóis já é dos Estados Unidos (ri) tá ligado? (pausa) O Paulo Francis é ilegal. L: queria que você falasse da história de como é ou como que se deu o seu contato com o candomblé . Ilícito: ah, eu acho que foi de pequeno. Quando a gente ia nas festas de São Cosme e Damião na casa da... do meu tio... tio Nelson, ele era casado com a tia Creuzinha e tal, e lá eles tinham um candomblé . Eu acho que foi lá. E a gente ia tudo lá na festa de São Cosme e Damião desde criança e eles tinham um terreiro lá. Hoje eles num tem mais o terreiro, morreu vários primos meus, eles tiveram vários problemas, hoje eles tão acho que até crente (ensaia uma risada). Loco isso. E... E acabou o terreiro, mas é a... a primeira referência que eu tenho que eu lembro é isso. Desde criança, festa de São Cosme e Damião todo ano a gente ......, ia comer bolo, doce, e acabava pegando todo o rito, né? Da festa... por ser Cosme e Damião, ele colocava as crianças como linha de frente no terreiro, as crianças da festa, aí eu fui ficando ali. E adorava. Acho que é isso. L: e era a tua tia que era a mãe-de-santo? Ilícito: na.... é, da família da minha tia, não do meu tio, né? Que é irmão da minha mãe. Da família deles.
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L: e o seu padrinho, que você se referiu a ele, ele não é parente, não é seu tio? Ilícito: não, ele é amigo do meu pai, desde que... eles mudaram juntos pra cá, cresceu junto e meio... acho que é ville, Santa Catarina, né?, Santa Catarina? L: e aí tinham as festas de Cosme e Damião na infância, aí você começou a fazer rap, jogar futebol, já adolescente, 13 anos e tal. Aí você não ia mais no Cosme e Damião? Ilícito: aí eu morava numa rua lá no Clementino que tinha um terreiro lá de esquina. E a gente sempre tava ligado tamém, os caras faziam uns trabalhos, e aí depois eu tive oportunidade de ir em outros terreiros. Tinha um pai de um amigo meu que jogava uns búzios pra mim. L: ah, você jogou búzio? E você sabe o seu orixá? Ilícito: ah, ele falou pra mim que era Iansã e Oxóssi. Né? Eu preciso jogar de novo pra ter melhor definição, mas eu acho que é isso. Mas eu gosto muito de Xangô, Oxum, adoro. L: mas você acha que você tem características que possam realmente se identificar com esses orixás, Iansã e Oxóssi? Ilícito: ah, acho que sim, tem essa ligação dos astros, Iansã, né? L: como é isso, ligação dos astros? Ilícito: ligação com... essa coisa dos, dos astros, né? Essa coisa encantado, tal. Não quer (ou no que é) mais ligação artística, espiritual, sabe? E Oxóssi é a mata, né? Acho que tem sim. que mais cê sabe de Iansã? L: ela que leva os Eguns por Orum, os espíritos pro mundo dos mortos. Ilícito: E Olorum é Deus né? L: Olorum é Deus, mas Orum é o plano do desconhecido. E o ayê, da rede ayê de hip-hop lá de Salvador, é aqui ,né?, é o nosso mundo. E que ela é mãe das nove divisões do Orum, desse espaço do desconhecido, por isso que o nome dela é Iansã, que quer dizer isso, mãe das nove divisões do Orum. O outro nome dela é Oyá, né? Uma das esposas de Xangô (ele fala junto, demonstrando que já sabia). Ela é a rainha das tempestades, ela é intempestiva, né?, tem uma certa agressividade, no sentido de,... ela é guerreira, da guerra. E tem a coisa da sexualidade bem ativa, né?, no sentido de se relacionar afetivamente e sexualmente com as pessoas, de encarar isso. Namorou com todos os orixás, com a Oxum também. cê sabia disso? Ilícito: não, não sabia não. Nisso eu acho que eu tenho a ligação sim. L: (ri) e o Oxóssi é rei, né? Assim como Xangô também. Ilícito: e tem essa coisa da mata, eu tenho uma ligação muito forte com ela. L: é caçador. Desbrava, é irmão de Ogum. Os dois são Odés. Os filhos de Oxóssi podem sair do nada e construir um castelo, fazer a sua grande obra. E com Xangô e Oxum, você se identifica? Ou gosta?
192 Ilícito: acho que é gostar. E tem essa ligação das mulheres, memo, que Xangô exerceu um poder, tal. L: um poder sobre as mulheres? Ilícito: é, sobre as rainhas. L: Ahã. É, mas Iansã tem isso também. É que deve ser curioso se o seu primeiro orixá for uma orixá feminina, né? Ilícito: (mostrando a tatuagem do oxé, o machado de Xangô, no antebraço). É, e quando eu fiz isso aqui, Xangô, né?, com esses raios assim, né?, o cara veio, e eu “queria o machado, a pedra, e tal, tal tal”. Depois eu tava com um amigo e ele falou “nossa, cê fez a Oxum no meio do machado?”. Eu falei: como assim? É... É... Oxum não aquela do, dos rios. Então, é... ele falou “cê fez os rios, cara”. Eu falei “puta, que loco, é mesmo”. L: e o piso que tem aqui nesse cômodo, você já reparou? Ilícito: não. L: não reparou o que tem aqui nesse piso? Ilícito: uns raios... L: eu vi uma pedreira quando entrei aqui. Ilícito: uma pedreira. L: é. Uma pedreira. Ilícito: uma pedreira tem ali ó, embaixo disso (e aponta pra trás). Minha casa é feita em cima de uma pedra. E ela mina água aqui, isso é uma pedreira. Deu muito trabalho pra quebrar. A casa é feita em cima de uma pedra. que vai até o outro quarteirão lá de cima. L: é, tem um Xangozão aqui então. Ilícito: tem, né? L: e os preto-velhos que tão ali? Ilícito: isso daí são umas imagens que eu guardo, os negócios pra mim que é importante. As pedras de energia, ponho aí nos cantinho aí. Meu pé de canhão ressecado. Aí sempre tem uma... acendo uma velinha, agradeceno. Não sou muito de cultuar imagem não, mas preto velho eu gosto. L: você já ou com algum, pra ser consultado, pra trocar idéia? Ilícito: ah, acho que já uma vez. Acho que foi na casa de um amigo. Mas eu precisava ar mais. tô com um contato de um menino lá... um grafiteiro lá da Bahia, que ele é de uma... uma linhagem do candomblé do Recôncavo Baiano bem importante lá na Bahia e eu tô loco pra ir pra lá, tô trabalhando pra ir pra lá, vou la ficar uns dias com ele, participar de alguns rituais... também vai ter um essa semana, que, de... Que dia é hoje? Terça? L: terça, 7. Ilícito: hoje mesmo tem um ritual do... do santo daime. Precisava ligar lá pra mim saber se vai ter... à noite.
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L: você costuma ir? Vai de vez em quando? Ilícito: eu vou lá fechar um ciclo do daime. Queria ir antes desse ano, pras coisa fluírem mais (abaixa o tom da voz). (silêncio) L: e você vê uma identificação no daime e no candomblé , e nas religiões de matriz africana? Ilícito: o daime, pelo que eu tô entendendo ultimamente, né?, é... por isso que tem esse lance da nova era, né?, a ligação do daime com a nova era, esse povo da nova era, de... usar artifício de planta de poder pra abrir a consciência, e o daime como que é uma parada que vem dos indígenas, ou pro negrão, que é o Raimundo Irineu, depois do negrão foi pruns brancos e hoje tá na mão da elite, não generalizando, porque varias tribos indígenas tem seu ritual do daime, que às vezes usam outro nomes, tal, e que... dentro de varias matrizes do daime hoje é..., se trabalha toda a divindade, todas as entidades am por lá. Tem... vários ritos, por exemplo, essa aqui é mais ligada com o candomblé, entendeu? mas eu já vi outras com ligação com a umbanda, outros que am o Anjo Gabriel, am várias entidades, então o daime é uma, é uma, um ritual de limpeza tanto corporal através da bebida enquanto espiritual e essa parada do..., das entidades ,né? Essa coisa religiosa mesmo. Então é uma limpeza geral, a bebida ela limpa o corpo e altera a consciência pra limpar o espírito. Então dentro do daime a todos esses universos. Depende de como eles trabalham cada linhagem, cada momento, de como trabalhar um tipo de energia. E de como eles vivem também, uma coisa mais de cada região tá aberta mais uma ligação que, de forças que chegam, entendeu? cê tem um grande contingente de povo negro que é ligado no candomblé , e pensa a ancestralidade, porque não trabalhar dentro desse rito? E assim sucessivamente com a questão indígena e outras, entendeu? Tem outra mais católica, am... né? Não é tão fechado assim. L: e essa sua ligação com o daime começou quando? Ilícito: ah, eu tinha contato com um amigo meu, o adriano, bruxo, eu fiz uma música pra ele, eu terminei onte. Chama Bruxo. E... aí é um bruxo, sabe... meio bruxo, assim. Ele gostava dessas parada, já abriu muita mente nesse sentido. Ele já faleceu já. E era paraplégico, e faleceu no final do ano de 2004 assim, pra 2005; eu aprendi a tomar planta de poder com ele. Quando ele foi enternado ele já tava com meio litro a mais de ayuasca na veia. Ele tava tentando se internar e não conseguia e pra sarar a dor ele ia tomando umas plantinha de poder. Foi difícil pra ele. Agora ele deve estar descansando. L: e você vai gravar a música? Ilícito: ah, não sei. Não sei... tem mais cara de Ilícito...é que... é... tem cara... tem cara pra cada projeto, assim, né? O grupo tem uma cara... cada projeto tem uma cara. É todo um processo. A música, eu fico olhando pra ela. Mudo mais um pouco, aí vai entrando a melodia, é todo um processo. Olhando, fico olhando pra cara dela. Ela diz alguma coisa pra mim, às vezes eu respondo de novo, aí eu mudo um “o”, uma vírgula....um “a”, um centésimo de milésimo de uma métrica que não ficou boa, até chegar num... num... (não completa e “rapeia” versos de sua autoria). Na maioria das vezes, [as rimas dos rappers] acho que... caminha pro, pro banal, entendeu? Sabe? muitos caras
194 reproduzem a miséria. Muitos, muitos. A miséria não tem que ser reproduzida, ela tem que ser banida. Os cara depende da miséria pra fazer as parada. (silêncio longo) L: quer parar? Ilícito: eu? “Quer parar, se quer” (cantando). Cê que sabe?, mano, eu falo pra caramba. (silêncio). (Me oferece algo pra comer).
Entrevista III Sexta-feira, 22 de junho de 2007. Ilícito completou 29 anos. L: eu queria perguntar sobre algumas coisas colocadas nas entrevistas anteriores, principalmente da questão espiritual... I: eu me tornei um cara complicado e... seqüelado assim. Hoje tamém com um momento espiritual importante, me cuidando também pra não ficar monstro no parque dos monstros, entendeu? Porque o parque dos monstros tava me deixando muito monstro. Monstro além da monstruosidade. E aí agora tem que trabalhar esse lado “paz”. Tá sendo um processo de transição, né?, eu quero fazer música e música como arte, rap por revolução, e... e terminar no baião. ar pelo reggae... Fazer o caminho inverso. Depois que, que tiver, sei lá, na Norte América, tô na Jamaica, terminar lááá no Nordeste... Essa é a idéia e aí eu acho que pra mim tá faltando mais mesmo é estudar, aula de canto, porque música, letra, obra, tem. Por isso que todos esses nomes, todos os projetos. E... E assim, é... tentar construir uma coisa de cada vez assim, pra não construir com um e derrubar com a outra. Mas é taí pronto, né?, conforme Deus, conforme Jah manda eu vou organizando a parada, assim, e aí quando vim. É, por exemplo, o estúdio aqui que eu tô tentando fazer aí eu vô, vô pondo os bumbo-e-caixa, os samplers, não sei, eu chamo o meu parceiro que toca, aí ele chama aquele músico... hoje tá legal assim porque não precisa esse lance de grana assim, a história que cê construiu com a sua mensagem e com os moleques, na prática, entendeu?, por exemplo, os moleques estão lá trabalhando na coletânea... então eu acho que é isso, Jah colocou uma parada, que eu acho que... vamo fazer coletânea um, dois e três e só nessa primeira vai ter uns 30 grupo, tá ligado?, dividido nas músicas, lógico. Tipo 3 grupos numa música. Pra, pra... Pra quebrar um pouco desse mau-agouro de... cê pode ter um PCzinho veio, o cara vem e cresce os zóio, entendeu? Enquanto você não souber dividir, tá ligado?, e essa coisa de eu não querer aparecer mais assim é por causa disso assim, quando eu comecei a fazer o rap eu era moleque eloqüente e aguçado assim, tá ligado?, aí metia a cara pálida em tudo, aí foi muita ....... nas paradas. Depois comecei a ter muitos problema, entendeu?, quando eu achava que era solução começou a ter inveja, problema, a gente não concordar com “n” coisas que vai desda forma que cê pensa até a sua cor da pele, por exemplo, entendeu?, então aí eu ia muito em palestra, debate, fiz muito isso. E aí comecei a tomar umas cabeçada e falei “mano, não precisa disso”. Muita teoria, entendeu?, vou pra prática. Aí foi [retomado] o projeto que a gente já tinha começado em 2001, fazendo essa parada e eu falei
195 “vou agarrar nas minhas oficina, e vou plantar os meu moleque, entendeu, e abrir a mente deles e já é, é isso que eu tô fazendo na praça Luiz Gonzaga lá, que é isso assim, só tem o espaço lá, não tem grana, não tem nada. Então a gente junta os moleque, e tá fazendo. E se não fizer isso vai vim uma geração funk, entendeu? Que eu gosto pra caramba também, sou um eterno defensor do funk carioca, por exemplo, e lá é oficina de MC, tem cara que canta funk, tem cara que faz embolada, e eu mostro pros moleque que é uma árvore onde a gente tem que explorar esses universo tudo e fazer música. Agora, cada um no seu skate, né? Cê tá fazendo rap, cê tem que saber dosar o bumbo-e-caixa, entendeu? Tamém se você for lá pro Nordeste, cê já foi pro Recife, chega lá falando “hip-hop”, “MC” (fazendo pronúncia estadunidense), cê tá numa terra dos embolador, do coco, entendeu, então se tem que... é isso que a gente viaja, entendeu?, de saber que a nossa riqueza cultural ela veio do mundo, a gente veio do mundo, todos os ritmos que vieram de fora a gente conhece até mais que os ritmos regionais. L: fala pra mim do bumbo-e-caixa. I: então, bumbo-e-caixa. Bumbo-e-caixa pra mim é isso assim, é isso, o lance de você poder pegar qualquer, só o rap consegue fazer isso e o hip-hop, pegar qualquer ritmo do mundo e resgatar e dar uma nova roupagem. E essa nova roupagem geralmente é o bumbo-e-caixa, você pega uma música do Waldick Soriano, da década de 60 lá, e pega um pedaço do sampler dele, a voz dele no refrão e refaz a música, entendeu?, só pegando um pedaço de um trecho da harmonia da música, o sampler, e o refrão do cara, e dali põe bumbo-e-caixa e dali vai evoluindo a música, e usa até o refrão do cara e resgata ele, entendeu? L: (após interrupção da conversa). você estava falando do bumbo-e-caixa... I: então é isso, com o rap você consegue resgatar músicas dos anos 60, 70, e dar uma nova roupagem. Tanto usando a voz do cara, se você quiser... dá pra você pegar uma música do Riachão e subir no palco com nóis, ele vai lá faiz a graça dele e nós manda vê, então o rap consegue fazer isso, que é uma... essa parada atemporal, assim, só vc... ó meu pai, eu vou ser um dia sanfoneiro véio que nem ele, por exemplo. Se eu não rimar com embolador, e ele não souber que isso aí também faz parte da linhagem do canto falado, então é isso que o pessoal acha meio loco assim, eu falo “eu faço canto falado, com bumbo-ecaixa universal, batida quebrada. L: da onde vem esse bumbo-e-caixa? I: vem do James Brown, é o “The one” do James Brown. “Tempo um”, né? Porque, por exemplo, o grupo da África que eu to ouvindo, as músicas deles é bem interessante, porque eles, eles vão da base da... do tambor, africano, que não é 4 por 4 simplesmente, né?, o tempo universal, que é essa criação do “The one”, é, o James Brown universalizou o BPM e o como, o como universal, que é o tempo forte, o “um”, né?, por isso que ele batia o pé aqui (faz o gesto e conta “um, dois, três, quatro”, marcando mais forte o tempo “um”) . Então o funk foi a revolução da música mundial, o jazz, o blues são músicas, harmonias, né?, que exigem do ciclo musical inteiro, não fica num looping, agora o funk não é “ta-tá-tãtãtãtã-tá” (e continua). Aí entra o ximbau, mas é esse ciclo musical de “um dois três quatro”. Então o que é que é o ciclo musical é quatro vezes “um dois três quatro”. Entendeu? E o James Brown deu esse
196 tempo forte no “um”, que é o “The one”, que ele chama de “The one”. Falando do “The one” e do lance dos BPM, que... que os tambores africanos eles variam muito, eles não ficam “um dois três quatro”, tambor afric..., o samba é “um dois, um dois, um dois” então os BPM´s, assim como na música jazz, no tambor africano, ele varia muito, né?, então, é... às vezes a gente tá no “um dois três quatro, um dois três quatro, um dois, um dois três, um”, sabe?, a variação de BPM, de como, que ele não fica no como 4 por 4, o tambor africano varia muito. Então cê tá ouvindo o som de bumbo-e-caixa do Faso e quebra umas hora e cê fala “pô, mas que tempo é esse?” é porque eles colocam, pegam o tambor africano, do..., que é tocado o coro na mão, e põe o bumbo-e-caixa, no como que é a música deles, que é isso que é trabalhar o cérebro muito mais entendeu, que o rap, a música rap dentro do como “um dois três quatro” ...... , entendeu. Tem uns caras do rap que usam muito variações de jazz eu lembro do Buckshot le Funk, que é como se fosse é... é.... um decassílabo do rep...do repente, da embolada. Do repente. E ele, aquela música “Music, evolution and change”, cê já ouviu falar? L: não. I: e “Music Evolution” o nome da música. Buckshot le funk. E a música é “Music Evolution Change” (cantarola). Então em vez de ser... ele repete no refrão oito quatro por quatro, mas é cinco. Cinco que somando mais cinco vira dez. então é como se fosse dois comos a mais, mas dentro, como o como da embolada que é uma coisa que eu não sei explicar mais sei cantar, né?, que dá trabalho, tipo “de repente veio visão, energia iluminante, pra estremecer o chão, iludir a multidão, combater o feudal, o terror do capital, combater a doença, com amor e consciência, na luta contra o mal”. Aí cê vê que é cinco e vira dez. Se fosse só cinco seria quebrado, mas como é soma os dois, é par, aí completa. Então são variações que tem tanto na métrica, na oração que é o tema, principalmente na métrica, e no como, que variam, né? Então a música ela é infinita, né? Por isso o lance de você aprender a música... nós do rap tá no quatro por quatro ainda, a gente precisa escutar mais blues, jazz principalmente, tambor africano, pra começar a entender, sair desse “um dois um dois” e “um dois três quatro” também trabalhar outras formas de, de como né? L: que é o que você pratica qdo você faz rap com outras bases, com música eletrônica. I: justamente. Por exemplo, na música eletrônica eu descobri um..., uma forma de eu cantar minhas letras de rap... o que q muda pro... pro .... perguntei pro moleque onde nasceu o funk, ele falou que no Rio de Janeiro. Aí eu falei o que diferenciava o rap do funk, né?, aí os moleque falou, “ah, a letra”. Aí falaram tanta coisa. Mas a única coisa que diferencia o funk carioca do rap é o BPM, entendeu? O Funk é acima de 120 BPM, batidas por minuto, e o rap ele pode ser rápido e a batida muda um pouco mas se você for ver, tem rap que também fala merda pra caramba, entendeu? Tem letra de rap “bunda”, já tem dança da garrafa no rap, entendeu? Já tem essa cultura blin blin [voltada para o dinheiro e a ostentação]. É a música. O rap o que diferencia é isso, é o BPM, pq o resto é igual. O funk tem letras fudidas no rap também, como tem letra que fala só de menininhas, como que a gente vê por aí...Que fala só... de uma coisa bem machista, sexista, contra os boys, contra as minas. Tem uns boy que é
197 guetofóbico e canta rap, então é um bagulho..., cada um faz hoje a parada que quiser, entendeu?, o problema é você ter legitimidade, que é... quem dá isso é o público, entendeu?, e ter história e bastante conteúdo pra respeitar a origem de cada coisa, entendeu?, tô falando de música eletrônica, hoje os elitizados, a elite, por exemplo, os caras pegaram tiraram do gueto o jungle, o drum´n´bass, e levaram pras festas fechadas deles e viraram grana, hoje tem um... cê vê lá no prêmio Multishow tem até a categoria Música Eletrônica, porque os caras queriam uma nova música, entendeu?, mundial, mas a origem é do gueto. Aí cê chega na periferia, os caras têm um preconceito porque acha que a música é dos boys, que é do playboy, da elite, e é uma música que veio da nossa origem, os caras pegaram, viram que tinha futuro, aplicaram grana e fizeram pra eles, entendeu? E é o seguinte, faço música eletrônica porque eu sou chato, tá ligado? Paro, DJ de música eletrônica brasileiro pra dizer “enquanto cê não tiver dez minutos pra me ouvir, cara, eu vou ficar aqui veio, no Brasil tem MC, tá ligado?, não é só gringo nessa porra, tá ligado?, tem um disco de música eletrônica, e tem MC que rima pra caralho. Conheço os caras, os MC´s com quem você faz coisa, tá ligado?, e é o seguinte, véio, tem que reconhecer os caras daqui. Já ia ver o Julião em 92 lá na Zona Leste, a gente cresceu com o breakbeat, porque os b.boys não conseguiu acompanhar, é a mesma batida dos b.boys, a gente não conseguiu acompanhar mas a gente não tá de chapéu não, véio. Então... é... o que eu acho é que o lance é cada vez mais que cê não tem conteúdo e se limita a modinha do mundão, você fecha as porteira pras coisas que tá aí, entendeu?, por exemplo, ce... eu tô ouvindo grime e crunck, a galera não sabe o que é isso, entendeu? Então assim existem vários beats sendo criados e eu criei o crônico, tá ligado?, tenho um disco que chama “Ilícito Crônico”, é, nessa idéia dos beats que eu quero chegar dentro dessa forma da música eletrônica, que aí eu ia pra festa de música eletrônica, a gente sempre vai, eu faço MC [pra quem faz música eletrônica], o beat é dobrado, e como eu canto rap no grupo com os beats desdobrados aí eu ficava me matando pra cantar minhas letras na batida acelerada, entendeu? Aí tipo, letra que não casava, mas aí eu saquei um jeito. Se eu canto numa batida desdobrada, né?, é... Se eu canto numa batida desdobrada, geralmente o meu verso é dobrado, o meu canto é dobrado, entendeu? Tipo... é, se é um batidão de funk, né (ele faz a batida com a boca), como é uma levada rápida, fica muito foda, aí eu desdobro o verso, coloco mais melodia na levada, tipo (canta) “é guerra declarada”, entendeu?, no beat desdobrado, que é rápido, aí eu desdobro o verso. Aí quando a batida é lenta, eu dobro o verso, entendeu? Aí, por exemplo, entra um beat (faz com a boca) “os palhaços dos bandeirantes saíram a caça dos .... marginais desencadeando vários processos criminais”. Aí eu comecei a fazer isso com as letras, por exemplo, a letra do Dexter, “acharam que eu estava derrotado...”, eu canto ela “acharam... que... eu... estava... derrotado” (com espaço entre as palavras) ou “acharam que eu estava derrotado” (comendo o espaço entre as palavras), depende da situação, eu dobro e desdobro o verso, entende?, dependendo do beat, com toda letra dá pra fazer isso. Se o beat é acelerado cê desdobra o verso, entendeu, e aí se a batida é lenta cê dobra o verso. Isso é automático. Aí eu fiz com todas as letras minhas pra tudo quanto é base. Então cê chega num barato de freestyle, música eletrônica, ou fazer uma jam, o que seja, não importa o beat, é o jeito que você interpreta. Essa forma, música de rapper que eu acho bem loco que músico tem que parar e ensaiar e tirar o tom, o rap não. “Toca aí mano, que a
198 gente vê o que faz”. Então isso é que é legal, então não tem... Essa coisa de o rapper poder adaptar a letra pra qualquer coisa, entendeu?, eu posso cantar a letra num samba rápido, num samba devagar... Ou sei lá, se pega uma métrica de ragga com baião, sei lá, depende da situação, entendeu? Isso é que é a forma de não só pensar em rap ou ser hip-hop ou ser só forró, é pensar na música no todo e usar o universo do canto falado. Eu vou ficar falando isso um bom tempo, que é o universo do canto falado. O cara que ouve, por exemplo o cara que faz sucesso com o grime, que é a batida do rap feita em Londres, tá ligado?, os caras pegam o drum´n´bass, que foram os jamaicanos que foram morar em Brixton, entendeu, e é batida eletrônica quebrada mas é o rap deles, entendeu?, daquele jeito londrino, entendeu?, a mesma coisa é o crunk, que é a mesma coisa da concepção que é o Lil John, que é o rap nosso, mas com músico eletrônico, entendeu?, anfetaminado e muito eletrônico, então é aquela coisa intensa, sabe? Então é... pra quem não entende o universo da batida quebrada e das formas de canto, que eu falo, tudo é “black” (ri). Tudo é black, né? (rindo) Agora, saber diferenciar cada ritmo no black é que é... E é isso que é minha viagem, estudar os ritmos, entendeu?, se o James Brown criou o funk e o Luiz Gonzaga criou o baião, entendeu?, eu posso criar um crônico (ri). O Crônico por exemplo é isso, né?, o refrão é dobrado, o beat do refrão é dobrado e o canto é desdobrado e o verso que rima é na batida desdobrada com o verso dobrado. Esse é Crônico. E é... é artefato bélicos e barulho de caos, entendeu? Então o ximbau é uma metralhadora, triiiiiiiiiii, tá ligado?, o bumbo é uma explosão. É Crônico, entendeu? Aí eu chamo de Crônico. Aí eu fico dobrando e desdobrando, a música tem a batida dobrada. Depois eu te mostro ali, já tenho uma música gravada. Essa é a idéia, de criar alguma coisa, entendeu? Que é isso que eu acho bem loco, tem ragga-core que eu gosto, tem o uglyfunk, que é o ritmo eletrônico feito em Brixton, tem muito coisa assim... Tem... é dubstep, uma parada... é, um dub eletrônico, mas com batida é, breakbeat... Tem muita variação de beat assim. Toda hora aparece uma parada assim. E é isso que é gostoso, tá ligado? Então acho que, os moleque, tão muito limitado, nesse sentido de ficar só num mundo, só... Então... minha viagem é essa assim de... e trabalhar a poesia também, né? A poesia mesmo... que não adianta ce... a poesia também pro baguio ficar... o rap ainda tá pobre de poesia. cê vai depois pesquisar esse negócio que eu falei cê vai curtir bastante depois. Só esse lance dos beats, rapidinho, na net se acha. No youtube. Coloca lá “grime” já aparece uns caras. Eu tava vendo uma dança jamaicana chamada “hot wuk”. As minas dançam individual, era pra ser “hot fuck”. Mas é “hot wuk”. É... os dancehall jamaicano. E as minas fica “ai ai” (e faz o gesto da dança). Já viu essa dança? Depois eu te mostro. Então tem várias coisas pipocando que a gente tem que tá ligeiro assim. Lógico que pra.... pra mim por exemplo tive a oportunidade de ir pra lá, aí tá de perto dos bagulho e pã, então eu não perdi, não fiquei panguando, entendeu? L: eu quero te perguntar sobre uma outra questão que tem a ver com as letras. Pelo que eu prestei atenção, nas suas letras tem uma referência maior a um orixá que é Xangô. Mas também aparece referência a Ogum e também aparece referência a Zambi. Queria que você falasse um pouco disso. I: uma que acho que é o seguinte assim... os orixás na minha vida, acho que vem de pequeno mesmo. Nas festas de São Cosme e Damião, eu não perdia
199 uma. Porque tinha um terreiro aqui e hoje eles são da igreja dessas aí dos crente aí. É loco, né?, como as coisas acontecem. Aqui tinha dois times, um deles tinha o terreiro, e os caras morreu tudo né?, que é uma luta difícil aqui, e morreu muitos caras. E a festa de São Cosme e Damião era todo ano, né?, então essa foi a que eu acho que eu mais lembro assim, a referência de tá participando bastante das festas que tinham lá. E aí depois quando eu conheci a história de Palmares que começou isso aí, 94, 95, a gente fundou o grupo, né?, eu e o Zulu, que era um cara que era DJ da Chic Show, né?, ele tocou em vários..., e aí ele que mostrou esse caminho. E aí que chego em Xangô, e chego em Ogum e Oxóssi. E... Aí vem falando, em Zambi, que é pra se entender, pra mim entender o lance de Palmares, dos reis, eu tive que entender os Orixás, porque era regido pelos Orixás, entendeu? Então é.... é... a primeira rainha era feiticeira da mata, provavelmente Oxóssi, que é Acotirene, entendeu? Então assim ela era uma feiticeira da mata, que é uma história que tem, né?, e aí Xangô declarou Gangazumba, que foi o segundo rei, entendeu?, e aí tinha todo um cerimonial de troca de reis do Conselho Negro Ultramarino lá em Palmares e dentro dessa transição quem avisava era os Orixás. Então Xangô declarou Gangazumba e aí depois que Zumbi nasceu na terra dos Palmares, toda aquela história do padre, que ele virou coroinha e depois fugiu e voltou pra terra dos Palmares, por isso que é Zumbi dos Palmares, que ele nasceu na terra dos Palmares, ele voltou pra tribo com aquela fome de buscar as suas origens, de, de resgatar e criar seu quilombo e ser um líder, entendeu?, então Zumbi já veio com esse poder de ter nascido na terra dos Palmares, ter aprendido a falar em latim e tal, aprender a falar bem o português, ler a bíblia, conhecer várias guerras que teve, então Zumbi tinha essa consciência estratégica de conhecimento do mundo, porque ele leu muitos livros com o padre e aí quando ele chegou lá, pra ser um guerreiro dono de um quilombo cê tem que fazer um quilombo, entendeu, então Zumbi fez o quilombo de Zumbi, entendeu?, ele fez o quilombo dele e aos poucos ele foi se tornando um grande líder, foi quando ele bateu de frente com ganga zumba quando foi dividir a terra do Cucaú, que era uma terra improdutiva que o governo queria a terra dos Palmares, queria tirar os caras de lá, né?, e Gangazumba já tava negociando com os portugueses, então Gangazumba foi junto com Gangazona que era irmão dele, que era chefe da guarda na época de Gangazumba, foram negociar e fizeram um acordo com os portugueses que ele tinha que trazer o povo palmarino pra, pro Vale do Cucaú. Só que o Vale do Cucaú era próximo da capitania de Pernambuco e também era uma terra improdutiva, entendeu? E mesmo que eles quisessem ter paz lá sempre ia ter guardas ao redor e eles não iam conseguir fazer o esquema de defesa e não ia ter paz mesmo e teve um outro problema também que os pessoais... que... os que viviam nas ruas do centro das capitanias foi tudo pra Palmares, entendeu?, os mendigo, os que eram livres e conseguiam comprar sua..., e viviam na rua, né?, todos foram pra lá, os índios... fugia um pouco do controle, mas nessa treta metade ficou com Zumbi em Palmares, que ele, com o padrinho dele que era Gangazumba, e a outra metade foi pro Vale do Cucaú. Aí quando eles descobriram que aquilo era uma grande jogada do governo de Portugal, né?, que era... os caras que mandavam na época, e aí os caras envenenaram Gangazumba e o povo voltou correndo de volta pra Palmares, que tinha abraçado a idéia de Gangazumba. E essa é a história. E aí foi a época que
200 Zumbi se fortificou. Quando era Gangazumba, aí foi a transição de ar de um rei pra outro. Aí Ogum declarou Zumbi dos Palmares. Entendeu? L: e essa história você leu? I: ah, isso é resquício, eu vivo de resquícios, né? É resquícios, né? Entender a história são resquícios. Aí eu fico... Tem uma vida pra ir degustando. Aí eu tenho uns negócio aqui que é pra todo mundo, né?, quem quiser um livro, vem e pega, anota num livrinho. Mas aí eu tenho muita coisa. Aí conforme as coisas vão aparecendo, eu vou indo degustando, entendeu? Ainda com a “infernet”. Aí são resquícios. Saber por exemplo a história de Palmares certinho, a gente não tem documentos. Então são resquícios, você vai juntando, juntando, juntando as versões e dentro dessa parada que eu vou criando as minhas, entendeu? E... É... que é essa luta atemporal e essa coisa de se você perceber nas músicas do grupo, é atemporal. Tô em Palmares. Hoje. Entendeu? Sabe? É, eu escrevo nos dois mundo, entendeu?, como se eu tivesse em Palmares há 308 anos atrás, 310...É 2007... 307 anos da morte de Zumbi. 310. 310 anos depois, né? Zumbi + 10 já tem 12, eu fui pra Brasília... Tem 312 anos. É como se fosse na época, eu escrevo nos dois mundo, entendeu? É atemporal, porque a situação no Brasil não muda, entendeu?, o que muda é a tecnologia das coisas. Então, por exemplo, tem uma hora em uma música que eu falo assim.... é .... é... “favela a selva de pedra, o forte o quilombo... invencível... maloca das florestas cidade mocambo, periferia é o amor, quebrada imortal, construção imbatível, invencível, negrígena Jerusalém, quilombo invencível”. Que é isso, “filhos da terra, molduras de barro a aço, hino da favela, cultura dos bairros, canto falado, hip-hop, fortificado, alto falante no alto da torre”, Palmares, né?, porque aço fortificado é a Serra da Barriga, né?, então é “presídios não, prezo por educação”. É a mesma coisa de hoje, entendeu? “A multidão dispara, abatedores...”. Os abatedores, na época que abriam os caminhos na mata, Palmares tinha um caminho que ninguém descobria, entendeu?, eles abriam o caminho e vinham batendo pra fechar o caminho e não deixar trilha, entendeu? Então eram só os caras que realmente conheciam a mata que sabiam o caminho do Palmares porque nem os portugueses sabiam, entendeu? Quem construiu depois o último muro de Palmares e a torre, eles tinham, do alto da Serra da Barriga eles tinham uma visão, sei lá, de 10 km, não sei bem, tinham uma visão..., depois que veio esse cara, o “batedouro”, ele construiu que dava pra você ver sei lá 10 vezes mais, uma torre de visão de Palmares, entendeu? E esse livro é louco, porque esse mouro que já tem registro na história de Palmares, entendeu?, que tinha um mouro que tinha ajudado a Zumbi na fortificação de Palmares, porque qual que era a tática de Zumbi se preparar pra guerra? Não tinha como ele comprar arma, negro não comprava arma, então ele tinha que se preparar ao máximo, não tinha como chegar lá nos portugueses pra recarregar os canhão, então tudo pra ele era informação, colocar mais mulher nos quilombos, que tinham poucas, e arma, entendeu? E com a base de subsistência da alimentação que Palmares tinha, eles conseguiam viver bem, entendeu? E aí depois invadindo os casarão era pra saquear arma e catar a primeira mulher, entendeu? Então tinha cara que trazia a senhora feudal, entendeu? Trazia a filha... E era isso que ia aguçando a guerra contra Palmares porque os... era muitos senhores ajudando o rei de Portugal a fazer a guerra contra Palmares, porque os caras cada um tinha o seu motivo, um era pra buscar a mulher, e muitos caras iam lá pra negociar e
201 trazer a mulher de volta e depois de um tempo a mulher não queria mais ir pro casarão, queria ficar em Palmares. E aí também começou os lances da miscigenação dentro de Palmares, né?, a maioria, lógico, 80% negros, uns 10% de indígena, e essa minoria de brancos que foram pra lá. E começou primeiro com as putas, tem até na história de Palmares a Ana de Ferro, que é feita pela, pela aquela mulher lá,... a Vera Fisher, tal, no filme de Cacá Diegues tal, então começou com isso, com as mulheres indo pra lá e depois... Tem até uma parte no filme que eram os brancos que é que nem eu assim, que não aceita a lei, não pagava imposto, e nem pagava dízimo pra igreja católica, então essas pessoas, que não seguiam as regras da sociedade eram os marginais de hoje, né?, e não importa se é branco, se é índio ou é preto, tinha que servir ao rei e se dobrar ao catolicismo, porque quem não pagava os dízimos, e o rei de Portugal, os caras tirava tudo, não ficava no centro. Então assim começou a periferia, de muitos caras... é lógico que o que eles queriam eram os quilombos, que era a única forma de se organizar, do lado das tribos indígenas, aqui é tudo terra indígena. Eu lembro que os caras tomavam banho nesse rio (apontando pra uma direção próxima à casa dele). Aqui é terra indígena. E... E os quilombolas conviviam com os indígenas. Depois, Palmares, quando começou a guerra, vieram lá do Cariri, do, do, acho que Rio Grande do Norte, os canindés ajudar Palmares na renovação contra os reis de Portugal, os Canindés que ajudou Palmares, por exemplo, que eu falo na letra. Então na mata tinha essa segregação de guerreiro e os brancos que não pagavam esses impostos eram excluídos e à margem da sociedade então era comum cê ar no meio de um... uma mata e ver uma casinha lá sozinha, um cara branco com a sua indígena, um monte de filho, entendeu?, e esses caras, todo vez que os policiais, capitão do mato ou um rei de Portugal descobria, esse cara que não pagava os impostos, ia lá, queimava a casa, zoava ele, e aí ele tinha que ir mais longe, entendeu? Aí um dia ele cansou de correr, cansou de correr, ele foi “sabe o que eu vou fazer? Vou pedir ajuda a Zumbi”, tá ligado? “Chega, não vou ficar fugindo a vida inteira”. É o caso de um branco, que vivia... nordestino, sei lá. Vivia fugindo porque não pagava as leis, não pagava imposto. Porque Brasil é ilegal. 50% da frota que anda na rua é ilegal. O brasileiro é ilegal. O Brasil é contraditório. Tem uma música em que eu falo que o Brasil é contraditório. O Brasil foi feito na ilegalidade. Os piores europeus eles mandaram pra cá, os piores portugueses, os bandidos, as puta, a... tudo que tinha em Portugal eles mandaram pra cá, no “Povo Brasileiro”, do Darcy Ribeiro, ele fala que a partir de 1200 que eles fizeram a primeira faculdade da língua portuguesa, eles adotaram o catolicismo, que adotaram a igreja católica, a... O capitalismo e as técnica..., como em Portugal era forte a navegação, entendeu?, aí eles adotaram isso como estratégia do País de 1200 pra cá, eles pegaram ditos 40% puros de portuguêis, tá ligado?, e juntaram aos outros 60% do País que eram ditos, que tinha muita é..., presença africana, principalmente mulçumana, mais pra esse lado do povo mouro mesmo, tinha muita presença... por exemplo, Portugal herdou a aritmética, a matemática, é... muita coisa o... a influência moura, que tinha de fora, do norte da África, muito mulçumano que tinha. Então, os caras que vieram de outros países os cara limpou, mandou embora até os descendentes, limpou, e ficou esses dito 40% puro de português, que adotaram o catolicismo e a igreja católica, as técnicas de navegação e vieram navegando.
202 L: isso lá em Portugal e ... I: lá em Portugal. E é isso. E é muito loco, porque, entende?, é... é isso, é muito loco, deixou a gente confuso, né? Deixou a gente confuso... e Palmares é..., foi um quilombo de resistência por tudo isso, Zumbi cuidou muito deles. E ele realmente armou essa guerra, o mouro de Palmares era foda, esse mouro teve uma contribuição muito forte. Por exemplo, esse mouro ele que curou a epidemia que era um mal-de-bicho, que era o preconceito, que umas frases que tem até os dias de hoje, na época era varíola, entendeu? Porque até 1900 e pouco a capitania de Pernambuco era sujo, entendeu?, não tinha saneamento básico. Então os caras cagava no meio, junto dos animais, não tinha saneamento básico. Então quando...., no livro, o capitão mouro fala, né?, chegou eéééé..., a cidade tava com essa epidemia de varíola, né? Só pra você ter uma idéia que nessa época que surgiu o merdeiro, cê já ouviu falar do merdeiro? L: eu consigo pensar o que é, mas não tenho certeza. I: então, o que que cê pensa que é? L: é o que recolhe merda. I: é, o merdeiro é, tinha um padre que, tinha um padre que tava com varíola, né?, varíola dá diarréia, desinteria, no corpo, se colocar um cara meio-dia embaixo do sol ele morre na hora e depois de dez minutos ele tá morto com varíola, então eles davam o nome de “mal-do-bicho”, eles falavam que essa doença veio do negro, entendeu?, só que quando esse mouro chegou na cidade, a cidade suja, não tinha saneamento básico, entendeu?, ele que curou a varíola, e assim, falando do merdeiro, sempre, já tinha um escravo com a bacia esperando, a hora que ele dava um peido que dá diarréia, disenteria, né?, aí ele dava um peido, havia um escravo só pra recolher quando ele cagar, aí surgiu o merdeiro. Então esse mouro, o que ele fez foi construir um hospital no lugar onde era menos sujo então ele colocou carne em vários pontos altos da cidade, onde a carne apodreceu por último ele fez o hospital. E assim ele veio limpando, falou com o governador de Pernambuco na época e vieram limpando a cidade. É isso que é louco, depois quando ele chegou em Palmares e conheceu o Zumbi, ele ficou louco porque eles deram o nome de “mal-dobicho”, né?, mas era varíola, e em Palmares não tinha um caso de varíola, era só em Pernambuco, porque era uma cidade limpíssima. Isso que é louco em Palmares, e é isso que foi a.... a..... a grande influência, porque o cara chegou, diferente dos portuguêis, né? Tinha um judeu que tava viajando lá, acho que pra América, algum lugar, e viu um navio pirata e afundou o navio deles e ele ficou navegando, acho que uns dois, três dias em alto mar, aí ou, esse mouro, aí ou um judeu, aí ou um judeu e trouxe ele pro Brasil, entendeu? Aí quando ele chegou já caiu em Pernambuco ali no meio daquela treta. Aí depois ele soube que tinha um quilombo organizado, aí ele conheceu Zumbi e foi parar lá, entendeu? E foi esse cara que deu a nova roupagem de Palmares, foi quando os caras decidiram juntar todos os quilombos que eram espalhados, entendeu?, tudo na Serra da Barriga e fazer um quilombo só, com uma base de defesa, entendeu? E ele que fez os fossos que os caras caíam na frente assim, e... É muito louco assim, por exemplo, tem uma história que é muito louca assim, que é um.... um quilombola mais velho, que foi um... que conhecia técnicas de guerrilha, então os caras precisavam descobrir o caminho da trilha pra chegar em Palmares. Aí os cara mandou esses dez caras na
203 frente pra retardar a tropa, entendeu? Eu sei que os caras retardou os caras uns 15 dias na mata, entendeu? Só com, com,... técnicas de guerrilha assim, por exemplo... esse ju... como é... tô querendo lembrar o nome dele. E, e... ele falou assim “ó, tá vendo que eles tão vindo, eles não.... a... a tropa de Portugal, eles tinham que vim todo mundo emparelhado um atrás do outro, né?, então qual que era a técnica dos caras, “vamo matar sempre o linha de frente, entendeu? Então, pô, o linha de frente, numa guarda, é o cara de respeito, então os caras na árvore, no meio da mata, pegavam uma flecha e matava o primeiro, pááá. Entendeu? Aí, tipo, matou o primeiro linha de frente. Aí o, a loucura, conseguiram mais um linha de frente, aí o segundo já tava ligeiro. Aí isso aí foi retardando o pessoal, até procurar na mata aquela trilha, ia retardando. Eu sei que depois lá pro décimo, ninguém mais queria ser linha de frente, entendeu? Isso na mata, ó, dias... pra retardar pra chegar lá. Aí foi quando, os caras via qualquer barulho, já todo mundo ia pro chão assim, já tava em choque, imagina, né?, aí depois, o chefe lá da..., o cara que tava comandando o exército falou assim, “pô, chega disso, vai se fudê, vai morrendo todo mundo”, aí ele falou “vamo abrir e avançar aberto”, aí que morreu mais da metade, porque era tudo fosso, tudo buraco aberto no meio das mata, aí quando os caras avançaram e que morreu mais da metade, aí eles ficaram fraco, aí Palmares veio e caiu de cima aí... Então era umas coisas assim muito foda que eu acho que perdeu, sabe? Essas riquezas que eu acho que tinha que chegar e não chega, aí a minha viagem, eu pego esses resquícios e conto a história, monto as histórias, entendeu?, nas letras, no texto no “O tesouro”, né?, aí eu fico fazendo esse imaginário popular com a realidade que a gente vive, né? Pra não ficar só falando de tiro e arma, entendeu? L: entendi. I: e é isso, cê olha pro lado, e só fala disso. Mas entender Palmares é muito complicado, que é... Mas eu acho que é preciso, meu... porque não foi simplesmente um quilombo, né?, que tava lá, os cara realmente causaro... L: mas você falou que então você também esse contato com as histórias dos orixás pra entender Palmares, mas e pessoalmente, pra você? I: então, aí foi transformando a minha vida, né? E... que, que é um lance que foi transformando a minha vida. E que, por exemplo, minha religião é o Corinthians e Deus é Fiel, entendeu? Mas assim, eu não tenho religião e eu sou a minha religião, eu sou o meu templo. Eu sou religioso, entende? Então eu gosto de todas as religiões, eu gosto. Agora, eu não tenho essa coisa de ser doutrinado e não aceito alguém ficar me falando as coisas, entendeu?, falando que eu tenho que fazer isso e aquilo, aí quando entra o lance do dízimo e da grana, essa coisa que as igrejas pegam, eu já não gosto, e aí depois que eu comecei a... eu fui batizado, fiz catolicism... é... catecismo, essas parada, igreja católica, que vem de família, o Brasil é católico e tal, mas depois que... eu comecei a estudar... a escravidão no Brasil, não tem como gostar da igreja católica (ri). Aí vem esse papa alemão, não porque ele seja alemão, né?, não tem nada a ver porque... porque ele é alemão, mas vem com essa hierarquia que, que, que não dá, meu. E aí, pô, não gosto da igreja católica. Então eu não tenho saco. Na missa de sétimo dia do meu tio, aí eu e meu pai lá na igreja católica, o padre, tinha umas crianças brincando, o padre parou a missa, falou pras mães
204 pegar as crianças, que não podia ficar correndo na igreja. Se a criança não pode correr na casa do pai, brincar, vai brincar aonde? Eu olhei pro meu pai e fomo embora. Eu não voltei mais. E... e é isso assim, é... minha bíblia, minha bíblia é os... os álbuns do Corinthians, tá ligado?, e aí eu acendo a minha vela pra Preto Véio e Exu ali, e... agradeço aos Orixás, porque são energias da terra, é tudo energia, entendeu? São energias da natureza e.... E essa coisa de materializar mesmo né?, e de te elevar prum plano espiritual, de saber que aqui é uma das agens e é isso que eu gosto do candomblé , do lance dos orixás, que aqui é só uma agem, que existe sim uma outra vida e que também a gente tem que aprender a lidar com as forças da natureza e os orixás são simplesmente isso. É, lá, Zambi com Olorum deu um poder pra cada um, tá ligado?, e cada um tem um poder que esses irmãos juntos ninguém segura, isso é os orixás, entendeu? São vários irmãos, cada um o pai deu um poder e eles junto é uma família que... invencível. E esse lance também que a igreja católica e as igrejas convencionais, não todas, as igrejas modernas, separam o bem e o mal, o céu e a terra, tá ligado?, e... os orixás é tudo isso e mais um pouco, entendeu?, os caras tão separando e o bem e o mal, né?, são duas forças, são duas energias que tem que saber lidar. No, no candomblé ninguém separa o bem e o mal, são duas energias que tem que saber lidar e que nem eu vi lá no Museu Afro Brasil que... como que era a frase do, de Exu... É... É... Eu não sou santo, eu não sou deus, eu também não sou o mal, não sou o diabo, eu sou Exu, tá ligado? Cê já viu essa parada lá? L: do Mario Cravo neto... I: é, muito foda. Eu queria até saber, lembrar a frase, “eu sou exu, abro os caminhos. Tiver na minha frente, bem e o mal, eu...”, entendeu? E... então essa... Os orixás me encanta. Com Xangô que eu não sei explicar, entende? Porque eu gosto muito assim, eu não sei explicar o lance com Xangô. Eu acho que ele rege sobre mim sim. E... Assim, quando eu fui jogar os búzios com o pai de um amigo meu há muito tempo, ele falava que eu sou Iansã e Oxóssi, que é a mata. E Iansã, e tal. Mas eu tenho uma ligação muito forte com Xangô. Eu gosto de todos os orixás, mas pra mim, comecei a entender a partir de gostar memo, né?. Eu não entendo muito bem, tô começando. E como é resquícios, aos poucos vai, né?, eu vou me reeducando porque isso aí eu já sei tudo, só preciso, né?, vim trazendo, as lembranças tal. Então assim, pô, eu já conheço uns três orixás assim que eu conheço bem assim, mas ainda pra linhage falta muito. Mas de todo o entendimento da coisa eu ainda tô no processo, entendeu? E assim, e aí chegam em mim e falam que eu tenho que ser do candomblé pra mim poder, ou da umbanda, pra mim poder cultivar os orixás, sabe? Eu, eu não tenho religião, eu sou rasta como estilo de vida, entendeu?, pra amenizar as carne, comer mais fruta, e... e... o cabelo, como forma de resistência, eu sou um homem livre, que é essa coisa do rastafári, né?, cê é um homem livre, nada te atinge, cê anda no ônibus, dane-se o povo olhar pro seu cabelo, se você é tatuado, se eu sou preto, se eu sou branco, tô ali, eu tô imune a qualquer coisa nada me atinge, andar na babilônia de São Paulo sem deixar as coisas atingirem você, entendeu?, não que você está sendo..., cê aceita as coisa errada da Babilônia, não, você combate também, entendeu?, e isso é uma forma de combater a Babilônia, é de não deixar que a Babilônia te atinge, entendeu?
205 L: eu queria que você falasse melhor sobre essa frase, é... Você disse assim, sobre os orixás, que você já sabe?, você só precisa se lembrar... Como é isso? I: é isso assim, já tá no DNA, né? Tá no inconsciente, já tá no nosso perispírito, já tá no meu... L: perispírito? I: é, tá no meu ectoplasma. Perispírito é a transição entre a alma e o espírito, entendeu? Já tá no meu ectoplasma, já tá entendeu?, agora só precisa trazer as lembranças. Isso aí já veio um preto-velho e falou, já tá no meu sangue, eu nasci pra ser isso mesmo, eu só venho trazendo através do conhecimento, da tradição oral, você vem trazendo mas isso aí já tá em mim8. A não ser que eu não me preocupe com isso e não vá atrás, entendeu?, me preocupe mais com o MP3. Aí eu não vou trazer isso. Agora se você naturalmente deixar o seu corpo fluir, as coisas vêm, entendeu? E pra mim foi assim, entendeu? É justamente, eu não gosto de ser doutrinado numa religião, num papel que tá escrito e você tem que fazer aquilo se não cê não serve, que nem os maçon, sabe? Você é do mundo dele, tá lá na moeda dele ou se você não tá na moeda dele, cê não ta. Ou é matemática ou... não é nada, entendeu? Então e... e o rasta é isso, não é religião, rastafarismo. É estilo de vida, é uma forma de ser, entendeu? E... que nem, os caras lêem o Antigo Testamente, lêem a Bíblia Sagrada, lêem o.... o... o... Islão, né?, é, então tem entendimento geral dessa linhagem, né?, de Içá, de Noé a Issá, entendeu? L: Issá? I: é, Issá é Jesus que eu acho que é em árabe ou é em... em hebraico, não sei. Eu tenho uma linhagem ali escrito, até... Maomé, entendeu? Que aí que é esse lance, Içá a Maomé, né?, que aí o Islão parou ali, no profeta Messias no, no Mohamed, né?, no Maomé. E o... a igreja católica, o resto do mundo, parou em Içá, né?, em Jesus. E o rastafári não. Mil anos da linhagem salomânica de Davi vieram... era pra ter 300 imperadores, entendeu? E o último foi Hali Salissié Rás Tafari Makonen, entendeu? E essa linhagem é que vem esse lance do tronco familiar, entendeu? Que começou lá filho de Davi, Salomão, Rei de Jerusalém, teve um caso com a etíope rainha de Sabá, aí nasceu Menelek, Menelek I, e ... entendeu? L: entendi. Então eu vou te fazer a última pergunta. Teve um momento que você disse assim, aliás, você falou mais de uma vez sobre os resquícios. A história tem resquícios dela. Você se lembra como foi, em que momento da sua vida você se deu conta disso? De que a história que era contada, nos livros ou na escola, essa história não é uma história única? Teve um momento em que você falou “quero saber o outro lado da história”? I: é isso que é o rap, entendeu?, que eu falo pros moleque. O rap não é uma musiquinha prucê... não é uma musiquinha, cara. rap é revolução, é transformação, entendeu? E... Não tem como, pelo menos, você, na minha concepção, né?, é não tem como o cara querer fazer rap se ele não foi 8
Em situação relatada após essa entrevista, mas que ele próprio associou a esse momento da pesquisa, ele chegou à casa de um rapper em Salvador, Bahia, e sentiu que já havia estado ali antes. Ao comentar isso com o rapper que estava visitando, o comentário dele, que é filho-de-santo, teria sido: “é que somos filhos de orixás que chegam antes. Nossos espíritos chegam antes”.
206 oprimido. Só os... Só quem sofreu alguma opressão que vai pegar essa indignação e transformá-la. Só quem... eu costumo falar assim “mano, cê não sofreu, não tem como você cantar rap. Vai cantar reggae então, tá ligado? Mesmo que o reggae seja uma música de resistência, entendeu? Só que o reggae teve uma característica que dentro dessa música de resistência eles plantaram o amor, e hoje o reggae é paz, entendeu? O rap não, ficou tachado como uma música marginalizada, e pesada que bate contra as regras universais em termos de sociedade no mundo, então o rap é a quebra da sociedade, entendeu? Então quem faz rap é esses excluídos, cara que sofreu, que já foi preso, pobres, então assim, é... quando eu conheci o rap, foi nesse processo de transformação, e de injustiças que a minha família sofreu e... se não eu teria cantado o forró do meu pai, entendeu? Mesmo que as letras de forró tem muitas letras de conteúdo, entendeu? Mas o rap foi o que abriu o portal, entendeu? Foi quando eu entendi toda a manipulação governamental, a história que não era contada, os heróis que não eram nossos, entendeu? Então o rap vem fazendo a... tem até uma música, um filme, que eu falo pros moleque “você tem que assistir”, que eu sei que no Brasil eles chama “Esquadrão da mente”, não sei se ele é do Spike Lee, mas é, tem um nome, é... “Não sei o quê” mas “Esquadrão da mente”. Que é um... Esse filme mudou a minha vida, que eles são uns “Black Panthers”, que, que, que pega os caras que são negros e brancos que trabalham pra indústria, né?, para essa grande “business”, no caso do filme, essas indústrias de propagandas que eram ne...., eles contrataram brancos, contrataram negros pra fazer propaganda de produtos pra negros, entendeu? Então ele... aí tipo os caras faziam perfume pra negros, que é de baixa qualidade e não sei o que, e os caras tinham que criar a propaganda pra alcançar essa.... essa... esse povo negro. Então na visão do branco, o próprio branco fazendo um fast-food bem tosco pro negro e pegando os negros pra saber como eles pensam pra vender esses produtos feitos pra negro. Esse filme, esse pessoal que é o “Esquadrão da Mente”, né?, que é tipo “Black Panther”, os caras ficam num QG no fundo do porão só estudando história da África, história do povo afro-brasileiro, e o lance da escravidão e pegava esses brancos vendidos que trabalhava na, lá na na... na propaganda lá pra fazer..., na agência de propaganda e davam uma lavagem cerebral neles, entendeu? Pra ver se eles pegavam do povo dele e não fazia isso, então cada propaganda que saía, os cara seqüestrava, deixava o cara acordado três dias lendo Malcom X, “sabe quem foi Mandela?”, aí quando o cara não consegue mais dá um murro na cara e joga água, “acorda, agora eu vou falar pra você quem...”, aí eles revezavam, entendeu? E o cara ficava lá dois, três dias aí jogava o cara na rua, aí depois em cima do cara pra ver como que ele tava, se ele tava mudando, se ele ia ajudar o povo dele, entendeu? E... a trilha do filme é foda também, não sei se é do Spike Lee esse filme9. Doente tem em todo lugar, independente da etnia e da raça, né? E infelizmente nascem pessoas livres... Tem três tipos de pessoas no mundo: o livre, o inconsciente e o doente, entendeu? O livre é o homem livre que é aquele que eu falei, o rasta que... que nada atinge ele. E o papel desse rasta é não se acomodar, pra combater a doença. E... o... inconsciente é aquele cara que é doente e não sabe?, porque ele segue simplesmente a hierarquia, as regras da 9
O filme é produzido por Spike Lee, que também atua na película. Em pesquisa na internet foi encontrado que o diretor é D Clark Johnson e o título do filme é “Drop Squad – O Esquadrão da Reforma” (fonte: http://www.vervideo.com.br/filme.cfm?cod=5558, o em 29 de junho de 2007).
207 sociedade e infelizmente o racismo no Brasil é institucional, se você seguir direitinho as regras você se torna um racista em potencial, entendeu? E... E eu posso te dar um exemplo simples disso, que cê pode se aprofundar, que é isso, né?, o que é do homem, o bicho não come. Fizeram a feijoada. (pausa) Entendeu? ´Tão, tem várias frases de efeito que cê sabe que tá no popular brasileiro e... E esse inconsciente às vezes fala “chuta que é macumba”, tá ligado?, que é uma fra..., e ele não sabe o que ele tá falando, entendeu?, ele tá falando merda, ele tá equivocado, entendeu? Então várias... Então esse é o inconsciente, ele é racista e não sabe?, entendeu? E tem o doente. O doente é esse memo que cê tem que tratar ele, se não tratar é... ele vai ficar doente. E... e o papel do homem livre é combater a doença, entendeu? E... tem a música do GOG com o Natiruts que é “crianças não nascem más, crianças não nascem racistas, crianças não nascem más, aprendem o que a gente ensina”. Então todo mundo nasce livre, aí uns ficam inconsciente, outros ficam... E outros que se cuidaram e assumiram a vida como uma luta e não deixou ficar doente, que é o meu caso. Pra mim tudo é uma luta. E não existe vitória sem luta, paz sem distúrbio, não há descanso sem tensão, não há vitórias sem luta, não há viver sem ter razão. Entendeu? Então eu acho que é isso assim. Agora... Hoje, por exemplo, eu falo que no grupo não é “business”, eu odeio isso, entendeu? Foda-se, o dinheiro pra mim ele tem que ser a última coisa, entendeu? Morrer de fome eu não vou mais, se fosse pra morrer, eu já tinha morrido, entendeu? E... isso me incomoda demais que hoje tudo é a grana que vem primeiro, e eu tô preocupado com isso por último, depois que eu fazer o trabalho e chegar em casa eu quero ver se tem alguma grana, entendeu? Pra mim é a obra, gira em torno da obra, e... muito dos problemas do grupo por exemplo não ser um grupo de ponta e não ter chegado onde era pra ter chegado é por causa disso, entendeu? Que... é... às vezes a gente tem que se preocupar mais entre nós, acreditar mais na obra, acreditar naquilo que a gente é, até mesmo acreditar mais nas coisas que a gente fala, entendeu? As coisas seriam muito diferente. Mas a merda dessa porra do dinheiro é que fode tudo entendeu? Eu não vou deixar mudar a minha música por causa disso. Combater a babilônia é isso é a babil..., as coisas materialistas atingir o lance que é totalmente espiritual, entendeu? E a única coisa material é o CD que cê vai ouvir em casa (ri). Vai pôr pra ouvir. É... Cê tem que andar, meu, tá ligado? “na sombra da noite, acontecem coisas, coisas que acontecem. Na sombra da noite, acontecem coisas, só quem madruga é quem pode ver, quem perambula é quem pode ver” (cantando). Sabe? Tem muito cara que fica trancado, hoje cê desafia o mundo sem sair de casa, por causa de internet, esses baguio, né?, mas tem hora que cê precisa sair. Ontem eu precisava ir até um lugar em outro bairro, eu fui andando, eu precisava andar! Entendeu? Eu precisava andar. Entendeu? Então é... é... eu vejo dessa forma assim (pausa). O que que eu tava falando? Nem lembro mais. Eu falei tanta coisa... Mas é bem isso assim, é você se adaptar ao mundo assim. Aqui no Brasil é difícil... Na França, cê vê um cara africano, ele fala “eu vim lá do Quênia”, “eu vim lá do Senegal”. Agora e aqui? O cara não sabe nem da terra indígena que o cara é, mano! Porque os cara era daqui, entendeu? Eu sei que minha família é descendente de italiano porque os italianos, os europeus vieram com uma condição melhor. E além..., e dentro desse processo de embranqueamento, que veio esses padrões que a gente tem, entendeu? Na televisão, por exemplo. Né? Que é, é tudo padrão europeu, né? E norte-americanizado. E... E é isso. E eu acho que o rap que
208 abre sua mente pra essas parada, você... E as influências com o sagrado, né?, com o encantado. E é isso. E eu falo assim, os caras vão demorar pra entender a minha mente, entendeu? Talvez eu morra e não vão entender as parada que eu tô fazendo, tá ligado? Às vezes o que eu queria era que tivesse mais confiança, sabe? Que as pessoas acreditassem mais naquilo que a gente tá fazendo, entende? E... Hoje eu chego no auge da minha vida que... Agora os meus projetos, os baguio, tá cada vez mais difícil e... E o bagulho girou tudo em grana, grana, a gente tá vivo até hoje porque a gente batalhou mesmo, o grupo já era pra ter acabado, o integrante que saiu, quase que a gente não faz o disco novo, quase que num... Se não fosse o grupo da Europa, pra dar essa revitalizada (com o CD gravado enquanto o grupo esteve lá, em 2005), com o lance da França, só eu sei o que eu ei na Europa, só eu sei. Perder trem, sabe?, segurar todas as pontas, tudo, tudo, tudo. Só eu... Fiquei doente, cheguei de Londres doente, com dor no peito, um caroço no peito, se eu ficasse lá mais uns quinze dias, eu morria. Só eu sei o que eu ei, assim. E... hoje em dia eu quero ficar na paz, com a família, sem arrumar problema, porque... a rua tava me deixando monstro demais, meu, e... fazer rap não é fácil, mano, acontece mil fitas, num show, os irmãos que chega, os almaescura, os energia pura... É... tem que ter um equilíbrio fudido, sabe? E... hoje eu não consigo mais sair pro mundo se a gente não tiver formado assim, todo mundo irmão, sabendo que todo mundo tá ali e vai morrer por você e que a causa que a gente tá fazendo é um baguio muito cabuloso. Fora isso fica difícil, entendeu?, porque cada lugar que cê vai é um tipo de situação. Num show de rap, um cara duma facção falou assim “os moleque tirou os ladrão, nóis vai matar eles, e como cê é linha de frente no baguio, nóis veio avisar você. E nóis pilota a quebrada e os moleque vai morrer”. Eu falei “cê tá vendo o que cê tá falando, irmão? Quem sou eu pra falar alguma coisa? Se você chegou até mim, a única coisa que eu posso te falar é que... as mesmas palavras que você me falou, que são moleques e se são vocês que pilota a quebrada, é moleque, chega no moleque e fala, meu. Eu já sei como saber chegar, porque tô fazendo isso há dez anos. “Os cara é moleque, cê vai ver a idade dele lá, os caras não tem nem 17 anos, véio. Moleque véio. Às vezes ele fez uma letra e cê entendeu errado, entendeu? Se você pilota cê não vai matar o cara, chega e conversa, cara. Entendeu?” Agora quem é eu pra falar pros cara isso, entendeu? Cinco cara, e eu descendo do palco, nem limpei o rosto, tirando a camiseta, assim, baguio loco. Então acontece de tudo, entende?, então cê tem que ter um puta de um equilíbrio, tem que nascer, meu, pra parada mesmo, e... E hoje tem ainda uns parceiro que fecha com nóis, uns meninos que realmente tão por amor, mas eu tô o tempo inteiro policiando nesse sentido assim de “não cresce os olho no baguio”, entendeu?, “aqui é sincero, velho, o que eu tenho que te falar, eu vou te falar, não guarda rancor”. No projeto que a gente toca na quebrada, todo mundo apresenta. Os cara acham que eu tô lá e quero... Então tem que equilibrar tudo, véio. Sabe? Ó, cê não pode dar tudo, mas tem que dar um pouquinho, sabe? De trampo, a base: “ó, eu tenho dez base, eu vou te dar uma só. Cê canta nessa base aí”. Porque, senão, aí fica pior, entendeu? E... e é isso assim, eu acredito ainda assim. Eu tô fazendo essas coletânea, aí, porque Jah falou pra mim fazer, porque tudo, eu tenho uma obra, e eu acho que tudo gira em torno da obra, e aí depois que essa obra começar a tomar forma, que eu acho que vai abrir as porteira pra gente ser reconhecido a nível mundial, tá ligado?, e ser reconhecido memo, pra poder viver do barato,
209 entendeu?, e ter mais tranqüilidade pra criar outros monstros que nem nóis, entendeu? Que, tipo... Racionais... Tem vinte anos de Racionais, depois de 10 anos veio o nosso grupo, agora vai vim outro só daqui mais vinte. Tá ligado? E isso é real, porque cada vez que eu dou mais volta, a gente volta pro início, entendeu? E eu nunca vi agora essa peneira maior no rap que nem teve. Lá nos Estados Unidos tem uma música do NAS, que ele fala “Rap is dead”, né?, “o rap tá morto”. E é verdade, um amigo meu até fala, “morreu o ano ado”. E, e, e, e... Muitos caras pararam, muuuiiitos caras pararam. Vô falar pra você, muitos... E nóis taí porque é Deus. Dentro dessa, do rap em São Paulo ter ado por essa dificuldade e muitos grupos ter parado, muitos grupos não sabiam que tinham que registrar o nome, tinha que registrar o logo, editar as músicas, e hoje, tem cara com selo aí sobrevivendo em cima desde grupo dos primeiro, que gravou em 84, os cara relança e lança, tem coletânea aí de, de rádio, que vende do um ao vigésimo, e continua vendendo, e vendendo e o grupo parou, não editou os baguio, e a rádio editou e continua vendendo. Então isso aí é triste, por quê?, nos Estados Unidos o cara tira 5% de todo o dinheiro que foi do hip-hop, 5% vai pro hip-hop, entendeu?, vai pras rádios, é, é, aqui, não tem nada que reverta pra gente, entendeu? E a única coisa que eu posso falar pros moleque é isso, “cê quer ver o contrato?”, eu faço o meu contrato. Comecei a ter o meu selo, é um selo editora, eu faço os meus contratos e mando pro Ecad, sabe?, tem que fazer carteirinha de músico, tem que fazer isso, mas isso ninguém ensinou, foi a experiência, não foi ninguém que chegou e falou “ó”, entendeu? Então eu o, eu o, tem cara que não a, por quê?, porque o moleque tem potencial e pode quebrar eu, então em tudo tem monopólio, no rap não é diferente, então se aquele moleque crescer, ele vai tomar a minha ponta, entendeu? E aí os caras não..., “se vira”, e se quebra, entendeu? Comigo que eu digo “cê quer saber? É isso. Vai lá e faz, véio”. Tá ligado? O que eu puder te ajudar, só não tenho dinheiro. E... Porque... Nada vai ficar... Se a gente tivesse cada um ajudando o outro, as coisas seriam bem diferente, tava que nem o funk, tá ligado?, que é uma batida que veio de fora, mas canta na língua deles. O único que canta funk em inglês é a MIA. O resto é tudo funk na nossa língua. Agora cê vai num baile de rap, num baile black, só toca gringo, véio. O cara entra perdido e sai sem entender nada. O que mais tem em São Paulo é matinê em Nova York. Entendeu? O cara tá.... (ri), sai na Henrique Schaumman, entra numa matinê, tá em Nova York. Tá ligado? E eu não vou ficar reproduzindo a porra duma cultura norte-americana. Por quê? O rap foi o que revolucionou o mundo. Ó o que eles viraram. Se o rap não fez nada por nóis, que virou aquela cultura blin blin, entendeu?, quem que vai fazer mais? Como que aqui é a terra do canto falado, Jackson do Pandeiro já era o rei do ritmo, na década de 50, entendeu?, então eu não vou falar..., ficar num mundinho só.Vários universos, entendeu? E... e é isso que os caras [do hiphop daqui] têm que entender. O cara vai ficar limitado, vai ficar ali, ó. Conheço grupo que tem 12 ano de carreira e é doze anos que ele não canta na batida, porque ele não parou pra estudar o “The One” do James Brown, entendeu? Então, fica ali, tá ligado. Fica aí. Entendeu? Agora quem é nóis... pô, eu gosto de todos os grupos, porque cada um tem sua história, tá ligado? Quem sou eu pra falar, eu tenho a minha história, entendeu?, não tenho que falar mal de grupo, eu já falei, ontem até um moleque comentou “cê falou um bagulho”, eu falei “mano, a gente muda, eu errei, me perdoa, já pedi perdão pros cara, não faço mais isso, cara. E essa música que cê cantou aí eu gosto hoje, eu vi o
210 show, e é bem loco”. Então porque é foda, muito loco meu. E hoje o que eu tenho mais é... lance de palestra, debate, se quiser, eu vou recitar uma poesia e faço um workshop, tá ligado. Agora, ficar na teoria, eu não vou não. E aqui eu tô falando pra você porque acredito em você, entendeu? Que até jornalista eu já desencantei. Tá ligado? Perueiro, polícia e jornalista, esses perueiro de lotação assassino, que te traz lá do Largo da Batata até aqui à noite, confia nessa raça não. Polícia, mesma coisa, e jornalista, entendeu? Que é um povo estranho, muda de uma hora pra outra, entendeu? Cê sabe do que eu tô falando, né? Então é..., eu tomo cuidado com esses barato aí, e outra, falo com muito conteúdo memo, pra deixar a cabeça dele confusa, tá entendendo, pra ele não vim sacanear comigo, entendeu? Que nem, uma matéria de um jornalista que viu uns embolador no busão, aí tentando achar os embolador, ele acha na internet, mas não acha os caras, entendeu?, os cara toca com todo mundo na rua, mas pra achar o número deles, os caras tão na rua. Aí ele me ligou aqui, “eu tô precisando achar fulano e sicrano”. Aí eu falei “véio, vai ter que ir pra rua, eles tão lá na Praça da Sé e no Largo da Batata”. Ele falou “não, eu precisava do telefone deles, cê conhece esses caras”. Eu falei “me liga daqui a trinta minutos que é nóis”. Aí eu achei os telefones dos embolador tudo, ele ficou dois dias andando na cidade com os caras e fez uma matéria. E... E... Eu falei com ele “ó, não coloca meu nome no baguio”, eu falei “não precisa, véio, fala o nome do grupo e já é. Então a próxima vez, eu não..., já não vai tê idéia, entendeu?, porque fui legal com ele e ele não foi legal comigo, ele quis... pensou que ia me agradar mas me deixou puto, tá ligado?, porque eu falei pra ele “véio, tô te falando tudo isso, vai lá, fala com fulano, beltrano, sicrano, tem a UCRAN, tem os moleque que canta rap, falei, tudo. Ele fez uma puta matéria, mas ele... Então é isso assim, eu acho que, por isso que eu gosto dos Racionais, eles seguiram uma linha e vão até o final, entendeu?, e o [Mano] Brown tá certo, tem que falar com esses caras não, meu, tá ligado?, tem que dar boi pra esses cara não, esses cara é tudo estranho, esses cara... O bagulho é muito sinistro assim, que rola, entendeu?, então eu já fiquei muito monstro, seqüelado, e agora eu tô tentando fazer a coisa direito pra ver se a coisa vem direito, entendeu? Minha família nunca... Minha família vive bem, assim, mas nunca teve um “boom”, sabe? A gente só tem aquilo que Deus deu, entendeu. Agora a gente precisa ter um “boom”. Precisa ter um bagulho que possa favorecer muito mais gente. Jah sabe?, que se chegar pra nóis dessa vez, que se chegar pra mim, não vai ficar na individualidade, como alguns, entendeu?, que... Tem cara que consegue comprar até bolinha de beisebol e o taquinho, tá ligado?, mas não consegue vim aqui no projeto fazer um beatbox (ri). Tá ligado? Eu fico viajando nuns baguio que é loco, então assim, eu não quero nada não, não quero nada, não quero que cê me dê carro, me dê carona, não quero nada, quero que cê faça o bagulho como tem que ser feito, né? E... é muito difícil. Muito, muito, muito... Então a rua te deixa monstro. Te deixa mooooooooonstroooooooo. E aí eu quase que virei um monstro... Quase que fiquei anjo caído. L: como é isso, anjo caído? I: anjo caído? Aqueles anjo que não tem volta, né?, tipo Lúcifer. Hã... E no mundão se você não se cuidar, fica anjo caído, entendeu? Vira Lucifer (mudando a sílaba tônica pra última) memo. E... Até tem um som que chama “energia pura versus alma escura”. (Ri). É, é... (tentando se lembrar). “Usina
211 malfeitora do mal, quem será que pensa que controla sua loucura, sagaz energia pura versus a saga da alma escura versus... Pra não ser capturado pelo malfeitor, versus...”. É... (rapeando) “Será que pensa que controla sua loucura, sagaz energia pura versus... o verdadeiro vencedor versus o guerreiro sofredor, versos pra não ser capturado pelo malfeitor. Proteja sua alma, a escuridão, versus libertário contra a escravidão. Energia, Deus é pai, a fé não costuma faiá, e .... O bem nasceu pra brilhar, é a paz no ar, veio pra encantar, luta contra a dor, e livre pra voar, energia pura, chama com o poder do amor”. Aí, o mal é... “O mal cresceu pra matar, só pra aterrorizar, não quer perdoar, convive com o terror, não consegue escapar, arma é pra eliminar, alma escura, escravo do malfeitor”. Entendeu? É a energia pura versus a alma escura, que é a energia pura tenta tirar a alma escura das garras do malfeitor, entendeu? L: entendi. E tá no Crônico? I: não. É, eu tô fazendo dois discos, tá ligado? Mas é isso assim, e... Eu quero aos poucos ir fazendo assim... Que eu não sei fazer 300 coisas ao mesmo tempo, né? Eu estipulo metas pra cada coisa. Minha meta e minha parada é o grupo, entendeu? (pausa). Enquanto os caras tiverem nessa entendeu? Porque no dia em que eles não tiver, eu não vou levar essa parada, entendeu? Sabe... Já falei. Enquanto os caras tiver a fim, é nóis que tá. E enquanto isso, eu não vou ficar em contato só com uma parada, porque eu não sou limitado, e tenho que ir pensando outras coisas. E o Ilícito foi por uma necessidade, não foi porque “eu vou fazer minha produção”. Porque o grupo hoje tem um “know how” dentro da parada que não dá pra chegar tocando de qualquer jeito, entendeu? E com o Ilícito eu toco de qualquer jeito (rindo). Tem uma festa ali que o cachê nosso é tanto, aí os caras oferecem 300 real. “Ô, traz o grupo aí?”. “Ô não dá, pô, cê tá ligado, né, mano? Tem estrutura? Eu vou!”. Entendeu? (ri). É ilegal memo... Agora, não dá pra tocar em todo lugar. Ou seja, o Ilícito é pro... Pra ilegalidade, pro mundo proibido, é pra ilegalidade, o grupo é pro Brasil, é pra todos. É um bagulho que tem respeito com a palavra, com o que eu escrevo, de como falar com a mulher, de como falar com a tiazinha, entendeu?, agora o Ilícito não, é o inverso, é o contraponto, contramão disso tudo, e é o momento que eu vivo, eu tô ilegal total. E toda vez que eu saio eu faço a oração do invisível, entendeu?, que é a... o... a oração que abre o Ilícito. E o Ilícito é isso: ilícito, proibido pela lei, musicologia não autorizada, contraindicado para as crianças. Entendeu? E se esse disco der alguma coisa, eu vencer, ganhar grana, comprar um computador que seja, eu vou fazer o “legal”, autorizado pela lei (ri). “Agora venci, não tenho mais que ficar reclamando dos problemas que eu reclamei”. Agora... Tem uma música que é “um problema, imposto pago não, inativo, dois problemas, nome limpo e o F ativo ....O telefone, o DJ, eu fui contar quantos problemas, já são seis, sete dias por semana, querem pôr algema, pela relatividade... Sem problema, matemática de somar, eliminar subtração, todo problema tem uma solução, de ler mais, de lei mais, DJ mais, sem problema. Se veio ao mundo, é pra criar frutos, dilema, sem problemas financeiros, falha no sistema, de zero a cem inteiro, sem problema, sem esquema, e por dinheiro viro as costas, não tem acordo e com família sem negócios, mil fitas pra resolver, pode crer, esse é o dilema, gráfico sobre controle, muita calma, cem problemas”. Que é... cem problemas pra solucionar, certo. Cem problemas. Eu acordo só com problemas. E é isso. E o Ilícito tá aí. Depois se o disco for legal, o “Lícito”, aí eu vou, é, é “sem
212 problemas, imposto pago (ri)”. Aí eu mudo a mesma letra, mudo a capa e falo “Lícito”. Entendeu? L: entendi. I: mas eu também só falo o que é lícito. Nem tudo pode ser falado. Já falei, “ilícito”... “Ilícito”. “Ilícito, proibido pela lei ou excluído, só diz o que é lícito”, né?, “... vício, tem poder aquisitivo, pra que bater, mesmo sendo ilícito, pra que prender”, né?, porque eu falo da erva. “Com a herança do rei burguês escravista, polícia, está sedento por injustiça, ousaram matar os indígenas, capitalizaram, pela igreja catequizados. Chegam os capitalistas, escravatura, Casa Grande & Senzala, cana-de-açúcar. Djamba sem..., maconha sem amônia, Santa Maria pura, por que não?, quando ainda se extraía pau-brasil, já existia mensalão, e no ado era num navio abarrotado e o presente num camburão sendo esculachado, toma porrada, interrogado, pela lei ser fichado, ilícito é a prova, não assina nem perante advogado, senhor juiz, sociedade é pra domesticar selvagem, me lembra a... uma anedota do Bocage, Babilônia. São Paulo é um puteiro, o Brasil é uma zona, estão estuprando (sic) a Amazônia, e o Ilícito é preso por causa da maconha sem amônia”. Aí eu falo “ilícito, proibido pela lei ou excluído”. Só diz o que é lícito. No mundo do vício sem poder aquisitivo, pra que batê, mesmo sendo ilícito, por que prendê? Entendeu?, porque é isso que eu falo, da planta, a gente poderia pelo menos ter o pé em casa, porque não tinha esse tráfico, a gente não teria que fumar planta com amônia, morta, porque é planta de poder, sai lá dos pés ilegais, a num caminhão prensado, por dez blitz policial, aí os cara quebra, divide os quilos nas favela, pra depois o cara cortar, pôr numa buchinha, pra ir ligeiro com tudo pra ar pro consumidor, a planta chega morta. É uma planta de poder, gente, tem que saber lidar com planta de poder. E nessa música eu falo justamente isso, “tem .....sal milagroso, imagens de santa, e o ilícito é preso por causa da maconha sem amônia, porque se tivesse amônia, eles controlavam, as que têm amônia, eles controlam, agora apareceu uma pura, que era aquela da lata que apareceu no porto de Santos, há muitos anos atrás, que pegaram o DNA dela e fizeram uma nova semente, uma nova planta pura, sem amônia, aí os polícia vêm em cima do ilícito, entendeu?, querendo prendê ele. “Quem é esse ilícito que apareceu com a planta sem amônia?”. Muita doideira. (ri). Mas é isso aí. A oração do invisível é uma oração que eu fiz, porque ilícito é o nome do meu carro, porque ele tá todo ilegal, ele tem os documentos há dois ano atrasado, todo ilegal, e toda vez que eu saio com o carro ilegal eu faço a oração do invisível, né?, “proteja, deus pai...”, “salve deus pai me proteja do perigo, me leve são e salvo e me traga invisível, pra que os bons fluídos possam enfim chegar e que você proteja os caminhos por onde eu ar, abençoe, abençoe deus pai a nossa longa caminhada”, aí eu vou falando. Que é... Que eu faço a oração pra mim não tomar enquadro. E... que eu vá e volte invisível, por isso que é a oração do invisível, que é esse cara que rege por nós, que a gente sabe que ele tá mas ninguém vê. L: entendi. E o seu carro tá sem documento, você tá sem habilitação? I: tem multa, IPVA, tá zuado o freio, tá batido, lanterna quebrada, retrovisor (ri). Ilegal total. Se eu tomar enquadro é pro pátio, meu. Então eu vou ter que ar na... Eu não posso tomar blitze, persiste...
213 Essa grana vai pra cá, tem outra que vai pra cá, e a gente só vai pegar a subsistência. Cada um pegou sua grana e fez sua parada, ninguém plantou. Aí quando eu acordei no meio do caminho que eu tinha que investir. Tô até trampando numa música nova que chama “Perdas e Ganhos”. Que é... investimento. Tudo na vida é investimento. Entendeu? E... É... eu falo é “é preciso perder pra aprender a vencer e contabilizar os ganhos”, entendeu? E ainda o tempo... Que senão não tinha nem isso que cê tá vendo. E pra mim chegar nesse nível, aí eu tive que... Por exemplo, pra mim ter o escritoriozinho, abrir o selo, comprar as master, que tá na mão. Igual por exemplo o primeiro disco que a gente lançou aqui é nosso, tá remasterizado, tamo relançando, remasterizado, com nova capa, tudo. Editado por nós mesmo, entendeu? Reeditei o álbum, também. Então foram conquistas assim, se não tivesse feito esse corre, eu, eu falo eu principalmente, né?, não tinha rolado não, porque os cara não tinha se preocupado com isso. E... E... de ter armado essa viagem pra Europa também, várias vezes. Então assim... Agora eu sei que tudo é investimento, tudo é a grana que, por exemplo, o CD novo, ninguém põe a mão. A grana de CD, só pego o direito autoral porque eu que escrevi a obra, entendeu? E... dinheiro de show. Dinheiro do disco eu nem ponho a mão. Eu não quero. Vai pra... Faz vinil. Entendeu? Faz não sei o quê. Vamos fazê um lambe-lambe? Eu não quero. Só por causa da forma que não foi respeitada a história dele, entendeu? Não foi respeitado, não foi respeitado o processo, entendeu? Do disco. Foi feito... Daquele jeito, entendeu? Isso aí foi difícil assim. Agora taí, graças a Deus, o mais difícil, tá aí, o ano ado e entrou esse ano tentando pôr os baguio na rua, agora tá aí, tamo relançando o bagulho, taí, nessas perdas e ganhos a única coisa que eu posso dizer é que eu acertei, tá ligado?, por isso que eu acertei. A gente já nasce morrendo e errando, né? Mas quem não vai atrás, não acerta. E.... É isso, eu não fico parado não. Fiz mesmo a parada. Tem cara que fica, tem cara que não..., tem caracol que não sai da casca, entendeu?, só vive de ibope, tá ligado? Certo, e se não tem dinheiro, não tem conversa, então eu acho que nem tudo isso, nem é tudo isso na vida, eu acho que na rua tá o sustento, tem que sair da casca, caracol memo, e ir, tem até a música fala, né? Por isso tem que organizar essa situação, se o marisco não sai da casca. Se não sair da casca, o lucro não vem na mão, né? Então tem que sair da casca, caracol, e ir... E hoje, rap no Brasil, não tem como chegar num estado do Nordeste só pra... vestido nos pano, e fazer show, os caras vão falar “esse artista aí...”. Não vai lá falar, não vai lá, fazê um workshop, encontrá a galera, faz uma interação, vai no bairro onde tem que ir, não faz essa interação não pucê ver se os moleque não te quebra no show, eu já vi, cara. Entendeu? Tem cara aí que é pop aí ó, esses “qualé neguinho” aí, ó, que morre em Teresina. Entendeu? [Pausa. Finalizo a entrevista]