Nota das editoras: As memórias publicadas foram editadas para se adequarem com maior clareza ao tema. Buscou-se preservar o estilo pessoal das narrativas, avaliando a cada caso a necessidade de alguma padronização ou ajuste. O conteúdo das memórias aqui publicadas é de inteira responsabilidade de seus autores. Venda proibida
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São Paulo (Cidade). Prefeitura São Paulo minha cidade.com : mais de mil memórias. – São Paulo : Prefeitura da cidade de São Paulo, São Paulo Turismo, 2008. 358p. : il. Inclui CD com declamações e músicas. Vários colaboradores. Vários depoimentos de moradores da cidade de São Paulo. 1. São Paulo (cidade) – Historia 2. São Paulo(cidade) – Turismo. CDD 981.61 Índice para catálogo sistemático: 1.São Paulo : Cidade : História 981.61
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Idealização e projeto Caio Luiz de Carvalho Clara Azevedo Coordenação editorial e preparação de texto Clara Azevedo Patrícia Schleuner Tatiana Beltrão Direção de arte e diagramação Kiki Millan – www.creatrix.art.br Luciana Jabur Capa Luciana Jabur Revisão de texto Sandra Rehder Fotografia
Rolê – www.role.art.br Carlos Pereira Júnior, Cauê Ito, Charlie Oliveira, Eduardo Castello, Fábio José, João Sal, Lucas Pupo, Maíra Acayaba, Marcos Cimardi, Paulo Batalha, Pedro Ianhez, Ronaldo Franco, Renato Missé, Zé Pedro Russo. Concepção CD - São Paulo, esquina do mundo Assis Ângelo CTP, Impressão e Acabamento
Agradecemos José Serra, governador do Estado de São Paulo, que quando prefeito apoiou este projeto. gilberto Kassab, Prefeito da Cidade de São Paulo. Carlos Maranhão, diretor de redação da Veja São Paulo, que nos estimulou a criar o site www.saopaulominhacidade.com.br Ana Paula Sandoval, Antonio Carlos Carneiro, Felipe Andery, Hubert Alquéres, Jony Favaro, Luiz Sales, Maria Cristina Masagão e Sandra Rehder. Rolê e suas incríveis fotos. Assis Ângelo e Andrea Lago pelas preciosas memórias musicais. Toda a equipe da São Paulo Turismo. E, acima de tudo, a todos os leitores e colaboradores do site.
Sumário Apresentação
..................................................................................................................... 9
Primeiras impressões Do bonde ao metrô
......................................................................................................... 11 ........................................................................................................... 23
O trabalho é o “Padre Nosso”
......................................................................................... 39
Vamos à cidade
............................................................................................................... 53
Primeiros tempos
.............................................................................................................. 71
Batendo bola
................................................................................................................. 105
Onde vivemos
............................................................................................................... 123
Anos difíceis
................................................................................................................ 197
Personagens
................................................................................................................. 215
Cines e matinês
............................................................................................................ 237
Teatros, festivais, rádio e tv Sabores e pratos Bares, bailes e folia Cidade dos amores
......................................................................................... 249
.......................................................................................................... 263 .................................................................................................... 279 ....................................................................................................... 295
Causos urbanos e outras estórias CD – São Paulo esquina do mundo
............................................................................... 309 ............................................................................. 349
Apresentação Lembranças da chegada, da primeira casa, das brincadeiras de rua, das peladas, da escola, do vizinho amigo, do fim de tarde no parque, das lutas políticas, dos empregos, dos eios, dos medos, dos primeiros grandes amores, do beijo no cinema, do dançar agarradinho, de lugares que ficam... Falar de São Paulo dá pano pra manga! Dizem que quem conta um conto aumenta um ponto, mas o importante é lembrar, não só aos ventos, que a memória de cada um tem peso de ouro, é jóia rara. Cantar a nossa cidade e rememorá-la é fundamental! Pois é com esses punhados de memórias que podemos lembrar quem somos, de onde viemos, o que desejamos. Esses bocados de lembranças tornam possível reconstituir um pouco do que foi e é essa cidade, do que foram e são seus habitantes. As histórias reunidas neste livro foram originariamente publicadas no site São Paulo Minha Cidade – www.saopaulominhacidade.com.br, que recebe e divulga contos desde 2005, sejam estes memórias mais longas, comentários, poesias ou declarações. O crescimento de leitores e colaboradores do site nesses dois anos comprovou que o paulistano adora narrar suas memórias! Chegamos, neste mês em que a cidade completa 454 anos, a mais de 1.300 histórias recebidas e publicadas e a outros mais de mil comentários. Por isso, a Prefeitura da Cidade e a São Paulo Turismo resolveram aproveitar a oportunidade e ampliar a circulação dessas lembranças, colorindo com mais tintas a história da nossa cidade e as histórias deliciosas que hospedamos em nosso site. Reunir memórias do cotidiano em um livro sem pretensões literárias como este é uma forma divertida de confirmar, relembrar, voltar no tempo ou obter novos dados da cidade de São Paulo. Informações que podem contribuir para uma melhor compreensão do espírito da nossa cidade e de nossa gente. A reunião de memórias pessoais traz elementos, por vezes inesperados, preciosos para a construção de nossa história recente, em toda sua complexidade e riqueza de detalhes. Umas longas, outras curtas, às vezes apenas um comentário, mas todas memórias que contribuem, se não para uma reconstituição exata, para revelar outros ângulos e maravilhas de São Paulo. De certa forma são elas que nos revelam muitos dos tesouros que aqui se escondem. As memórias aqui apresentadas foram selecionadas e organizadas em temas. São contos de moradores até então anônimos ou de outros já conhecidos. Histórias e relatos de habitantes, ex-moradores e visitantes que, de forma pessoal, criativa e não convencional, revivem momentos vividos, reconstituem agens históricas, descrevem marcos arquitetônicos, formas inusitadas de trabalho, tipos variados de transporte, paisagens inesquecíveis, amores perdidos ou descobertos, entre outros, tendo sempre como pano de fundo a cidade de São Paulo. São escritores do cotidiano de todos os tempos e cenários que atenderam ao nosso convite. Toda essa publicação, assim como a coordenação e gestão das mais de 1.000 memórias enviadas ao site www.saopaulominhacidade.com.br foi conduzida, produzida e materializada pelo talento e sensibilidade de Clara Azevedo com toda uma equipe da São Paulo Turismo. Escritos originalmente para o site, todos os textos apresentam características da oralidade. A opção, aqui, foi manter a espontaneidade das lembranças, os diversos estilos, o tom coloquial, o improviso. É importante destacar que, na edição, não se procurou corrigir as possíveis imprecisões dos narradores, mas, ao contrário, ressaltar que tais fragmentos representam a própria construção da memória, tanto quanto constituem a própria cidade. Evitou-se também a 9
padronização dos textos, por se entender que a riqueza das lembranças está na multiplicidade e particularidade das diferentes vozes. A memória é plástica e imprecisa, dificilmente segue uma lógica cartesiana e, claro, é sempre somente uma versão, uma interpretação do evento. No entanto, ela é, sim, uma das importantes fontes que, confrontadas com outras, contribui sobremaneira na reconstituição de uma São Paulo. Acompanhando memórias que remetem a um ado, as fotografias escolhidas são atuais e foram tiradas pelo coletivo de fotógrafos Rolê. Esse grupo de artistas, tal como todos os autores dos textos, também tecem suas narrativas da cidade. Há cinco anos eles saem à noite e percorrem as ruas da metrópole escolhendo cada vez um trajeto. O fundamental para eles é a vivência do percurso em si, a experimentação, as diferentes visões e interpretações, os cheiros, o tato, os poros, o movimento do corpo. E é desse emaranhado de sensações que nascem as fotos, filmagens e outras manifestações apresentadas pelo Rolê, com uma pequena amostra aqui. Fugimos propositalmente dos ricos arquivos de fotos históricas antigas e tradicionais. No fim do livro, um presente. Um texto do artista, jornalista e especialista em músicas que cantam São Paulo, Assis Ângelo, e uma bela e valiosa seleta, apresentada em CD, com depoimentos inéditos de Paulo Vanzolini, Alberto Marinho Júnior, Zica Bergami e Osvaldinho da Cuíca, além de declamações e músicas contemporâneas, algumas também inéditas, que fogem de clichês. A Prefeitura da Cidade e a São Paulo Turismo reúnem com esse material mais um pouco de memórias, desta vez sonoras, compondo ao final um mosaico diversificado e despretensioso de documentações textuais e fonográficas capaz de sensibilizar os leitores para a importância do resgate da memória paulistana. E aqui não podemos deixar de lembrar e reverenciar o paraense e genial compositor Billy Blanco que dizia ser São Paulo a “cidade do depressa”. Como grande paulistano que se tornou, cantou e interpretou como ninguém essa cidade em sua obra “Paulistana”. Dela extraímos versos como “... na reza do paulista o trabalho é o Padre Nosso” ou “... porque durante a noite paulista vai pensando nas coisas que de dia vai fazer”. Bom também relembrar a frase rendição de Tom Zé em “São São Paulo Meu Amor” ao cantar “... porém com todo o defeito te carrego no meu peito”. São Paulo minha cidade. De todos os credos, de gente valente. Das ruas de terra, de pedra, artérias de asfalto. De arranha-céus, luzes, mirantes. Do superlativo. Dos mercados, das feiras, dos eventos, da agitação. Dos diferentes cheiros, dos muitos sabores. De todas as mesas. Cidade da correria. Do “tá na hora”. São Paulo do primeiro trabalho, do dia suado, da esperança. Dos contrastes. Do solidário. Da vizinhança amiga, das praças, bairros, das pipas no céu. Do meu São Paulo Penta mas também do Corinthians, Palmeiras, Portuguesa e Juventus. Do velho, do novo, do diferente, do diverso. Da moda. Do cinema e de todos os sons e sonhos. Do conhecimento. Da Velha Academia do Largo de São Francisco. Das festas, do samba, das trovas, de choros e alegrias. Dos imigrantes, migrantes, das gentes paulistanas. Dos talentos criativos. De todos os personagens. São Paulo cidade do mundo. De todos os adjetivos. São Paulo minha cidade. Das muito mais de mil memórias.
Caio Luiz de Carvalho Presidente da São Paulo Turismo
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Primeiras impressões
“O destino era a Capital. Desconhecida, sonhada e ansiosamente esperada.”
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primeiras impressões
Pelos trilhos da São Paulo Railway Turan Bei Madrugada fria, tudo escuro, nem sinal de o dia nascer, a cabeça num turbilhão de pensamentos, tal a ansiedade pela tão esperada primeira viagem de trem com destino à Capital que iria conhecer. Parece que dormi pronto para partir. A primeira etapa da viagem foi num Ford 1929, até a Estação de Campo Largo, a paisagem era familiar e o trajeto curto, mas era na estação que o meu pensamento morava. Como seria? Durante o percurso a aurora se anunciou, uma densa neblina deixava ar por frestas os raios do sol, havia na vegetação gotículas de orvalho. Finalmente a estação, no sopé de uma serra coberta por fechada floresta de eucaliptos envolta pela serração. Era um prédio de estilo inglês, com tijolos vermelhos à vista, telhado cinza de cimento crespo, calhas e dutos de latão e as janelas de caixilhos de madeira envidraçadas eram guarnecidas por grades de ferro, assim como o guichê das agens, onde se formou uma fila. A plataforma de concreto desempenado acompanhava por vários metros a linha que cruzava os trilhos onde eram feitas as manobras dos vagões de cargas. Ainda aceso com tanta novidade, ouvi um apito, para instantes depois ver numa curva a locomotiva resfolegando, chiando e soltando baforadas de fumaça, tal o esforço que fazia para subir a serra. Já no plano, ela soltou um suspiro de alívio e lentamente foi parando na plataforma. Houve uma breve correria para tomar os assentos. O meu pai, experiente, abriu uma janela pelo lado de fora e tomou dois lugares, estendendo sobre a poltrona uma capa de chuva. Os vagões de madeira eram na parte externa ripados na vertical. O teto era cimentado e parecia uma grossa lixa. Na parte interna, decorada com bom gosto, tinha um teto com arandelas de metal polido e abajures de vidro transparentes com filetes prateados e rebuscados. Malas, pastas, pacotes e toda a sorte de embrulhos eram colocados numa prateleira perto do teto. De tempos em tempos, vendedores de bebidas, guloseimas, jornais e revistas percorriam os vagões anunciando produtos. Com uma bandeira verde e um apito estridente e curto, o guarda-trem deu o sinal de partida; a locomotiva deu um tranco e, após outro apito, arrancou para o seu destino. Sucederam à Estação de Campo Largo outras paradas como Yara, Pau Arcado e Km 7, onde houve embarque de pessoas e animais, galinhas, cabras, bezerros e cães perdigueiros amarrados uns aos outros. A composição puxava vagões abertos carregados de lenhas, e os fechados levavam café para o Porto de Santos. A próxima parada seria Campo Limpo, onde desembarcaríamos para fazer a baldeação para a São Paulo Railway. A conexão se completaria através de uma ponte de ferro para a plataforma do Rápido a diesel. Tudo às pressas porque os horários coincidiam, mas, minutos depois, já sentado no carro de primeira classe, o destino era a
Capital. Desconhecida, sonhada e ansiosamente esperada. Os solavancos da Bragantina ficaram para trás, agora a bitola da São Paulo Railway, ou inglesa como era chamada, deslizava suavemente pelos trilhos. Em poucos minutos as luzes se acenderam e o trem entrou no túnel. As placas que anunciavam as estações foram ficando para trás sem que o trem parasse: Juquery, Caieiras, Perus, Jaraguá, Pirituba. Já dava para perceber pelos núcleos de casas que a Capital estava próxima. Lapa, Água Branca, Barra Funda antecederam a principal. A silhueta da grande cidade se delineava majestosa. Quando a composição estacionou, ali estava a Estação da Luz. Por poucos instantes pude observar o trem, de cor vermelha, a locomotiva, marrom-clara e os carros que eram revestidos de chapas de aço reluzentes. Olhei para todos os lados e me senti pequeno diante da grandiosidade do recinto. No meio-fio da calçada, fileiras de automóveis esperavam os ageiros. Quando cheguei à rua, os meus olhos acostumados à penumbra se encheram da claridade do dia. Os bondes soavam nervosamente o seu sino pedindo agem pela rua congestionada. O meu cérebro acelerava a mil, meu pescoço girava 360°, meus braços doíam com os puxões do meu pai que repetia: — Olhe pra frente. E, assim, guindado por um homem experiente de Capital, tomei o primeiro bonde cuja placa, Ponte Pequena, me levou até a fábrica de instrumentos musicais Weril. Depois de uma estafante maratona de compromissos, e amarelo de fome, sentei-me à mesa do Restaurante Leão e fiz as pazes com o meu estômago.
Já fiz esse caminho nos dois sentidos – São Paulo, Campo Limpo Paulista, Guaxinduva, sempre no período de férias escolares, em companhia de meu pai. No primeiro trecho, a máquina utilizada era elétrica, com um farol frontal bem no topo. A Estação de Campo Limpo Paulista era um mimo, com sua plataforma central bem larga onde permanecia a maria-fumaça, tão linda que a mantenho na memória com seu chiado e faíscas como se fosse hoje. Como eram bem trabalhados os beirais em madeira e a construção em tijolinhos à vista, no estilo inglês. Nessa mesma estação, sempre encontrei um cãozinho rechonchudo de tanto comer pedaços de pastel e coxinhas que os antes lhe davam. O danado sentava-se nas patas traseiras e fazia uma carinha de fome para que todos dele se apiedassem. Já em viagem, a diversão era apreciar a subida e descida dos fios de telégrafo à margem da ferrovia, que ava por paisagens incríveis em meio às curvas onde se ouvia os apitos do trem... e tome faíscas. Matuzalem Turri Barbosa
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Eu fazia o caminho de volta. Saía de São Paulo, pegava o trem na Estação da Luz e, em Campo Limpo, aguardávamos o trem da Bragantina para irmos a Jarinu. Recentemente, morto de saudade, refiz o trajeto de carro. Pouca coisa estava lá. Apenas a trilha aberta onde ava a linha, a igrejinha perto de Campo Largo, que o trem contornava numa curva imensa, e eu. Fui no carro silencioso, e humildemente levando algumas lágrimas comigo. Jose Carlos Munhoz Navarro
Hoje sou paulistano por adoção e amo São Paulo, que tanto contribuiu para minha emancipação financeira e me deu a minha amada e querida esposa, filhos e neto. Enfim, São Paulo é de todos, de negros, de brancos, de crentes, de católicos, de sulistas, nordestinos, estrangeiros...
Minha primeira viagem a São Paulo José Luiz Mosca
São Paulo, o Eldorado dos aventureiros Valdeni da Silva Minha história inicia-se na década de 1960, em Aricanduva, município de Arapongas, no norte do Estado do Paraná. Cresci livre, correndo entre as matas e cafezais, nadando nos límpidos riachos e me alimentando com carne fresca de porco e galinha, com frutas e legumes colhidos na horta e nos pomares de todas as propriedades rurais próximas. Cresci também ouvindo a Voz do Brasil e comentários sobre a tal ditadura. Papai nos explicava que era proibido falar mal do governo e que só havia dois partidos: o Movimeto Brasileiro Democrático, MDB, que era dos pobres, e a Arena, que era do governo e dos patrões. Papai era do MDB, mas a gente não podia dizer isso na escola. Nos dias de eleições, no Ginásio Júlio Junqueira, a gente via o medo estampado no rosto das pessoas e os eleitores não ousavam nem cochichar, pois eram vigiados o tempo todo. Ditadura à parte, a vida continuava ótima na roça, os porcenteiros e sitiantes festejavam um ano de safra recorde de café. Até que chegou o fatídico ano de 1975. Para os que viveram no norte do Paraná naquela época, aquele inverno significou uma tragédia ao mesmo tempo coletiva e particular, algo que o Brasil praticamente não percebeu. O verde dos campos foi substituído por um cinza funesto e os incêndios se alastraram pelo Estado, que teve a cafeicultura e hortaliças dizimadas pelo gelo. Foi essa geada de 1975 que quebrou a hegemonia do Estado do Paraná na produção brasileira de café, cedendo essa posição para Minas Gerais. A exemplo de muitos, esperanças congeladas, lavradores frustrados, papai resolveu que viríamos para São Paulo, o Eldorado dos aventureiros, terra onde se ganha dinheiro e sucesso; aqui compramos casa em Vila Curuçá, encontramos emprego e com muita garra e luta nos estabilizamos. Fui office boy, entregador, carteiro, metalúrgico e hoje sou um educador, profissão que amo de paixão, funcionário público com muito orgulho. Se perguntarem se fui feliz na infância e adolescência direi que sim, pois tive o prazer de lutar pelas Diretas-já, fui ao Anhangabaú onde havia mais de dois milhões de pessoas reivindicando um país democrático e eleições. 14
Dezembro de 1953, fim do ano letivo e conclusão do primeiro ano primário. Após os exames finais rigorosos, tive a felicidade de obter a nota mais alta, que era 100, hoje 10. Recebi muitos elogios, mas o presente que jamais será esquecido foi o do meu irmão mais velho, que já residia em São Paulo há oito anos. Ele ficou sabendo que eu tinha recebido a melhor nota e veio me buscar para ar as primeiras férias escolares em sua casa. Após dois dias de muita preparação, cortar cabelo, comprar algumas roupinhas, terno de casimira azul-marinho, uma boina azul, camisa e meias brancas, sapatos pretos, aliás, o primeiro sapato que coloquei nos pés, porque até então não tinha nem um chinelo para usar, ia à escola descalço, com calça de saco alvejado e tingido e camisa branca alvejada. Nossa viagem se deu em 18 de dezembro de 1953, pelo trem da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, às 3h40 da tarde. Mas até que chegasse o momento, muitos fatos ocorreram. Naquele tempo, era tudo mais difícil em termos de comunicação, tendo eu mesmo que chamar um chofer de praça, hoje taxista; como não tínhamos telefone, voltei umas três vezes na casa do motorista só de medo que ele esquecesse de ir nos buscar e perdêssemos o trem. Ainda não se falava em carro, o nome era automóvel ou “tomóve”. Chegada a hora, partimos com destino ao nosso maior sonho, conhecer São Paulo. Depois de tantas surpresas, naquele trem de luxo, madeira envernizada, lustres de cristal, vendedor de empadinhas, coxinhas, guaranás, doces e amendoins, revistas e jornais, chegamos à Estação da Luz. Fiquei atordoado com aquela iluminação de neon de todas as cores, barulhos e gente que ia e vinha. Saímos pelo Jardim da Luz e tomamos um lugar em bonde aberto, que para mim era vagão de trem, e já na primeira esquina eu quis a todo custo pular de cima do bonde, quando vi um fogo azul e um estouro onde ficava o motorneiro (indivíduo que dirigia o bonde). Durante um mês ei a conhecer a cidade que tenho com muito amor e carinho como se tivesse aí nascido. Sou paulista e tenho muito orgulho. Quando morávamos em Campinas, viemos muitas vezes a São Paulo pelos ótimos trens da Paulista. Vidros bisotês com o monograma da em-
primeiras impressões
presa, lustres florais de cristal, toalhinhas de renda no encosto de cabeça e o famoso carro-restaurante, onde comíamos finos mistos frios de presunto e queijo, além de boa manteiga. No final, o espetáculo da Estação da Luz, com o jardim, então magnífico, à frente. Luiz Saidenberg
irável mundo novo Marilda Vieira Rodrigues Aqui chegamos em fevereiro de 1971, descemos na Estação da Estrada de Ferro Sorocabana, vindos de Presidente Prudente, trem de segunda classe. Viemos mamãe, Julia, Eliana, Glaciano, Lurdinha e Regiane, irmãs e irmão, sendo as duas últimas primas, e eu. irável mundo novo! Tomamos um táxi preto Ford antigo e fomos ao encontro de meu irmão Pedrinho, o mais velho. Ele viera na frente para arrumar emprego e acomodação, mas que nada, só arrumou bicos e estava em fase de alistamento militar. Quanta luta e coragem! Dona Olinda, minha mãe, viúva de meu pai aos 36 anos, só com o primário, sem profissão ou especialização alguma, com a cara e a coragem, empregou-se como cozinheira na própria pensão em que estávamos. As filhas e primas como arrumadeiras e eu como garçonete. Constituímos família aqui e, depois de uma vida inteira, estou muito feliz por ter adotado São Paulo como a minha cidade e da minha família. Obrigada São Paulo, obrigada dona Olinda Valério Rodrigues.
Minha primeira vez José Aparecido Barbosa Calma. Não se enganem com o título. O assunto é sobre minha primeira viagem a São Paulo. Eu devia ter uns 10 anos quando minha mãe resolveu tentar a sorte na capital paulista. Morávamos em Arco Íris, e o lugar mais distante que a gente conhecia era Tupã. Dos cincos irmãos solteiros, dois ficariam, porque a casa do meu irmão mais velho, para onde iríamos, era pequena e não dava para acomodar todo mundo. Numa tarde fria de junho, quatro horas antes da partida, já estávamos plantados na estação ferroviária à espera do trem que saía de Tupã às dez pra sete da noite. Quando a velha locomotiva apitou pelos lados do trevo da Camap, o coração só faltou sair pela boca, tamanha era a ansiedade e o medo de enfrentar a primeira viagem de trem e a metrópole paulista. Havia muitas histórias sobre São Paulo, diziam que as crianças eram roubadas das
mães ao chegar à Estação da Luz e que trombadinhas com navalhas afiadas assaltavam as pessoas à luz do dia. Com medo de ser assaltada ao chegar a São Paulo, minha mãe costurou no bolso da minha calça todo o dinheiro que a gente levaria. Sempre brinco com meus irmãos a respeito desse assunto. Se eles fossem raptados na época não fariam muita falta, pois não valiam nada, eu sim, era o mais valioso dos três. Após uma longa noite e muitos sanduíches de mortadela e farofa de frango, o trem chegou à Estação da Luz. Aquilo tudo era assustador pra gente, aquele cheiro forte de óleo das locomotivas, a enormidade da estação toda feita de ferro e aquela gente subindo e descendo escadas nos deixavam apavorados. Meu irmão mais novo abriu a boca no mundo querendo voltar para nossa pacata Arco Íris. O medo só se dissipou quando meu outro irmão nos acenou lá do alto da escada, pedindo que a gente fosse até ele. Finalmente um rosto conhecido entre aquela assustadora multidão. Após arrumar a bagagem no porta-malas do carro, um DKV verde-limão – meu irmão ganhava a vida como motorista de táxi –, minha mãe sentou-se na frente, enquanto no banco de trás a gente disputava na cotovelada quem ficaria próximo à janela para irar as agens da São Paulo da década de 1970. Como as mulheres não tinham a voz ativa dos dias de hoje, sobrou pra minha irmã ir sentada no meio do banco. Meu irmão fez um tour pela cidade, antes de pegar o caminho da Vila Brasilândia, nosso destino final. Para caipiras nascidos e criados em meio aos cafezais e sem nunca ter saído de Tupã, aquilo tudo era deslumbrante, Avenida Paulista, Largo Santo Bento, Avenida São João, Anhangabaú, Campo de Marte, em cada local que a gente ava meu irmão ia explicando os detalhes sobre as ruas, prédios ou bairros. Todos aqueles edifícios a perder de vista. Como pode morar gente numa altura dessas? Como fazem para secar as roupas? Queríamos saber tudo. Eu cada vez mais encantado com São Paulo, e com meu irmão Juvenal. Nossa, como ele sabe tudo isso, eu pensava. Minha mãe fez o sinal da cruz quando amos em frente ao Edifício Andraus. Dois anos antes, no dia 24 de fevereiro de 1972, uma tragédia que durou 7 horas e 35 minutos deixou 16 mortos e 345 pessoas feridas. Meu irmão contava com tanta riqueza de detalhes o incêndio, que eu parecia estar vendo as chamas lambendo as paredes do edifício. O nosso encanto pela cidade grande ia se dissipando à medida que o carro se afastava do Centro e adentrava os bairros mais distantes. Quando chegamos à Vila Brasilândia, nossas fisionomias eram outras, além de tudo ainda chegamos em baixo de chuva. O colorido dos prédios, as ruas asfaltadas, as alamedas com painéis alegres, tudo isso tinha ficado para trás, como um sonho de uma noite de verão. O lugar onde iríamos morar era horrível, sem asfalto, sem luz nas ruas e longe de tudo. Nossa estadia na capital paulista não durou muito tempo, seis meses depois estávamos desembarcando de volta na Estação Ferroviária de Tupã. 15
Liberdade em solo paulista Clésio de Luca Lembro-me dos conselhos que meus conterrâneos me davam quando resolvi viajar para São Paulo. Diziam-me que ao chegar à rodoviária, a primeira coisa que me ocorreria seria ser assaltado e ter minha mala carregada pelos ladrões. Fiquei apavorado, mas viajei assim mesmo. Nada do que me disseram aconteceu. Para resguardar-me do perigo de ser preso, levava sempre comigo minha carteira profissional, para mostrar que não era um vagabundo. Durante o tempo em que morei em São Paulo, ninguém me solicitou os documentos. A carteira, em função do uso contínuo, ficou surrada, mas aumentou em grau de importância, porque representava um testemunho da minha honestidade e da liberdade que tinha conquistado em solo paulista.
O real pelo imaginário Luiz Ramos Perto da Cachoeira do Stella, nas redondezas de Poços de Caldas, corria um fiozinho d’água que já teve muitos nomes, mas o mais especial e o único que sei é Riachinho dos Trocates. Meu riozinho! Era a água mais purinha e gostosa que já tomei. Sombreado por touceiras de inhames, taiobas, aquela “agüinha” fresca que balançava na folha e escorria brilhando ao sol e outras plantinhas ribeirinhas, meu riachinho fugia sempre em direção à cidade e levava consigo meus barquinhos de bananeira, meus moinhos de palito de sorvete, meus brinquedinhos de palha de milho, minha bolinha de borracha que uma noite, sonhei que rodou. Lá ia ele, descendo, descendo sempre e lavando minha alma, levando minha vida. Acho que fui com ele. Não sei bem o que aconteceu, mas um dia me falaram que íamos embora para São Paulo. E as coisas aconteceram rápido, o caminhão, a Via Anhangüera e de repente, me vi sozinho. O que tinha sido tão bom ficou na memória – esse “lugar” triste e belo que tanto nos faz sofrer. Creio que tinha que ser assim. O destino já está escrito, ou dizem que está, e tinha que ser assim. Mas arrancar um menininho do lugar em que nasceu, um lugar lindo, desproporcionalmente encantador, e jogá-lo no meio da voragem, não é uma coisa boa. E assim, as cores claras fugiram; o cinza ou a dar o tom. Claro que tudo tem suas compensações porque se assim não fosse, seríamos aniquilados a cada minuto e então, nesse mundo novo, busquei essas compensações nos livros, nos estudos, na televisão até. Substituí o real pelo imaginário e, se antes eu vivia numa espécie de paraíso, 16
trouxe esse paraíso pra dentro de mim. Se já não tinha a Bainha, nossa égua, ou a Bestinha, nossa mula, tinha o Silver, o Escoteiro, o Tornado, o Herói – meninos antigos sabem do que estou falando: Silver era o cavalo do Lone Ranger, Escoteiro era o cavalo do Tonto, Tornado era o cavalo do Zorro e Herói o cavalo do Fantasma. Se não tinha o cachorrinho Peri, a TV me dava a Lassie, o lobo do Vigilante rodoviário e o Rin-tin-tin. Se já não tinha mais os velhos Trocates reunidos no banco longo da cozinha da madrinha e suas histórias de tempos antigos, histórias de assombração, de escravos fugidos, eu tinha agora os gibis do Flecha Ligeira e do Cavaleiro Negro. Com o tempo, veio a escola, fui deixando de lado os gibis, me atirando por inteiro nos livros e foi um nunca acabar de ler – lia, relia e a cada releitura, descobria coisas novas, belas – Monteiro Lobato, Robinson Crusoé, Dom Quixote, Fogo Morto, O Leopardo, Os três mosqueteiros, folhetins, Sinclair das ilhas e tantos outros. E os filmes, aqueles filmes de então? Bonanza, O marcado, Caravana, O paladino do Oeste, A árvore mais alta, Álamo, Rastros de ódio, James Dean. Um eterno suceder-se de sensações. Dentre tantas novas descobertas, tinha o futebol. Em minha cidade víamos jogos do Rio Branco – hoje time profissional, mas que na época era amador – e achávamos o máximo. Aqui em São Paulo conheci o Santos. O incrível Santos de Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe. Foi um amor de criança, destes que dura uma vida inteira e mais um pouco. Agora, quando meu filho João Victor chora ao ver o Santos perder, fico “brabo” com ele, não posso confessar – ou será que posso? – que já chorei também e que, se hoje não choro, vontade não falta. A vida acontece todo dia e lembranças não podem ser amargas. Talvez este seja o único segredo da felicidade.
Visitando a Capital Marçal Acafori Que saudades do meu tempo de criança quando, morando na vizinha Santos, vinha mensalmente a São Paulo ver meus avós que residiam na Lapa. A alegria já começava quando embarcava naquele trem luxuoso, que tinha até garçon, chamado Cometa; ele fazia o percurso de Santos a São Paulo em exatas 2 horas, no tempo que os ônibus para o litoral não avam de jardineiras. Depois, eávamos no bonde 35 Lapa-Correio e, aos domingos, íamos de lotação ao Pacaembu ver jogos memoráveis, quando lá ainda havia a concha acústica. Também lembro das festas juninas no Campo do Lapeaninho Futebol Clube, onde agora está a Avenida Marquês de São Vicente, com muitos balões naquelas noites de garoa de junho! Sempre achei fascinante aquela garoa de todas as tardes na cidade.
primeiras impressões
Achava interessante que os trabalhadores daqui de São Paulo andavam diferente do pessoal da minha Santos, com pesados ternos azuis-marinhos, chapéus e aquelas inseparáveis pastas! E no dia em que um primo paulista convidou-me para ir a uma matinê no Art Palácio, fomos todos felizes, até sermos barrados por um sisudo porteiro por não estarmos de gravata! Quem diria que o Art Palácio iria virar o que virou hoje? Tenho saudades das reentrâncias do Tietê onde pescávamos guarus com peneiras, em época de enchentes, e do dia em que meu avô me levou para uma travessia sobre o Tietê em precária ponte feita com cordas e tábuas amarradas em cima de tambores! Por tudo isso tenho muitas saudades daquele tempo.
Baiana paulista Maria Honória de Sousa Assumpção Nasci em 24 de abril de 1959, no povoado de Jaramataia, sertão de Juazeiro da Bahia. Meus tios foram crescendo e de um em um indo embora para São Paulo. A cada ano que avam na cidade, tiravam férias para nos visitar; toda vez que voltavam traziam sempre um irmão e assim, sucessivamente, vieram todos os mais velhos ficando apenas eu, meu irmão e meu tio caçula. A minha avó vinha todos os anos a São Paulo para visitar os filhos e conhecer os netos paulistas. Quando voltava, ela nos contava como era a cidade, dizia que tinha uma rua onde só se via as cabeças das pessoas. Ah, também lembro que ela dizia que aqui em São Paulo as pessoas não viam o céu, e isso era o que mais me impressionava: como não ver o céu? Eram tantas as histórias que ela contava que hoje eu sei que conheci um pouco de São Paulo muito antes de chegar. Em 1972, os meus tios mandaram nos buscar e assim deixamos toda nossa vida para trás, com muita dor no coração. Viajamos três dias até que chegamos à famosa São Paulo. Meu Deus, quanta coisa que eu nunca tinha visto! Que medo tive de tudo por aqui, foi difícil demais a vida para mim, eu me sentia uma formiguinha. Mas aram-se os anos e fui me moldando aos costumes da cidade grande, escola, ruas, carros, faróis, nossa... Agora, 35 anos depois, posso dizer que amo São Paulo, mas nunca esqueci minha Jaramataia e sempre que posso viajo e, lá, digo que sou uma baiana paulista.
Acostumando com São Paulo Mariza Leone Pereira Nasci no interior de Minas, em Uberlândia, Triângulo Mineiro. Quando completei 12 anos, meu pai comunicou à família que mudaríamos para São Paulo naquela semana. Foi um choque para mim, pois eu já estava acostumada ao colégio, às amigas, enfim, ao meu pequeno mundo. No dia 30 de outubro de 1957, chegávamos à Estação da Luz. Habituada a uma cidade interiorana de pouco movimento, fiquei abismada com o que encontramos ali. Fomos para o bairro do Ipiranga, onde morava a família de meu pai, e ali permanecemos por uns quinze dias até encontrarmos uma casa para alugar. Meu pai achou melhor que fôssemos morar no bairro de Santana, pois ficava próximo ao Colégio Santana, de freiras, onde ele queria que eu continuasse meus estudos, e de seu ponto de táxi, na Avenida Tiradentes. Colégio novo, professores muito diferentes, colegas estranhas, vizinhos, gente nova, tudo muito diverso. Logo no primeiro dia de colégio, imaginem que eu nem sabia onde era, encontrei com uma menina que vestia um uniforme igual ao meu, então criei coragem e perguntei a ela se estava indo para o Colégio Santana. Ela me respondeu que sim, disse se chamar Violeta e ofereceu-me sua companhia. Foi muito gentil e atenciosa. Na hora pensei: “Como o pessoal daqui é bacana!” Com o ar do tempo fui me acostumando e formando um círculo pequeno de amigos. Em 1958, ei a estudar no colégio Salete, pois era bem mais perto de casa. Aí aumentou ainda mais o número de meus conhecidos e amigos. O comércio da Rua Voluntários da Pátria era muito bom, lembro-me da Padaria do Comércio, da Estrela Polar, das Lojas Garbo, da Santana Chic, das Pernambucanas, da Loja Mantovani, da loja de calçados do Carlos Kherlakian, entre outras lojas e armazéns próximos, onde comprávamos alimentos, roupas e calçados da moda. Na Rua Doutor César, quase esquina com a Rua Salete, havia a adega de um italiano onde comprávamos massa fresca, era tudo muito bom e meu pai amava o vinho deles. Comecei a gostar de São Paulo. Já não sentia tanta saudade de Uberlândia, não dava tempo, tantos eram os afazeres escolares. Os dias foram ando devagar e conheci o José Luiz, que morava no Imirim. Ele era lindo! Começamos a flertar, isso durou quase um ano, afinal, antigamente as coisas andavam lentamente, depois virou namoro mesmo. Foi um tempo maravilhoso. Ê Saudade! Amo essa cidade com paixão.
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E também tem isso, é?
Nosso primeiro Natal em São Paulo
Hermes Carreira
Johannes Luyten
Vindo da cidade de Teresina, cheguei a São Paulo em 28 de junho de 1972. Era inverno. Muito do que via era novidade para mim: o frio, a garoa, a fumaça que escurecia o ar, os edifícios que pareciam ir até o céu, o corre-corre das pessoas nas ruas, o trânsito engarrafado; o aglomerado de pessoas que pareciam caminhar juntas e ir ao mesmo lugar. Mas o que me incomodava mesmo era o fato de não poder ver o azul do céu. Tudo era cinza. Tudo era frio, até o olhar das pessoas que me observavam enquanto eu ficava ali parado com uma mala em uma das mãos. Na outra mão eu carregava um violão. O motivo da minha vinda a São Paulo foi a vontade de ser artista. Meu primeiro desencanto já me espreitava a poucos metros dali, o taxista. Percebendo que eu acabara de chegar, logo tratou de tirar vantagens de minha ignorância. Quando perguntei se poderia me levar à Avenida São João, no número 1474, ele foi logo me dizendo que só levaria se fosse contratado por viagem, e não pelo taxímetro, pois eu tinha bagagem. Assim, entendi eu que aquela maneira seria uma regra e não poderia ser diferente com outros taxistas, então, aceitei o acordo. Entrei no carro e acomodei a minha bagagem: o violão, a mala e um saco de pano, onde eu trazia alguns apetrechos de nordestino, como queijo, rapadura, cachaça e umas lembrancinhas típicas do nordeste. Lá estava eu em frente ao prédio onde moraria por pelo menos dois meses. Era a casa da minha irmã, por parte de pai, que por sinal nem sabia que eu estava chegando. Ao chegar, outro desencanto: um moço bem vestido com aparência de alemão e muito gentil veio ao meu encontro e perguntou-me o que eu desejava. Expliquei que procurava por minha irmã Neide que morava no apartamento 94, segundo o papel que eu tinha nas mãos. Ele abriu a porta do elevador e fez sinal para eu entrar. Entrei e fiquei lá parado, esperando que o elevador me levasse a algum lugar; nada aconteceu até a porta abrir-se novamente e ele aparecer sorrindo da minha ignorância, pois eu não sabia que tinha que apertar o botão no para que o elevador subisse ao andar desejado. Por fim, eu imaginava que o tal homem era o dono do prédio, e só descobri que ele não era depois de uma semana, quando minha irmã me disse que era apenas o zelador. Então eu perguntei: — E também tem isso é? Trinta e quatro invernos se aram. Fui office boy, auxiliar de escritório, técnico de manutenção de máquinas de escrever, técnico eletrônico, motorista e serralheiro; menos artista como eu imaginava ser.
Chegamos ao Brasil vindos da Holanda em final de outubro de 1952: pai, mãe e oito filhos, o mais velho com 17 e o mais novo com 5 anos. Após breve estadia em Recife, em meados de dezembro, aportamos em Santos. A viagem de trem do Valongo até a Estação da Luz foi inesquecível: a natureza, a Serra do Mar, a chegada a São Paulo. No banco ao lado viajava uma família, e no meio da viagem a mãe distribuiu bananas para os seus. Aquela fruta era o máximo para nós europeus e lá custava muito caro. Uma das filhas virou para mim e, mostrando a fruta, deve ter dito: — Você está servido? Não entendia nada, mas o gesto de partir um pedaço e insistir para que eu o pegasse dizia tudo. Agradeci da melhor maneira que pude e notei que riam de satisfação quando tive que dividir o pedaço com meu irmão caçula.. A nossa primeira casa alugada foi quase ao lado do rio Tietê, na Vila Maria Baixa. Na primeira noite de Natal em São Paulo, sem presentes e em cima de um caixote de viagem que tinha a função de mesa, repartimos um bolo Pullman e, com certeza, muitos sonhos. Viajei muitas vezes de trem pela Europa, anos mais tarde, em viagens de negócios, e cada vez que alguém comia algo ao meu lado sem oferecer, pois não é costume na Europa, lembro-me daquele gesto tão significativo na minha vida e bem brasileiro: — Você está servido?
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Primeiras impressões de um apartamento Doris Day Nasci e me criei no interior. Meus irmãos mais velhos se mudaram para São Paulo em busca de melhores trabalhos. Assim que minha irmã mudou para um apartamento, nos convidou para conhecer o local. Era por volta de 1957, eu tinha uns 7 anos mais ou menos e nunca havia entrado em um apartamento. Quando fiquei sabendo da novidade, perdi o sono, imaginando como seria um apartamento. Já sabia, pelo que me contavam, que era pequeno e ficava perto da Santa Casa. Então, um dia, papai falou: — Vamos a São Paulo visitar a sua irmã. Aquilo me deixou aturdida, uma viagem não acontecia sempre. Conhecer São Paulo e um apartamento, então, era o máximo pra uma garotinha ingênua e caipira. Fomos de trem, e eu adorava andar de trem. Depois, pegamos um ônibus e tudo aquilo que via era demais para mim: o barulho dos carros, os edifícios altíssimos e as pessoas elegantes que circulavam a pé pelas ruas. Estava louquinha pra chegar ao apartamento de minha irmã.
primeiras impressões
Não foi nada daquilo que eu esperava. Acho que na minha cabeça ava alguma coisa meio futurista, sei lá. Era um prédio pequeno, comparado aos outros que havia em São Paulo, e isso me deixou decepcionada. O prédio tinha três andares e o apartamento era composto de um hall de entrada, uma sala pequena, dois quartos minúsculos – perto do meu parecia um cubículo –, uma cozinha, que mal dava pra duas pessoas e um banheiro escuro. Os móveis eram lindos! Tinha uma vitrola da Telefunken Hi-Fi e lindos discos. Voltamos no mesmo dia e, depois, vim várias vezes a São Paulo visitar minha irmã e, mais tarde, minhas sobrinhas.
Vencendo na terra da garoa Tereza Pereira Xavier Morava em um vilarejo de mil habitantes, um mundinho que eu achava que era todo meu; ruas sem endereço, casas sem número, na verdade nem precisava, todo mundo era conhecido por ali. Imaginem vocês qual foi meu espanto quando conheci a terra da garoa. Meu principal motivo era fazer uma plástica em uma enorme cicatriz abaixo do meu pescoço. Cheguei em São Paulo, em 1963, com 15 anos de idade, trazida por meu pai, homem simples, de mãos calejadas pelas labutas nas roças, cuja pobreza era de dar dó. Pegamos uma carona até a cidade de Londrina para embarcar para São Paulo. Foram 16 horas de viagem em um trem de segunda classe; felizmente, depois das curvas, subidas e descidas, balanços e barulho, descemos famintos e cansados na Estação da Luz. Era um sábado ensolarado do mês de dezembro. Qual foi meu espanto quando vi um pedacinho de São Paulo pela primeira vez. Gente e carros por todos os lados, parecia um formigueiro, seus gigantescos arranha-céus, mal podia acreditar como se podia fazer algo assim tão alto. Uma loucura ou um sonho meu? Não entendia a realidade das coisas, quantas novidades em poucos minutos. Agarrei fortemente os braços de meu pai, morrendo de medo de me perder no meio daquela multidão e pegamos do fundo do seu bolso um pedaço de papel amarrotado e mal escrito, na ânsia de encontrar o endereço de um conterrâneo, para que pudéssemos ficar hospedados em sua casa por alguns dias ou enquanto estivéssemos em Sampa. E por aqui fiquei por oito meses, sem a companhia de meu pai, pois esse tinha além de mim mais nove filhos e a roça não podia esperar, havia colheita para fazer. Antes de retornar à minha minúscula cidadezinha do norte do Paraná, conheci por aqui um rapaz muito simpático, namoramos por alguns meses e depois que fui embora continuamos a nos corresponder. Nos casamos em 1966, voltei para Sampa, desta vez em definitivo. Tivemos cincos filhos, uma vida muito simples. Mesmo assim, proporcionamos aos nossos filhos umas das melhores escolas da zona norte.
Tudo parecia estar sob controle, até que um dia meu marido foi acometido por um tumor maligno, vindo a falecer um ano depois. Fiquei sozinha com cinco filhos, alguns deles menores de idade. Tive que trabalhar para manter o mesmo padrão de vida, digo, para não tirar meus filhos da escola particular. Minhas economias não deram para sustentar por completo minha filha no curso de Medicina. Mas graças a orientação do diretor da faculdade conseguimos crédito educativo para ela não interromper seu curso. Hoje é uma grande médica do Hospital São Paulo e da Maternidade Santa Joana. Além dela, meus outros quatro filhos se formaram em Publicidade, Jornalismo, Direito e Educação Física. Desde que perdi meu marido continuo no mesmo emprego, há vinte anos. Com o tempo que me sobra resolvi pensar em mim e no meu sonho. Tentarei vestibular ainda este ano para Direito, apesar dos meus quase 60 anos de idade. Esta é minha história, dou graças a Deus por não poder terminá-la, por me encontrar viva. Quem sabe um dia alguém termine por mim, dizendo assim: — Tereza, uma cidadã interiorana do Brasil, foi grande mulher, formou-se em Direito depois de criar sozinha seus cinco filhos. Seu lema era aproveitar ao máximo a vida e as oportunidades que São Paulo lhe oferecia. Dizia sempre que era mineira de nascimento, paranaense por amor e paulista por paixão.
Uma brecha na muralha Luiz Saidenberg Quando pequenos, nossos pais traziam-nos a São Paulo nos ônibus da Viação Cometa, de Campinas. A Via Anhangüera ainda não existia. O que havia era a Estrada Velha de Campinas, que subsiste ainda em alguns dos seus trechos como Avenida Raimundo Pereira de Magalhães. Estranhíssima via, pois vem de longe, e chegando ao Tietê se interrompe, continuando sem ponte na margem de cá. Então foi inaugurada a Anhangüera, na época uma estrada modelo, com um enorme busto de Adhemar de Barros e tudo. Por essa época meu pai já tinha carro. Não importa, pois a chegada a São Paulo continuava da mesma estranha forma: cruzando o rio, chegava-se à Lapa de Baixo. Ali, no final da Raimundo Magalhães, geralmente pegávamos um grande congestionamento. Vocês acham que era fácil entrar na grande cidade, mesmo nessa época? É que deparávamos com um absurdo: a entrada de todo o tráfego, mesmo o mais pesado, era feita através de um estreitíssimo e baixo pontilhão, sob os trilhos da via férrea. E com um semáforo, para fazer ar uma mão por vez. Mais não dava. Lembrava-me a muralha de uma cidade medieval, onde os invasores se esgueiravam por uma estreita e insuspeitada brecha, único meio de abordar a cidade. Era muito estranho penetrar 19
na grande São Paulo por um buraquinho no muro. Muita água ou sob as pontes do Tietê, mas jamais esqueci essa incrível entrada, nada triunfal. E sempre pensei se ela ainda existiria. Pois bem, senhores, existe. Dirigindose à Lapa de Baixo, nas proximidades do Mercado, é só seguir a indicação Vila Anastácio. Sigamo-la, e lá está o pontilhão, tão estreito e escuro, como nos velhos tempos. Ainda se tem que aguardar o semáforo abrir, pois mais que um carro não a. E raspando no teto, se for alto. É verdade que se foram seus tempos de glória, e pouco trânsito a por ali. Mas ainda é de arrepiar ver os ônibus para Anastácio tirando fininha na arcada. Uma coisa não ou, nunca, nesse lugar. Foi o tempo, ali congelado há tantos anos, ou séculos atrás. E creio que assim continuará, até o final dos tempos.
Vovó Rosalina Manoel Antonio da Silva Neto Morávamos em Graúna, por onde ava uma linha da Companhia Paulista da Estrada de Ferro, e íamos de trem para São Paulo. Quando chegávamos à Estação da Luz, íamos até a Praça da Sé e de lá tomávamos o bonde com destino ao bairro do Ipiranga, descíamos na Avenida Nazaré e a pé seguíamos pelas ruas de terra vermelha bastante barrenta até a Rua Doutor Mário Vicente, onde morava minha avó Rosalina. Era uma festa chegar na casa de minha avó, que fazia de tudo para nos agradar. Ainda me lembro muito do fogão a carvão, da carroça que trazia o leite em litros de vidro e do carroção de lixo.
São Paulo, minha vida Antonio Fernandes Lembro-me, ainda, daquela manhã fria e chuvosa de quase quarenta anos atrás. Minha família e eu, todos numa Kombi alugada que “rasgava” a cidade com destino ao bairro de Santo Amaro, final de uma viagem que começara no dia anterior, na nossa terra natal, lá no sul de Minas Gerais. Vínhamos com a cara e a coragem, mais alguns cacarecos que couberam na tal Kombi. Fugíamos da fome, da miséria e de um futuro opaco que já começava a rondar nossa casa. A cidade de São Paulo representava a promessa e a esperança de uma vida melhor para aquela família de lavradores que, não tendo mais condições de permanecer no campo, aceitara a oferta de uma pequena casa de fundos, por parte de parentes que já estavam há algum tempo por aqui. A Kombi ia atravessando a metrópole e eu, com 8 anos de idade, ia ficando irado com a quantidade de ruas, casas, carros e pessoas; tudo novidade 20
para mim, que só conhecia a roça e a sede do município em que nasci, de menos de mil habitantes. De repente, amos próximo a um pilar de grandes proporções, em cuja base superior havia um enorme cavalo negro, montado por um grande cavaleiro. Dei um grito de susto e isso foi motivo de riso para todos. Meu pai, minha mãe, minhas três irmãs, minha avó e até mesmo o motorista riram a valer. Anos depois, fiquei sabendo ser a estátua de Duque de Caxias, o único duque brasileiro. Para mim, até hoje, representa o marco de meu encontro com a cidade. Nossa família instalou-se, então, na casa cedida pelos parentes e ou a lutar pela sobrevivência na metrópole. Poucos meses depois, meu pai que sofria do coração, veio a falecer; minha mãe e a irmã caçula mudaram para a casa de outros parentes no interior do Estado. As irmãs mais velhas, que já andavam de namoro, vieram a se casar quase que simultaneamente. Eu, então, fiquei a cargo delas. Como uma ou a morar na zona norte e a outra na zona sul, eu ava temporadas na casa de uma e de outra. Em decorrência dessa minha situação particular, aprendi logo cedo a conhecer a cidade, pois estava sempre em trânsito, da Vila Maria ao Jabaquara, ou vice e versa. Quando eu estava na zona norte, freqüentava com meus amigos o clube da prefeitura, na Praça Cianorte, com suas ótimas piscinas. Já quando estava na zona sul, aproveitava ao máximo o Parque do Ibirapuera. No começo, ia com meus amigos e o pessoal da escola jogar bola e brincar na beira do lago, visitar o Planetário ou observar um dos mais famosos postais de São Paulo, o Monumento às Bandeiras. Depois, já mais crescido, ia ao parque para namorar... Para conseguir algum dinheiro, já com 12 ou 13 anos de idade, nunca tive vergonha de fazer os mais variados tipos de trabalho. Se o tempo estivesse bom, eu saía pelas ruas vendendo picolés em uma caixa de isopor. Outras vezes, com um desses carrinhos de pedreiro, eu saía recolhendo papéis, vidros e metais para vender nos depósitos de ferro-velho. Sempre ganhava algum dinheiro, que depois gastava com prazer na cantina do colégio, em cinemas e gibis. Dessa forma, eu me igualava aos amigos que viviam com pai e mãe que lhes davam mesadas. Naqueles tempos existiam bons cinemas nos bairros e no Centro. Hoje, só nos shoppings. Foi mais ou menos em 1968 ou 1969 que comecei a perceber a construção da primeira linha do metrô, com início no Jabaquara, quando demoliram casas, prédios e interditaram ruas. Naquela época não havia máquinas modernas e a primeira dessas máquinas foi batizada pelos brasileiros de Tatuzão. Em 1972 foi aberto um enorme poço na Avenida Prestes Maia, tornando-se um novo ponto de partida do Tatuzão; vários moradores, padres do Mosteiro de São Bento e freqüentadores da região central começaram a criar inúmeros obstáculos. Era o medo e a desconfiança: não conseguiam sequer imaginar que logo ali, alguns metros abaixo de seus pés, Tatuzões gigantescos estavam supostamente “devorando” o solo, abaixo dos monumentos históricos, prédios de escritórios e caixas-fortes nos subsolos dos bancos.
primeiras impressões
Era costume de um de meus cunhados reaproveitar materiais de construção que eram descartados pelas demolidoras; ele sempre me levava nessas empreitadas para ajudá-lo a separar materiais como tijolos e telhas. Numa dessas vezes, um velho senhor, dono de uma imobiliária ali no Jabaquara, se impressionou com o desempenho daquele rapaz magrinho (eu) que separava alguns tijolos. Não sei se por pena, ou quem sabe por interesse mesmo, depois de indagar algumas coisas, inclusive se eu estava estudando, resolveu me dar um emprego em seu escritório. Foi o primeiro presente valioso que recebi desta cidade. Eu tinha que limpar o escritório, ir aos bancos, prefeitura, repartições e o melhor: cuidar da biblioteca! Eu fazia isso muito bem e, quando tinha tempo, lia os livros. Foi ali que tive o a alguns clássicos de nossa literatura. Devorei Clarissa em um dia chuvoso de março de 1972. Depois vieram Vidas Secas, O Primo Basílio e tantos outros... Aquele senhor foi um verdadeiro pai. Incentivava-me aos bons costumes tais como a leitura e a prática de esportes. Minha primeira bicicleta foi ele quem financiou. Mais tarde, com ela eu ia pedalar num lugar bem improvável: o Minhocão. Fechado aos domingos, o viaduto começava a virar área de lazer na cidade, trocando o tráfego de automóveis por bicicletas, patins, skates e eios de mãos dadas. Quando surgiu a oportunidade de um emprego estável em um banco, foi ele quem deu o maior incentivo. Dessa época, recordo-me de fatos marcantes que ocorreram. O drama que a cidade viveu em fevereiro de 1972, na tragédia do Edifício Andraus, repetida em 1974 – em escala maior – no incêndio que destruiu o Edifício Joelma, na Avenida 9 de Julho. Logo veio a inauguração do primeiro trecho do metrô, em 1974, o trecho percorrido foi Jabaquara-Vila Mariana, mas somente em 1975 a operação comercial foi estendida para toda a Linha 1-Azul, de Santana a Jabaquara. Foi uma revolução nos meios de transporte. Eu vivi tudo isso de perto! À medida que a cidade ia evoluindo, ia me levando com ela. Com o emprego no banco veio o primeiro carro e, logo depois, a independência; aluguei um apartamento pequeno só para mim, na Liberdade, que mais parecia um pedacinho do Japão em São Paulo. Nos dias de trabalho que se seguiam era obrigatória a minha agem pelo primeiro viaduto desta cidade, o Viaduto do Chá, sobre o Vale do Anhangabaú. Andando apressado, como um verdadeiro paulistano, irava os prédios, principalmente o da antiga Light e o do Teatro Municipal. Sempre achei que o cartão postal da nossa cidade fosse a Praça Ramos de Azevedo, com seus postes de iluminação ao lado e as palmeiras imperiais lá embaixo. Naquela época era comum chamá-la de Praça dos Gatos, pela enorme quantidade desses animais, que, trazidos pela população e ali deixados, sobreviviam alimentados pelos transeuntes. O clima era ainda úmido, com a garoa que se percebia mais forte no contraste com as luzes da cidade. Eu achava lindo. Lá pela década de 1980 eu costumava ar minhas férias na casa de parentes em
Minas, onde descansava durante todo o mês. Na volta, quando encarava novamente o burburinho característico de nossa cidade, nos bares, cinemas ou teatros, meu coração se enchia de alegria. Há muito tempo esta cidade já havia se transformado na minha casa... Depois dos 20 anos de idade, comecei a colher os frutos dos meus anos de luta. Primeiro, as promoções no banco, depois a mudança para o apartamento próprio, lá pelos 25 anos, o ingresso na Universidade, onde me formei em Direito. Não posso me esquecer de mencionar aqui as viagens por todo o Brasil e até para o exterior, ampliando o meu leque de conhecimentos. Como numa longa viagem, a vida da gente também a por períodos de turbulência. Depois dos 30 anos, casei, tempos depois me divorciei, troquei de profissão. De bancário para advogado, arrumei nova companheira e, ainda hoje, sigo a minha vida de lutas, incansável. Agora, já beirando os 50 anos, posso garantir que já ei por inúmeras emoções, muitas das quais, inclusive, se repetem. Uma delas, indiscutivelmente, é a emoção da volta. Depois de algum tempo fora, a falta que esta cidade me faz é imensa. O prazer de voltar sempre foi sublime. Ver suas luzes lá de cima quando se chega de avião à noite, é gratificante! Saber que conhecemos cada um daqueles pontinhos luminosos, seus mistérios, seus encantos... Assim como minha família, quantos milhões de seres esta cidade não terá acolhido em todos seus anos de existência, dando-lhes o prumo para a vida.
Sou paulistano, nasci no Brás, morei no Tatuapé, Mooca, Jardins, trabalhei na Praça da Sé... Ou seja, mais paulistano que eu, impossível. Investido da autoridade de cidadão paulistano legítimo, sem “autoridade” oficial, mas com muita autoridade moral, te declaro cidadão paulistano. É por gente como você ter vindo para São Paulo que eu sinto muito orgulho de ser paulistano. Luiz Seman
São Paulo, o meu País Maria Lourdes Teixeira Chahad Sou brasileira, sem que tenha nascido no Brasil. Como tantos outros portugueses, meu pai veio em busca de oportunidade, prosperidade, desenvolvimento... seguido depois por tios, avós, amigos... Não existia a Comunidade Européia. Existia as ditaduras de Salazar, de Franco, a estagnação que fez grandes conquistadores se tornarem a lanterna da Europa. 21
Me sentia indo para o fim do mundo. Índios nas ruas e cobras nos quintais eram as imagens que mais povoavam minha fértil imaginação de criança. Nunca mais veria o mar? Viveria no isolamento, ou faria novos amigos? Fomos morar no Jaçanã. Aquele do Adoniran. E o trem – aquele do Adoniran – era nosso meio de transporte. Para o trabalho de meu pai, os eios da família, ir ao médico... Menos para a escola. Ah, a escola! Era pública. A escola era pública, e tinha tudo o que Paulo Freire pregava como modelo de celeiro da educação – aprender, fazer amigos e ser feliz. E ainda éramos cuidados pelo médico... pelo dentista... Para buscar melhores condições trabalhávamos já aos 14 ou 15 anos e estudávamos à noite, na escola pública. Era São Paulo no início da década de 1960. Meu pai, amigo de tantos portugueses comerciantes, era tipógrafo. “Lê minha filha, lê. Só assim vais crescer e evoluir”. Vamos ao cinema. À tarde. Terno, gravata, o melhor vestido e sapatos de verniz para ir ao Cine Ouro, no centro de São Paulo – agora já de ônibus – e ainda aproveitar para ouvir o piano na entrada e no intervalo. São Paulo, o meu País, me deu todas as oportunidades. Estudei, trabalhei, criei, amei, tive filhos e agora minha neta. E aqui continuam chegando outros em busca das mesmas oportunidades. Agora poucos são europeus, mas orientais, nossos vizinhos sulamericanos, e muita da nossa gente brasileira. Esta é São Paulo, o meu País, que me deu, me dá e a todos, oportunidades, felicidades e realizações. De uma paulista eternamente agradecida.
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Do bonde ao metrô
“Com a luz vermelha o condutor era obrigado a esperar. Ele ficava ali parado, às vezes por mais de quinze minutos, e ninguém reclamava. Fazia parte da viagem!”
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do bonde ao metrô
O trem para a Estação Santo Amaro
Trenzinho da Cantareira
Jayro Eduardo Xavier
Turan Bei
Em 1917, segundo meu pai, pra ir do centro de São Paulo ao centro de Santo Amaro, pegava-se um bonde até a Estação Vila Mariana e dali, o trem, cujo percurso era: Rua Domingos de Morais, Avenida Jabaquara e, após a Igreja de São Judas Tadeu, no ponto mais alto da capital, a descida, ando pelo atual aeroporto, por onde estão os hangares da VASP. Continuava a descida até o Buraco do Peixe, atual Piraquara, onde havia água para abastecer a locomotiva para enfrentar a subida na volta. Na Estação Volta Redonda, aproximadamente na esquina da atual Rua Vicente Leporace, ficava a caixa-d’água, o depósito de lenha, o chefe de estação e o telefone. Depois vinha a Parada Cordeiro, a Parada Galinheiro, Parada Alto da Boa Vista, Parada São José, onde está o convento e, finalmente, a Estação Santo Amaro, na atual Praça Santa Cruz. Havia ainda uma extensão de seiscentos metros até o Ponto da Vila, atual Largo 13 de Maio.
Acho que por volta de 1955, foi a primeira vez que tomei o trenzinho que tinha na confluência da Rua da Cantareira com a João Teodoro, a estação inicial, saindo daí para Guarulhos, ou no entroncamento em Santana para a Serra da Cantareira. Meus primos Sybel e Lígia, moravam temporariamente numa chácara na Estação de Gopoúva, em Guarulhos. O caminho era particularmente lindo e lembrava, em muitos trechos, Campos do Jordão, como quando ava pelo Jardim São Paulo, que ainda não era urbanizado, onde havia bosques de eucaliptos e pinheiros. Havia um desnível acentuado entre a baixada do Pari e o Canindé até Gopoúva, então íamos subindo, subindo, e o vaporzinho fazia muita fumaça, e resfolegava parecendo um asmático, mas vencia galhardamente as subidas. Numa tarde muito quente de verão, fomos ter à Gopoúva, foi muito gratificante chegar lá e respirar o ar puro do Jardim Tranqüilidade, como era chamado o bairro que se constituía na maioria de pequenas chácaras, e percorrer bairros por onde nunca tinha ado antes, como Santana, Carandiru, Parada Inglesa, Tucuruvi, Vila Mazzei, Jaçanã, Vila Galvão e por fim Gopoúva, onde completaria 16 km. Animado por essa experiência, tomei o trenzinho, mas agora com destino ao Horto Florestal. Era um final de semana e os vagões estavam lotados de excursionistas, que como eu, iam para perto do paraíso quase possível na terra, o sopé da serra, onde estava o Horto Florestal, uma imensa área de recreação, muito verde, lagos, pedras, e o principal, aquela tranqüilidade repousante.
Dos bondes, lembro que eu andava do Socorro até Santo Amaro a pé, ao lado dos trilhos. Quando chegava o final, no Socorro, havia o balão no qual o bonde fazia a volta pelo mesmo trilho, onde hoje é a Marginal Pinheiros. Também havia o trem que pegávamos na Estação do Socorro para ir até São Vicente, numa viagem sempre prazerosa. A Ponte do Socorro, ainda de madeira e na qual avam bois e carroças, depois de alguns anos, creio que por volta de 1967, foi substituída por uma de concreto, de mão dupla, estreita e curta e, posteriormente, tal qual hoje, bem mais larga. Ainda é possível ear pela mesma barragem da represa, pois as pessoas a utilizam para prática de cooper, mas não é mais a mesma vista e não há mais os barcos que encantavam a nós, crianças da época. Alberto dos Santos ei a minha infância à margem dessa linha de bondes e tenho verdadeira paixão pelos nomes das antigas estações. Gostaria de remontar todo o trajeto. A estação referida, pelo menos no meu tempo, era chamada apenas de “Floriano” e a do Cordeiro chamava-se “Petrópolis”. Flavio Bonfá
Maria-fumaça Jonas Veloso Êta trenzinho bom a maria-fumaça, que transitava pelo bairro do Tucuruvi, cruzando a avenida do mesmo nome, seguindo para outros bairros mais à frente, no sentido norte, como Jaçanã. Uma das máquinas, lembro bem, movida a lenha, expelia brasa para tudo que era lado, principalmente quando se aproximava da subida. Que saudades. Morava nas imediações da avenida próxima à estação. Vez ou outra, com coleguinhas, ia contemplar o seu mecanismo, as suas potentes rodas e tração. Gostava muito de apreciar também as mudanças de linha, quando se aproximava da estação. Nas minhas audaciosas escapadas, chegava até a Estação do Areal, em Santana, retornando em seguida, sempre procurando me esconder nos vagões. Os ageiros tinham as suas roupas perfuradas, alvo das brasas que eram expelidas e pairavam no ar. Tempo bom, mesmo. 25
Usei muito o trecho Santana-Horto Florestal, que ava na Rua Alfredo Pujol, perto da minha casa. Infelizmente, nunca usei o trecho Santana-Jaçanã, objeto da música de Adoniran Barbosa. Igualmente, eu e meus amigos sempre tentávamos fugir do cobrador. Ah! Que saudade daquela Santana e daqueles tempos! Jefferson Martins Ribeiro
Trem, o lazer das crianças Turan Bei Década de 1960. Tempos difíceis. O que fazer para o lazer das crianças? O expediente encontrado foi freqüentar lugares públicos gratuitos tais como parquinhos. Mas, e em dias friorentos? Num desses dias, fui parar na Estação da Luz, e do alto eles ficaram apreciando a movimentação dos ageiros nas plataformas, e a partir de então e durante muitos finais de semana, esse foi o programa preferido. Até que um dia, veio a “cantada”: queriam embarcar num daqueles trens; comprei as agens para um breve percurso pelo subúrbio. Já acomodados nas poltronas soou o apito da partida, e, antes que o trem arrancasse, o mais velho, num salto, saiu do vagão e nós fomos atrás... ficamos vendo a composição sumir na distância. Mas não desistimos, e numa outra oportunidade, sem sustos, partimos para o destino das agens com ida e volta. Depois desse dia programamos uma viagem, esta bem longa, com horas de duração, cujo destino era a casa dos avós. Tudo começou também na Estação da Luz, mas numa determinada estação fizemos a baldeação para uma outra linha de bitola estreita em que os vagões de madeira de cor vermelha eram puxados por uma locomotiva diesel. Durante o trajeto, contei-lhes da minha infância, quando das minhas idas e vindas a São Paulo, nesse mesmo percurso. A locomotiva era a vapor e para movê-la tinha que queimar lenha, e as fagulhas entravam pela janela queimando as roupas dos ageiros menos avisados.
Quando pequeno, vínhamos de Campinas para São Paulo nos trens da elegante Companhia Paulista de Estradas de Ferro, em vagões com toalhas de renda para recostar a cabeça, lustres em cálice e vidros bisotês. E com um ótimo carro-restaurante para lanches. Luiz Saidenberg
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O barulho da locomotiva Américo Gabriel Guazelli Era criança no começo da década de 1960. Minha avó morava no Horto Florestal, eu ia até a sua casa de trem, no Trenzinho da Cantareira. Eu morava no Bom Retiro e minha mãe me colocava no trem no começo da linha, que ficava na Rua João Teodoro com a Avenida do Estado. Lembro que ela recomendava insistentemente para eu tomar cuidado. Quanto mais me aproximava do Horto Florestal, mais me embriagava com a visão esplêndida da Serra. A garoa fininha que me molhava pela janela aberta do trem e o barulho da locomotiva me faziam o mais feliz dos “viajores”. No fim da viagem, minha adorável vovozinha já me aguardava e me recepcionava com um beijo e um carinhoso abraço. Tenho até hoje na memória o cheiro de fermento que ficava impregnado no seu avental, pois toda vez que ia até a sua casa ela fazia uma fornada de pão, e uma parte da massa era para fazer frita, pois ela sabia que eu gostava muito. Tudo aquilo era imenso para mim. Talvez por que eu era muito pequeno, pois naquela época até o rio Tietê me parecia muito mais largo, quando da travessia dentro do trem.
O bonde Avenida Angélica Rubens Cano de Medeiros Em 1947, ano em que nasci, a Municipalidade – com a criação da CMTC – trouxe, de Nova York, um bonito tipo de bonde. Diferente dos camarões que aqui já circulavam há anos. Esse novo bonde trafegara na Broadway. E quando alguém dele falava, se referia ao Gilda – seria uma alusão (esquisita!) à beleza de Rita Hayworth, à época estrelando filme com personagem de mesmo nome. Quando eu era moleque, viajei neles em algumas linhas: 19-Perdizes, 28-Pinheiros e 35-Lapa, por exemplo. Muitos devem se lembrar. Entretanto, esse bonde “moderno”, para mim, era a “cara” da Linha 36Avenida Angélica. Eu o chamava de o bonde Avenida Angélica. Que eu me recorde, salvo engano, desde que a Linha 36 o adotou, só havia desses carros nessa mesma linha, que eram guardados, à noite, na estação da Alameda Glete. Aliás, a Linha 36 saía do Centro, rodava, e voltava para o mesmo Centro! Praça João Mendes, Liberdade, Paraíso; contornava a Praça Oswaldo Cruz, Paulista, Angélica até a Praça Marechal Deodoro; São João, Paissandu e Praça do Correio. Volta, vice-versa. Como meu pai trabalhou por 35 anos nas oficinas do Cambuci, da Light, e como nasci e morei próximo à estação da Vila Mariana, desde moleque me afeiçoei aos bondes – como ocorreu a
do bonde ao metrô
muitos outros paulistanos. Daí, um carro tão bonito e confortável, como o Centex, me impressionar. O Gilda, comparado aos camarões e aos carros abertos, era moderno. Originariamente, tinha assentos de palhinha trançada, em vez de bancos de madeira, como nos demais; excelente iluminação interna; freio acionado, não a mão, mas pelo pé do motorneiro; limpadores de pára-brisa, que os camarões não tinham; janelas que subiam e desciam travando no percurso: não eram como as dos camarões que, ou abriam, ou fechavam, de vez. Os Centex eram equipados com sistema de calefação – aqui, desativados, eram para o frio nova-iorquino. Enfim, sobressaíam. Eram elegantes. Folheando jornais da época, via fotografias e textos que ilustravam sua vinda da Broadway: desembarcaram em Santos. Esses bondes ostentavam, bem na frente, uma enorme letra B, pintada na lataria. Era uma alusão à Broadway, onde eles trafegavam antes, como constatei. Eram carros usados, já. Foram tratados pela imprensa paulistana como “velharia”, “sucata”, “engodo à população paulistana”. É certo que careciam de reparos. Mas, reformados pela Light, no Cambuci, prestaram serviço por muitos anos. Briosamente. Até que o sistema de bondes se mostrasse obsoleto para a gigantesca metrópole paulistana. O nome Centex era porque tinham duas portas de saída. Uma de cada lado, bem no centro do carro, daí, Central Exit, como se vê, saída central. Quantos de nós viajamos neles e nem sabíamos, nem de “Gilda”, nem de “Centex”... Para mim, Angélica e Paulista – charmosas que sempre foram – traziam à mente de pronto a figura do Centex, que por elas ava.
Eu só tomava os bondes Perdizes, que eram dois: 19-Praça do Correio e 39-Praça Ramos de Azevedo. O trajeto do Centro era feito por uns ônibus pequenos de carroceria cor de prata, das linhas 1 e 2-Avenida. Faziam o mesmo percurso em sentidos contrários. Um deles, no período noturno, sofreu um acidente, ao que me parece na Avenida Angélica e tombou sobre seu lado direito, incendiando-se em seguida. Havia somente uns poucos ageiros, mas todos morreram carbonizados porque não havia porta de emergência do lado esquerdo do veículo. A Linha Circular fazia o giro no Centro indo do Largo do Paissandu à Praça da Sé e vice-versa. Eram ônibus confortáveis, grandes. Eu fazia um curso noturno na Rua São Joaquim das 19 horas às 23 horas. Na saída tomava o bonde Cambuci até a Praça Clóvis Bevilácqua, ia a pé até a Praça da Sé, tomava o Circular e descia no Paissandu onde pegava o bonde 19Perdizes. Adivinhe, só chegava em casa, na Rua Itapicuru, depois da meia-noite, onde sempre havia um “PF” me esperando dentro do forno, carinhosamente preparado pela dona Didi, hoje com 97 anos. Expedito Marques Pereira
Embora eu tenha quase só viajado no bondinho aberto que fazia a Linha 20-Fábrica, nas poucas vezes que utilizei o Gilda senti grande prazer, realmente, como diria um sujeito que conheci, era um “plus a mais”. Antonio Souto
O bonde da garoa Mauro Lima de Souza Cenário: anos cinqüenta. Nas noites de domingo, lembro que meus pais e eu quase sempre voltávamos de um encontro com a família de minha mãe, em Perdizes. Quando caía a noite, voltávamos para a casa na Rua Vergueiro, na Liberdade, para o recomeço de mais uma semana. Esperávamos por muito tempo o bonde 19, em Perdizes, no final da Rua Caiubí, para saltarmos na Praça Marechal Deodoro. A garoa e o frio eram terríveis. E a angustiante espera do bonde Angélica de número 36 era compensada pelo seu percurso maravilhoso pela outrora iluminada avenida. Lindo era o percurso através da vazia Avenida Paulista. A beleza do Fasano me chamava a atenção. O ronco do motor elétrico e a romântica luz tênue de seu interior estão vivos em minha memória. As gotas daquela garoa ainda não secaram no meu coração.
Por volta de 1963, eu estudava Química Industrial no Oswaldo Cruz, na Angélica quase esquina com Praça Marechal. Tínhamos aula de sábado à tarde – calcule a nossa alegria. Num sábado, sem ter o que fazer, fomos ao sorveteiro e pedimos gelo seco, colocamos nas poças de água ao lado dos trilhos e começou a fumaceira. Um aluno foi chamar o Bedel, não lembro o nome dele, mas lembro que ele tomava todas e que naquele horário já estava “calibrado”. Quando ele chegou falamos que a fumaceira era gás, que estava escapando da tubulação do laboratório que ficava no subsolo e que uma faísca da roda do bonde poderia explodir o colégio. O Bedel foi para a esquina da Alameda Barros e começou a parar os bondes. Para encurtar, até o Diretor Técnico chegar já havia bondes até a Paulista. Antonio Souto
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Bonde Avenidas, o Camarão Turan Bei Está garoando, você está na dureza, não se chateie com a vida, por apenas Cr$0,50 embarque no bonde Avenidas e espante a tristeza! Bem que poderia ser um texto de um cartaz daqueles que havia nos bondes, que com o tempo a gente acabava decorando saltado e pulado. Não só eu, mas garanto que muita gente utilizava o bonde Avenidas como uma forma barata de lazer, principalmente naqueles dias noturnos com a famosa garoa paulistana. O nome ecológico de Camarão vinha da cor vermelha, mas, pelo requinte que ele ostentava, poltronas de palhinha, encostos revestidos com tecidos brancos, tudo impecavelmente limpo, bem que poderia ser chamado de limusine. Quem operava o bonde era chamado de condutor ou motorneiro; na roleta, o cobrador. Não converse com o condutor, Prevenir acidentes é o dever de todos, Facilite o troco, Não fume, eram orações que ninguém esquecia. As propagandas fixadas na parte alta das janelas ganharam fama e campeonatos de permanência, como a do Rhum Creosotado. O trajeto da Praça João Mendes, junto à marquise de embarque, até a Praça do Correio, por muito tempo sem as marquises, seguia pela Avenida Liberdade, Rua Vergueiro, Rua Paraíso, Praça Oswaldo Cruz, Avenida Paulista, Rua da Consolação, Rua Maceió, Avenida Angélica, Avenida São João, Rua Capitão Salomão e Praça do Correio novamente. O pedaço mais charmoso era o da Avenida Paulista, com aqueles palacetes e palácios. Só o do Conde Matarazzo ocupava um quarteirão inteiro, outro ocupava o quarteirão da Augusta com a Alameda Santos e Padre João Manoel, onde hoje está o Conjunto Nacional. Entre os ícones da época que eram referências no trajeto, lembro dos prédios do Centro Professorado Paulista, do Clube Alepo, do Clube Homs, do Trianon e do Parque Siqueira Campos.
Os Bondes de São Paulo Paulo Romanelli Em 1958, tinha eu meus 14 anos e morava com minha família no bairro de Vila Clementino. Para lá, havia a linha de bonde 47-Vila Clementino. Os bondes elétricos eram abertos, com somente dois eixos centrais, estribos, balaústres e freios à manivela. Um sino tocado com o pé pelo motorneiro, o condutor, servia de buzina. Partiam do Centro da cidade no seu ponto inicial na Rua Asdrúbal do Nascimento, subiam a Avenida Brigadeiro Luís Antônio, entravam à esquerda na Avenida Paulista e seguiam pela Avenida Domingos de Morais até entrarem à direita na Avenida Conselheiro Rodri28
gues Alves, indo parar em frente ao Instituto Biológico de São Paulo. Aí era interessante: como desse local até o ponto final só havia uma única linha de trilhos, e esta servia tanto para ir como para voltar do ponto final, existia um poste com uma caixa seletora de semáforos com luzes verde e vermelha. A luz verde liberava o bonde para prosseguir viagem e a vermelha indicava que havia outro bonde na área restrita a uma só linha. Com a luz vermelha o condutor era obrigado a parar e esperar o retorno do outro bonde para poder seguir em frente. E ficava ali parado, às vezes por mais de quinze minutos, e ninguém reclamava. Fazia parte da viagem! Eu me servi durante alguns anos desses bondes. O lugar preferido pelos estudantes para viajar era a “cozinha” – apelido dado à cabine de trás do bonde. Lá se podia fazer bagunça, rir e contar piadas. Outro lugar disputado era o estribo. Perigoso, mas divertido. Subir e descer com o bonde andando era sinônimo de esperteza e habilidade. Quando alguém escorregava e caía, era uma gozação só. Outro bonde aberto que andei bastante foi o 3-Avenida. Tinha o mesmo ponto inicial do 47 mas, após subir a Avenida Brigadeiro Luís Antônio, entrava à direita na Avenida Paulista e descia pela Rua da Consolação, sentido Centro, até o seu ponto final na Praça Ramos de Azevedo, em frente ao Mappin e ao Teatro Municipal. Em 1960, mudamos para o bairro de Campo Belo. Aí eu tomava os bondes fechados, apelidados de camarões, por sua cor vermelha, que iam para Moema, Brooklin e Santo Amaro. Esses bondes tinham seu ponto inicial no Centro, na Praça Doutor João Mendes Júnior e seguiam pela Rua Vergueiro, Avenida Domingos de Morais, Rua Conselheiro Rodrigues Alves e aí chegavam ao Instituto Biológico. Nesse ponto, tinha início uma estrada de ferro, exclusiva para os bondes, totalmente cascalhada, com dormentes que prendiam os trilhos, e que ia até o centro de Santo Amaro. Os bondes possuíam um apito que alertavam pedestres e veículos quando atravessavam alguns cruzamentos.
Também curti muito os bondes que saíam da Ana Rosa e iam para Santo Amaro, meu pai era condutor de bondes nessa época, e eu aproveitei muito... Talvez alguém se lembre dele, seu apelido era Baiano. Esther Bacick
Transporte preferido Johannes Luyten Falo especificamente da linha de bondes que fazia o percurso Santo Amaro-Praça João Mendes. O trajeto em linha reta, que parecia uma linha
do bonde ao metrô
de trem, se iniciava no Instituto Biológico de São Paulo e terminava em Santo Amaro. Nenhum prédio, muitos campos, riachos e pouca luz à noite, quando podíamos ver a aproximação do bonde de longe. As estações eram sinalizadas em tábua de madeira. As linhas Indianópolis e Brooklin faziam os respectivos retornos nessas paradas. Estudei nos colégios Benjamin Constant, na Vila Mariana, Alberto Levy, em Moema, e Alberto Conte, em Santo Amaro, e para mim o bonde era o transporte obrigatório. Seu interior era de madeira com bancos feitos em ripinhas transversais, dispostos na lateral. Era no bonde que muitas vezes terminávamos a lição de casa ou fazíamos a última “decoreba” para a prova do dia. Com orgulho, cedíamos o nosso lugar para as meninas em uniforme vermelho ferrugem do Cristo Rei, às colegas do Benjamin com o CBC estampado no peito e às do GEPAL do Alberto Levy. O bonde era o transporte preferido, tudo ia bem até atingir a Vila Mariana, quando já na subida da Rodrigues Alves começava a disputa com os ônibus, carros e transeuntes. Isto ia se sucedendo, ando pela Domingos de Morais, Vergueiro, até alcançar a Praça João Mendes. Quando prestei o meu vestibular, antes dos unificados, era o fiel bonde que garantia o tempo para a Poli na Tiradentes, a FEI na São Joaquim, o Mackenzie na Consolação e a Mauá no Parque Dom Pedro II. Assisti a agem do último bonde no Brooklin. Na época nem me dei conta do quanto ele significou na minha vida.
Lendo esta maravilhosa história, consegui retornar ao tempo de minha infância, se não me engano, tinha 6 anos quando consegui pegar o bonde com o meu pai, um pouco antes de ser desativado. Fizemos uma bela viagem da Praça João Mendes ao Largo 13 de Maio, em Santo Amaro. Estudei sete anos, do ginásio ao colegial, no IEEPAC – Instituto de Educação Estadual Professor Alberto Conte, atual EESG Professor Alberto Conte. Já sou da geração FUVEST. Porém, tive o privilégio de vivenciar, ainda que por muito pouco, a época dos bondes. Carlos Katsuhiko Yamamoto
Bondes, emissários do progresso Laila Spinelli Lá pelos anos de 1958 a 1959, existiam os bondes que nos levavam do bairro do Paraíso, onde meus avós imigrantes libaneses moravam, para o início da Avenida Jabaquara, no bairro da Saúde, onde nós e mamãe vivíamos.
Os bondes tinham carcaça de ferro muito pesada e andavam devagar, nem se comparavam aos nossos ônibus de agora ou ao nosso metrô. Era uma diversão para nós, pequeninos, entre 3 e 8 anos. Vovô usava bengala e tinha dificuldade para entrar e sair dos bondes, mas fazia questão de nos transportar neles por considerá-los emissários do progresso!
Tim, Tim, duas pro patrão uma pra mim Celso Por volta de 1958, eu tinha uns 16 anos e trabalhava para ajudar a família. Usava um ônibus às 7 horas, que ficava superlotado no meu bairro, a Vila Matilde. Eu ia pendurado na porta traseira, do lado de fora e a bolsa, com a marmita, viajava presa entre as pernas até chegar na Avenida Celso Garcia, quando as pessoas desciam, o motorista parava o veículo para que todos pudessem entrar; sem isso o carro não continuava. O ponto final era no Largo da Concórdia, quando ainda existia o Teatro Colombo no centro da praça. Aí a gente se dirigia para o ponto do bonde, lá no largo mesmo. Os bondes vinham da Penha, Vila Maria, da Estação de Bondes do Brás e da Rua Rubino de Oliveira. No começo eram bondes abertos, vinham cheios e saíam lotados, as pessoas iam penduradas no estribo, em fila dupla, era perigoso cair. Muitos conseguiam descer com o bonde em movimento, alguns eram tão craques que pulavam de costas. E os cobradores dos bondes? Eram uns senhores bigodudos, muito boa gente, que cobravam quase todos, andando com as notas miúdas dobradas entre os dedos para fazer o troco. Eles avam por trás de todos que estavam na fila dupla dos estribos, cobravam primeiro os que estavam próximos e sentados, davam o troco e só depois é que registravam as quantias, puxando umas correias numa seqüência de vezes, cujo barulho era: Tim, Tim e o povo completava: Duas pro patrão uma pra mim. Eu gostava de viajar pendurado no engate traseiro do veículo, ia em pé e só cabia um ageiro, era folgado, e geralmente não era cobrado. A grana que sobrava era para um caldo-de-cana. A viagem terminava na Praça Clóvis Bevilácqua, ao lado da Praça da Sé. Depois a Companhia Municipal de Transportes Coletivos, CMTC, importou os bondes camarões, que eram fechados, com porta de entrada e de saída e roleta para pagar. Quem ia para a Avenida Paulista, saía do terminal da Praça Clóvis e caminhava para o da Rua Asdrúbal do Nascimento, os bondes subiam a Brigadeiro Luís Antônio, alguns desciam a Rua Pamplona, outros seguiam para a Avenida Angélica ou para o Paraíso. Quem ia para a Vila Clementino e Vila Mariana, se não me engano, se dirigia ao terminal da Praça João Mendes. Havia uma linha que ia pela Rua Conselheiro Rodrigues Alves, acho que chegava até Santo 29
Amaro. Um dia assisti um acidente com o bonde aberto, bem em cima do Viaduto do Gasômetro, no Brás, que a sobre a linha de trens. Um ônibus ultraou o bonde pela direita e fechou a frente do mesmo, na manobra cortou a perna de um ageiro do estribo, na altura da coxa... Coisa feia! São Paulo era muito diferente de hoje!
Meu bonde Anastácio Roberto Flügge Meninos, acreditem, vivi minha infância e adolescência em uma São Paulo que tinha bondes elétricos! As linhas eram geralmente radiocêntricas, ou seja, convergiam para o centro da cidade. A linha 37-Anastácio era uma exceção, pois partia da Lapa, em direção ao bairro do Anastácio, pelas ruas 12 de Outubro, Barão de Jundiaí, Brigadeiro Gavião Peixoto, Laurindo de Brito e João Tibiriçá, até as porteiras da Estrada de Ferro Sorocabana, onde hoje é a Estação Domingos de Morais da Companhia Paulista de Trens Metropolitano, TM. Era uma linha singela, que em seu trajeto possuía três desvios, para permitir a circulação de mais de um bonde. Na realidade, apenas um bonde percorria a linha, que recebia o reforço de mais um carro no período do pico, à tarde. Esta linha ava em frente à minha casa, à Rua Laurindo de Brito e no Colégio Campos Salles, onde eu estudava. Era, pois, a condução natural para ir à escola. Um só bonde na linha? Sem problemas, pois além de manter razoavelmente o horário, ninguém tinha pressa como hoje. Mais um detalhe: o ônibus custava um cruzeiro e o bonde cinqüenta centavos. Todo dia minha mãe me dava um cruzeiro para ir e voltar da escola. — Mãe, me dá dois, hoje quero ir e voltar de ônibus. — Dinheiro não nasce em árvore, ouviu? Tome um cruzeiro e vá de bonde! Quem disse que o dinheiro era usado na compra da agem do bonde? Um cruzeiro, na hora do recreio, rendia um guaraná; só que eu queria também um chocolate. E como fazer para ir e voltar da escola de graça? Existiam diversos meios. O melhor deles era fazer um fundo de reserva para comprar mensalmente uma caixa de charutos para o cobrador amigo e as viagens saíam de graça para a molecada. — Ei cobrador! Aquele moleque ali ó, não colaborou com a vaquinha. É um frescão! — Moleque safado! Vai logo pagando a agem que aqui não tem moleza não! Minha mãe diz ao meu pai: 30
— Acabo de ver o bonde ar; estava quase vazio, com o cobrador sentado no banco, de pernas cruzadas, fumando charuto! Que ridículo! Saio de fininha até o fundo do quintal para dar uma gargalhada! O cobrador amigo não trabalha hoje. É o seu dia de folga! Deu zebra! A solução é dar uma de “Miguel”. Você fica no estribo, sempre na posição contrária ao cobrador, e vai circulando para ele não te pegar. A isto se chama “chocar” o bonde. O problema é que certos cobradores detestam “chocadores”. Aí começa um pega-pega dentro do bonde e senhoras a bordo põem a boca no trombone contra esses “malditos pivetes”. Nesse caso, se você não tem um trocado extra no bolso, é melhor ir para casa a pé. Os bancos do bonde são para adultos, meninas e maricas. Moleque que não é marica gosta de viver perigosamente e anda no estribo, jamais desce no ponto; só desce do bonde andando. — Mãe, tchau, estou indo para a escola. — Vou com você; tenho que fazer umas compras na Lapa. Nesse dia o negócio é ir quieto e sentadinho ao lado da mãe. O maldito moleque que você mais detesta está no estribo, do seu lado e diz baixinho: — Maricas... — Moleque, ai se te pego no estribo do bonde! Chegando à escola você percebe que a porta está cheia de alunos e alunas. No meio deles está aquela supergarota de quem você está a fim. Você vai descer do bonde andando, só que de costas. Como se faz isso? Coloque-se no estribo de costas no sentido contrário ao do bonde e prepare as pernas: uma bem para frente e a outra o mais para trás que você conseguir e então salte lançando todo o corpo para frente como se estivesse se jogando no chão e apóie-se, no primeiro momento, somente na perna que estiver à frente. Devido à inércia, o seu corpo tenderá a ir para trás, ocasião em que você deverá travá-lo com a perna de trás. É um belo salto em que o figurante fica no lugar e não precisa dar aquela feia corridinha para vencer a inércia, quando salta de frente. A alegria é completa quando você arranca um “oh” de iração da garota em questão. Conselho de amigo: se você não sentir firmeza não o faça! Pode ser desastroso. O motorneiro do período da manhã está sempre de cara amarrada. Um dia, de saco cheio de tanta molecagem, pára o bonde e prega o maior sermão. Nós o detestamos. À medida que fomos crescendo, porém, começamos a gostar dele. Percebemos que ele estava preocupado com a segurança da garotada. A linha era um caco velho. Motorneiro novo metido a corredor era sinônimo de descarrilamento na certa! Não posso jurar, mas creio que a média era de um descarrilamento por semana! Hoje o motorneiro é o Mário. Legal! Sou amigão dele e posso ficar na cozinha junto com mais um amigo. O Mário é diferente! Dirige no maior pau! Não tem linha ruim para
do bonde ao metrô
ele. Sabe os lugares exatos onde brecar e acelerar. Dirige na velocidade máxima possível em cada trecho e tem um orgulho: nunca descarrilou! Por onde andará meu amigo Mário? Quando meu filho Sérgio tinha 8 anos, levei-o ao museu da CMTC e lá estava em exposição um bonde igualzinho ao da Linha Anastácio. Todo empolgado comecei a contar estas histórias a ele. Embasbacado, sem tirar os olhos do jurássico veículo, exclamou: — Pai! Você ia à escola com ele? Por que tiraram? Por que você pôde andar nele e eu não? Dei um sorriso amarelo, deixei cair uma gota de lágrima e percebi o quanto eu era feliz e não sabia.
Meu avô foi chefe de estação, exatamente na Domingos de Morais. Tomei o bonde da Linha 37-Anastácio centenas de vezes para ir visitar meus avós e meus tios junto com meus pais. Nós morávamos na Mooca e tínhamos que tomar três conduções para chegar até a Domingos de Morais: o Vila Bertioga até a Praça Clóvis Bevilácqua, outro até a Rua 12 de Outubro e finalmente o glorioso bonde. Carlos Roberto Teixeira Trindade Essa história do bonde da Lapa me fez reviver o bonde que ia para o Brás. Tudo o que foi relatado eu fazia, juntamente com meus amigos da Escola Roberto Simonsen. Minhas descidas do bonde andando se davam na Rua do Gasômetro. Mário Lopomo Também perpetrei essas traquinagens em bondes, mas em Campinas, quando estudante. Certa vez, saltei do bonde Bosque andando, caí e rasguei minha “elegante” calça de saco de aniagem. Talvez por isso é que, sempre, mais tarde, preocupei-me em andar bem vestido. Luiz Saidenberg
Esses jovens voadores e suas acrobacias maravilhosas Luiz Renato Ribas Silva Anos 1940, São Paulo, dos tempos dos bondes, dos trilhos nos paralelepípedos, dos cobradores acrobatas e dos jovens clientes, quase circenses. Tinha eu pouco mais de 14 anos. Estudava no Liceu Rio Branco, na Rua Doutor Vila Nova, e, como todo estudante com pouco dinheiro, ou voltava a pé do colégio ou de bonde. Morava nas Perdizes, na Rua
João Ramalho, que cortava a Cardoso de Almeida, por onde transitava o bonde, de laterais abertas. Normalmente, preferíamos os estribos externos, agarrados nos balaustres, por onde também caminhavam, lentamente, os cobradores uniformizados, sisudos e quarentões. Nós jovens, espertos, felinos, rápidos, quando podíamos driblávamos os cobradores para não pagar as agens, já que o pouco dinheiro havia sido gasto na cantina do colégio. Ou no bilhar da esquina. Quando, então, éramos surpreendidos na hora da cobrança, não restando mais nenhum “drible”, só nos restava ser mais “circenses” que o cobrador. Pulávamos, de costas, com o bonde a trinta quilômetros por hora, onde ele estivesse. Assim, nasciam os primeiros estudantes “malabaristas” de São Paulo, após, claro, muitos tombos. Éramos sempre vencedores, pois o cobrador era um só para um contingente de muitos caloteiros. Aliás, a cada dia escalávamos um estudante “coelho” para ser perseguido pelo velho cobrador, livrando os demais do pagamento da agem. No fim da linha, a gente rateava a agem do “coelho”. Coisa de criança, sim. Mas sem dinheiro suficiente para pagar a agem do dia-a-dia. O cobrador cansado acabava fazendo vistas grossas para evitar mais uma corrida sem sucesso atrás dos “jovens voadores com suas acrobacias maravilhosas”. Como tudo acontecia quase sempre no mesmo horário da volta da escola, amos a contar com a simpatia dos ageiros, daquele percurso de meia-hora, entre Higienópolis e Perdizes. Percebia-se, que muitos deles também tinham sido, na década de 1930, estudantes-ageiros. Mas a diferença era grande. Os bondes da época eram lentos demais, e as acrobacias, se houvessem, graça nenhuma teriam. Hoje, sem bonde, São Paulo não repete, pelo seu caótico trânsito, aquela saudosa nostalgia. Nem nós, aos 70 anos, temos um bonde, mesmo que seja somente para olhar, ver e sentir. O do museu, não vale.
Nos nostálgicos tempos dos bondes, eu não morava na cidade de São Paulo, mas chegava a ficar até dois meses na casa de meus irmãos na Rua Fidalga, Vila Madalena, Pinheiros, dos anos de 1953 a 1960, quando então podia participar das numerosas aventuras. José Luiz Mosca Fui um constante malabarista dos bondes da Consolação e da Augusta. Era hábil e só tive um incidente doloroso, saltei do bonde em frente ao Cine Odeon, perdi o pé, caí e quase perdi os dentes também. Ah! Perdi a pele dos dois joelhos e tive que esperar um bocado para que crescesse outra camada. Mas a vida de malabarista sempre me agradou! Miguel Chammas
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Assim era São Paulo Jayme Regen Por volta de 1946, havia bondes que circulavam pela Rua Teodoro Sampaio. Eles partiam do Largo de Pinheiros e iam até a Praça Ramos de Azevedo e depois faziam o mesmo trajeto voltando para Pinheiros. Na esquina da Teodoro Sampaio com a Rua Cunha Gago, havia um bar onde era comum os motorneiros pararem para tomar um cafezinho. Enquanto isto, os bondes permaneciam parados sem nenhum problema para o trânsito. Assim era São Paulo.
Lindos de se ver também eram os bondes Gilda e Camarão que trafegavam pela Augusta e Paulista. ei a infância viajando de bonde, porque meu pai foi condutor e eu aproveitava para viajar com ele para Santo Amaro. Quando São Paulo fez 400 anos, eu fui de bonde para o Ibirapuera, participei de todos os festejos. É com muito carinho que lembro desse tempo. Esther Bacick
Travessuras no bonde Jayro Eduardo Xavier De vez em quando saía da escola e pegava o bonde Domingos de Morais. Era daqueles abertos e grandes, com dois trucks de quatro rodas cada, ao contrário dos da Linha Bosque da Saúde, que eram pequenos e tinham só quatro rodas no total. Tinham estribos dos dois lados. Eu subia no bonde em lugar longe do condutor – condutor era quem cobrava; quem conduzia o veículo era o motorneiro – e quando este vinha cobrar eu ava pro estribo do outro lado. Um dia, o condutor cismou de me pegar e, pra me livrar dele, saltei do bonde andando. Ganhei umas esfoladuras. O bonde pequeno, de quatro rodas, era usado principalmente em linhas em que não havia balão de retorno. Chegando ao final da linha a alavanca, que ligava o bonde ao fio, era virada para o outro lado, o estribo esquerdo baixado e o direito levantado e as barras de contenção posicionadas de acordo. Sobre os condutores havia uma gozação: eles cobravam a tarifa e acionavam uma alavanca ligada a uma barra que acionava um contador instalado no alto da parte da frente. A cada movimento da alavanca um sino acusava uma tarifa. Costumava-se dizer: Dim, dim, dois pra Light e um pra mim. Os bondes fechados e com catraca estragaram a piada e a “boquinha” deles. 32
Tio Ignácio contava que certa vez, no Largo 13 de Maio, em Santo Amaro, subiu no bonde um bêbado conhecido no bairro. Havia muitos estudantes e logo eles aram a debochar do homem. A certa altura este se levantou e perguntou aos rapazes: — Vocês são filhos de Santo Amaro? Um deles, levantando-se também e disse: — Eu sou! E o bêbado: — Então você é um “filho-da-puta”, pois Santo Amaro não era casado!
Anúncios nos bondes Rubens Caruso Nas décadas de 1940 e 50, o bonde, além de um popular veículo para transportar pessoas, era também um importante meio de propaganda. Explica-se: a televisão estava muito longe de ser inventada, o rádio era ainda incipiente e o jornal, caro demais para os pequenos anunciantes, então as empresas recorriam aos cartazes no interior dos bondes. Às vezes, não eram anúncios de produtos e sim apelos institucionais, como: Cortesia com cortesia se paga. Ou frases de exaltação: São Paulo é o maior centro industrial da América Latina, pintadas na parte externa do bonde. Na propaganda comercial propriamente dita, fez história o reclame do Rhum Creosotado, um famoso xarope da época: Veja ilustre ageiro, o belo tipo faceiro, que o senhor tem ao seu lado. E, no entanto, (sic) acredite, quase morreu de bronquite. Salvou-o o Rhum Creosotado
Dentre esses anúncios, me impressionava a figura de um homem tentando arrancar a mordaça com as duas mãos e berrando: Larga-me! Deixame gritar! – Era o Xarope São João. Também ficou na memória o do careca correndo atrás do macaquinho que lhe roubou o vidro da loção capilar: Vem cá Simão! Traga a minha loção! E dos dois olhos, fixados nos ageiros, e a mensagem: Assim como me vês, são vistos todos os anúncios nesse veículo. Companhia de Anúncios em Bonds. Essas lembranças são uma verdadeira viagem no tempo. Voltei para a década de 1950, tomando o Praça Ramos—29, na Rua Teodoro Sampaio, quando ia com a minha mãe às compras no Mappin. Paulo Kirschner
do bonde ao metrô
Os bondes nasceram Light e morreram CMTC Rubens Cano de Medeiros Eu tinha uns 10 anos; minha mãe vendia roupas e tinha freguesas em vários bairros. Como eu ia com ela fazer compras, voltava invariavelmente de bonde, a partir da Praça João Mendes, cujo “abrigo de bondes”, ainda que descaracterizado, está lá, de pé. Morávamos na Vila Mariana e embora houvesse linhas de ônibus, o bonde era mais barato. Era preciso economizar. Descíamos no ponto da Domingos de Morais, quase esquina com a José Antônio Coelho, em frente à tradicionalíssima e bela Panificadora ABC. Como esquecer, hein? À tarde, hora do rush, o tal abrigo ficava superlotado. Todas as linhas que dali saíam nos serviam. Até mesmo o 36-Avenida Angélica, embora tivéssemos que descer no Paraíso e, dali, caminhar um bocado. Porém, o bonde que eu “temia” era o 101-Santo Amaro. Não só porque costumeiramente andava cheio, mas devido à hora de embarcar, na Praça João Mendes – as pessoas já eram afobadas, neuróticas, apressadas. Mal abria a porta dianteira, era aquele turbilhão! E então eu preferia que aguardássemos outras linhas, como o 102-Indianópolis ou o 103-Brooklin Paulista, os quais – “auxiliares” do Santo Amaro – iam menos lotados. Eram bondes camarões. Mas havia outros, como o 23-Domingos de Morais e o 27-Vila Mariana, que também serviam, menos cheios. Lembro também que, à época, a Linha 23, que era de carros abertos, tinha reboques. Anos depois, quando eu fazia entrega nas ruas, vim a conhecer o verdadeiro “leito ferroviário”, que era a singular e bela Linha 101, no trajeto além Biológico. Com paradas designadas por nomes, como Ypê, Pedro de Toledo, Moema, Piraquara, Campo Belo e Volta Redonda. Com sinalização nos cruzamentos de algumas vias, tal qual linha de trem! E com dois balões de retorno, para os bondes: Indianópolis e Brooklin. Já no Largo 13, um “abrigo”, similar ao da Praça João Mendes. Diziam que o 101 ia até Socorro. Mas não ia: do Largo São Sebastião, descia até perto da margem do rio Pinheiros. Só que ali não era Socorro. E o 104? Ia para Santo Amaro, São Judas Tadeu. A paisagem ao longo dessa linha era duma São Paulo, hoje, naquela região, inimaginável. Até ruas de terra! Casas com enormes quintais, muita vegetação. Fábricas em Indianópolis: Brindes Pombo, Barbará... Ainda hoje, quando o pela Domingos de Morais, altura da minúscula Praça Teodoro de Carvalho – em 1958, com muitas tipuanas – inevitavelmente me recordo da estação dos bondes, ali situada. Aos sábados à noite, minha mãe me levava para ver os bondes que vinham sendo recolhidos, após árdua jornada de trabalho. Vinham também, com letreiros de lugares que eu ainda não conhecia: Ipiranga, Vila Prudente e Fábrica. Para “dormir” com os demais das linhas da região. E eu morria de vontade – nunca concretizada! – de entrar naquele pátio repleto de veículos.
Deles todos, que eram de vários tipos, hoje só resta uma pálida lembrança, no Museu dos Transportes Públicos: três bondes mais uma réplica. E dentre eles, justamente um Camarão, daqueles da Linha 101! Igualzinho ao da última viagem para o Largo 13, em 1968. Igualzinho ao que, derradeiro, ao retornar à estação – depois da “cerimônia do adeus” – encerrou a epopéia dos bondes paulistanos. Quando se lhe apagaram as luzes. Fim de linha, bonde. Ponto final!
Recordo de uma mansão na Domingos de Morais, creio que entre o Largo Ana Rosa e a estação dos bondes, do lado direito sentido bairro: era uma bela casa meio barroca, num terreno ajardinado, espaçoso. Tinha até um gazebo (coreto), no jardim. Luiz Saidenberg Da linha de Santo Amaro lembro que existia um bonde de cor amarela e o motorneiro acionava um apito quando saía da Rodrigues Alves e entrava na atual Avenida Ibirapuera, em frente ao Instituto Biológico. Leonello Tesser
Os bondes que fizeram época Carlos Ogasawara Quem viveu a época, deve se lembrar que circulavam por uma grande malha em toda São Paulo, vários tipos de bondes. As linhas que se limitavam a atender regiões não muito populosas eram compostas de veículos pequenos de dois eixos, abertos, que nem tinham proteção para os motorneiros que, quando chovia, eram obrigados a vestir capas de chuva. As regiões mais populosas como Santana, Vila Mariana, Praça da Árvore, Bosque da Saúde, Ipiranga entre outras, eram servidas com bondes já um pouco maiores, também abertos, que tinham então dois truques com quatro rodas, e em determinados horários puxavam reboques para poder transportar mais ageiros.
O caminho dos bondes que iam para Santo Amaro parecia muito com uma estrada de ferro. Quando ava pelo Instituto Biológico a viagem era bucólica. Lembro, ainda muito pequeno, quando eu e meu avô pegamos o bonde em frente à Fábrica de Linhas Indiana. Logo depois da Avenida dos Eucaliptos, o bonde ava sobre o Córrego da Traição bem devagarinho. A estação ali se chamava Piraquara. José Eduardo 33
A Linha 621 Roque Vasto Quando foi iniciado o trabalho da construção do metrô Linha Azul em São Paulo, o trajeto interditou trechos das avenidas Jabaquara, Domingos de Morais, Liberdade e Rua Vergueiro. O bonde Santo Amaro e Brooklin tinha seu ponto inicial junto à Avenida Liberdade e seguia essa via até a Rua Vergueiro, a Avenida Domingos de Morais e por fim o Largo Ana Rosa. As obras de construção do metrô foram realizadas a céu aberto, no sistema denominado de Trincheiras, e impediram o trânsito por alguns anos. Por essa razão, o bonde ou a trafegar somente entre Santo Amaro e o Instituto Biológico – era um retão de quase quinze quilômetros e totalmente livre, pois era exclusivo do bonde, com apenas algumas agens de nível – e o percurso até o centro da cidade era realizado através de uma linha de ônibus. Com a extinção do bonde, o ônibus ou a fazer esse trajeto integral, do Centro até Santo Amaro, e essa linha se chamava 621. O curioso da história era que os motoristas e cobradores dessa linha conheciam a maioria dos ageiros que diariamente se utilizavam dos ônibus, e posso afirmar que, muitas vezes, quando eu voltava da casa da minha namorada – normalmente pegava o último ônibus, que vinha quase vazio – ia conversando com o motorista e o cobrador. Muitas vezes esquecia o guarda-chuva e, dias após, um dos cobradores me devolvia, ou então, me lembro bem de uma ocasião em que ao ar pela roleta o cobrador me disse que tinha que pagar duas agens. — Como duas agens? Eu estou sozinho! Ele sorrindo me respondeu: — É que o seu cunhado esqueceu o dinheiro em casa, e ao ar pela roleta disse que você pagaria por ele, logo mais à noite! — É! A fama de cunhados é verídica. Paguei as duas agens.
O glamour dos ônibus antigos Tony Silva Talvez por meu pai sempre ter trabalhado na área de transportes, por ter sido cobrador de bonde e de ônibus, ando depois para os escritórios da CMTC, nas garagens, onde permaneceu até 1971, quando se aposentou, eu vim a me tornar um “busófilo”. Fazia o ginásio pela manhã e à tarde me dedicava ao ócio, em casa, ou dava minhas saídas para um programinha duplo no Cine Cruzeiro, na 34
Vila Mariana, onde morava. Mas meu eio preferido era ar as tardes na antiga Estação Rodoviária Júlio Prestes. Antes da ampliação, havia nos fundos, atrás das plataformas, um banco de madeira com encosto, muito confortável, que ocupava toda a parede. Era lá que eu ava as tardes, vendo os ônibus entrando nas plataformas de embarque. E eu adorava ouvir os roncos daqueles ônibus antigos. Cada marca tinha o seu ronco característico, não tinha como confundir. Os meus preferidos eram os GMC, os Scania-Vabis e os FNM. Nunca gostei dos Mercedes, com seu “ronquinho asmático” e sem graça. Só me levantava, vez ou outra, para ir ao banheiro ou para comer um pastel, na Avenida Duque de Caxias. Retornava ao meu posto e lá permanecia até às 6 da tarde, quando voltava realizado para casa. Que me perdoem os adeptos do progresso, mas apesar de todos os avanços tecnológicos e de todo o conforto que os ônibus novos oferecem, eles não têm o mesmo glamour daqueles mais antigos. São todos muito parecidos e até os seus roncos se tornaram sem graça, padronizados, impessoais.
O coletivo Silvio de Lima Morava na Avenida Regente Feijó, Água Rasa, zona leste de São Paulo. Trabalhava de boy, na Sé, e o trólebus, nome técnico para ônibus elétrico, vinha da Vila Formosa apinhado de gente; raramente se conseguia entrar no primeiro, só era possível no terceiro ou quarto. Como a rotina era essa, quase todos os ageiros se conheciam. Às vezes nos cumprimentavam com um bom dia ou um simples acenar com a cabeça, e a deferência era entendida. De nome, conhecia uns poucos e a grande maioria era composta de marmiteiros assumidos. Era comum um segurar a bolsa do outro, afinal estavam todos no mesmo “barco”, na lida diária, na luta pela sobrevivência. Não sei o porquê, mas um belo dia uns vizinhos disseram que a partir do dia seguinte haveria, na Rua Água Rasa, um final de ônibus com partida de segunda a sexta-feira, das 6h30 às 7h30, com destino à Sé. E foi nesse novo horário que conheci uma nova turma. Composta basicamente de jovens como eu, a algazarra era tanta que quando faltava o Dinho, o mais engraçado de todos, o coletivo ficava sem “vida”. Dinho era um desses rapazes para o qual a vida era um grande circo: tudo pra ele era motivo de piada, todas muito respeitosas, que até alguns mais adultos, com o tempo, começaram a pedir. Isso quando não se punha a cantar, e aí a festa, as risadas e os desafinos do Betão tornavam a viagem um grande eio. Até o cobrador participava; o motorista, dava seu assentimento pelo retrovisor. Entre o Parque Dom Pedro e a Sé começavam a desembarcar os ageiros. E assim eu iniciava meu dia: uma festa dentro do coletivo para enfrentar mais um período de traba-
do bonde ao metrô
lho. Pena que hoje não existe mais essa linha. O metrô assumiu, com mais agilidade, seu lugar, mas não vemos mais o cobrador, o motorista. Dinho, Betão e Samanta, apelido do Ricardo, casaram. Dinho foi para os Estados Unidos, Betão tentou a carreira de cantor, mas virou gerente de banco e Samanta, só para os amigos, aplica na bolsa, está ricaço, mora num bairro chique. Magrão, que não havia entrado na história, fez operação do estômago, havia chegado a 100 quilos, a bem, se separou de Lilica – que conhecera no trólebus, mas continuam amigos, têm três filhos. E esse que vos escreve é apenas um rapaz latino-americano que gosta de lembrar daqueles saudosos tempos, pai de dois garotos lindos, com uma esposa maravilhosa que conheceu na Sé.
Ônibus Estações n° 5
algum o destino do dinheiro subtraído. Não raras vezes, uma viatura da polícia retinha o ônibus e mandava todos descerem para uma revista constrangedora em plena via pública. Isso na década de 1950.
Como, a partir de 1955, trabalhava no Aeroporto de Congonhas e morava próximo à ponte João Dias, pouco ia ao Centro durante a semana, mas nas vezes que fui e tive que tomar o ônibus Estações, a situação era exatamente essa que foi tão bem descrita por você. Jayro Eduardo Xavier
O Lapa-R Kemie Carolina Makiyama Guerra
Turan Bei A sua missão era interligar as principais estações ferroviárias da Capital, Presidente Roosevelt, popularmente chamada de Estação do Norte; Estação da Luz; Estação Júlio Prestes, mais conhecida como Sorocabana, com o Centro Velho de São Paulo. O percurso era Largo da Concórdia, Gasômetro, Avenida Mercúrio, Avenida Senador Queiroz, Cantareira, João Teodoro, Luz, Júlio Prestes, Duque de Caxias, Arouche, Avenida Vieira de Carvalho, Praça da República, São Luís, Viadutos, João Mendes, Praça Clóvis e Rangel Pestana. Os ônibus já possuíam as portas automáticas e as catracas. Mas eram as ocorrências no seu interior que tornaram essa linha um misto de folclore e crônica policial, começando pela superlotação, fato que propiciava aos batedores de carteiras um paraíso para suas atividades, e um inferno para os usuários, em particular às mulheres, quase sempre presas fáceis. Em geral os usuários eram migrantes que desembarcavam nas estações e se dirigiam para outros pontos de ônibus, sempre com intermináveis pacotes, sacolas, sacos, malas, o que congestionava o já estreito corredor do coletivo. A agem pela roleta ou catraca era um verdadeiro drama para quem possuía bagagem, pois, tinha que colocá-la no chão e retirar dos bolsos o dinheiro para pagar a agem, era nessa hora que o punguista reparava de onde saía e voltava o troco. Muitas vezes, eram ouvidas gargalhadas despregadas, quando alguém menos instruído sobre a catraca, jogava por cima a bagagem e num salto ava para outro lado. O cobrador, que conhecia bem o seu ofício, quase sempre flagrava o trapezista, era nessa hora que a turma do gargarejo mostrava o seu humor. As mulheres quando davam fé do furto de que haviam sido vítimas, esgoelavam a todo o vapor, e anunciavam aos quatro ventos e sem pudor
Quando eu era bem pequeninha, nos anos 1970, morava no Itaim e minha avó na Rua Francisco Leitão, em Pinheiros. Lembro bem do ônibus no qual minha mãe me levava até lá. Ele cruzava toda a Avenida Faria Lima e subia uma rua bastante movimentada, a Teodoro Sampaio. Tinha aqueles bancos fofos e um apoio de mão de metal que deixava a mão da gente com gosto de cabo de guarda-chuva, literalmente, e no qual, se a gente não tomasse cuidado, podia machucar a boca. O apartamento da minha avó, pra mim, era no fim da cidade. O caminho do ônibus era longo, e cabia o mundo naquelas ruas e avenidas. Muito tempo depois, fiquei sabendo que aquele ônibus era o famoso Lapa-R, linha até hoje em circulação, com o mesmo trajeto. Lapa-R para diferenciar do Lapa-C, que segue pela antiga Estrada da Boiada, hoje Diógenes Ribeiro de Lima. Linha notável, que não a no Centro, liga dois bairros-cidade: Lapa e Santo Amaro. Foi nesse trajeto que me dei conta de quão grande era essa cidade, e lá vi pela primeira vez um batedor de carteira em ação.
Quem não se lembra do Penha-Lapa Carlos Alberto Serrao Aquela linha de pequenos ônibus montados pela Caio Induscar que saía da Penha, lá na zona leste, e ia serpenteando pelas avenidas Celso Garcia e Rangel Pestana, atingindo o Parque Dom Pedro, a Praça Clóvis Bevilácqua, a Sé, o Viaduto do Chá, até chegar na Avenida São João e dali se dirigir para as bandas da Água Branca, Pompéia e, por fim, a Lapa. 35
A princípio, nos idos da década de 1960, eu ia com o Penha-Lapa até a Praça João Mendes, de onde pegava outro ônibus para o Cambuci, onde estudava. Já um rapaz, eu o tomava para trabalhar na Vila Romana, descia próximo da Estação Ferroviária da Lapa e subia a pé para a Vila Romana. Nessa época, começava a era dos computadores, pois lá os produzíamos, ainda muito rudimentares, e o Penha-Lapa já trafegava pela Radial Leste. O Minhocão também já existia. Me acostumei a ler nos ônibus, e li romances inteiros nessas viagens, além de jornais. Tempos difíceis aqueles. Quando o terminal dos ônibus ou a ser no Parque Dom Pedro, de onde removeram quase todas as árvores, só sobrando um corredor de asfalto, a cavalaria circulava por entre os operários e estudantes, intimidando, ameaçando.
Essa linha de ônibus foi tão famosa que serviu de refrão para muita coisa que fosse grande, por exemplo: um chope, se pedia pequeno, médio ou Penha-Lapa. Mário Lopomo
Os motoristas namoradores da Companhia do ABC Mário Lopomo A Vila Olímpia teve sua primeira linha de ônibus na metade dos anos 1950. Sua linha inicial era na Rua Clodomiro Amazonas, próxima à Rua das Fiandeiras. Posteriormente, foi parar na Rua Nova Cidade, bem perto do cruzamento com a Rua Casa do Ator, onde ficava a Padaria Mondego, de propriedade de Augusto Pissara. Dali, o ponto inicial da Linha 152 Vila Olímpia, que pertencia à CMTC, foi deslocado para o final da Avenida Doutor Cardoso de Mello, próximo à Alameda Raja Gabaglia. Em 1960 teve início a privatização de muitas linhas por parte da CMTC. A Linha 152, Vila Olímpia, foi uma das privatizadas. Coube a uma empresa de Santo André, Companhia ABC de Transporte Coletivo, ficar com a concessão dessa linha. Eram ônibus completamente diferentes dos ônibus da CMTC. A princípio, vieram ônibus com bancos de encosto alto reclinável, coisa incomum no transporte coletivo popular. Os motoristas eram todos uniformizados, calça azul-marinho e camisa azul bem claro. Estavam sempre bem penteados e barbeados. Isso atraiu a mulherada, que os via como verdadeiros artistas de cinema. Não tinha uma do bairro que não quisesse namorar um motorista da ABC. Toda manhã havia disputa de moças para ficar no banco dianteiro, próximo ao motorista. Eram poucos os cobradores 36
felizardos por uma escolha feminina. Havia muito preconceito pelo fato de a maioria dos cobradores serem nordestinos. Caso tivesse um bonitinho que não fosse nordestino, o banco ao lado dele sempre estava ocupado por uma moça interessada também. E haja papo! A paquera começou pelas industriárias e comerciárias, que toda manhã pegavam o ônibus para trabalhar. Quem mais namorava era o Cláudio. De fisionomia bonita, ele era o xodó das moçoilas. Namorava firme com as do dia e mandava ver nas da noite. Enquanto não dava confusão tudo ia muito bem. Mas quando havia a descoberta da namorada matutina, aí a coisa fervia. Encrencas mil. Puxões de cabelos, e até as duas rolando pelo chão a Vila viu. Quando vinha alguma mulher querendo acabar com a encrenca sempre tinha homens que não deixavam. Tinha gente que tirava um sarro com o Cláudio, dizendo: — Olha, cuidado para não ficar tuberculoso. Muito sexo não é bom. — O poço sempre fica, mas a corda um dia acaba – diziam muitos que não tinham a mesma sorte deles, os motoristas. Mas a coisa degringolou quando as mulheres casadas e, malcasadas, entraram na jogada dos motoristas. Aí a coisa ficou feia. Tinha uma ou outra que já era manjada por colocar chifre no marido. Mas outras eram tidas como de alta respeitabilidade no seio do bairro. E elas também ficaram assanhadas pelos motoristas. E para te falar a verdade, tinha cada mulher que valia a pena correr risco. Isaura, que morava no miolo das mulheres desajustadas, era outra que andava se enroscando com os motoristas da ABC. Aliás, a bem da verdade com um apenas. O Cláudio, que por sua vez não fazia o mesmo que ela. A que aparecia na frente dele, ele papava. Isaura não tinha como repreender, pois o amava, como dizia abertamente. Por ironia do destino Isaura também era esposa de motorista de ônibus. Só que da CMTC, o Alcebíades, homem pacato que na certa tinha sua sexualidade na base do papai e mamãe. Coisa que Cláudio detestava. Era de ir para o tudo ou nada. O que maravilhou Isaura, pois a pedido da mãe casou virgem e com quase 30 anos. Quinze anos de casada e ouvindo das amigas que sexo não era toda aquela formalidade, e que coisas mais gostosas se fazia e, não com o marido, ela se jogou nos braços de Cláudio que deu conta do recado dado pelas amigas de infortúnio. Isaura tirava da boca dos filhos para comprar roupas para Cláudio. Até camisas de trabalhar ela lavava. Para completar, ainda pagava o carnê das lojas Exposição-Clipper. Todo mundo na Vila Olímpia sabia da história, menos o Alcebíades. Tinha gente que não acreditava que ele não sabia. Pois andava sempre quieto e de cabeça baixa. Coisa de corno manso. Por ironia do destino, ele em toda sua quietude, no único dia de descanso que era o domingo, em que ia à missa, e depois se debruçava no muro
do bonde ao metrô
de sua casa, olhando o movimento da rua e as crianças brincando, ainda era confundido pelo seu Manoel, como se estivesse de olho na dona Antonia, sua esposa. Alcebíades era praticamente expulso do próprio muro de sua casa, coisa que ele atendia para não ter encrenca com vizinho. Até quando isso foi, não sei, porque se mudaram de lá tempos depois.
Antigo abrigo de Santo Amaro Roberto Pavanelli Desabrigado: pensam as pessoas modernas que os antigos não sabiam o que diziam. Ledo engano. Assim é que ouvia com freqüência de minha mãe: filho, sai do sereno que a bronquite vai te atacar. E não é que atacava mesmo? Tudo para dizer que, se hoje formos tomar um ônibus no Largo 13 de Maio, à noite, ficaremos no sereno. Sinto saudades do abrigo que há anos ados existia ao lado da Igreja Matriz. Lembram? Dali saíam os ônibus e microônibus que iam para Parelheiros, Cipó, Embu-Guaçu e outros locais. Sua aparência era tão bucólica que me parecia estar vivendo em uma cidade onde jamais correríamos qualquer risco. Ao olhar aquele abrigo, tinha a certeza que envelheceria na mais absoluta segurança. Ali, ao esperar o ônibus, as pessoas marcavam seus lugares nas filas com os pacotes de suas compras, enquanto iam tomar café ou comer um pastel. Era tão acolhedor, que parecia um conselho de mãe, dizendo: filho, não tome sereno. Hoje, substituído pelo terminal de ônibus Santo Amaro, que, embora infinitamente maior, não me leva a nenhum sonho.
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O trabalho é o “Padre Nosso”
“Agradeci, pedi licença e saí um pouco atordoado... transpirando... mas tinha conseguido um emprego!”
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O trabalho é o “padre nosso”
Acabou a vagabundagem Mário Lopomo Acostumados a jogar bola e brincar de diversas maneiras, a nossa turminha foi chegando aos 14 anos de idade. Sendo assim todos tinham que trabalhar. Naquela época, começo da década de 1950, podia-se iniciar o trabalho aos 14 anos de idade. Então, meu pai me levou à fábrica de móveis Artesanal, na Rua Arnaldo, atual Urussui, no Itaim Bibi. O Gordinho, Cláudio, foi trabalhar na Casa da Bóia, na Rua Florêncio de Abreu, e levou meu irmão José. O Ciniro foi trabalhar de padeiro e depois ou a entregar pão de fôrma Wickbold. O Zeca foi trabalhar na Florença Artes e Decorações, como aprendiz de tapeçaria, na Rua Cardoso de Mello, na Vila Olímpia. O César foi trabalhar na fábrica de calçados Scattamachia, no Bixiga, vizinho ao Teatro Brasileiro de Comédia, TBC. O Álvaro, filho de português, foi lidar com pão. Como não gostou de botar a mão na massa, foi ser somente entregador. O Valter, também filho de tintureiro, ajudava seu pai, entregando roupas. Seu Manoel tinha uma modesta tinturaria nos fundos da casa, na Rua Marquês de Cascais, no Brooklin Novo, e o Valter ia de bicicleta com aquele varal no e, carregando vários cabides, levando ternos, camisas ou vestidos. Éramos todos iniciantes nesse inédito negócio de ter que trabalhar. Antes era tão bom, ficávamos vagabundeando, jogando bola, brincando de mocinho, pula-sela, mãe da rua, pegador, jogar bafinha, palitinho e pegar égua barranqueira, além de ficar contando as piadas que todos ouviam dos pais. Piadas que os homens adoravam contar e que algumas mulheres ficavam vermelhas ao ouvir. Nem todos ficaram em seus empregos iniciais. Eu saí da fábrica de móveis Artesanal. Digo melhor, fui mandado embora, junto com outros nove garotos, todos pegos em flagrante roubando mexerica na casa do vizinho na hora do almoço. E cada mexerica, viu? Depois, fui para a firma Henrique Liberal, na então Avenida Imperial, atual Horácio Lafer, no Itaim Bibi. Seu Joaquim Fragano, o gerente, me mandou para o SENAI. Na prova de seleção tirei nota 53, o que causou uma bronca dele, me chamando de burro. Bem, mas fui aprovado. Raspando, mas fui. Meu irmão José saiu da Casa da Bóia e foi trabalhar de marceneiro na fábrica de móveis Lungarno, na Avenida Doutor Cardoso de Mello, 1200. Mas o Gordinho continuou lá na Casa da Bóia. Zeca saiu da Florença e foi trabalhar na Plavinil, no fundão da chácara Santo Antônio, onde chegou a chefe do horário noturno. Uma boa desculpa para, de vez em quando, pular a cerca. César continuou na fábrica de calçados Scattamachia, já era pespontador, e dos bons. De todos era o único que namorava firme, e apaixonado pela “mina”. Dilu pulava de galho em galho. Digo, de serviço. De biscateiro foi ser chofer particular. Carteava na Vila Olímpia, dizendo que era o colored das madames do Jardim Pau-
lista. Valter continuava a entregar roupas no varal que ficava no e da bicicleta, e quando não estava na rua, ava roupas, já com ferro elétrico. O que antes era feito com ferro à brasa devido ao racionamento de energia pela Ligth. Ciniro, de padeiro e entregador de pão Wickbold, foi ser motorista de caminhão. Seu pai, Antonio Banzatto, comprou um caminhão usado, Chevrolet gigante, com carroçaria já meio estourada. Em uma semana Ciniro deitou um poste da Ligth, na Avenida Santo Amaro, perto do nosocômio Santa Paula. Teve que pagar o estrago, três mil cruzeiros. Álvaro continuava entregando pães, com seu Prefect Cicle, que andava a quarenta por hora, e olhe lá. Entregava pão italiano da padaria Bazilicata do Bixiga. E pão francês da Padaria Mondego, da Rua Casa do Ator, na Vila Olímpia. Às vezes eu ia ajudá-lo nas entregas. Ele mandava contar os pães e colocar de três a cinco pães a menos. Quando dava zebra a bronca vinha pra cima de mim como desonesto. Após quatro anos do término da vagabundagem, chegou o tempo de servir o exército. Todos estavam na faixa dos 18 anos. Meu irmão, Ciniro e o Gordinho foram para Quitaúna, em Osasco, que ainda era um bairro da cidade de São Paulo, em 1958. César e Dilu foram para o Segundo Esquadrão, no Ibirapuera, na Rua Manoel de Nóbrega. Eu fui para o Segundo Batalhão da Saúde, na Avenida Independência, no Cambuci. Servir o exército era um saco. Quem mais se importunava com isso eram os nossos pais, pois iam ficar sem nossos salários durante um ano. Quando se juntavam depois de uma baralhada, ficavam falando: — Já pensou nossos filhos no Exército, varrendo aquelas ruelas, pintando as guias com cal, desmontando e montando aqueles jipes ridículos o ano inteiro? Seu Osvaldo acalmou todos eles: — Fiquem frios, tem um capitão que mora na Rua Guarará, ali perto da Brigadeiro, que quebra o galho. Todos ficaram assanhados: — É mesmo? Quanto ele cobra? — Quatro mil cruzeiros... — Quem é ele? — É o Capitão fulano de tal... Dizem que ele já “sifu” uma vez, mas continua ainda quebrando galhos – comentou o vizinho. Mas o sargento que fazia uma entrevista comigo no Segundo Batalhão de Saúde dizia outra coisa, em termos de permanência no Exército. Acho que ele foi com minha cara quando soube que eu trabalhava com estofamentos de móveis: — Você servindo aqui, vai ser meu ordenança e reformar todos os meus móveis. Vai ser uma babá. Levou-me até sua casa num daqueles jipes verde-musgo. Chegando lá, nem prestei muita atenção nos móveis que ele tinha, mas sim na sua empregada. Que morenaça! 41
Só sei que a ordem que recebi era não me apresentar no Exército, e sim ir dois meses depois na Praça Charles Miller “Jurar a Bandeira”. Um amigo meu que se apresentou junto comigo torcia para ver seu nome na lista dos que estavam no excesso de contingência. O nome dele não apareceu. E me disse: — Que sorte a sua, foi o penúltimo nome a ser lido.
Trinta dias de contrato de trabalho Clésio de Luca A nossa vida profissional marcada pelo vínculo empregatício é às vezes curiosa. Minha carreira profissional inclui trinta dias de trabalho em uma só empresa. Pode soar estranho, mas assim aconteceu comigo, quando residia na Rua Bento Freitas, esquina com Rego Freitas, próximo ao Largo do Arouche, no centro de São Paulo. Morava em pensão de portugueses. O movimento de inquilinos era grande e a comida razoável, sopa de legumes em geral. Para chegar ao meu local de trabalho, no bairro da Água Rasa, que se iniciava às 7 horas da manhã, eu precisava levantar às 5 horas. Caminhava até o Parque Dom Pedro II de onde saía meu ônibus, Água Rasa, para o bairro, e percorria uns cinco ou mais quilômetros. Era uma fábrica, por isso o horário industrial: 7 horas quando tocava a sirene. Na volta do trabalho, ao chegar em casa, muitas vezes precisava lavar minhas roupas e colocá-las para secar na janela do quarto, dormia logo depois, por volta das 21 horas, alimentado pela sopa de verduras. Precisava do descanso, pois tinha que acordar cedo para ir para o trabalho. Essa rotina foi pesando no resultado de meu desempenho no escritório, cujo tratamento era muito bom. Quando estava para completar os meus trinta dias de trabalho fiz o anúncio ao dono da empresa que precisava rescindir meu contrato. Ele estranhou e depois de muita conversa, mantida a decisão, compreendeu minha situação e assinou minha carteira sem necessidade de aviso prévio. Foram esses meus trinta dias de permanência na empresa, mas que fizeram parte dos quarenta suados anos de trabalho, antes da minha aposentadoria. Foram os trinta dias de trabalho mais penosos e tensos da minha vida, por ter optado em morar só, em uma pensão longe de minha família, e querer depender exclusivamente de minhas mãos, pés e cabeça. As lembranças, de todo modo, são sem mágoa, pelo contrário, tenho carinhosa recordação daquele homem fino, gentil e compreensível, dono de uma empresa de uns cem funcionários e que tinha idade para ser meu pai. Aliás, ele foi um. A empresa chamava-se Encadernadora Brás Cubas e o fatídico mês foi setembro de 1968. 42
Queria voltar no tempo! Marçal Acafori Como mudou a cidade! Como mudaram as pessoas! Na São Paulo da minha infância, os operários das milhares de fábricas usavam sóbrios ternos azuis-marinhos, chapéus Prada e levavam inseparáveis valises onde, com certeza, iam as marmitas! E as operárias então, trajavam vestidos longos e sóbrios acompanhados em sua maioria de chapéus elegantes, como se fossem a uma leiteria na Rua São Bento, ou ao Mappin Store. E todo final de tarde lá vinha aquela garoa fininha que aos poucos molhava a todos e a tudo. Tenho saudades do barulho dos bondes a ranger sobre os trilhos da São João, da concha acústica do Pacaembu, dos pratos pedidos pelo número da Salada Record, das pizzas do Castelões, no Brás, onde íamos após o Cine Piratininga! As ruas eram com certeza mais limpas e o povo mais educado que hoje! Ainda havia uma certa ingenuidade na maioria da população, os idosos eram respeitados, os deficientes auxiliados nas ruas e as mulheres ainda tinham feminilidade.
Dessa São Paulo antiga tenho vagas lembranças, a mais marcante é de quando eu tinha 3 anos e via as operárias da Tecelagem Assad tomando o bonde na Rua dos Sorocabanos, defronte ao parque infantil onde minha mãe me deixava para ir trabalhar. Elas se vestiam de maneira simples mas elegante. Antonio Souto Hoje a hipocrisia é bem menor do que antes. Havia tabus, a virgindade era um. Quantos casamentos foram desfeitos antes das 24 horas do enlace? As moças que ficavam grávidas iam ter seus filhos em outros bairros, ou fazendas, caso fosse filha de rico. As mulheres apanhavam dos maridos e o casamento durava até a morte, porque o padre dizia. Mulheres ousadas, que se separavam, ficavam à margem da sociedade. Moças que engravidavam eram expulsas de casa. — Aqui não tem lugar para prostituta – era o que ouviam. Cansei de ver e ouvir isso. A sociedade apodreceu em certos pontos, mas amadureceu em outros. Mas eu não troco o antigamente pelos dias de hoje, mesmo com tudo de ruim que temos. A abertura, as mudanças, valem a pena. É muito ruim ver as coisas ficarem debaixo do tapete. Mário Lopomo
O trabalho é o “padre nosso”
Interoceânica
As indústrias do Itaim
Heitor Felippe
Mário Lopomo
Não! Não é uma estória ada do outro lado do oceano. Interoceânica foi uma firma de importação e exportação, situada na Rua do Tesouro, 23, 6º andar, no prédio da Companhia City, onde trabalhei quando tinha 14 anos, como office boy. Fazia de tudo, ava o espanador nos móveis logo ao chegar, depois fazia café e servia os funcionários. Foi meu primeiro emprego. Minha chefe era uma moça descendente de alemães, dona Hilda, Hildegard Ruth Arnold, bondosa, rígida, me ensinou a ter responsabilidade pelas coisas que eu fazia. Tinha o diretor-geral, senhor Eurico Bauer e o contador, Cezar Castiglia. Tinham mais pessoas que minha memória insiste em não lembrar, mas, não posso esquecer do Wlir Michepud e ainda dos donos da firma, senhores Rafael Mayer e Fabio Bruno. O serviço mais chato que tinha era ir à carteira de importação e exportação do Banco do Brasil, na Rua 15 de Novembro, dar entrada nas guias de importação, um calhamaço de papéis datilografados em sete ou oito vias. Filas imensas e uma demora de horas. O almoço quase sempre era numa salsicharia que ficava no Largo do Café, pequena, sujinha até, mas que tinha uma salsicha maravilhosa, que era consumida junto com um “caçulinha” da Antarctica. Bem... aos 14 anos, tudo era bonito.
Uma coisa que o bairro do Itaim Bibi não tinha muito era indústria. Que eu me lembre, fora a fábrica de chocolates Kopenhagen, tinha a indústria de móveis Artesanal, que ficava na Rua Arnaldo, atual Urussui, próxima à Rua Leopoldo Couto de Magalhães Júnior, conhecida como Rua do Porto. Além dessas duas indústrias, tinham também as pequenas e médias empresas. Na Rua Iaiá tinha a Paubra, Pau Brasil Ltda. Penso que poucas pessoas se lembram dela. No lugar da Paubra veio a fábrica de televisores Windsor, era uma indústria inglesa. Tinha também a Carpintaria Fontes, na Rua da Ponte, em frente à travessa de mesmo nome, a indústria de adesivos Adesite, na Rua Joaquim Floriano e para completar me lembro da Serralheria Andrade, na então Rua Tapera, atual Bandeira Paulista, que se mudou para a Avenida Bandeirantes. Meu primeiro emprego foi na fábrica de móveis Artesanal. Fui levado pelas mãos de meu pai ao seu Orlando, subgerente, subordinado a seu Guido, o “gerentão” da firma. Meu pai queria porque queria que eu trabalhasse na tapeçaria, achava ele que era a profissão do futuro. Tinha várias seções: marcenaria, tapeçaria, pintura, lustração, serraria e o local para ferragens, onde se fabricavam as poltronas em ferro, em formato de conchas, recobertas com cordéis coloridos entrelaçados. Lá trabalhavam homens já de uma certa idade, na média de uns 30 anos. O mais velho era o chefe. Na época era chamado de mestre, seu Atílio Paladino. Depois vinha seu Luiz, o Luizão, e também Luís Borracha, um cunhado do seu Orlando, que era tido como meio patso. O Ballota era um tremendo carne de pescoço. Já Aurélio, Joaquim, Chico, André e Noé eram tidos como gente de alta respeitabilidade, não dados a uma brincadeira. E engraçadinhos tinham aos montes: Natal, Fininho e Macarrão eram jovens que gostavam de uma boa brincadeira, e assim até os mais sérios tinham que sair da compostura. Fininho era tão magro que não se podia ligar o ventilador, pois ele podia ser arrastado. Macarrão tinha esse apelido porque estava sempre com o nariz escorrendo. Aí vinham os moleques: eu, o Melão, o Murruga, sinônimo de português, também conhecido como Galinha, porque seu pai vendia galinha na feira, e o filhote do Diabo, o Baltazar, um “crioulinho” muito metido. O apelido se justificava, era tão feio que assustava até gente grande. Tudo isso só na tapeçaria. Sem contar nas outras seções. A brincadeira mais comum era dar bastonadas na cabeça dos moleques; quem gostava de fazer isso era o Luís Borracha, assim apelidado por ser cachaceiro. Quem tomava mais bastonadas era o Melão. Isso porque tinha uma cabeça grande. Por isso o apelido de Melão. Mas o que chamava atenção era um jogo que consistia em embocar uma caixinha de fósforo nas caixas de ferramentas. Uma caixa ficava a cinco metros de distância da outra. E cada um dos litigantes defendia uma caixa
Eu também era um assíduo freguês da salsicharia do Largo do Café, mas também costumava comer o sanduíche de lingüiça da casa de sucos que ficava ao lado da A Exposição, na Rua São Bento. Deliciosos tempos, com mostarda ou vinagrete. Quem de nós, paulistanos de mais de 60 anos, não comeu naquela lanchonete do Largo do Café?! Era o máximo! Pudera: eram salsichas Santo Amaro! Jayro Eduardo Xavier Eu também comecei a trabalhar com 14 anos, e ganhava meio-salário mínimo. Lembro-me de um sanduíche de mortadela frita com um molho vinagrete que era vendido numa lanchonete próxima ao meu trabalho e também era consumido com uma “caçulinha”. Bom demais! Bernadete Pedroso A salsicharia existe, mesmo pequenina, até hoje, com muito sucesso. Luiz Saidenberg
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para não deixar o outro embocar. Tinha até torneio. Eu era o encarregado de vigiar a hora que seu Paladino chegava. E para disfarçar, me davam um pedaço de madeira e um serrote para eu fingir que cortava, com o escopo de avisar a hora que ele estava chegando. Só que eu ficava vidrado na disputa e me distraía. Um dia, quando percebi, seu Atílio estava bem perto e viu os caras jogando. Eram Fininho e Macarrão, os mais fortes nesse jogo. Quando avisei era tarde, o chefe já tinha visto. Ele entrou e olhou com cara de cínico para o Fininho e para o Macarrão. Os oficiais com uma tremenda vontade de rir, mas se segurando. Mas quando seu Atílio chegou até mim e disse que eu não prestava nem para avisar os amigos que ele estava chegando, o riso foi total. Aí não tinha seriedade nenhuma que resistisse, até os mal-humorados crônicos riram à beça.
Vestido de noiva do IV Centenário João Batista Chiachio Ao entardecer do dia de São Pedro, em 1953, chegaram em São Paulo Zé Chiachio, Maria do Rosário, Zina, Lene, Dito, Fia, Maria Inêz, João e Zé Marcos. Paradoxal, mas no dia de São Pedro, São Paulo os acolheu. Um típico frio de inverno, porém menos intenso do que o do Paraná. Saíram de Botelhos, Sul de Minas, para tentar a vida em Ivaí, no Paraná. Nada deu certo por lá. — Bem pessoal, vamos descarregar a mudança que já chegamos – disse Zé Chiachio, o chefe da família. Mas, ao se aproximar da casa, onde pretendia morar, uma surpresa desagradável: — Esta casa já está alugada – disse uma senhora. — Mas eu tratei o aluguel com o senhor Romão! – retrucou Zé Chiachio, já demonstrando desespero. — Pois é, falei com o senhor Romão e ele me disse que quem queria alugar não pagou o depósito, por isso achou que tinha desistido, então alugou pra mim – respondeu a dita senhora. — Não é possível! O que vou fazer agora? Estou com toda a minha família no caminhão, viemos de Ivaí, pra lá de Londrina, no Paraná. Faz uma semana que estamos viajando – replicou Zé Chiachio, em total desconsolo. Senhor Atílio, impaciente, queria descarregar a mudança em qualquer lugar, porque já tinha frete contratado para voltar pra Londrina. Zé Chiachio, guarda-livro de profissão, embora sua especialidade fosse pintor de faixas e placas, com 51 anos, não arranjava emprego, ou melhor, não parava em trabalho algum. Zina, a mais velha, estava com casamento marcado para abril de 1954, em Botelhos, mas ainda não tinha uma só peça de seu enxoval. Lene, no auge dos seus 18 anos, já lecionava em escolas pú44
blicas, embora ainda não tivesse concluído o Colegial. Dito e Fia, com 14 e 10 anos, respectivamente, mal freqüentaram escolas. João e Zé, crianças, com 7 e 5 anos, apenas comiam, dormiam e brincavam. Maria do Rosário, que só fazia acompanhar, pacientemente, Zé Chiachio, depois que deixaram São Gonçalo, pulando de casa em casa, e cuidando de todo mundo, indagou: — E agora Zé, pra onde vamos? — Uai pai, não temos onde morar? – perguntou Zina, meio esbaforida. — Meu Deus do céu, o que será de nós?! – exclamou Lene. — Uai, vamos dormir debaixo da lona do caminhão – sugeriu Dito, acreditando que a farra de dormir debaixo da lona durante a viagem poderia continuar. Toda aquela algazarra familiar, em frente à sua casa chamou a atenção de dona Mulata. Vendo o caminhão com a mudança e toda aquela família, pai, mãe, três filhas, um adolescente e duas crianças, sem lugar pra morar, propôs: — Olha, tem uns cômodos nos fundos da minha casa que não ocupo. Se quiserem podem morar até acharem outro lugar. Sem titubear, Zé Chiachio pegou a chave e mandou descarregar a mudança. Quarto, sala, cozinha e banheiro, todos pequenos. Mas era a salvação. Rua Cajuru, 11, fundos, Jabaquara. Bendita dona Mulata! Bem, já tinham onde morar. Tá certo que espalhavam colchões pelo quarto, sala e cozinha dormir, mas tinham um teto. — E agora Zé? Estamos aqui em São Paulo, morando de favor num cubículo, sem dinheiro, você sem emprego, com as meninas e crianças. O que vamos fazer? – indagou Maria do Rosário, com a cabeça envolta nas mãos, desconsolada, como se não estivesse acostumada com as peripécias do marido. — Calma Maria! Pra tudo se dá um jeito. São Paulo é terra de todo mundo. Esta cidade recebe e acolhe todos que vêm pra cá. Quem sabe aqui damos um jeito na vida. E os vaticínios de Zé Chiachio começaram a dar certo. No dia seguinte, dona Mulata, ao saber que dona Neusa, que morava no início da Rua Cajuru, procurava costureiras, arranjou emprego pra Zina e Lene numa fábrica de roupas, na Avenida Jabaquara. Bendita dona Neusa! Zé Chiachio arranjou dinheiro emprestado com seu irmão Paulo, que morava lá pelos lados da Saúde. Já tinham alguma coisa pra comer. Dito e João se juntaram a Noé e Luis Carlos, outros moleques da Rua Cajuru, e foram catar ferro-velho. Isso quando não jogavam bola no campinho improvisado no terreno baldio em frente à casa. Mas sempre arranjavam uns trocados. E a vida foi levando-os... Terminava 1953... E o casamento da Zina no ano que vem? Como comprar o vestido de noiva? Matutavam Maria e Zina. Com o resto do enxoval então, nem se preocupavam. Dona Neusa precisava de costureiras pra fazer bandeiras, faixas e flâ-
O trabalho é o “padre nosso”
mulas para a grande comemoração do IV Centenário de São Paulo, em 25 de janeiro de 1954. Bendito IV Centenário! Mãe, Zina e Lene assumiram com dona Neusa toda a confecção. Com o dinheiro extra, daria pra pagar o vestido de noiva da Zina. Como fazer? Uma só máquina de costura pra três costureiras? Mãe costurava o dia inteiro. Zina e Lene se revezavam depois que chegavam do trabalho, uma costurava até de madrugada enquanto a outra dormia. Depois, invertiam. Quando as três estavam acordadas, uma cortava, outra chuleava, a terceira costurava. Até a Fia ajudava, escolhia feijão, lavava arroz, lavava louça, separava os tecidos e mantinha outros afazeres enquanto as demais costuravam. Sábado e domingo costuravam o dia inteiro e a noite toda, revezandose na máquina. Domingo de manhã, Zé Chiachio pegava Dito, João e Zé Marcos e iam ver futebol no campo do Estrela da Saúde. Assim, as três costuravam sossegadas. Natal? Faixas, flâmulas e bandeiras. Ano Novo? Mais faixas, flâmulas e bandeiras. Papai Noel, peru, ceia só na fantasia de cada um. Cadê dinheiro? Tecidos, listas, emblemas de São Paulo se espalhavam pela casa toda. É fácil cortar, chulear, costurar três listas, vermelho, branco e preto todas na mesma ordem e disposição em dezenas e dezenas de faixas? Como costurar e chulear os emblemas de São Paulo? Como pregar os ramos de café? — Non ducor duco... O que é isso mãe? – perguntava Dito, curioso. — Sei lá menino... Não me amole que tenho que montar e pregar esta figura num monte de faixas e bandeirolas – respondia Maria do Rosário, já despachando o curioso. — Mas esses galhinhos, pra que serve? – insistia o pentelho. — Isso não é galhinho, seu bobo – advertia Lene. — Isso são os pés de café que são plantados em São Paulo – ensinava a professora. Freneticamente as três costureiras não paravam. Ainda bem que a velha máquina Singer não tinha motor, senão fundiria de tanto trabalhar. E a cada lote de faixas, bandeiras e flâmulas entregue recebiam a paga; imediatamente o dinheiro era levado para dona Zeta que fazia o vestido de noiva da Zina. Enfim, no dia 23 de janeiro, entregaram o último lote de faixas, bandeiras e flâmulas. Mãos, pés inchados e dedos calejados descansaram. Mas valeu a pena. O vestido de noiva estava pago e a Zina já começava a montar seu enxoval. No dia 25 de janeiro de 1954, a família toda foi pro Centro, no Anhangabaú, ver as comemorações do IV Centenário. A cidade toda estava em festa. — Mãe, Zina, Lene! Olhem as costuras que estavam lá em casa! – gritou João, estupefato ao ver os postes enfeitados com as bandeiras, flâmulas e faixas. — Nossa Senhora Aparecida, como ficaram bonitas! – exclamou, Zina já com os olhos lacrimejando.
— De tão lindas que estão, nem tô sentindo os calos e os pés inchados de tanto costurar! – balbuciou Lene, tomada pela emoção de ver o trabalho feito. — Eh, Maria, valeu a pena o trabalho de vocês! – completou Zé Chiachio. — Valeu foi um vestido de noiva. – arrematou Dito, lembrando do dinheiro ganho. — Bonitas as faixas, flâmulas e bandeiras. Muito lindas! – comentou uma senhora ao lado. — Muito bem feitas, os distintivos da Cidade estão perfeitos. Não tem nenhum com defeito, como é que será que foram costurados? – perguntou sua acompanhante. — Ah, devem ter importado de algum lugar. Tá muito bonito mesmo. Vai ver que gastaram um dinheirão pra trazer isso tudo de fora – sentenciou a outra. Mãe, Zina e Lene se entreolharam. Começaram a rir. Também, quem iria acreditar que foram elas as costureiras das faixas, flâmulas e bandeiras do IV Centenário? Pobres, humildes e anônimas naquela multidão! Quando tomamos o ônibus de volta pro Jabaquara, mãe, Zina e Lene mal continham a emoção pela alegria de terem participado, às duras penas, daquela data tão festiva. Afinal, foram participantes diretas do embelezamento da cidade de São Paulo em seu memorável IV Centenário.
A marmita da mamãe Ricardo Rodrigues O ano... 1963. Local... minha adorada São Paulo. Já não usava mais o caldeirãozinho como marmita, pois tinha adquirido uma marmita retangular, de alumínio. Muito boa mesmo. Após usá-la eu a deixava limpinha, bem embrulhadinha, com papelão e papel pardo, que olhando bem, nem parecia marmita. Às 17h30, saía do emprego e ia pegar o ônibus com destino ao Tucuruvi. Algumas vezes o ônibus ficava lotado e não havia lugar para sentar, então ficava em pé, segurando meu pacote, a marmita. Aí alguém sempre se oferecia: — Moço quer que leve seu embrulho? Eu então agradecia e dizia: — Não precisa, já vou descer. Um dia, fui ao ponto de ônibus, ei pela Rua Capitão Salomão e vi uma loja com muitas maletas, bolsas e valises na vitrine. Como tinha recebido meu salário naquele dia, pensei: vou comprar uma maleta, assim posso levar meus cadernos e minha marmita e ninguém mais irá ver que levo marmita. Bom, entrei na loja com meu pacote debaixo do braço. A vendedora 45
me atendeu educadamente e mostrei a ela o tipo de maleta que eu queria. Paguei, ela tirou o pó da maleta, olhou bem pra mim e disse: — Quer que embrulhe? Eu disse: — Não, já vou levá-la assim mesmo... Então ela completou, olhando para meu embrulho: — Quer guardar a sua marmita aqui dentro?! Não adiantou disfarçar. Por mais caprichado que tivesse o embrulho, sempre ia parecer uma marmita. O ano... 1972. Local de trabalho... Rua Xavier de Toledo, não como office boy, mas com um cargo mais elevado. Ganhava um ótimo salário, mas, como sempre fui um marmiteiro fanático, continuava levando minha marmita, pois adorava a comida da minha mãe. Ela fazia com amor e com carinho. Nós, os funcionários, deixávamos as marmitas no aquecedor, em banho-maria e, quando chegava a hora do almoço, cada um pegava sua marmita e “crau”. Um dia peguei minha marmita, abri e me espantei, pois não tinha mistura. Exclamei: Será que minha mãe esqueceu de pôr a mistura? Bom... Paciência. Quando cheguei em casa, indaguei: — Mãe, a senhora não pôs mistura na minha marmita? Minha mãe disse: — É lógico que pus, o que você mais gosta, bife a rolê. Eu respondi: — É, mas não tinha nada. No dia seguinte minha mãe preparou a marmita e mostrou-me. Vi que tinha nhoque e carne assada. — Ô mãe, legal. Quando chegou a hora, coloquei a marmita no banho-maria e lá deixei até que o tempo asse. Quando fui pegá-la, qual foi meu espanto? Não só a carne assada tinha sumido, como o nhoque também. Perguntei pra um... Nada. Perguntei pra outro... Nada. Moral da história: fiquei sem almoço naquele dia. No dia seguinte, minha mãe preparou a marmita, com aquele arroz e feijão e um belo bife de mistura, mas, antes, coloquei no meu bife um molho de pimenta chamado Faísca, que vinha lá das Minas Gerais. Aquilo estava tão ardido que acendia até isqueiro. Deixei a dita cuja no marmiteiro e voltei às minhas funções. Quando fui almoçar, o que tinha acontecido: o bife sumiu, e fiquei de olho pra ver quem estava sofrendo. Aí descobri, era um rapaz pobre, que trabalhava conosco. Ardeu tanto, que ele ou o dia inteiro bebendo água. Depois tivemos uma conversa e fizemos uma reunião entre todos, cada dia um trazia duas marmitas. Durante muito tempo o ajudamos. E hoje ele é um homem próspero e sei também que ajuda muita gente.
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As marmitas da nossa juventude... Houve um político populista, Hugo Borghi, do PTB, que se referia ao seu eleitorado como “os marmiteiros”. Luiz Saidenberg E quem já não teve seus dias de marmita? Eu tive, e olhe que não faz tanto tempo assim... Só que eu, mulher, sempre colocava em uma sacola dessas de loja. Ninguém ficava sabendo... Doris Day Eu também carreguei por muito tempo várias marmitas naquela armação de alumínio, quando minha família “comia de pensão”. A lembrança do feijão maternal é que mais despertou interesse. Todo mundo gosta, seja mulatinho, roxo, jalo, branco, preto, tropeiro ou feijoada. E com muito caldo, bem quente e grosso para se tomar na caneca. Também me lembro do político Hugo Borghi, com o termo “marmiteiro” em sua campanha populista há várias décadas... Seu adversário, que até então era favorito, acabou perdendo a eleição porque foi acusado de desprezar o voto dos “marmiteiros”... Expedito Marques Pereira Eu também levava marmita. Um dia fui trabalhar e coloquei a marmita amarrada na parte de trás da minha lambreta. Quando fiz a curva da Rua Iguatemi para entrar na Rua Joaquim Floriano, deitei a lambreta para a esquerda. Um bom motoqueiro, só faz a curva deitando a máquina. Só que tinha muito óleo na pista e quem deitou fui eu, junto com a lambreta. Caído no chão, vi minha marmita jogada, aberta, com arroz e feijão espalhados, e um toquinho de lingüiça rolando no asfalto. Mário Lopomo Também já trabalhei de office boy na década de 1970 e já levei muitas marmitas. Ficava morrendo de vergonha quando aquela menina bonita do ônibus pedia pra segurar e colocava sobre as pernas a marmita gelada, que acabava de sair da geladeira. Luiz Carlos da Silva Eu também já carreguei muita marmita embrulhada na toalha de prato; agora está tudo diferente, até a marmita mudou e o pessoal chama de Marmitex! Renato Braga
O trabalho é o “padre nosso”
Os anos loucos Luiz Saidenberg Há muito tempo, mais de 30 anos, trabalhei na Avenida Vieira de Carvalho. Foi uma agem pitoresca, e de certo modo alterou todo rumo de minha vida. Era uma agência conservadora, mas o dono resolveu dar uma virada e contratou um badalado e tresloucado diretor de criação. Eu era do tipo “certinho”, e de repente me vi num ambiente hippie, mais parecendo um filme de Fellini, um Fellini adoidado. Meu parceiro, um jovem redator de cabelos compridos e bolsa à tiracolo, havia sido despedido da agência anterior. Tinha sido achado dormindo sob a mesa, embalado nos sonhos da marijuana. Seu apelido, aliás, era Cannabis. O novo chefe, como disse, muito famoso no meio, era astuto, megalomaníaco e narcisista, e tudo que fazia era em prol de sua divulgação pessoal. Sempre procuro aprender e tirar o melhor de uma situação, por mais complicada que seja. Além do mais, mesmo com estes doidos ao meu redor, confiava em meu talento. Pensando melhor agora, eu, como o mais pé-nochão da turma, era um mastro de amarração daquela nau errante. Assim, diverti-me muito nesse período, fiz bons e premiados trabalhos – dos quais o chefe sempre reivindicava a autoria. Era um irável mundo novo para mim, novato como diretor de arte e ainda pouco experiente nos chamados “fatos da vida”. Eu achava, e ainda acho, muito agradável aquela região do Largo do Arouche. Éramos cercados de bons restaurantes, como o Rubayat, onde, por conta da firma, íamos freqüentemente; o velho Carlino, quase debaixo da agência; o Almanara, do outro lado da rua. Uma vez, após termos virado a noite toda numa campanha, ao meio-dia coloquei os trabalhos na mesa do patrão e decretei encerrado o expediente. Fomos ao Rubayat e iniciamos a função com ostras no gelo e uísque, e isto foi só o começo. Quando apresentei a nota ao neurótico chefe – vamos chamá-lo de “Naum” – ele quase teve um dos seus famosos ataques de fúria. — Mas nós trabalhamos como mouros, e merecemos – disse eu. — Tá bom, mas como vou explicar todos esses uísques ao dono? Respondi que, segundo tinha ouvido, o patrão tinha orgulho de que seu pessoal fosse ao Rubayat, e fosse bem tratado. — Bom, disse ele, deixa a nota aí que depois eu falo com ele – E enfiou-a na gaveta. Um ano depois, quando “Naum” havia saído da firma, deixando-a quase à falência, abri sua gaveta e a nota de despesa continuava lá. Jamais foi paga. Mas havia outros restaurantes notáveis. O bom e barato Gato que Ri, que continua onde sempre esteve; o macrobiótico Arroz de Ouro e o venerável Panamericano, ao fundo do largo, bem defronte a estátua em bronze de Augusto, com seu braço apontando para o infinito. Comia-se muito bem ali. Tinham pratos de frutos do mar, polvo, lagosta, e era tradicional uma
carne seca desfiada com pirão. Na happy hour serviam bolinhos de queijo, para acompanhar a bebida, gratuitamente. Foi uma grande perda seu fechamento. Por fim, o charmoso La Casserole, onde estive uma vez. No final “Naum” nem fazia mais esforço para trabalhar. Ao contrário, insistia para que o acompanhássemos ao Paribar, na Praça Dom José Gaspar, e ficava ali bebericando todo o resto da tarde, pois seu polpudo salário agora atrasava. O meu, consideravelmente menor, era pago religiosamente. Não ser vedete tem também suas vantagens. Pois é, tive na Vieira de Carvalho momentos de angústia, mas também de diversão, novas visões de mundo, romances, grandes tristezas e muitas alegrias. E quando tive uma proposta e saí de lá, era uma pessoa diferente, mais preparada para enfrentar as durezas da vida.
Nos bares da vida Ivan Castelo Branco Sempre gostei de música. Desde garoto, pedia para o meu pai comprar os álbuns dos meus artistas favoritos. Na época, não havia o CD e sim os discos de vinil, os famosos “bolachões”. Meu progenitor chegava em casa trazendo o novo Led Zeppelin ou alguma coisa dos Beatles para curtirmos na nossa velha vitrola, que eu nem imagino onde foi parar. Na adolescência veio o desejo de, assim como meus ídolos, ter uma banda de rock, me tornar famoso e vender milhões de cópias dos nossos álbuns. Meus pais não podiam me comprar uma guitarra Ibanez ou Fender, então a solução foi adquirir uma bem simples para começar a ter aulas com um professor que morava na Vila Carrão, zona leste da capital. Como era 1985, período de redemocratização, Rock In Rio e uma explosão de grupos, achei que também poderia galgar os degraus da fama e viver só de música. Não demorou muito para formar a primeira banda com alguns amigos da minha vila. Também não demorou para o grupo acabar, pois éramos muito ruins e a vizinhança ficava enfurecida quando começávamos a “sessão tortura”, digo, a tocar. Em seguida, entrei em outra banda, desta vez, trocando a guitarra pelo contrabaixo, instrumento com o qual me identifiquei melhor. Com meu salário, que mal dava para as despesas pessoais, consegui comprar um baixo Giannini, cuja tradição musical sempre foi das melhores. Nessa época, 1989, veio uma das piores fases da minha vida. Fiquei desempregado e, como sempre, nessas situações a auto-estima fica ao nível do solo e a pressão familiar é enorme. A saída foi me virar com a música. ei a freqüentar a região do Bixiga, famosa pelos bares e casas de espetáculo. De bar em bar começava a tocar às 22 horas e ia até as 4 horas da manhã. Não dava para ganhar muito, pois dono de bar só quer tirar a sua pele, vender muita cachaça e pagar uma merreca. Toquei no Chiquita Bacana, Café Piu 47
Piu, Terral e tantos outros que não me lembro. Conheci muitas garotas legais e também um monte de bêbados chatos que pediam: “toca Raul”. Fiquei quase um ano nessa vida até que uma madrugada, descendo a 9 de Julho a pé, pois estava sem carona, fui abordado por dois caras armados. Apesar de implorar, levaram meu contrabaixo e o dinheiro que havia ganho naquela noite. Foi triste ver os malandros se afastando com meu instrumento, dando risadas da minha cara. Esse episódio marcou o fim da minha aventura no Bixiga. Felizmente, pouco depois arrumei um emprego na Florêncio de Abreu e pude comprar outro baixo, mas aí já é outra história.
Um office boy de São Paulo Luiz Carlos da Silva No ano de 1971, eu era um garoto de 14 anos de idade e morava na periferia. Era pobre de nascimento e tinha apenas o ginásio incompleto, então não me restava outra alternativa a não ser começar a trabalhar para levar a namoradinha ao cinema nos finais de semana e comer cachorro-quente com Tubaína na padaria do bairro com os amigos Israel e Luizão. Papai levou-me até o endereço citado no minúsculo anúncio do jornal comprado no domingo, apertou o botão do elevador, desejou-me boa sorte e foi embora. As pernas tremiam e o suor descia pela testa, estava muito quente e eu muito nervoso. Desci no 21º andar, superenjoado pelo trajeto do elevador, o coração disparado e a carteira de trabalho em branco. Apresentei-me à recepcionista um pouco trêmulo, inseguro, bastante ansioso, mas com muita esperança em conseguir a vaga e não decepcionar papai. Fiquei aguardando eternos minutos ao lado de jovens apreensivos, trajando roupas simples, denunciando-os que também eram moradores da periferia, o que me deu um pouco mais de tranqüilidade. Fui chamado pela recepcionista que me conduziu até uma sala com alguns móveis estilo colonial, muitos telefones, uma enorme pintura de eucaliptos na parede e eu me vi diante do senhor Rubens, gerente de uma Companhia de Seguros, um senhor obeso, com aparência de pessoa seríssima, honesta e rica, muita rica. O odor agradável do seu perfume invadia a sala, sem pedir licença ao nosso olfato. Não sabia se olhava a sala ou o senhor Rubens, estava encantado com tanto luxo e beleza, tão desconhecidos aos meus olhos. Ele pediu educadamente para eu sentar numa poltrona estilo século XVIII – senti vontade de deitar, tamanho era o conforto, mas mantive-me ereto e atento. Pigarreou algumas vezes e dirigiu-me um olhar perscrutador, examinando-me dos pés à cabeça. Muito sério e com uma voz grossa, perguntou se eu conhecia as ruas do centro da cidade de São Paulo. Senti o meu rosto enrubescer de vergonha 48
em mentir e respondi tartamudeando em poucas palavras que conhecia todas as ruas, sem exceção. Ah, se ele soubesse que eu mal sabia retornar para minha casa, no longínquo bairro da Cidade A. E. Carvalho, na zona leste, teria perdido o emprego, com certeza. Após algumas perguntas sobre minha vida, minha família, meus estudos e certificar-se que eu realmente precisava trabalhar para ajudar meus pais, dirigiu-se a um armário, mexeu em alguns papéis e retirou uma maleta preta, estilo 007, caminhou em minha direção, depositou-a sobre minhas pernas e disse para eu ar na Seção de Contabilidade, retirar o valor em dinheiro referente a duas agens e ir para o bairro da Lapa. Deu-me o endereço, pediu que entregasse alguns papéis num escritório de advocacia, desejou-me boa sorte, sentou-se pesadamente na sua confortável cadeira e acendeu um charuto enorme. Agradeci, pedi licença e sai um pouco atordoado com a mistura dos odores, do perfume e do charuto, transpirando e sem a mínima noção de onde ficava o bairro da Lapa. Tinha conseguido o emprego! Peguei o dinheiro com a dona Joana, uma senhora idosa, muito simpática e amável. Peguei a maleta 007, saí um tanto orgulhoso, fiquei aguardando o elevador e pensando como faria para chegar até a Lapa. Onde será que ficava a Lapa? Deixei de divagações quando a porta do elevador abriu e o ascensorista falou com uma voz irritada: — Dessssce! Fazia um calor inável, parei numa banca de jornal na Praça Padre Manoel da Nóbrega e perguntei para o jornaleiro como fazia para chegar na Rua Coriolano. Explicou-me que deveria pegar um ônibus que vinha da Penha e ava na Rua 15 de Novembro. Era o famigerado Penha-Lapa. Fiquei esperando o ônibus por longos minutos, embaixo de um sol escaldante. Estava maravilhado com toda aquela movimentação: carros, ônibus, pessoas ando de um lado para o outro, guardas apitando incessantemente. Olhava para os prédios, olhava para os ônibus, para as pessoas e tinha vontade de chorar. Avistei o ônibus e fiz sinal para que o mesmo parasse e quando olhei mais atentamente fiquei estupefato, parecia que transportava toda a Metrópole, estava lotadíssimo! Entre um empurrão e outro, consegui com muito esforço subir os dois primeiros degraus, a porta fechou e fiquei prensado entre a porta traseira e um senhor muito gordo e suado. Senti vontade de descer no próximo ponto, devolver a maleta 007 para o senhor Rubens e voltar para minha casa. Aí pensei: mas o que falaria para papai? E a vergonha de não ser capaz de conseguir o emprego? Engoli algumas salivas, ei a mão pela testa suada e odiei o gordo, o ônibus, o senhor Rubens e papai. Era necessário conseguir o primeiro emprego custasse o que custasse, então tinha que ar aquele “inferno”. Procurei o endereço e encontrei-o com alguma facilidade, entreguei os papéis, peguei o ônibus de volta e cheguei depois de duas horas, muito amarrotado, cansado, suado, mas muito orgulhoso e feliz por ter cumprido minha primeira tarefa. Estava torcendo para ser dispensado e retornar no outro dia. Ledo engano! O senhor Rubens pediu-me para ir para Vila Guilherme, numa transportadora e retirar algumas
O trabalho é o “padre nosso”
apólices de seguro, fazia parte do meu teste. Novamente, perguntei ao velhinho jornaleiro como fazia para chegar ao endereço, deu-me todas as instruções, peguei o ônibus no Parque Dom Pedro II, fui e voltei em menos de duas horas. Entreguei as apólices para o senhor Rubens que me olhou aprovadamente, deixou transparecer um sorriso de satisfação, apertou-me a mão e disse: — Parabéns garoto! Você começa a trabalhar amanhã, pode trazer todos os documentos que iremos registrá-lo. Ah, não esqueça de vir de terno e gravata! Não me contive de alegria, não sabia se sorria ou chorava, tamanha a minha felicidade e tristeza em encarar o Penha-Lapa de novo e ainda ter que usar terno e gravata. Nunca tinha usado terno e gravata em toda minha vida! No dia posterior, cheguei meia-hora antes, dentro de um terno azulclaro e gravata vermelha que tinha emprestado do meu amigo Israel com a promessa de devolver nos finais de semana para ele ir à igreja e devolvê-lo definitivamente assim que recebesse meu primeiro pagamento. Dei todos os documentos para dona Joana e ela apresentou-me o itinerário completo dos lugares onde deveria ir. Meu trabalho consistia em retirar algumas apólices de seguro em transportadoras em doze bairros diferentes. Alguns bairros eram tão distantes, que minha memória já não os alcança mais. No começo foi muito difícil, mas com o ar dos dias tudo se tornou uma grande aventura. Encarava aquilo como uma grande diversão, pois adorava ver as pessoas andando apressadamente e era com muita alegria e entusiasmo que contava a meus amigos da escola as aventuras do cotidiano. Estudava no período noturno no Ginásio Estadual Cidade de Hiroshima, no Parque do Carmo, em Itaquera. Foi meu primeiro emprego e orgulhava-me em trabalhar no centro da maior cidade da América Latina. Muito obrigado papai, muito obrigado senhor Rubens, muito obrigado São Paulo por me dar a oportunidade de me tornar um homem responsável, destemido e acima de tudo um cidadão que aprendeu a amar essa cidade desde aquela época e continuar amando-a até os dias de hoje.
Em 1959, no meu primeiro dia de trabalho como office boy do Mappin, fui chamado pelo senhor Barone, vice-presidente do Pessoal, que me perguntou: — Você é o novo office boy? — Sim, senhor. — Sabe onde é a Rua João Brícola? — Não, senhor. Ele então me levou até a janela, mostrou o prédio do Banespa e disse: é lá, e entregou-me um envelope a ser entregue no local. Desci, fiz pontaria no Banespa e fui. Na volta senti uma imensa sensação de vitória, sensação essa
que senti várias vezes ao longo da vida até chegar a ser o segundo homem de uma multinacional no Brasil, e até ter minha própria fábrica. Aí uma pessoa chamada Zé Sarney, aliada a outra chamada Dilson Funaro, criaram um tal de Plano Cruzado que me causou tremenda sensação de derrota e me tomou tudo que ganhara com muito trabalho, suor e lágrimas. Antonio Souto
Travessas Noschese e Grassi Turan Bei Quem iria querer ir às Travessas Noschese ou Grassi no início da década de 1950? Para fazer o quê? Sem saída, elas apenas serviam para os moradores, operários da Indústria Souza Noschese. As casas, bem modestas, eram de baixa estrutura, mas bem serviam às pessoas simples que cedo saíam com o almoço pronto. Nesse tempo, as mulheres e as crianças ficavam em casa, e o rádio era uma peça fundamental. Na verdade, essas travessas eram vilas no centro da capital. E ambulantes em geral, não perdiam viagem quando para lá se dirigiam. Em todas as casas sempre alguém atendia a porta quando chamada. Quando surgiu o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística – IBOPE, era para lá que o treinador levava os entrevistadores para o treinamento. Não falhava uma porta. E a tabulação da entrevista era preenchida sem brancos. O IBOPE foi gerado na Rádio Kosmos, para suprir a curiosidade sobre os índices de audiência da emissora. Então, o começo da pergunta era invariável: Que estação de rádio a senhora está ouvindo? Qual o programa? Quantas pessoas estão ouvindo? O entrevistador não precisava escrever, apenas fazer um “X” nos quadradinhos ao final da pergunta. E assim nascia o IBOPE. E o seu inspirador foi George Gallup, americano pioneiro nas técnicas de pesquisa de opinião. Bem, eu fui ter às Travessas Noschese e Grassi muitas vezes, para atender incumbências do IBOPE, e com prazer, pois voltava sempre com as entrevistas cheias, e era elogiado pelo chefe.
Emprego al primo canto Luiz Saidenberg Escrevendo recentemente a um amigo, relembrei meu início profissional. Se hoje o primeiro emprego é difícil, pela enorme demanda de trabalho feita pela multidão de despreparados formandos, lançados à rua pelas faculdades, naquele tempo também o era, por outros motivos: o amadorismo 49
dos empregados e patrões, os cargos de chefia praticamente vitalícios, ao contrário da mutabilidade de agora. Era muito duro furar o bloqueio dos mais velhos. Não sei como e porque, uma tia de Piracicaba indicou-me a uma pequena agência de publicidade, a London, na Conselheiro Crispiniano. Um velho prédio, com sacadinhas voltadas para o Mappin. E não só para ele, pois havia apartamentos incrustados na massa do grande magazine. Víamos pessoas idosas regando suas plantas, nas largas varandas, com gaiolas de pássaros. O dono da agência, ainda jovem, mas muito enrolado e ambicioso, usava o pseudônimo de Ianni Jr. Sua principal atividade era a produção de um programa musical italiano para a TV Tupi, Vozes d´Italia, ou algo assim. Então, por que o nome London? Napoli seria mais adequado, talvez. Era meu primeiro contato com um escritório. Deram-me uma mesa, numa salinha escura e algum material para trabalhar. Mas os grossos anuários de publicidade, arte e fotos eram fascinantes. Então, publicidade era isso que estava naqueles livrões importados? A agência era freqüentada pelos astros do programa, uma prima donna, creio que era Lyris Castellani, o maestro Gallucci, sempre muito bem vestido e muito mal humorado, e outros artistas ou candidatos a tal. Uma dessas era uma encantadora mocinha, muito vivaz e inquieta, que tinha, como eu, 17 anos. Esbelta, a pele muito clara, cabelos curtos acobreados, parecia um anjo caído naquele obscuro escritório. Muito gentil, mostrava-se interessada em mim e em meu trabalho. Mas se era ela que sembrava un ângelo (parecia um anjo), eu é que era totalmente inexperiente com mulheres, bem como no mais das coisas da vida. Depois, não ava de um estudante pobre. Como ousaria insinuar-me junto àquela beldade, com certeza tão disputada? Mas Ianni Jr. não tinha a menor intenção de pagar-me um salário, por pequeno que fosse. Queria que eu fizesse ponto ali, executando os trabalhos da casa e prospectando clientes próprios. Como se eu, quase um garoto, tivesse a mínima condição de fazer isso! Uma coisa, porém, ficou patente: já naquela época eu tinha jeito para criação em propaganda. Um dos clientes era um fabricante de famosas gravatas, cujo slogan era: O segredo está no nó! Quando o cliente precisou para o mesmo dia de uma encenação para um comercial de TV, bolei um detetive, vestido de Sherlock Holmes, examinando a gravata, ou o seu nó, com uma lupa. Isto foi ao ar, com bastante sucesso. Mesmo assim, nada recebi. Por isso, saí desse primeiro “emprego”, que, de qualquer forma, serviu-me para indicar o caminho a seguir. Soube, tempos depois, que Ianni Jr. teve sérias complicações com a justiça. O que não deixou de ser um triste consolo.
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Churrasco à moda nordestina Miguel Chammas A época era entre a década de 1950 e 1960, eu gerenciava uma laminadora de ferro na Penha, era a Comercial e Importadora Restinga Ltda., situada na Avenida Celso Garcia, 5090, um pouco antes do pontilhão com a linha férrea. Essa empresa era de propriedade de dois irmãos da “quatrocentona” família Assumpção. A produção era de laminação de ferros para construção na bitola de 3/16 para amarração na construção civil. Trabalhávamos em regime de duas turmas de oito horas, e eu tinha sob meu comando um contramestre, o Nicola Mastropietro, carinhosamente chamado de Pedro, e uma turma de operários dedicados que oscilava entre quarenta e cinqüenta homens que desenvolviam funções de forneiro, laminador, torneiro, ajudantes e motorista. A maioria desse pessoal era de origem nordestina – só esses bravos brasileiros poderiam agüentar tarefas tão brutas e desgastantes. Os lingotes de ferro, que eram nossa matéria-prima, na maioria das vezes eram adquiridos da Metalúrgica Dedini, em Piracicaba. E quando um caminhão chegava com uma nova carga, o motorista, junto, trazia um garrafão de pinga da região para me agradar e acelerar a descarga. Assim sendo eu tinha num enorme cofre de aço, relíquia das décadas de 1930 e 40, uma coleção infinda de garrafões de pinga, alguns deles já aditivados com frutas, outros com a uca purinha. Era minha “Adega Segura”. Embora sempre tivesse gostado de uma purinha, garanto que não tinha fígado ou condição física para esgotar aquele estoque. Então, usava essa reserva para promover premiações quando a produção do dia ou da noite ultraasse a casa das cinco toneladas. Nessas ocasiões, liberava uma verba para aquisição de pães, mortadela e queijo, fornecia um garrafão de pinga e, ao final do expediente, todos se reuniam nos fundos da empresa e ali comemoravam a excelência da produção bebericando um aperitivo acompanhado de uns salgados. Eu, claro, fazia questão de estar presente e me integrava cada vez mais com o pessoal. Um dia, logo que cheguei à empresa, o Pedro veio me informar que o escritório havia reado um pedido de catorze toneladas para o dia seguinte, o que iria perfazer um total de dezoito toneladas de ferro para serem entregues, e que só tínhamos quatro estocadas. O clima era de um calor incrível, mas a época era difícil e uma venda daquele vulto não poderia ser negligenciada. Reuni todo o pessoal no pátio, ei a informação e prometi que, se conseguida a totalidade de toneladas necessárias, haveria pingada especial acompanhada de vários tipos de guloseimas. No final do expediente da turma da tarde já tínhamos alcançado oito toneladas de ferro e a missão da turma da noite estava um pouco mais facilitada. No dia seguinte, assim que cheguei, antes mesmo de entrar no escritório, tive a notícia de que o total produzido no final dos dois turnos tinha sido de quinze toneladas, e mais, com pouca incidência de sucatas. Festejamos e garanti para o final da
O trabalho é o “padre nosso”
tarde a pingada prometida. Quando estava chegando o final do expediente, o Pedro veio ao escritório e me avisou: — Só precisa comprar pão e fornecer a pinga, o pessoal se cotizou e comprou uma grande porção de barrigada de porco e vai fazer torresmo com o calor do forno. Achei ótimo e minha boca se encheu de água – sou até hoje doido por essa iguaria. Depois do toque de parada dei um tempo e me dirigi com o garrafão de pinga ao local onde todos já estavam reunidos, disse algumas palavras de reconhecimento, entreguei o garrafão e me preparei para a festança. Um dos forneiros abriu a boqueta do forno, retirou uma enorme bacia repleta de torresmos torradinhos. Foi uma festa: pão fresco, torresmo e cachaça. Já estava satisfeito quando o Pedro pediu silêncio e dirigindo-se a mim perguntou: — Migué, gostou do torresmo? Vendo a minha concordância, deu uma boa risada que foi acompanhada por todos os demais, e sem me dar tempo para retrucar, informou: — Você não comeu torresmo coisa nenhuma, os teus sanduíches foram de pão com içá torrada (tanajura) que capturamos durante todo o dia. Pensei rápido, assimilei a informação e disse: — Se é ou não é torresmo não me interessa, mas como o sabor está ótimo vou comer mais um sanduíche. Fiz mais um sanduíche recheado de içás torradas, dei uma bela mordida, dei mais uma bicada na cachaça e saí todo satisfeito. A experiência, garanto, valeu a pena!
época eu conhecia o Peg-Pag do Itaim e o Sirva-se, próximo à Paulista, que já eram modernos e bem maiores. Algum tempo depois o senhor Valetim, proprietário da tradicionalíssima Doceira Pão de Açúcar, resolveu empreender nessa área, junto com seu filho senhor Abílio e outro que não me lembro o nome, resultando na primeira loja do Pão de Açúcar, na Brigadeiro Luís Antônio. Eu já estava empregado lá, junto com outros garotos da vizinhança, desde a inauguração, e foi um sucesso e tanto na época. O supermercado ficava na parte de baixo do prédio e no andar de cima havia um enorme salão de festas, que era abastecido pela Doceira Pão de Açúcar. Mais tarde a Eletroradiobrás foi comprada pelo Pão de Açúcar, gerando os antigos Jumbos e o atual Extra, e assim esses supermercados cresceram junto com a nossa amada cidade de São Paulo, tornando-se essa imensa e poderosa rede que temos atualmente.
Depois da abertura do Pão de Açúcar, na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, surgiram duas grandes lojas Sirva-se; a primeira na Gabriel Monteiro da Silva, atual Pão de Açúcar, e depois a da Consolação. Israel Beigler Existiram também as Lojas Maps que foram duas: uma na região da Alameda Glete e outra na Consolação, onde havia o Mappin Odeon. As Lojas Maps pertenciam ao Mappin e estavam entre as primeiras a usar o conceito de self service, típico de supermercados. Antonio Souto
A chegada dos supermercados Celso Em 1958, quando o Brasil foi Campeão Mundial de Futebol pela primeira vez, os bairros contavam com pequenos supermercados, que eram oriundos de mercearias bem-sucedidas como o Supermercado Infinitos, onde trabalhei quando menino. Na época esses estabelecimentos já ofereciam oportunidades para os meninos acima de 14 anos, com o objetivo de tirá-los das ruas e ensinar-lhes uma profissão. Eu trabalhei em todas as seções, por isso aprendi um pouco de tudo, até de açougue, onde me ensinaram a desossar carnes. Esse supermercado ficava na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, pertinho da Alameda Lorena, e pertencia a uma família portuguesa, da Vila Mariana. O comprador era um dos filhos, senhor João, e as moças dos caixas eram as filhas do senhor Manoel, as senhoras Idalina, Neide, Lourdes e Luci. Eles contratavam artistas para realizar shows defronte ao supermercado e assim promover o local. Lembro-me de ter visto o Moacir Franco cantando e o Canarinho contando piadas. Nessa
Um grande desafio chamado São Paulo Gilberto Kassab Não é difícil para alguém como eu, nascido na cidade de São Paulo e vivendo aqui até hoje, lembrar de algo que tenha marcado minha vida nesta metrópole. Tive uma infância muito ligada à família e muito próxima dos amigos da escola, o Liceu Pasteur, e do clube que sempre freqüentei, o Esporte Clube Pinheiros. Agreguei na juventude os amigos da Universidade de São Paulo (USP), onde cursei Engenharia na Escola Politécnica e Economia na FEA. Essa caminhada reserva muitas histórias, mas há um episódio especial, principalmente em razão das atividades que venho exercendo ao longo dos últimos anos, dedicados integralmente à vida pública. Inquestionavelmente, o que mais me marcou foram os momentos imediatamente anteriores e posteriores à minha posse como prefeito de 51
São Paulo, em 31 de março de 2006. Naquele dia eu imaginava a angústia que ava o então prefeito José Serra, convocado a cumprir sua missão de conquistar o Governo do Estado antes mesmo de terminar seu mandato na Prefeitura. Evidentemente, ele precisava contar com a boa performance de seu vice-prefeito, ou seja, com o meu bom desempenho, para garantir seqüência aos seus compromissos com a população paulistana. Naquele momento todos os problemas de São Paulo avam pela minha mente: o orçamento reduzido diante de tantas necessidades, a importância de melhorar a saúde pública, a premência de investir em educação, enfim, as inúmeras demandas inerentes a uma das maiores metrópoles do mundo. Estava eu diante do maior desafio de minha vida pública, mas para o qual me sentia preparado, não apenas pela experiência político-parlamentar vivida, mas por ter participado ativamente como vice na istração da cidade. O prefeito Serra me transmitiu o cargo naquela noite de sextafeira. Pouco depois, já sentado na cadeira do prefeito, a assessoria me apresentou a agenda dos compromissos do dia seguinte. E então me dei conta que, daquele momento em diante, eu aria a cumprir a agenda de prefeito da cidade. Fiz questão de participar de dois eventos públicos: a instalação do Centro de Referência da Criança e do Adolescente, na Lapa, e do plantio de 12.000 mudas de árvores, no Butantã. Não foi por acaso. Estava sinalizando minha preocupação em dar continuidade aos programas sociais e à atenção do poder público municipal com a questão do meio ambiente. Hoje, olhando para trás, vejo que avançamos bastante no tratamento dado aos moradores em situação de rua, às crianças e aos adolescentes. E muito temos por fazer. Da mesma forma, enfrentamos com vigor os vários tipos de poluição, a partir da batalha contra a poluição visual por meio da Lei Cidade Limpa, iniciativa que todos os paulistanos abraçaram e que mudou a paisagem urbana da cidade. Lembro-me ainda que pouco depois da posse jantei com meus pais, de quem mais uma vez recebi apoio, carinho e incentivo, e só então fui para casa. Dormi prefeito e acordei com olhos e ouvidos mais sensíveis. Desde então, a cada dia tento manter minha sensibilidade apurada para comandar, com a necessária responsabilidade, junto com toda uma excelente equipe, as transformações exigidas por São Paulo, esta cidade apaixonante que tenho a honra de estar governando. De tantas histórias e de tanta gente boa.
As voltas que o mundo dá Raquel Iglesias Verdenacci Demorei 28 anos para declarar meu amor por São Paulo. Ainda que tenha nascido e começado a estudar aqui, a mudança para o interior do Estado com a família me fez crescer meio “caipira”... Sabe aquela oportunidade 52
cada vez mais rara de criança conhecer o cheiro de grama recém-cortada, de nadar na chuva, subir em árvore, brincar na terra, apanhar jabuticaba no pé, ajudar a cuidar da horta, ganhar um coelho na Páscoa, dar leite na mamadeira para um bezerrinho? Não, não virei cowgirl, nem fazendeira (não que eu veja qualquer problema nisso, claro!!!), mas a infância e adolescência no interior me prepararam melhor pra entender, amar e respeitar São Paulo. O valor das oportunidades, do trabalho, do esforço e especialmente, o valor das pessoas. O incrível da vida é não conseguirmos adivinhar o que está por vir, mas quando as coisas acontecem, as peças vão se juntando e tudo vai fazendo sentido, de uma forma ou outra. Coincidência, resultado de trabalho, conquista ou sorte. Não importa. Vale a história de vida de que se escreve quando somamos ado, presente e sonhos para o futuro. Não podia imaginar que a terra da oportunidade seria tão generosa comigo. Justo comigo que não dava a mínima pra ela! São Paulo pra mim era o lugar para visitar de vez em quando, pra vir ao teatro, assistir um show ou fazer umas comprinhas. Viver aqui? Nem pensar... eu dizia. Os anos se aram e as oportunidades de trabalho que tive me trouxeram pra cá. As experiências adquiridas em Vinhedo puderam ser aplicadas aqui, me ensinando o quanto essa cidade ainda que imensa e aparentemente distante, é na verdade, com respeito à devida proporção, como qualquer outra cidade do interior: com suas belezas, contrastes, diferenças e desafios. A cidade não cresceu demais porque quis. Não poluiu seus rios por uma ação auto-destrutiva. Quem aqui viveu e vive é que tem responsabilidade pelo que a cidade é, e pelo que ela pode vir a ser. Se cada um fizer ao menos a sua parte, São Paulo será um lugar melhor para todos! Quando saí de Vinhedo para vir pra cá, não podia imaginar que trabalharia no Parque Anhembi (apenas meu ponto de referência da Marginal Tietê quando adolescente!!!), aria em frente diariamente do prédio em que morei quando era pequenina, na Casa Verde, e dedicaria toda minha força de trabalho por uma cidade mais alegre, mais colorida, mais humana. Se já é um enorme privilégio trabalhar naquilo que gostamos, pela cidade na qual vivemos então, nem se fala! A possibilidade de transformar o dia a dia em algo melhor. A satisfação de participar de eventos importantes da cidade, como a visita do Papa, o Carnaval, o Reveillon na Paulista, as viradas Cultural e Esportiva, festas da comunidade, e tantas inaugurações de obras e projetos fundamentais para o desenvolvimento da cidade. Eventos que fazem parte da história desta cidade e se transformam também em capítulos inesquecíveis da minha história de vida.
Vamos à cidade
“O silêncio do Largo São Bento, o céu, por vezes escuro, por vezes claro, era sempre acolhedor.”
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Vamos à Cidade! Rafael Ferrari Aydar Quando eu era menino, e minhas preocupações não iam além de ir para a escola, fazer lição, obedecer aos mais velhos – e isto era lei dentro de casa, embora meu temperamento sempre me levasse para o caminho contrário, o que terminava em uma boa e merecida surra – brincar, apesar de eu sempre ter gostado mais de ler e assistir TV, era uma idéia que me deixava animadíssimo. Minha tia, irmã de minha mãe e, para falar a verdade, nossa segunda mãe, podia ter uma série de defeitos (mas quem não os tem?) e a educação que ela nos deu talvez fosse rígida demais, mesmo naquela época, mas ela sempre soube como nos fazer feliz, seja pelos seus doces de festa – sim, ainda tem “briga feia” até hoje por causa deles – ou, no meu caso, quando ela me falava: — Vamos à Cidade! Naquela época, ainda costumava-se dizer que as pessoas “iam à Cidade” quando era preciso ir até o Centro: mais especificamente, o Centro Velho. A região já tinha perdido muito do seu encanto, mas nada comparado com os dias de hoje. E essa era a senha para que eu tivesse uma tarde deliciosa, em todos os sentidos – na Rua Direita, havia a oficina de um ourives que, há muitos anos, trabalhava para a minha família, em especial para a minha mãe... Aquiles era o seu nome e, não por acaso, eu também tinha uma ligação com ele, já que seu irmão Rafael foi a primeira visita que recebi na minha vida – eu era recém-nascido – e por esse motivo fui batizado com o mesmo nome. Não me lembro de todos os detalhes do prédio e pouco me recordo da oficina em si, além do fato de achar tudo aquilo um pouco fora do lugar. Mas, não era o fim do mundo. Depois de todos os negócios feitos – e de ar por aquela escada com corrimão de ferro trabalhado – começava a verdadeira festa, pois, invariavelmente, minha tia me levava às Lojas Brasileiras para tomar um sundae na lanchonete da loja. Hoje em dia, com tantas novidades, o bom e velho sundae perdeu um pouco da importância, mas, naquela época, ao lado da banana split e da taça colegial, era o máximo! Ainda hoje, ados tantos anos, eu me lembro da escada que dava o à lanchonete que ficava no subsolo; da parede de azulejos verde-água colocados em losango; do longo balcão de fórmica; dos bancos cobertos de curvin vermelho e que giravam, ainda por cima! Do cheiro dos sanduíches sendo feitos na hora, em especial o misto-quente; das fotos ilustrativas, e já um tanto desbotadas, dos sorvetes da Kibon – e não havia outros até então; dos hambúrgueres, hot dogs que ainda eram chamados de cachorro-quente, acompanhados de suco de laranja em copos enormes ou milk-shakes, além, é claro, das batatas chips que aguçavam minha curiosidade em saber como eram cortadas tão fininhas. Mas tudo isso deixava de ter importância quando, à minha frente, aparecia aquela taça enorme, com tudo que eu tinha direito:
sorvete, marshmallow caindo pelas bordas, calda de chocolate, castanha de caju picada, creme chantilly, a famosa cereja no meio... e um detalhe que ficou para sempre: no fundo, um pedaço quadrado de gelatina de morango, finalizando aquele festival de sabores com chave de ouro. É claro que, de tudo aquilo, só sobrava mesmo a taça em si! Minha tia, geralmente, tomava a taça colegial, enquanto eu devorava meu sundae até conseguir enxergar, com prazer, aquela gelatina vermelha ao fundo. As Lojas Brasileiras já não existem; hoje em dia dificilmente tomo sundae, mas confesso que, por melhores que sejam, nenhum deles tem aquele sabor, pois aquela taça significava muito mais do que uma delícia: significava, sim, um momento de dedicação da minha tia; a expressão do prazer de ser a criança que acreditava ser “gente grande” só porque conseguia alcançar o balcão da lanchonete; a preocupação e o cuidado do adulto com quem ainda tinha tanto que aprender da vida; enfim, a chance de viver as coisas certas no tempo certo. Até hoje, quando uma taça de sundae surge à minha frente, nem preciso fechar os olhos para que todas aquelas cenas voltem como um filme, e sempre acabo escutando a frase: — Vamos para a cidade... Pena que, mesmo nos melhores lugares, nunca mais encontrei nenhum quadrado de gelatina vermelha no fundo de uma taça de Sundae...
Vamos para a cidade. Até que enfim acho mais alguém que se lembra disso! Eu era levado para comer esfirra na Rua Quintino Bocaiúva, quase na altura da José Bonifácio. Era um senhor que as vendia, numa estufa que ficava dentro de uma lanchonete. Vinham duas, dobradas ao meio, uma de frente para a outra, e embrulhadas em guardanapo de papel... Adriano Só vim conhecer o que era sundae aos 13 anos, no meu primeiro emprego, quando uma amiga me levou à Lobras. E foi uma descoberta. Sempre fui de família simples e humilde. Nossas “idas à cidade” não avam de pagar a conta de luz no prédio da Light, comprar sapatos para casamentos da família nas Casas Eduardo ou Vermelha, na Rua Quintino Bocaiúva. Também tinha a Casa Quintino. E o auge era comer um cachorro-quente na Salsicharia do Povo, na Praça da Sé, com enormes vidros de molho de pimenta. Sundae eu nem sabia o que era... que tonta! Depois, quando conheci as Lojas Brasileiras, lembro até do uniforme das garçonetes e da carinha de uma delas, virou obrigação. A cada pagamento recebido na Cruz Vermelha, lá ia eu comer o hot dog com chips – hoje tão banais – e tomar meu maravilhoso sundae de chocolate! Ah, saudade! Sonia Marli
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É verdade, bastam certas palavras para memórias virem à tona. Bastou a palavra hot dog para que eu me lembrasse do cachorro-quente vendido numa caixinha de papelão e cercado das batatinhas chips numa lanchonete ao lado do Cine Paulista, na Rua Augusta, cujo nome foi, exatamente, Hotdog. Foi na época em que a Rua Augusta era o ponto de encontro e de compras mais agitado da cidade. E de novidades também: o máximo foi o lançamento do filme Rock around the Clock, do Bill Halley, no mesmo Cine Paulista e que provocou um escândalo entre pais que proibiam os filhos de assistirem ao filme e os jovens que iam escondidos – suprema aventura – ao cinema. E não é que a Rua Augusta está voltando à moda a partir da Oscar Freire? Gozado... todas essas lembranças só por causa da sua palavra hot dog. Maria Cristina Masagão
Palacete Glória, a arte em primeiro lugar Turan Bei Ele ficava na Praça Ramos de Azevedo ao lado do Teatro Municipal e no prolongamento da Conselheiro Crispiniano. Muitas vezes adentrei nesse prédio que tinha na arquitetura de Ramos de Azevedo, uma obra de arte. De espaçoso ele não tinha nada, levando em conta o tamanho do terreno, mas acho que por isso mesmo Ramos de Azevedo teve o capricho de tornálo uma jóia, para ser irado. A fachada tinha a marca inconfundível do arquiteto, as janelas um pouco afastadas deixavam salientes as colunas de alvenaria que pareciam querer alcançar as nuvens, o rebuscamento era evidente nos pormenores. O hall era exíguo, tendo o elevador logo a poucos os da calçada, os lances das escadas eram suaves com plataformas em intervalos regulares e não foram poupados mármores brancos, que refletiam as frestas da luz do dia. O elevador, modelo bem antigo, daqueles de porta sanfonada, era todo devassado sem nenhuma blindagem nas laterais, apenas o piso e o teto eram revestidos; os usuários assistiam a toda movimentação de embarque e desembarque, para a aflição das mulheres que, na época, exibiam saias bem rodadas – para os homens, uma emoção à parte. É uma pena que esse prédio não tenha sido tombado, pois ele retratava fielmente uma escola de arquitetura em que a arte estava em primeiro lugar.
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Edifício Joelma Carlos Dias No dia 1 de fevereiro de 1974, uma sexta-feira, a manhã parecia ser bonita, e, como todos os dias por volta das 7h20, saí de casa e me dirigi ao local do meu trabalho, um escritório que ficava na Rua Genebra,17, na Bela Vista, cujo prédio de dois andares existe até hoje, numa esquina da Rua Santo Amaro. Na época, eu era auxiliar de escritório. Depois de abrir as janelas e arrumar alguns papéis na minha mesa, resolvi descer até um barzinho que ficava debaixo da minha sala para tomar um cafezinho, como era meu costume. Conversava com algumas pessoas que estavam ali, falávamos de coisas banais, quando entrou um rapaz ofegante e falou: — Olhe pessoal, aquele prédio está pegando fogo – então, olhamos e não vimos nada, e ele continuou: — Olhem bem, vejam o reflexo no prédio da Avenida 9 de Julho. Aí sim, todos nós vimos o início do que seria marcado como um dos piores dias de São Paulo, o incêndio do Edifício Joelma. Retornei correndo para o escritório e quando cheguei vi pela janela que em um dos lados do edifício, que era voltado para a Praça das Bandeiras, já havia fumaça. As pessoas que avam pelas ruas Genebra e Santo Amaro começaram a notar e parar para ver e, em seguida, escutei as sirenes da polícia e dos bombeiros. Logo depois chegou meu chefe, na época o saudoso Mauro Costa, que foi vereador e irmão do também falecido Pedro Geraldo Costa. Ficamos assistindo a tragédia junto com outras pessoas que ali trabalhavam e que vinham até nosso escritório, já que dali poderiam ter uma visão completa... A adrenalina corria a mil, minhas pernas bambeavam e a boca secava, o que eu estava vendo não era ficção: nos meus 21 anos via cenas feias, como pessoas se jogando, era horror “puro”. Algumas horas depois apareceu um rapaz com uma máquina fotográfica com aquela teleobjetiva enorme, era um alemão que se identificou ao meu patrão como fotógrafo da revista Stern e perguntou se podia tirar algumas fotos, claro que houve o consentimento. Ninguém sentiu fome naquele dia, todos estávamos tensos, chocados e frustrados por não poder fazer nada para ajudar. Depois do incêndio, por volta das 16 horas, eu não olhava mais para o prédio, tudo estava acabado, restava apenas aquela imagem negra e a fumaça saindo. Como ninguém conseguiu trabalhar naquele dia, fechei o escritório e fui para casa. Lembro que fiquei caminhando pelas ruas do Centro e que o assunto não poderia ser outro. Hoje, ados 34 anos desse fato, ainda observo as pessoas da minha idade arem perto do Joelma e olharem para cima; e eu, não sei por que, também faço o mesmo.
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Os dois mundos da Praça da Sé Mário Lopomo Ali é o eixo da cidade de São Paulo. Quem for à praça, vai ver o marco zero da cidade, bem em frente à Catedral. A Praça da Sé tinha, e ainda tem, dois mundos. O do dia e o da noite. Durante o dia, a Praça da Sé abrigava os funcionários do Fórum, que antes ficava na Praça Clóvis Bevilácqua, dos escritórios e lojas, não só os da praça como também aqueles em seu entorno. Por ali avam milhões de pessoas por dia, os que iam para os bairros periféricos dos quatro cantos da cidade, assim como os que faziam o percurso ao contrário. Na Praça da Sé se via de tudo, vendedores ambulantes, engraxates, vendedores de bilhetes, de bexigas, o homem do realejo, os famosos vendedores de ilusão, como cartomantes, leitores de mãos, vendedores de cheques roubados, e todo tipo de “171”. Na Copa do Mundo de 1966 o da Rádio Bandeirantes instalado na praça formava um campo de futebol, com pontos de luz que acendiam no momento em que a bola rolava na Inglaterra, mostrando para que parte do campo ela ia. Teve também o placar da eleição, quando marcavam com giz os votos recebidos pelos candidatos à Presidência da República ou Governador de Estado. Na Praça da Sé não se podia bobear. Quando um vendedor de bilhetes ava quietinho e não oferecia o bilhete, era preciso ter muito cuidado porque lá vinha bomba em cima dos incautos. Eles, malandramente, deixavam cair um bilhete no chão. Quem vinha atrás e pegava o bilhete para entregar numa generosa solidariedade tinha que agüentar a imploração pelo fato de ter recolhido o bilhete e o retornado a ele. — Você achou o bilhete premiado – diziam eles – Não desperdice a chance que Deus está te dando nesse momento. Tinha também que ser esperto e, ainda, ter boa sensibilidade no corpo para não ser surrupiado por um punguista. Na época, chamado de “mão leve”. Tinha gente que só ficava sabendo que tinha sido roubado quando via o bolso fora da calça e vazio. À noite, a coisa mudava de aspecto. Era outra Praça da Sé, completamente diferente daquela barulhenta e confusa praça com gente se esbarrando e andando às pressas. A praça, talvez com quase o mesmo número de pessoas, era mais calma. Boêmios chegavam, vinham curtir uma boa batucada e contar seus casos; moçoilas e rapazes faziam o footing, como se a Sé fosse uma pracinha do interior, e muita gente do Brás e do Bixiga circulava por ali. Foi na Praça da Sé que Adoniran Barbosa, Geraldo Filme e outros compam muitas de suas músicas. Também Germano Mathias lá batucava seus sambas, na tampa de lata de graxa. Aos sábados a Praça da Sé era mais festiva. As lojas fechavam às 13
horas e, daí para frente, ela ficava somente para os antes e os engraxates, além dos bilheteiros que até as 14 horas tentavam vender os últimos bilhetes encalhados. E à noite tinha a batucada dos engraxates, que ficou famosa. Vinha gente de todo lado para ver e ouvir. Tornou-se até uma atração turística. Anos mais tarde, a Praça da Sé ficou maior. Para a construção da Estação Sé do Metrô, o Edifício Mendes Caldeira foi implodido e a Praça Clóvis Bevilácqua incorporadora, ficando somente uma praça: a Sé.
A praça era tudo isso e mais um pouco. Todos os dias, depois das 15 horas, o lado esquerdo da Catedral, de quem do portal olhasse a praça, era ocupado por músicos que ali iam para conseguir o trabalho do dia, quando ali ainda se formavam orquestras. Eu mesmo ia para lá encontrar amigos músicos ou formar uma orquestra para algum bailinho que organizava. Eram momentos de muita alegria. Miguel Chammas
O começo do fim Luiz Carlos Gusman Assim como as manhãs, eu também nasci na Aurora. Na Rua Aurora. Ah, que saudades eu tenho da Aurora da minha vida! “Rua de nascer gente de família”, até pouco depois de 1953, quando o Governador Lucas Nogueira Garcez, atendendo a seu pio eleitorado, num rasgo de moralidade e autoridade, erradicou a prostituição da Capital de seu Estado, fechando, por decreto, a “zona do meretrício”, denominação que, quando proferida próximo a suas fiéis eleitoras, exigia dessas imediata persignação. Erradicou? Bem, isso é o que ele pensava até a aplicação do extemporâneo decreto. Era um conjunto de cinco ou seis pequenas ruas que, limitadas pelos muros da estrada de ferro, permitiam rigoroso controle de sua freqüência, pois seus os só eram possíveis por duas delas, as que ficaram conhecidas e reconhecidas como as ruas do Pecado, da Perdição, as ruas Itaboca e Aimorés. O confinamento da baixa prostituição permitia o controle sanitário, tão necessário numa época sem AIDS, mas com gonorréias, cancros, sífilis. Graças a essa concentração, mantinha-se também sempre atualizado o arquivo das “fichas” que identificavam os que escolhiam a vida fácil (?) para sobreviver. Eram todos fichados, de meretrizes a proxenetas, de putas a cafetões. E veio o malfadado decreto! A presença do Mercado Municipal da Cantareira criou referência e no seu entorno se estabeleceu a Zona Cerealista. Assim foi com as papelarias, as miudezas e os arredores da Rua 25 de Março. Apetrechos como ferramentas ocuparam toda a Florêncio de Abreu e, assim por diante, foi se firmando 57
um conceito vigente até hoje no comércio: a proximidade dos concorrentes, ao invés de prejudicar, favorece o comerciante pela natural atração de compradores, convictos de que, pela profusão, não deixarão de encontrar ali o produto procurado. Não poderia ser diferente: o sexo pago, farto em opções, e as estações da Luz e Sorocabana se faziam estreitamente ligados. Se os que se serviam das “pecadoras” chegavam à extinta “zona” vindos de trens, bondes e ônibus, tão correto como natural era que se buscasse ocupar espaços o mais próximo possível dessas estações e dos pontos de ônibus e bondes. O Centro, ainda não Velho, mas já histórico, começava sua lenta agonia. Lenta e gradual, como gostam os que se expressam pelo “economês”. Lugares bons de morar, próximos de tudo o que a Cidade nos dispunha de melhor, jamais imagináramos uma mudança. Imperioso, portanto, resistir. Uma rápida queda de braços se estabeleceu. Assim como inevitável se criou a resistência, inável se tornava a insistência. Venceram os mais bem-armados e aos poucos se foram dali as famílias. Não mais que de repente tudo se transforma: pequenos prédios vão se tornando prostíbulos, alguns se emplacando como “hotéis”; nascem “n” bares que preservam a intimidade de seus freqüentadores com indevassáveis biombos à porta. E o contingente antes a cinco ou seis quadras de um “gueto” controlado, se assenhora das ruas Vitória, Aurora, Triunfo, Gusmões, Andradas, Santa Ifigênia, além das Barão de Limeira e Campinas e das tribais Guaianases e Timbiras. Não escapam nem as avenidas e a Duque de Caxias, a Rio Branco e parte da São João logo se incorporam, trazendo consigo as Praças Júlio Mesquita e Princesa Isabel. Ruas onde ainda há pouco habitava a decência, hoje vêem desfilarem zumbis, a caminho da demência. Muda-se apenas uma consoante, altera-se toda uma História. Uma História que reservou a seu principal personagem o quase completo esquecimento. Dele só se recordam alguns poucos historiadores que, fiéis aos fatos, registram sua agem pelo Palácio dos Campos Elíseos e a maior de suas poucas obras: a penada que decretou o fim do Centro vivo, histórico e feliz de São Paulo, cidade. Descanse em paz!
Rua 24 de Maio Turan Bei Era a minha praia nas duas horas de almoço que começava pela Sensação Modas, uma loja enorme que ocupava parte da Rua Conselheiro Crispiniano e parte da 24 de Maio. O alvo eram as balconistas, todas bem uniformizadas, de saia justa preta e camisa branca – elas não abotoavam os dois últimos botões –, lindas, sempre assediadas, a paquera rolava solta. Na esquina da 24 com a Conselheiro havia aquela banca de jornais, onde as 58
vedetes do Teatro Santana procuravam pelas revistas e jornais, assim como celebridades como Virgínia Lane, Mara Rúbia e a ainda jovem Iris Bruzzi, as quais eram facilmente reconhecidas pela beleza dos rostos e dos corpos esculturais. Depois de uma rápida agem pelas vitrines da Isnard e Mesbla, o destino era a Rádio Nacional, aonde acontecia diariamente o programa do Manoel da Nóbrega Cadeira de Barbeiro ao vivo. A loja de discos Brenno Rossi e a Casa Manon eram uma ótima alternativa pela qualidade dos produtos que ofereciam. O almoço, quando o bolso permitia, era no Bar e Restaurante Central, na Conselheiro, a maioria das vezes na Drogadada, e no final do mês era o Serviço de Alimentação da Previdência Social-Saps, no Anhangabaú, que quebrava a nossa dureza!
Em 1962, eu trabalhava no prédio 317, da Rua Conselheiro Crispiniano. No andar térreo existia o Banco Nacional do Comércio de São Paulo. Lembro-me da loja Serva Ribeiro, que em 1962, durante a Copa do Mundo, colocou alto-falantes defronte a sua loja para que o povo ouvisse os jogos do Brasil. Esse trecho da Conselheiro Crispiniano pude conhecer antes, quando office boy, por volta de 1957. Conheci a Real Aerovias que ficava no 375 da Conselheiro. Aliás, cheguei a conhecer o “famoso” corcundinha que trabalhava para eles e servia de propaganda para a referida companhia aérea. Recordo-me ainda da agem lateral do Teatro Santana, entre a 24 de Maio e a Barão de Itapetininga. Somos felizes porque vivemos esses bons tempos e podemos recordá-los com satisfação. João José
Martinelli para principiantes Luiz Saidenberg Convido-os para visitar o Edifício América, aliás, Martinelli. Estamos no início da década de 1960, e eu era um jovem desenhista, começando a ganhar o pão com o suor do rosto. Para um principiante, trabalhar no Martinelli era uma experiência e tanto. Vamos entrar por uma de suas portas, a da Rua São Bento. O belo hall, com magníficos candelabros, a fileira de elevadores à direita. Entremos no elevador. Uma pessoa, que pode ser o ascensorista, ou um simples inquilino, sem nenhum uniforme, canta Rosa, de Pixinguinha. E como canta bem, parece até Orlando Silva! O elevador pára no 19º andar. Desço, dobro o corredor à direita, onde uma sombria arcada está me esperando. Dentro, o ambiente é escuro, com várias portas numeradas. Minha sala é a 1922, que divido com três amigos, todos
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grandes desenhistas. Pronto. Subo a minha prancheta, começo a pensar no que fazer, e certamente muitas surpresas irão tirar minha concentração. De um canto aparece Júlio, estremunhado. Morador de Vila Luzita, em Santo André, às vezes ava a noite ali, embrulhado sobre sua mesa, pois a editora, mais uma vez, atrasara o pagamento, e ficava muito dispendioso tomar várias conduções até em casa. Eis que Lyrio, descendente de espanhóis, temperamental e investigador bissexto da Polícia Civil, irrompe na sala. Saca seu revólver e fulmina os céus do Anhangabaú, postado bem lá embaixo. O último, Waldyr, hoje não virá. Também investigador, estará cuidando dos preparativos de seu casamento, e seu cunhado quer que ele assuma a direção de uma grande loja de móveis para cozinha. Muita gente ainda aria pela nossa sala, pois, jovens, alegres e talentosos, formávamos um grupo bem diverso do já heterogêneo conjunto dos freqüentadores do prédio. Para mim era um irável mundo novo, com aspectos bons e sombrios. Havia de tudo, ali. Gigolôs e prostitutas, vendedoras sexy de cafezinhos, malandros, jogadores, gays, bancários e outros sindicalizados, lutadores de judô da Academia Ono. Comerciantes, dentistas, alfaiates. E mais, bares e botecos, bilhar, cabeleireiro. O Martinelli era um mundo, e até poder-se-ia viver lá, sem sair para quase nada. Acho que muita gente fazia isso. Apesar dessa diversidade, e haver facetas de sordidez, nunca senti nenhum perigo nos dois anos que lá fiquei. Confraternizávamos com as garotas e os moradores, num clima amistoso. O vetusto Martinelli era como um templo, pronto a receber todos, santos e pecadores. Sua presença solene garantia o sentimento de respeito e comunidade que tinham essas pessoas, mesmo sendo tão diversas. Depois saí de lá e soube que o edifício decaiu muito mais, tornando-se insalubre e perigoso. Como contrapartida, foi reformado, expulsos todos seus habitantes e os resquícios do ado. Como faziam os antigos romanos com as cidades conquistadas, foi arrasado, só faltando mesmo uma mão de sal por cima. Tábula rasa! E daí renasceu, limpo, asséptico e impessoal. Uma imensa repartição pública, com balcões e divisórias, onde tímidos amanuenses talvez surpreendam, numa noite de plantão, fantasmas do seu turbulento ado aprontando ainda alguma pelos corredores, agora imaculados como os de um hospital.
Foi o primeiro prédio que conheci em 1940, quando vim do bairro do Ipiranga pra conhecer o centro da cidade. O Cine Rosário também fazia parte do prédio e a garrafinha da Caracu que ficava no seu topo, o tempo todo girando. Durval
Do chapéu Prada ao gabardine Mário Lopomo Até o início dos anos 1970 as lojas predominavam no centro da cidade. Somente depois os shoppings começaram a proliferar. Lembro-me do primeiro terno que comprei nas lojas Garbo, da Rua 15 de Novembro. E só comprei para ir ao casamento do meu amigo Moisés e da minha amiga de infância, a Neide. Foi no dia 28 de junho de 1958. Era um sábado que antecedia o grande jogo decisivo da Copa do Mundo da Suécia, em que o selecionado brasileiro seria campeão do mundo pela primeira vez. Daí pra frente ei a entrar em várias lojas para ver os preços de roupas. E loja era o que não faltava no centro da cidade. Tinha a Exposição, na esquina da Praça do Patriarca, bem em frente à Rua Direita. A Ducal, com loja tanto na Rua Direita quanto na Avenida São João, esquina da Dom José de Barros. A Clipper, que mais tarde acabaria se fundindo com a Exposição, na A Exposição-Clipper. Todas essas lojas vendiam também sapatos e chapéus. As marcas mais procuradas era Calçados Scatamachia bico fino, Camelo de cromo alemão ou então o famoso 752, da Vulcabrás, com sola de borracha que durava três anos e meio. Chapéu tinha que ser Prada. Para quem não queria comprar roupa feita, a melhor loja para a compra de tecidos para se fazer terno no alfaiate era a loja Scaff, na Rua Direita. Gabardine, risca de giz, normalmente de cor cinza. Ou então, o manjado tecido azul-marinho, a cor mais vista para ternos juntamente com a cor preta. Tinha aquele que gostava do terno de linho, e aí a cor era o branco. Na época dizia-se que era roupa de malandro, sendo o traje completo com sapato preto de bico branco e chapéu coco – roupa muito comum na gafieira do Som de Cristal. Em se tratando de lojas tipo magazine, ou loja de departamento, a referência era o Mappin. Referência para tudo, coleta de preços, reportagens e fotos na primeira página de todos os jornais por ocasião do Natal ou Dia das Mães. No período da Páscoa a loja mais procurada era a Kopenhagen. O chocolate mais gostoso. Já o chocolate Lacta era popular e vendido em qualquer loja, como as Lojas Americanas, na Rua Direita, ou as Lojas Brasileiras, na mesma rua, e também em bares e mercearias.
Lembro que os melhores, e mais caros, sapatos masculinos de São Paulo eram aqueles da Sutoris, sempre de estilo clássico. Camisas de colarinhos “trubenizados”, além da Casa Kosmos, havia aquelas da Triunfal, de preços mais módicos. Sapatos baratos também podiam ser encontrados na 44 – Caracuacá, na Rua São Bento. Em ternos pret-a-porter popularizados pela Exposição e Garbo, tínhamos também a José Silva. Brechós de roupas usadas, que hoje existem em toda a cidade, eram poucos e se concentravam na Rua do Seminário. As confecções de rou59
pas feitas em geral surgiram na Rua José Paulino, na 25 de Março e na Rua Oriente. Ternos de “tropical brilhante” e “linho 120” só nos alfaiates mesmo... Expedito Marques Pereira Tenho 49 anos, mas ainda vivas em minha memória as lojas que fizeram o cenário de fundo de minha infância ao ear com minha mãe, quando em compras pelo adorado e saudoso Centro, que pouco a pouco vai se transformando em memória, em ado. Recordo-me da Sönksen, da Kopenhagen e das Casas Clark... Isso tudo, menos a Sönksen, remete à saudosa Praça do Patriarca que, dos bons tempos, restam apenas a Igreja de Santo Antônio, a própria Kopenhagen e o moribundo Othon. Foi-se a Casa São Nicolau, que depois de algum tempo virou Fausto-São Nicolau e terminou seus dias agonizando com um comércio barato e indigno da imagem dos dias de glória. Na esquina oposta, a extinta Modélia, que na década de 1960 foi vítima de um grande incêndio, voltando anos após com o slogan: Modélia queimou! Modélia voltou. Do outro lado da rua, a Exposição, onde se encontrava boa moda. Virou A Exposição-Clipper e depois Exposição Dom José. Anos mais tarde, mudou de nome, nunca mais com o glamour de outrora. E era dessa praça que se mirava o que havia de mais charmoso e marcante na cidade: o Viaduto do Chá, o Teatro Municipal e o inesquecível Mappin. O nosso Mappin, que o vento levou. Pena que se foram. Bruno Sandin Recordo-me da Casa Imperial que se alinhava com a Scaff e era especialista em tropical inglês, das Casas Vermelha que vendiam os famosos sapatos fabricados pela Souto, sem falar na Picadilly. Em termos de guloseimas, não consigo me esquecer da Sönksen, que tinha a fábrica na Vergueiro e a loja exclusiva, tal e qual a Kopenhagen, na Rua 15 de Novembro. Eram chocolates com toque Suíço. Carlos Ogasawara
Rua dos Andradas, fina flor da malandragem Luiz Ramos Hoje, quem a pela Rua dos Andradas – talvez a principal veia da boca do lixo (não pode ser chamada de artéria, por motivos não tão óbvios assim) – vê apenas e tão somente a decadência; quem ava por ela há trinta anos, via apenas e tão somente a decadência. Aquele qua60
drilátero compreendido entre Jardim da Luz, estátua do Caxias, Largo do Paissandu e adjacências sempre foi a região da fina flor da malandragem paulistana. Claro que esse tipo de classificação é sempre perigosa e nem sempre tão precisa, afinal, a bandidagem abunda aqui e ali, mas a boca do lixo era uma zona abaixo de qualquer suspeita. Essa sujeira, característica de diversos bairros semelhantes no Brasil e no mundo, ganhava ali uma cor especial, talvez pelos relatos crus de cronistas com uma incrível verve, como o grande Plínio Marcos – Plínio era mais que um cronista dos marginalizados; como ele se definia, “Plínio é universal”. Havia também os jornais que davam o tom e tinham a cara da área. O 69 povoava mentes de adolescentes imberbes. O vento soprava e encostava o lixo que a garoa molhava. O trem apitava na curva. A rodoviária era ali, sempre convidando a partir. Um pastel de carne no China não descia bem, o caldo-de-cana empurrava. A vida acontecia como na sopa primordial; a vida acontece como na sopa primordial.
Os pontos mais chiques da cidade Turan Bei Os meus dois primeiros empregos: o primeiro, na Marconi, e o segundo, na Barão. Na época eram duas ruas superbadaladas, com sentido, pois, em comum, elas tinham as melhores lojas e as mais atrativas vitrines. Lembro que a Marconi atraía para si a elite paulistana ávida pelos artigos importados, como jóias, relógios e finos adornos femininos, e o ponto mais chique era a Peleria Apolo, com os seus requintados casacos de peles. Na Marconi não havia espaço livre entre os prédios que eram colados uns aos outros, e nela você sentia uma atmosfera de riqueza e bom gosto, tudo resplandecia grandeza e ostentação. A Barão não ficava devendo nada, o que faltava na curta Marconi, você encontrava com sobejo na Barão, principalmente vestuário, artigos de couro e elétricos. A Confeitaria Vienense marcou época com os seus salões no piso superior de um casarão assobradado, onde no chá das cinco se dava o encontro das pessoas chiques. À noite, a Barão se tornava uma rua de paquera ou footing, as mulheres faziam o percurso pelas calçadas da Barão, Avenida Ipiranga, 24 de Maio, Dom José de Barros, e os homens ficavam postados no meio-fio, olhando o desfile e esperando serem os escolhidos para uma sessão de cinema. Quem permanecia no trecho da Confeitaria Vienense tinha o privilégio de ficar ouvindo as músicas, geralmente uma orquestra de cordas, com um piano bem executado. Tudo isso, na década de 1950.
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No meio da chuva sem se molhar José Luiz Batista da Fonseca Capa de chuva, só usei na infância quando minha mãe comprou uma azul-marinho para eu ir à escola. Parece que era moda. Toda a molecada usava aquela capa de chuva. Lembro até de jogar bola com ela no recreio do colégio nos dias que choviam. Um time inteiro de capa de chuva. Era engraçado! Galocha, vi algumas lá em casa. Eram do meu avô e do meu pai. “Eita” coisa horrorosa. Nunca usei. De borracha inteiriça, tão larga que se colocava por cima dos sapatos. Era engraçado! Guarda-chuva. Bem, esse minha mãe me forçava a levar na mala de couro da escola. É, naqueles tempos os estudantes não usavam mochila, não. Nem existiam. Era mesmo uma mala de couro, com dois feixes tipo orelha. As pastas 007 vieram bem depois e não eram pra uso escolar. Já pensou estudante agente-secreto? Mas, sempre tive certa ojeriza – vixe – por esse trio parada dura: guarda-chuva, galocha e capa de chuva. Tanto assim que essa rebeldia dura até hoje e eu ainda reluto em sair mesmo com o guarda-chuva. E sempre acabo me ferrando! Vide por exemplo essa última sexta. Lá estava eu novamente, debaixo de um toldo de casa comercial, no caso, a “padoca” do seu Santos, esperando a chuva ar. E nada de ar. Só o tempo ava e o meu compromisso indo por água a baixo. Mas, vendo que não tinha jeito, o jeito foi sair dali com chuva mesmo. Daí pus em prática meus profundos conhecimentos dos meandros, desvios e os do Centrão. Afinal, pelo menos para conhecer bem aquele pedaço, valeram os anos e anos ali vividos. Desde os tempos do Caetano de Campos. Então montei mentalmente todo o itinerário, procurando um caminho pelo qual eu menos me molharia. E assim foi. E deixo aqui o registro desse roteiro. Tenho a certeza de que algum dia será de valia para alguém. Ai vai: Atravesse ligeiro a Avenida Ipiranga junto à Avenida São Luís, em frente à Biblioteca Municipal. Se beneficie das árvores dessa esquina, que lhes darão uma grande proteção da água. Essa operação deve ser feita com o semáforo fechado aos carros, minimizando a quantidade de chuva a ser tomada. Tome cuidado com os motoqueiros que cruzam a avenida sempre de surpresa, quando você menos espera. Os ônibus também não costumam respeitar os pedestres. Portanto, muito cuidado! Ao chegar do outro lado da avenida, siga pela calçada da Rua Quirino de Andrade, bem recostado à parede. Nesse local há uma grande quantidade de prédios antigos, todos geminados, colados uns aos outros, com bom
lance de marquise, que quase protege a calçada toda. Tome cuidado apenas com a presença de marreteiros que obrigam o transeunte a manobras de desvios. Tome cuidado também com o fluxo contrário de pessoas que, apesar de portarem guarda-chuvas, insistem em andar igualmente debaixo das marquises. Inclusive, alguns agressivamente enfiam os bicos desses guardachuvas nos olhos dos que andam no sentido contrário. Ao atingir a esquina com a Rua João Amaro, atravesse o Largo da Memória em direção à escada da estação do metrô. Nesse trecho você se molhará um pouco. Portanto, corra, mas tome cuidado para não escorregar no piso de mosaico português todo falhado com a ausência das pedras, ou então com a presença de alguma casca de fruta – laranja, mexerica, banana ou abacaxi – jogada pelos nobres cidadãos de nossa cidade na calçada. Cuidado também para não escorregar em algum saco plástico com resto de cola de sapateiro jogado no chão por algum menor infrator – termo usado à minha revelia, mas politicamente correto – freqüentador assíduo do pedaço. Atingindo a escada do metrô, se enxugue um pouco e aproveite-se da comodidade da vida moderna: a escada rolante. Suba então até a Xavier de Toledo. Cuidado para não levar nenhum tranco de algum pedestre educado e apressado. Já na reta final, essa rua o conduz protegidamente da chuva por sob as marquises dos prédios igualmente antigos e geminados, praticamente até o Teatro Municipal. Pena a agem subterrânea, por onde muitas vezes eu ei, da esquina da Xavier de Toledo com o Viaduto do Chá, exatamente naquela esquina em que o guarda Luizinho fez sua fama, estar desativada. Assim, você poderia chegar mais enxuto ao seu destino. Atingindo a Praça Ramos, desvie das centenas de panfleteiros presentes no local, distribuindo todo tipo de folheto, desde empréstimos para aposentados e funcionários públicos até de quiromante e desfazedor de macumba. Desvie também dos muitos homens-sanduíche ali presentes, ou tome sorrateiramente alguma daquelas capas–propaganda deles emprestada para se proteger da chuva. Quem sabe você não acabe achando o modelito simpático! Boa Sorte!
Na minha juventude, a capa azul–marinho de nylon era equipamento indispensável na chuvosa São Paulo daqueles tempos. Luiz Saidenberg
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Uma cidade sem assaltos Clésio de Luca Quando fui para São Paulo, trabalhava na Rua Marconi, ali pertinho da Rua 7 de Abril e do Viaduto do Chá, locais então iluminados pelos postes de luz, creio de ferro fundido de formato arredondado. Havia vários painéis eletrônicos, alguns gigantes que, além de um colorido especial, davam notícias sobre o Brasil e o mundo, entretendo os transeuntes, isso no Vale, onde começa a Avenida São João, marco da Paulicéia, maior cidade da América Latina. Nesse tempo, final da década de 1960, não havia metrô. O que se via eram os ônibus elétricos da empresa CMTC de cor azul e também os de cor vermelha. Ônibus sempre bem conduzidos pelos seus motoristas, ligados a cabos elétricos e que ajudavam no transporte coletivo do Centro aos bairros, principalmente, na hora do rush. Não havia assaltos e roubos, nem mesmo seqüestros. Nesse tempo eram raras notícias sobre assassinatos e quando eram anunciadas mal acreditávamos.
Acho que todos os ônibus elétricos vermelhos eram da CMTC. Só variavam de cor de acordo com alguns Prefeitos da época, mas não tenho certeza. Lembro-me muito bem dos ônibus Papa-filas e dos bondes Camarão, que eram fechados e vermelhos. Bernadete Pedroso de Souza
Andanças noturnas Janete de Souza Soares Quintanilha Comecei minha carreira como professora no sistema estadual de ensino no Jaçanã, zona norte da cidade. Eram os anos de 1968, de 69 e 70. Morava na Rua Dona Brígida, praticamente na esquina com a Rua Baltazar Lisboa, divisa da Aclimação com a Vila Mariana. Todas as noites descia do ônibus no Vale do Anhangabaú por volta das 23h10. Subia a escadaria lateral do Viaduto Santa Ifigênia, completava o trecho do viaduto até o Largo São Bento, cruzava com um ou outro transeunte que, às vezes, dizia um boa noite, ou simplesmente me ignorava. De vez em quando, pessoas sentadas na soleira de alguns prédios, conversando, das quais via o cigarro vaga-lume logo que virava a esquina... O silêncio do Largo São Bento, o céu, por vezes escuro, por vezes claro, era sempre acolhedor. Medo? Agora penso como pude não senti-lo. Ao contrário. Era o meu momento de prazer e descanso. Dali, a Rua São Bento, Praça do Patriarca, Líbero Badaró, Largo São Francis62
co, José Bonifácio, até a Praça da Sé para pegar o último ônibus elétrico e ir até o ponto final, na Rua Baltazar Lisboa. Hoje, não mais vivendo na cidade, sinto que cada vez que lá volto minhas emoções reconhecem minha casa. Recordações... há tantas outras... todas de afeto e reconhecimento.
Quantas lembranças daquela esquina da Baltazar Lisboa com a Dona Brígida. Eu morava na Rua Afonso Celso, mas estudando no Brasílio Machado conheci aquela que mais tarde viria ser minha primeira esposa, hoje grande amiga da minha família. Ela morava na Dona Brígida, em uma vila, no número 232. Todas as noites depois das aulas eu a acompanhava até a vila e subia a pé a Baltazar Lisboa até a Vergueiro, depois pegava a Domingo de Morais até minha casa na Afonso Celso. Os fins de semana não eram diferentes, pois tínhamos bailinhos pró-formatura na Rua Dona Avelina e voltávamos caminhando por ali. Éramos todos menores, menos minha namorada. Em uma daquelas noites fomos parados por cavalarianos bem na esquina da Baltazar Lisboa com a Brígida. Era a época da revolução e os militares estavam por toda a parte. Foi em 1967. Pois bem, todos tínhamos documentos, menos minha namorada. Os militares, depois de alguns minutos de papo, perceberam que éramos apenas garotos voltando de um bailinho, minha namorada, os irmãos dela e eu. Deram boa noite e seguimos nosso caminho. Para ironia e continuação do sacrifício, minha namorada e a família anunciaram que iam se mudar da Dona Brígida. Ufa! Não vou mais ter de subir a Baltazar Lisboa. Que nada, eles mudaram para a Rua 11 de Junho, lá no final, perto da 23 de Maio, divisa da Vila Clementino e Vila Mariana, e, a partir daí, eu tive que subir toda a Rua 11 de Junho até a Domingos de Morais! Miguel Aranega
Era uma vez dois porquinhos Luiz Saidenberg Era impossível deixar de reparar neles. Eram dois porquinhos de neon, talvez um azul e outro vermelho, e estavam sempre em frenético movimento. Disputavam, de um modo que parecia eterno, uma fileira de salsichas luminosas. Cruel ironia, visto serem, também, de condição suína. Aquele luminoso, há tantos anos ali, era parte familiar da paisagem de quem descia a São João em direção ao Anhangabaú. Pudera, vi-o numa foto de 1942, da velha esquina São João com Líbero Badaró. E talvez fosse ainda mais antigo.
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Quando, em 1960, com mais três amigos desenhistas, tive um estúdio, no já decadente Martinelli, lá continuava o luminoso, anunciando a famosa Salsicharia Especial. Devo mesmo ter comido lá, algumas vezes. Por dois anos trabalhei ali, depois se desfez o estúdio, e mesmo a amizade com alguns dos três. Muita coisa mudou, no Centro Velho e em mim, que também fui envelhecendo. Ir ao Centrão, coisa antes corriqueira e até indispensável, foi-se tornando cada vez mais rara e quase impossível. Nossa memória é frágil, e, às vezes, ingrata com as boas coisas do ado. Esqueci completamente a salsicharia dos dois porquinhos e tantas outras coisas dali. Até que na comemoração dos 450 anos de São Paulo visitei a magnífica exposição de fotos na FIESP, retratando várias fases de nossa cidade, desde a sua fundação. A que mais falava à minha emoção era a referente ao final dos anos 1950, quando, ainda adolescente, havia vindo com a família para a capital. Começava então a luta para, além de estudo, achar trabalho, definir meus rumos, descobrir os mistérios do trato com as mulheres. Ser, afinal, um homem. Entre as comoventes fotos da época, deparo com o velho luminoso dos porquinhos, em várias fases da região, até a mais recente foto, de 1970. Foi um retorno instantâneo há mais de quarenta anos atrás, trazendo de volta todas as turbulentas emoções que povoavam minha juventude. Estava novamente em 1962, descendo a São João, cruzando a Líbero Badaró e ando distraído sob a luta dos dois porquinhos, que nunca mais tornaria a ver, ao vivo e em cores.
Essa é do meu tempo, e a salsicharia era a Salsicharia Paulista, onde também era servido um concorrido sanduíche de pernil que satisfazia exigentes paladares. Na época, eu, office boy de um banco, fazia meu pit stop, quando tinha que ir ao Correio Central. Carlos Ogasawara Lembro-me dessa propaganda quando ava de mãos dadas com minha tia pelo Viaduto do Chá em direção à Cinelândia, na década de 1950. Morava na Doutor Falcão. Existia outro anúncio de neon instalado no alto do edifício da esquina da São João, em frente à Praça do Correio: era a da torneira Cré e que pingava. Alguém se lembra? Roberto Motta de Sillos
A rua das luminárias Turan Bei
de luminárias exibiam feericamente seus produtos nas vitrinas, era o trecho mais iluminado da cidade e dava prazer percorrê-lo! A esse tempo, o neon dominava os letreiros e fazia uma combinação de cores encantadoras, parece que dava alegria em contemplá-los! Mas um letreiro não me sai da memória até hoje: Je Reviens Nuit Bar, um letreiro que suscitava em minha imaginação de jovem o que se aria naquele andar de cima do sobrado, que as pessoas diziam ser uma boate! Pena que essa boate fechou antes de eu completar a maioridade!
Como era bom trabalhar no Centro Marcos Ugeda de Matos Em meados da década de 1970, era muito bom trabalhar como office boy no centro de São Paulo, ainda mais no Edifício Itália. Os adolescentes da minha época não freqüentavam shoppings, mas as lojas das galerias que traziam uma variedade de lançamentos, como a Piter, que ficava atrás do Teatro Municipal. Comprar sapatos sob medida era na Rua Maria Antônia e comer deliciosos lanches, na Galeria 24 de Maio.
Lembranças boas e más Paulo Eduardo Branco Vasques Fui bancário de 1962 a 1975. Trabalhei nas ruas São Bento e Líbero Badaró. Vi a construção do Metrô São Bento, pois trabalhava no 10º andar. Nos momentos de lazer e de almoço, ia sempre ao restaurante Guanabara onde me deliciava com as insubstituíveis coxinhas de frango cuja massa era especial. Hoje já não se faz mais da mesma forma. O restaurante continua vivo na esquina da Avenida São João com o Anhangabaú. Na época estava situado na Rua São Bento e também na Rua 15 de Novembro. Assisti aos dois incêndios, o do Andraus, onde as chamas ultraavam a Avenida São João, chegando a queimar as paredes dos prédios em frente, e o do Joelma, que foi o que mais me chocou, pois assisti do 34º andar do Edifício Conde Prates e vi as labaredas buscarem as pessoas no topo do prédio. Perdi muitos amigos nele, inclusive estava para ir trabalhar lá, na Empresa Crefisul.
No início da década de 1950, a Consolação era o meu trajeto diário para o trabalho, mas bom mesmo era à noite quando todas aquelas lojas 63
Rua Direita, não tão direita assim, e adjacências Neuza Guerreiro de Carvalho Minhas lembranças da década de 1940 me levam a visualizar algumas lojas, sendo que as melhores estavam na ligação da Praça da Sé com a do Patriarca. Algumas sobrevivem, mas poucas, como a antiga Casa Bevilácqua, agora Vitale, e as Lojas Americanas. A Farmácia Baruel ficava bem na esquina da Praça da Sé e a loteria Casa Luongo, na Rua Direita nº 2. Havia também a Lutz Ferrando, onde se compravam óculos e instrumental delicado. Famosa, confiável, que sobreviveu por muito tempo. E as Lojas Americanas, conhecidas pelo povo como “a casa dos dois mil réis”, a primeira no seu estilo, diferente para os padrões da época. Além de variedade, as Lojas Americanas tinham mercadorias muito baratas, de no máximo dois mil réis, distribuídas de uma forma que facilitava a escolha e induzia à compra. Com ela começou o desenvolvimento de uma mentalidade consumista. Quanta quinquilharia eu comprei lá! Era muito grande, indo da Rua Direita até a José Bonifácio. Foi nessa loja também, que se começou a comer os cachorros-quentes, novidades na época. Já a Casa Bevilácqua era a loja musical da cidade, com instrumentos musicais e partituras. A Casa Sloper primava pela distinção, fineza e requinte. Vendia luvas, lenços e echarpes finíssimas. Era para a elite, o oposto das Lojas Americanas que se dirigia mais ao povo. A Casa Alemã, vinda da década de 1930, teve que mudar de nome durante a Segunda Guerra Mundial para Galeria Paulista. Tinha roupas finas, já introduzindo a confecção. Minha lembrança dessa loja está associada a um vestido que minha mãe me comprou, estilo marinheiro: saia branca de fustão, pregueada, bluzãozinho com gola quadrada e rodeada por soutache azul-marinho. Foi no fim da década de 1930. Eu não tinha nem 10 anos. Essa roupa só pôde ser comprada porque meu pai ganhou cem mil réis no jogo do bicho, possibilitando fazer a extravagância de vestir melhor suas filhas. Até chapéu minha mãe comprou. E o casamento do sobrinho foi assistido com pompa e circunstância. Na Casa Kosmos se comprava roupa de homem: camisas brancas impecáveis, com nomes bordados no peito e lenços com monogramas especiais. Era uma loja para grandes ocasiões. Para o dia-a-dia, para comprar cuecas e meias, usava-se ir à Triunfal, na Rua São Bento. Curiosidade: em 1931, uma camisa Bandeirantes custava 32$000 (trinta e dois mil réis). Tecidos finos eram encontrados na Tecelagem sa, onde as pessoas eram atendidas com todo o respeito e cortesia. Trabalhava com tecidos importados, mas foi cedendo em importância para casas que ficavam do outro lado do Viaduto do Chá, as Casa Hasson, na Barão de Itapetininga e Liberty, na Rua 7 de Abril, essa de dois irmãos judeus, José e Aron Melaned. Às vezes, eles mandavam peças de fazenda para a casa de minhas tias, mo64
distas finas, para que a escolha fosse particular, pessoal e sem pressa. Todos se conheciam pelos nomes. A Casa Bonilha, de modas, da década de 1920, ficava na Rua Direita, na calçada de frente à Casa Alemã. Perto dela ficava o Alhambra, um cinema de luxo que minhas tias conheceram porque uma freguesa de costura lhes deu uma entrada para que elas copiassem uma gola do vestido de uma atriz. Saindo um pouco da Rua Direita, mas ainda fazendo parte desse mundo comercial, já na Praça do Patriarca, ficava o Mappin Store, tradicional loja de departamentos, funcionando desde a década de 1910. Ficava na Praça do Patriarca n.º 2 e já tinha o relógio que até hoje sobrevive. Na época da Segunda Guerra Mundial, mudou de nome para Casa Anglo-Brasileira, mas recuperou o nome antigo depois que as coisas assentaram. Mudou-se depois para a Praça Ramos de Azevedo e seu salão de chá no quarto ou quinto andar era um famoso ponto de encontro. Quando o Mappin desapareceu levou consigo um dos marcos de São Paulo. Ainda na São Bento ficava a Casa Genin, onde as senhoras se abasteciam de lãs, linhas e agulhas para seus tricôs e crochês. E no número 34 ficava a Alfaiataria e Confecções Ausônia. Perto da Rua Direita, na São Bento, ficava a Leiteria Campo Belo que servia um chá muito chique. Fui testemunha disso.
Guardo uma camisa – que foi do pai do marido da minha tia – da Casa Kosmos. Ela é fina e tem as iniciais do dono bordadas. Rosemari de Almeida A Casa Fretin não existe mais. No seu lugar tem uma financeira. Na Rua São Bento, além da Casa Genin, tinha a casa El Divino Boton, na parte de cima de um sobrado, onde se achava todos os tipos de botões para roupas, inclusive, levava-se um pedaço do tecido e eles faziam o botão de massa igualzinho. Nota: nessa loja também tingiam plumas da cor do vestido ou faziam uma espécie de pluma com o próprio tecido para se colocar em golas. Mariana Capobianco
Malandros da Sé Adalberto Amaral Na década de 1970 era comum, depois do almoço, as pessoas ficarem sentadas em praças somente para ver o movimento e depois retornar ao trabalho. A Praça da Sé era a mais procurada, pois ali se reuniam inusitados
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personagens da cidade como os camelôs, uns apresentando truques de mágica, outros jogando capoeira. E tinha o Homem da Cobra que colocava duas grandes maletas no chão, garantindo que no seu interior havia uma cobra e um lagarto e que ali seria o palco para a grande luta entre os dois animais. E se formava uma roda de curiosos para ver a tal disputa. Quando já havia muita gente em volta, ele sacava de outra maleta um vidrinho contendo o milagroso óleo de peixe-elétrico do Amazonas, que curava de tudo, desde calos nos pés até bronquite, queda de cabelos, enfim, um “santo” remédio. Claro que após vender inúmeros vidros do remédio milagroso ele ia embora, e a tal briga da cobra com o lagarto não se realizava, aliás, nunca cheguei a ver os tais animais. Esse era um típico malandro da Sé. Mas havia um que chamava a atenção – tipo do malandro mesmo, como se saído das músicas de Noel Rosa: sapato de duas cores, terno branco, camisa preta, chapéu de aba curta, gravata branca, maneiro no falar. O Mãozinha. Esse nome se deu porque, em plena Praça da Sé, ele vendia um “estranho aparelho”, como ele costumava chamar, e que tinha a forma de uma mãozinha plastificada com um papel tipo celofane vermelho. A tática era a mesma do Homem da Cobra. Ele prometia que o “aparelho” permitia ver além da matéria que envolvia o objeto. Como se fosse um aparelho de Raio X. E, para comprovar, estendia a mão em direção ao sol, e pedia a alguém da platéia que colocasse o “aparelho” a uma distância de quinze centímetros e focalizasse sua mão. — O que o senhor vê? – Perguntava ele. — Estou vendo os ossos da sua mão – respondia, ainda incrédulo, o convidado. Ato contínuo, ele tirava do bolso um ovo e convidava outra pessoa da assistência, que nessa altura já reunia mais de quarenta pessoas em volta dele, colocava o ovo para o alto, e pedia para a pessoa observá-lo através do inusitado aparelho. — Estou vendo a gema do ovo – retrucava outro, com cara de espanto. Aí o Mãozinha desferia o golpe de misericórdia. — Este pequeno aparelho – dizia ele – não é para olhar nem gema de ovo e tampouco ossos de sua mão, mas, imagine os amigos podendo ver através das roupas das mulheres. Aquilo agitava a cabeça dos presentes, na maioria homens, e essa possibilidade fazia se esgotarem os aparelhinhos que em poucos minutos iam parar nas mãos dos presentes. Dinheiro no bolso, o Mãozinha ia embora. Eu comprei um desses “aparelhinhos mágicos” e, claro, não vi absolutamente nada do que foi prometido. Resolvi, então, decifrar o mistério: rasgando o celofane que envolvia o papelão em forma de uma pequena mão descobri que no meio do papel havia uma pequena pena de galinha prensada. Era ela quem distorcia a imagem, quando olhada contra a luz, dando a impressão de se enxergar os ossos da mão ou a gema no interior do
ovo. Hoje me pego a sorrir daqueles tempos em que até a malandragem era ingênua e em que entrávamos nesses golpes tão infantis. Hoje aqueles “malandros” da Praça da Sé foram substituídos por outros, estes sim perigosos.
Rua 7 de Abril e cercanias Luiz Saidenberg Há uns domingos estive naquela região. Tínhamos ido à Pinacoteca, mas por ser meio tarde o estacionamento estava lotado e voltei à Cidade. Estacionei no Largo do Arouche e toca a fazer um giro de reconhecimento pelo pedaço, que não via há muito. Depois de uma olhada na feira da Praça da República toda cercada por tapumes, adentramos a Barão de Itapetininga, região de caras lembranças para mim e Márcia, que, bem jovem, havia trabalhado na Telefônica. Era um domingo, estava quase tudo fechado, e mesmo os camelôs ausentes do local. Bastante desolado e triste, foi necessário um bom exercício de memória para dar ao cenário o revestimento de charme e luxo que existiu em outros tempos. Como um trabalho de arqueologia, ou paleontologia, dar ao esqueleto, que ainda existe, o frescor da carne, músculos e pele desaparecidos. amos por onde foi a bela Livraria sa, hoje numa casa da Vila Olímpia. A Galeria Califórnia, fechada e com um trailer de bolsas e produtos de couro rústico na entrada, bem defronte onde ficava o Café Vienense, que lembrava a belle époque. A galeria era um dos pontos vitais do pedaço. Lembro-me de que entrando pela Rua Marconi havia no seu portal uma famosa casa de mate batido. Ao seu lado, a camisaria William, com cortes sob medida. E uma Kopenhagen. Lá dentro, livrarias, o Mocambo, primeiro café expresso de São Paulo, cinemas, uma casa de pérolas naturais, na sua saída, à esquerda, para a Barão. Tinha até mesmo uma pequena boate, numa sobreloja, onde se podia dançar. Com o devido respeito, naturalmente. Bem perto, quase em frente, na esquina da Dom José com a Barão, o bar Cinzano, uma caixa de vidro, em três andares, com curiosos drinques como o Planter´s Punch, que tomei certa vez com meus colegas de Mc Cann. Na esquina oposta, mais uma Kopenhagen. No meio da quadra, a alfaiataria Minelli, freqüentada por astros da TV. Voltemos pela Barão e subamos a Dom José, onde pontificava a luxuosa Old England, de roupas e órios masculinos importados. Bem perto, a doceira Cristallo, que no Natal lotava pelos seus panetones. Dobrando à esquerda, na 7 de Abril, o portentoso prédio dos Diários Associados, onde 65
trabalhei por quatro anos. Diante dele, o restaurante Costa do Sol, que servia bons pratos, como vatapá. Ao lado dele uma das Lojas Garbo. Continuemos pela 7 de Abril, rumo à Xavier de Toledo. Na Praça Dom José Gaspar, o belo Paribar, com suas mesas na calçada, onde se bebericava sem ser importunado por ninguém. ando a galeria Nova Barão, o Massadoro, onde se podia comer na sobreloja, no famoso balcão que havia embaixo, com coxinhas, esfirras e focaccias. Numa outra e mais obscura galeria, quase em frente, ao lado de uma estátua de um operário, em bronze, que ainda existe, a turma da Rádio e TV da agência ia todas as noites, e ali ficava, retardando ao máximo a volta à suas casas. Eu era solteiro, mas mesmo assim ficava só um pouco, pois nunca fui de grandes beberagens. Tomando a direita da Rua 7 de Abril, ando a Telefônica e entrando na Bráulio Gomes, logo se avistava o Almanara, onde certa vez, no balcão, bati um papinho com o elegante Sílvio Caldas. Mais adiante, o Hotel Ca D´Oro, o pequeno restaurante Giovanni e logo mais a então charmosa Galeria Metrópole. Mas não chegamos a rever nada disso. Na 7 de Abril, em direção República, sem-teto esparsos pelas marquises e calçadas, embrulhados em mantas ou cambaleando em meio às lojas fechadas. Apressamos o o, então, para tomar uma cerveja com fritas num barzinho do tranqüilo Largo do Arouche, por conta dos velhos tempos.
Faltou lembrar aquela sanduicheria na esquina, próxima ao Diários Associados, que vendia de tudo, pão com mortadela, pernil e o famoso churrasco grego, bem ali na esquina com a Marconi. Saudades também da loja Bruno Blois, na 24 de Maio, do Museu do Disco, na Dom José de Barros, da Mesbla e tantos outros lugares... Wilson Por volta dos anos 1970, eu estudei – Curso de Madureza – no Colégio Rui Barbosa, no prédio da Galeria Califórnia! E quantas saudades dos cafés, dos lanches apressados! Quantas vezes matava a aula cansativa! Só descia a rampa e estávamos no cinema! Cine Barão. Trabalhei por muitos anos na esquina da Rua 7 de Abril com a Rua Bráulio Gomes, no prédio da Generalli, na Hoechst do Brasil! Ficávamos no 1º andar, naquele tempo ninguém tinha ar-condicionado, então as janelas eram abertas e trabalhávamos ao som de tudo que você possa imaginar; loja de disco, esquina com galeria Nova Barão! Corais evangélicos cantavam na praça! Gritos de “pega-ladrão”, gente vendendo bilhetes... tinha um vendedor que fazia versos com os bichos! Eu tinha um chefe que saía na janela e xingava o coitado! A biblioteca era a minha predileta, ia fa66
zer pesquisa, leituras; o restaurante Costa do Sol! Que comida gostosa! A feijoada nas quartas-feiras; inclusive nos Diários Associados também tinha um bom restaurante, lembra? O Mappin era minha parada obrigatória! Como foi bom esse tempo! E eu não sabia. O sucesso acabou quando começaram as obras do metrô. Uma barulhada infernal! Porém, por uma causa nobre. Algum tempo atrás fiz um tour pelas galerias, e encontrei tudo muito diferente. A vadiagem tomou conta do Centro e dá até medo de andar; mas ficaram boas lembranças para mim, acredito para nós, que vivemos bons tempos. Orlanete Guimarães Apesar de ter voltado para a Itália há muitos anos ainda lembro muito bem daquela época no centro de São Paulo – a Cidade – inclusive na Rua 7 de Abril tinha o Cine Coral, onde avam muitos filmes Italianos. Giuseppe Orsini
De cidade provinciana à megalópole Miguel Chammas Meados dos anos 1950, São Paulo estava, ainda, na transição de cidade provinciana para a megalópole de hoje. Eu já me considerava “homem formado”, mas não dispensava, de forma alguma, uma bagunça, fosse ela programada ou não. A Rua Augusta não apresentava a decadência de hoje; a Praça Franklin Roosevelt não fora hiperdescaracterizada, ainda apresentava-se aos paulistanos em terreno de chão batido um tanto abaixo do nível carroçável das ruas laterais. Para disfarçar esse desnível, as suas laterais tinham sido transformadas em pequenos declives devidamente gramados. A Igreja da Consolação, majestosa naquele ambiente, apresentava, ainda, na sua lateral esquerda, a sede dos Congregados Marianos, das Cruzadas Infantis, das Zeladoras de Fé e o pátio com a quadra poliesportiva. Seu muro traseiro ainda mantinha os mesmos buracos onde outrora, no início desses anos, eu e meus camaradas escondíamos os maços de cigarros – Elmo, Fulgor, Aspásia, Negritos, Pullman, Everest e outras marcas – comprados para nossa migração do talo de mamona para o bastonete de fumo. Lembro-me de que os tais maços de cigarros depois eram juntados a outros coletados pelas ruas para que, num trabalho bastante artesanal, se transformasse em cintas femininas com que presenteávamos tias, professoras e meninas que nos agradassem à vista. A Avenida Ipiranga se apresentava soberana da região, e em toda a
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sua extensão abrigava, lá no início, a sede social do São Paulo Futebol Clube no mesmo prédio em que funcionava no subsolo o Restaurante Atlântico, anos depois, ponto de encontro de bailarinos, prostitutas de nível e fregueses do sexo. Um pouco mais para frente quem se destacava era o Avenida Danças, onde os amantes da dança de salão iam matar sua vontade picotando cartões das bailarinas e pagando caro na hora da saída. Na esquina de um cruzamento com a Avenida Rio Branco estava instalada a agência da Viação Cometa, pois naquela época não existiam ainda os terminais rodoviários. Mais para cima, depois do cruzamento com a Avenida Rio Branco, do lado esquerdo de quem a subia, estava instalada a loja do Expresso de Luxo, que oferecia aos seus usuários transporte para a Baixada Santista, feito em carros de luxo, e serviços de malotes para empresas e pessoas físicas. Um pouco além ficava a loja da agência do Expresso Brasileiro. Em cima dessa agência, no primeiro andar, estava instalado um clube de nome Centro Social Brasileiro, não sei qual sua origem ou finalidade social, sei apenas que aos domingos abria seu salão social para jovens praticarem a digna e deliciosa arte da dança de salão. Ao som de Pick-up e seus Negritos, nós, os jovens daquela época, nos esbaldávamos dançando boleros de Gregório Barrios, Lucho Gatica, Trio Los Panchos, Fernando Albuerne ou com os fox, swings e rocks gravados por Glenn Miller, Thommy Dorsey, Sylvio Mazzuca, Bing Crosby, Frank Sinatra, Sammy Davis Jr., Doris Day e outros astros do cenário discográfico da época.
Também pertenço a uma geração da década de 1950 e recordo-me da panificadora Santa Tereza, na Praça João Mendes, onde saboreávamos deliciosas empadinhas e coxinhas; do Bar Gouveia, na Praça da Sé, ao lado da loja de tecidos R. Monteiro; do Taxi Dancing Maravilhoso, na Rua Conselheiro Nébias, do Cabaret Tango da Meia-Noite, que ficava num sobrado da Avenida Prestes Maia, da orquestra dos maestros Clóvis e Ely, do conjunto musical do Tobias Troisi, do restaurante Spadoni, na Avenida Ipiranga, do restaurante Franciscano, na Rua Líbero Badaró, dos telegramas internacionais que eram enviados pela Via Western, na Rua 15 de novembro e da loja de peças para autos do Ali Babá que ocupava quase um quarteirão da Avenida São João. Ainda com respeito a aperitivos, devo lembrar de um bar que funcionava dentro de um mercado na Rua 11 de Junho, o dono era conhecido como Don Pasquale, e no Ipiranga existia também o Bar do Miguel, lá na Rua Bom Pastor, também especializado em batidas, a melhor era a de amendoim. Leonello Tesser
A Praça Roosevelt ficou em minha lembrança por causa da boate Michel e, depois, de outra que diziam ser do senhor Farnésio Dutra: o Dick Farney que cantava macio. Se não me engano se chamava Farney´s Inn, um lugar muito pequeno, mas acolhedor e deveras simpático como era o dono da casa. Aos cigarros da época, acrescento: Continental, Lincoln, Cubanos Junior, Ascot, Yolanda, Beverly, Petit Londrinos, Ovaes, Mistura Fina, e mais um grande grupo de “quebra-peitos” que aos poucos vamos nos lembrando. Da época dos boleros, não esqueçamos do “bigode que canta”: Bienvenido Granda. O Lucho Gatica, insuperável em sua versão do Encadenado, ainda dá muitos shows por aqui, mas sua voz não é mais a mesma, e . . . nós também! Expedito Marques Pereira Diziam que o Vila Sofia era um cabaret... Porém Cabaret com letras maiúsculas era de fato o Tango da Meia-Noite. Acho que poucos daquela época se lembram dele, eu mesmo, “dei tratos à bola” para rememorá-lo. Ele ficava de fato na Avenida Prestes Maia, sentido de quem ia para a zona norte, entre a Rua Carlos Souza Nazareth e Avenida Senador Queiroz, em um dos sobradinhos “geminados” que davam os fundos para a Rua Florêncio de Abreu. Nunca o freqüentei, pois na época, por volta de 1951, eu ainda era menor de idade, mas tinha mesmo aquele aspecto de cabaret, com luz vermelha e tudo... Coisas da “Velha São Paulo”... Flávio Rocha O Vila Sofia, em Santo Amaro e o Cassino das Carpas, lá pelos lados do Aeroporto, não eram propriamente “cabarets” e sim salões de baile mais sofisticados. No Vila Sofia havia um pequeno bar no fundo do quintal, Bar do Pescador, onde tomávamos saborosas batidas de amendoim e na orquestra havia um músico cujo apelido era Príncipe Negro; ele tocava saxofone e de vez em quando descia do palco e vinha tocando até o salão, principalmente quando o ritmo era um mambo. No caminho para o Cassino das Carpas existia também uma boate de nome Moulin Rouge, o prédio imitava um moinho holandês, não o freqüentei. Leonello Tesser Lembro-me ainda da “catena legionis” ao dizer: — Quem é essa, que avança como aurora, formosa como a lua, brilhante como sol, terrível como um exército em ordem de batalha. Roberto Pavanelli
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A Praça do Patriarca e a banca do Nando
Apenas um lado do Centro
Turan Bei
Luiz Saidenberg
Foi a minha praça favorita, porque lá eu encontrava os amigos e os meus ídolos da época, que eram os jogadores de futebol do time que eu torço: o São Paulo Futebol Clube. O encontro se dava na banca de jornais do Nando, junto à entrada da Galeria Prestes Maia. Vários jogadores do São Paulo eram assíduos freqüentadores da banca, pois, o Nando era são-paulino, e eu, ainda menor de idade, ficava ouvindo o bate-papo deles por horas. Os mais assíduos eram: Bauer, Mauro e o Canhoteiro. Após algum tempo, todos se dirigiam a um bar, bem no início da Rua da Quitanda, enorme, mas com pouca iluminação, lá tomavam cafezinhos, e depois retornavam à praça para mais uma rodada de bate-papo!
Meu pai, engenheiro agrônomo, istrava fazendas no interior. Como era sempre transferido, vivíamos saltando de cidade para cidade, como uma tribo de ciganos. Em 1946, recebeu um convite para trabalhar no venerado Instituto Biológico, na Capital. E, assim, aquilo que vivenciávamos esporadicamente, a visita à grande cidade, tornou-se uma experiência mais duradoura. Buscamos um ponto bem conveniente: uma pensão familiar na Rua Vitorino Carmilo. Um quarteirão quase só de simpáticos sobrados, que subsistem até hoje, lembrando uma ruazinha londrina. Todas as manhãs ava o pastor, com suas cabras, anunciando seu leite, com chocalhos. Para meu irmão e eu, ir ao Centro era algo deslumbrante. Ao contrário de hoje, a cidade tinha realmente um Centro para onde tudo convergia. Para ser mais purista, tinha dois, o Velho, do lado do Pátio do Colégio, onde fora fundada, e o Novo, do outro lado do Anhangabaú. Era impensável ir-se a São Paulo e não comparecer ao Centro, ou à Cidade, como se dizia. As melhores lojas, confeitarias, leiterias, hotéis, concentravam-se ali. Praça do Patriarca: lembro-me da casa São Nicolau, no Edifício Lutécia, onde, no Natal, surgia na vitrine um espantoso Papai Noel mecânico, acenando para o povo da boléia de seu trenó. Coisa de hoje em dia se encontrar as dúzias em qualquer esquina da Rua 25 de Março, mas era uma sensação na época. Depois “embarafustávamo-nos” pela Rua Direita. Logo à sua entrada, a Galeria Cruzeiro, com a finíssima Casa Alemã. Mais adiante, a Tecelagem sa, com carneirinhos de pura lã na vitrine, as enormes e surpreendentes Lojas Americanas, com uma infinidade de coisas, inclusive sua drugstore, que, creio, foi a primeira lanchonete do gênero, com seus sanduíches e sorvetes. Um cine, o Alhambra, onde nunca entrei. A Casa Sloper, e, parada obrigatória, o imponente Bar Viaduto, onde nosso pai não dispensava um bom chope, acompanhado de maravilhosas empadas. Tudo num ambiente solene, parecia um templo, com belos vitrais art déco. Se entrávamos pela São Bento, chamava-me a atenção, na esquina, a Casa Fretin, com seus misteriosos e amedrontadores instrumentos cirúrgicos. Mais para baixo, a Botica Ao Veado d’Ouro, com a majestosa estátua dourada na sua fachada. Quase no Largo São Bento, a Leiteria Pereira, com saborosos leites batidos com iogurte. Subindo, após a Praça do Patriarca, outra leiteria, a Campo Belo, onde tomei minha primeira Coca-Cola. Isso jamais se esquece, e eu não esqueci: achei horrível! Havia ainda a Casa Aimoré, com suas latas de biscoitos estampadas em pirogravura, e na esquina oposta da José Bonifácio, uma refinada queijaria. Nunca eu vira antes algo assim: um Emmenthal grande como uma roda de carroça. Entrando pela José Bonifácio, a Selaria Droghetti, onde, como num bang-bang, podia-se
O Anhangabaú e seus desfiles Roberto Motta de Sillos Nasci em 1946 e morei por 21 anos em um prédio estilo europeu de dois andares e pé direito alto com quatro quartos enormes, sendo um privativo, que meu avô, Hilário Motta, vivia, e somente um banheiro, sito à Rua Doutor Falcão, 143, mesma rua do belo prédio Matarazzo, que hoje é a prefeitura. Da sacada do nosso apartamento, que foi demolido há pelo menos vinte anos, costumava ficar horas observando o intenso burburinho que a cidade teimava em aumentar dia-a-dia. Por várias vezes vi o conde Matarazzo chegar de Cadillac, chapa nº1, dirigido por um choffeur negro, altíssimo, de túnica, quepe e luvas brancas. Para mim era o máximo. Quanto às chapas dos carros, naquela ocasião, eram seqüenciais e sem letras em razão dos poucos carros existentes na época e, evidentemente, os primeiros números eram de famílias abastadas da época. Embaixo do prédio havia uma loja de bolsas e que era filial de outra loja de bolsas que ficava na esquina com a José Bonifácio, embaixo do edifício Palácio Riachuelo, ainda existente. Lembro-me também da famosa Tabacaria Braile, onde comprei meus primeiros maços de cigarros. Mas o ponto alto eram os desfiles militares que ocorriam nas datas de 9 de julho e 7 de setembro. Via de camarote a rua e todo o Vale superlotado e, mesmo naquela ocasião, com apenas 7 ou 8 anos de idade, ficava imaginando até quando haveria comida e água para alimentar tanta gente. Além dos desfiles militares, também adorava ver e cheguei a participar dos desfiles colegiais e de fanfarras pelo Colégio Oswaldo Cruz, da Vila Buarque.
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montar num cavalo todo ajaezado. Creio que era empalhado, e hoje em dia não acharia nada atraente. Bom, isso era apenas um lado do Centro.
Na Rua Vitorino Carmilo ficava o Colégio Macedo Soares, cujo o diretor era João Batista Bonetti, o dono do Piratininga, onde eu estudava. Recordo-me da Farmácia Esfinge, que ficava próxima ao atual Shopping 25. Ela me fascinava, pois em cima da balança onde éramos pesados tinha uma gigantesca bola dentro do mostrador com um líquido laranja reflexivo, devia ser neon. Meu tio tinha um depósito de bananas na esquina. Mirça Bludeni de Pinho
Pequenos relatos Renata Pontual Ikeda (frases de alunos) — O Banespa dava um friozinho na barriga. — Quando vi o avô dos arranha-céus fiquei de boca aberta. — Quando vi o Edifício Martinelli, pensei: Como será que ele teve coragem de morar lá em cima? Eu não teria. — Fiquei alegre quando vi o Viaduto do Chá “em pessoa”. — Quando subimos no Banespa, eu fiquei com vontade de ter asas para sobrevoar a cidade inteira. — Se você não vai ao Centro porque tem medo de algo acontecer, vou falar a verdade, acho isso uma grande besteira.
Os gatos da Praça Ramos
Solidariedade
Luiz Ramos
Ricardo Azevedo
Em 1964 meu pai precisava resolver alguns assuntos na Praça Clóvis e me levou com ele. Não era normal que isso ocorresse, porque ele morria de medo de nos levar ao centro da cidade onde, segundo ele, havia muitos bandidos e o trânsito era intenso. Naquele dia, quebrou a regra e nos levou, eu e minha irmã, Lourdes. Depois de resolver o assunto – algo ligado à aquisição de um terreno em Santo André – fomos dar uma voltas. Lembro-me de que estivemos na escadaria do Teatro Municipal, entramos no Mappin, na Galeria do Adhemar – que o povo não chamava bem de galeria – e na Praça Ramos. Acho que essa praça – talvez por ter o mesmo nome que o nosso – foi o que mais nos marcou. Lembro-me de que havia muitos gatos; uma quantidade enorme de gatos. Depois, caminhando mais um pouco, tomamos um sorvete no Café Copacabana. Esse eio ficou marcado em minha lembrança ainda que não tenha acontecido nada demais.
No comecinho da década de 1970, trabalhei durante uns dois anos na extinta Companhia Editora Nacional. A editora, uma das mais importantes naquele tempo, ficava na Rua dos Gusmões. Muitas prostitutas moravam nos apartamentos por ali em volta. Da janela da sala de onde eu trabalhava acompanhava um pouco a vida de algumas delas. Pelo que sei, muitas trabalhavam nas boates e inferninhos da Major Sertório e adjacências e iam dormir tarde. Acordavam lá pelas 11horas da manhã e ficavam nas janelas e terraços de seus apartamentos olhando a paisagem com ar sonolento e entediado. Suas empregadas domésticas eram homossexuais velhos. Essas figuras andavam para lá e para cá vestidos de mulher, com rosto pintado, perucas e salto alto, fazendo compras para suas patroas. Na época, começavam a circular notícias sobre os primeiros assaltos feitos por crianças no centro da cidade. Foi por aí, acho, que aram a ser chamados de trombadinhas. Isso porque vinham por trás, derrubavam a vítima com um empurrão, a tal trombadinha, e fugiam com o produto do roubo, em geral pacotes, bolsas e valises. Os assaltos eram praticados na Praça da República, Rua Barão de Itapetininga, avenidas Ipiranga, São João e outras por ali. Após o roubo, a criançada fugia para a chamada “boca do lixo”, justamente a região de ruas como Aurora, dos Andradas e dos Gusmões, onde eu trabalhava. Eram crianças pequenas de 8 a 12 anos. Assisti a cenas inesquecíveis quando trabalhei por lá. De repente, escutava a sirene da polícia e uma gritaria na rua. Espiava pela janela. Lá vinham os meninos correndo pelo meio da rua, pois os lojistas não gostavam deles. Alguns até tentavam agredi-los com pontapés e vassouradas. Às vezes, a polícia era rápida e conseguia pegá-los. Era triste vê-los sendo literalmente chutados com muita violência e covardia
E como havia gatos por lá, o melhor de tudo era a época em que minha mãe não se agüentava e levava um gatinho para casa. Mara
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para dentro do camburão. Outras vezes, porém, quando dava, as mulheres desciam correndo e chamavam da porta dos prédios: — Vem, vem, corre, entra, entra! Sumiam com os meninos dentro de seus apartamentos. Quando a polícia chegava, não encontrava ninguém e não dava para ir de apartamento em apartamento atrás dos fugitivos. Sempre irei aquelas mulheres por seu espírito de solidariedade.
Praça da Sé Roque Vasto A Praça da Sé era bem diferente da atual. Os ônibus faziam ponto final em seus recortes, o bonde cruzava rumo à Rua Boa Vista, os pontos de lotação e carros de praça, depois táxis, os restaurantes, Papai, Um Dois Feijão com Arroz, o Superbom, o Café Expresso, onde faziam fila para tomar um Gaggia, o Cine Santa Helena, nos baixos do edifício do mesmo nome, o imponente Edifício Mendes Caldeira. As pessoas de terno e gravata, nada de marreteiros na rua, apenas alguns vendedores discretos de barbatanas para o colarinho ou vendedores de naftalina. E o que falar dos bancos da Rua Boa Vista ou da Rua 15 de novembro! Eram suntuosos, com os balcões de atendimento tipo guichês, onde obter informações sobre saldo era muito simples, bastava preencher uma solicitação indicando o número da conta, nome, e entregar no guichê. O atendente recebia o pedido e entregava uma placa de metal personalizada do banco que continha um número que era anotado no pedido escrito. Aí era só aguardar mais ou menos uma ou duas horas e esperar que o seu número de placa fosse chamado pelo atendente. O saldo vinha informado no verso do seu pedido, escrito à mão, ou em alguns bancos mais elitizados vinha datilografado. Quase igual hoje, né?
Desfiles de moda no Mappin Doris Day Logo que me mudei pra São Paulo no final da década de 1960, ainda de férias, costumava ir com minhas irmãs ver os desfiles que aconteciam toda tarde no Mappin, no Centro, por ocasião do lançamento dessas coleções. Eu adorava! Ver a Mila Moreira – a manequim exclusiva da Rhodia, que desfilava as novas coleções no Mappin – e outras manequins desfilando aquelas roupas maravilhosas, era um sonho para uma caipirinha do interior! Achava as manequins deslumbrantes, super maquiadas, esbeltas, as roupas belíssimas. 70
Primeiro eram as roupas de praia; depois as roupas esportivas e por último o esporte-chique. Lembro-me bem dos tubinhos da Rhodia, um em especial que a Mila desfilou, em duas cores: branco e amarelo. Todas as roupas eram desfiladas com diversos órios que eu babava só de olhar: óculos escuros, bolsas, bijuterias finas e lenços. Os sapatos e sandálias eram um capítulo à parte. Bom, depois do desfile, era tomar um sorvete na lanchonete e voltar pra casa sem as roupas, é claro, porque dinheiro que era bom eu ainda não tinha.... só depois de muitos anos pude comprar tudo aquilo que via e tinha vontade de usar. Bons tempos do Mappin, da Mesbla e da Clipper!
Você esqueceu das tardes de chá na Clipper, na Rua Santa Cecília. Pegava-se a van na descida do prédio dos Matarazzo e eles levavam até a loja, e o chá era divino. Fui algumas vezes com minha mãe. Era chique “nu urtimo” freqüentar esses lugares. Já para meninos, rapazes e senhores o point era a Lojas Garbo e a Exposição. Roupas sob medida. Pedro Mosconi Um eio ao Centro era algo fantástico para as crianças. Andar de escada rolante pela Galeria Prestes Maia era “tudo de bom”, para quem morava nos bairros. Todos os anos havia a apresentação de presépios na galeria, que chamava a atenção de todos. No eio ao Centro, não podia faltar o cachorro-quente das Lojas Americanas, da Rua Direita... Bons tempos... Isilda Maria Fabris Gonçalves
Primeiros tempos
“Uma semana de trabalho e o carrinho de rolimã estava pronto. Não custou um centavo. Custou a imaginação, os improvisos e o tempo, um recurso interminável naquela fase da vida.”
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O Zeppelin Maria Alice de Mattos Pereira (in memoriam) Quando eu era criança, não me lembro bem o ano, nosso programa favorito era ir ear no Museu do Ipiranga, nas tardes de domingo. Era muito gostoso andar pelos jardins, pelas alamedas e, principalmente, ficar olhando a fonte, que nem era iluminada ainda, mas era linda, muito linda. Mas o acontecimento que mais marcou minha juventude foi a agem do Zeppelin pelo céu de São Paulo: as famílias se prepararam, saíram todas às ruas, nós fomos para uma praça que também não consigo me lembrar qual, numa expectativa incrível. E de repente ele estava lá no céu, imenso, imponente, quase um milagre! Todos aplaudiram e agitaram lenços como numa saudação. Parecia até que o homem tinha chegado à lua. Se eu ainda gosto de São Paulo? Claro, adoro, não moraria em hipótese alguma em outro lugar. Até porque os jardins do Museu continuam lá, lindos e, além do mais, o Zeppelin voltou, não importa se com propaganda de pneu, está quase sempre lá em cima, olhando para essa nossa cidade incrível.
Eu também vi o Zeppelin! Tinha 3 anos. Logo depois mudamos para Londrina no Paraná. Imagine que era um sertão, o começo de tudo. Na escola, eu muito “exibida” fui contar que tinha vindo de São Paulo e que lá tinha Zeppelin... As meninas caíram na risada, e fui tida como mentirosa. Gladys
onde eu cortava o cabelo americano, a loja de brinquedos do senhor Gilberto Geviane, onde eu estava, lembro-me, quando o Presidente Kennedy foi assassinado, em 1963. Tinha até um eletricista russo, cujo filho de nome Stalin brincava comigo às vezes. Do outro lado da rua, uma ótica de holandeses, a Foto Landa, onde fiz as fotos de minha primeira comunhão, e uma loja de tecidos de outra família de árabes. Era uma amostra do que era São Paulo na década de 1960. Na época, ava bonde elétrico na rua, que era revestida de paralelepípedos e eu tinha poucas opções de lazer. Lá vivi até 1964, quando mudamos para uma casa própria que meu pai tinha na Rua Lord Cockrane, onde ei minha adolescência até me casar em 1979.
Resido no Ipiranga há mais de setenta anos, a minha esposa morou na Rua Lord Cockrane, mais precisamente no nº 259, uma fileira de sobrados iguais, até 1960, quando nos casamos. Residi também na Rua Lucas Obes, no quarteirão situado entre as ruas Lino Coutinho e Silva Bueno e fui assíduo freqüentador do CDR São José. Recordo-me da Padaria Globo, cujo proprietário era o senhor Neves. Havia também uma casa lotérica, a loja do Michel e um açougue, cujo proprietário agora não me lembro. Bons tempos aqueles. Leonello Tesser
O outdoor da Metal Leve José Luiz Batista da Fonseca
Minha infância no Ipiranga José Roberto Simões Lopez Apesar de ter nascido em 1953, na Alameda dos Maracatins, próxima ao atual Shopping Ibirapuera, a fase que marcou minha infância sem dúvida foi no Ipiranga, onde meu pai, um espanhol que chegou ao Brasil em 1913, tinha uma loja de eletrodomésticos na Rua Silva Bueno, que depois se transformou numa pequena fábrica de rádios. Para lá nos mudamos em 1960. Minha quadra era uma verdadeira torre de Babel. A começar por uma padaria de portugueses na esquina, depois uma loja de tecidos dos Hadad, onde o filho Rubens era meu amigo, a sapataria do Frederico, uma mercearia de outro português, uma loja de roupas de um israelita, senhor Leon Carmona com suas filhas Miriam e Márcia, uma loja de calçados de um armênio, o açougue do meu querido amigo Salvador Marcos Pelegrini, hoje empresário próspero no ramo de veículos, a barbearia do senhor Américo, italiano,
Sempre que eu ava ali pelo Parque do Ibirapuera, próximo ao prédio do Detran, me ajeitava no ônibus para ver melhor aquela placa gigante que hoje chamaríamos de cartaz, ou melhor ainda, outdoor. “Aldór”, em bom sotaque americano, mascando “chiclet”. Aquela placa era fascinante. Não era estática, daquelas só de desenhos, figuras e letras, que eu, ainda não alfabetizado, não compreendia o significado. Ela tinha movimento. Elementos que se moviam em sincronia, como os presépios que eu via no centro da cidade na época de Natal. Acho que era a única com essas características que prendiam a nossa atenção. Não me lembro de outra parecida em parte alguma. Aquela placa gigante era especial. Eu não sabia o que ela anunciava. Só sei que, na minha ótica infantil, gostava de ver aquela coisa que parecia uma colher entrando num balde gigante, naquele movimento de ida e vinda. E ficava pensando como poderia ser aquilo. Possivelmente, havia dois homens supergordos atrás da placa, numa prancha tipo gangorra, que, ora um ora outro, subiam e desciam, em um movimento alternado, fazendo aquela supercolher se movimentar na parte da frente da placa. Apesar de 73
uma explicação aceitável para os meus 4 ou 5 anos, mesmo assim continuava inquieto com essa suposição, pois, afinal, sempre que eu ava por ali a colher estava em movimento. Como era possível “aqueles homens” nunca descansarem, nem pararem pra fazer suas refeições e nem mesmo pra tomar um cafezinho ou fazer xixi? Com o tempo, fui entendendo que, na verdade, o movimento não era causado por nenhuma força humana e sim por um mecanismo elétrico, chamado motor, que acionava eixos que faziam a colher se movimentar. E com o tempo, também, depois que deixei de ar de ônibus por ali, pois meu pai já havia comprado um carro, ei a entender que aqueles elementos na placa não eram uma supercolher em um balde, como imaginava. Era, sim, um pistão, importante componente do motor dos automóveis. Isso significava que naquele carro do meu pai, recém-comprado, havia alguns deles, não daquele tamanho, lógico. E aquela placa era alusiva ao mais importante produto de uma empresa chamada Metal Leve, um dos maiores fabricantes brasileiros de autopeças. Meu avô me dizia que conhecera o fundador da Metal Leve, senhor José Mindlin, quando ele ainda tinha uma oficina mecânica na Vila Buarque. Segundo meu avô, ele, o seu Mindlin, de tanto consertar motores de carros, que na época eram todos importados, acabou fabricando alguns componentes desses motores. E uma das peças mais importantes era o pistão, iniciando assim a industrialização dessa peça e plantando a semente de um grande negócio e de uma grande empresa. A exemplo da placa, essa história contada por meu avô era fascinante. O início de uma atividade industrial que nascera do brilhantismo, da abnegação, do engenho e criatividade de um empreendedor. Um típico exemplo da industrialização do nosso Brasil caboclo. Tempos depois, já grande, quando pude comprar um automóvel e andar por essas estradas, São Paulo afora, um dia, sem querer, tive a feliz oportunidade de dar de cara novamente com aquela placa que muito me fascinava na infância. Lá estava ela, do mesmo jeito, com aquela colher e o balde gigante da minha memória infantil. Só que com outro nome e em local mais distante: na Rodovia dos Bandeirantes. Seguiu o exemplo de mudança de endereço das próprias indústrias, que foram expulsas pelo crescimento urbano e pela especulação imobiliária de nossa cidade para outras paragens mais adequadas e menos hostis. E por um instante, tive uma estranha sensação de alegria e tristeza ao mesmo tempo. Alegria de revê-la, funcionando do mesmo modo como a via nos meus tempos de menino, mas tristeza de reencontrá-la com outro nome. Um nome estrangeiro de difícil pronúncia: Mahle. Tão difícil de se pronunciar como a palavra outdoor.
Saudade. Minha família morava na Vila Mariana e aquele outdoor era um marco. Jussara Xavier 74
Tenho três filhos nascidos em 1968, 1970 e 1984. Nas diferentes épocas, nós os levávamos para ver o cartaz da Metal Leve, eles ficavam fascinados com aquele movimento repetitivo e fizeram até um mantra de acompanhamento. Existia mais um outro igualmente fascinante aos olhos infantis, que era o da Trivelato, na Avenida 9 de Julho e que consistia num caminhão basculante, cuja carroceria se elevava e descia. Na década de 1980, a Coca-Cola, ao lado do pistão da Metal Leve, fez uma enorme propaganda circular colorida, que como as duas já citadas, também era didática. Mirça Bludeni de Pinho
Uma arte cinematográfica Miguel Chammas Criança é e será sempre problema, principalmente se viveu essa fase nos anos dourados de 1950 e 60 como foi o meu caso. O fato que irei relatar ocorreu na década de 1950. Eu e meu amigo Zilando tínhamos verdadeira paixão por cinema, freqüentávamos todas as salas da famosa Cinelândia: Art Palácio, Ritz São João, Marabá, Ipiranga, Metro, Marrocos, República e várias outras salas cinematográficas que eram nossas amigas íntimas. A lembrança me trai com relação ao nome do cinema que é o motivo principal dessa memória. Sei que ele ficava na esquina da Rua Santa Ifigênia com a do Seminário. Era o primeiro prédio daquela rua. Enfim, vamos à aventura. Segunda-feira, dia de estréia de filmes, naquele cinema estava entrando em cartaz um filme com a nossa musa maior Esther Williams, a rainha das piscinas, a deusa de A Escola de Sereias, e nós, eu e o Zilando, “durinhos da silva”. A tentação de assistir ao filme no primeiro dia era grande. Mas como? Eis que o Ziclér, irmão do Zilando, nos dá a idéia: — Vocês sabem aquela igreja no início da Avenida Rio Branco? Pois muito bem, os fundos daquela igreja vão direto ao sanitário masculino do cinema, basta vocês pularem o muro que não é tão alto assim. Sugestão feita e imediatamente aceita, partimos para as providências necessárias à boa execução da invasão. Horário: 18 horas, assim assistiríamos, se possível, o filme nas sessões das 18 e das 20 horas. Autorização: telefonei para minha mãe e obtive consentimento para pousar na casa do Zilando e assim poder participar da aventura sem preocupação. Tudo acertado, amos o resto do dia na expectativa de colocar o plano em ação. Às 17 horas, saímos da casa do Zilando que era na Rua Bento Freitas e atravessamos calmamente a Praça da República. Como ainda era cedo, paramos para tomar água, na “boca” que existia na praça, olhamos algumas fotos dos lambe-lambes que ali faziam ponto e, enfim, decidimos colocar o plano em ação. Chegar à frente da igreja foi moleza, assuntamos as redon-
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dezas: os pontos de ônibus que ali existiam nos dariam cobertura mais que suficiente, o portão lateral da igreja era de ferro, com mais ou menos um metro de altura e estava fechado. Decidimos pular e assim o fizemos. Ninguém prestou atenção na ousadia dos dois moleques. Pé ante pé, seguimos pelo corredor lateral e chegamos ao muro que limitava os fundos da igreja. Ali constatamos que realmente estávamos no limite do sanitário masculino e que o muro seria muito fácil de ser escalado e vencido. Decidimos, então, aguardar o início da sessão das 18 horas, quando o sanitário deveria ficar vazio. Aguardamos. Ouvimos o prefixo do Jornal Noticioso e decidimos ter chegado a hora. Quando tivemos certeza que o sanitário estava desabitado, escalamos o muro em perfeita sincronia e pulamos ao mesmo tempo. Como todo plano excelente, no nosso também tinha uma falha. Não havíamos previsto que iniciada a sessão, os lanterninhas e os guardas estariam mais tranqüilos e poderiam fazer um “xixizinho amigo” mais à vontade. Assim, quando acabamos de nos refazer do salto, percebemos que estávamos pegos pelos colarinhos por um enorme guarda-civil. Entre choros e súplicas, para que nossos pais não fossem “incomodados” com a nossa travessura, conseguimos comover o policial e o gerente que, com cara de poucos amigos, nos levou até o sanitário e exigiu que voltássemos pelo caminho da entrada, não sem antes nos fazerem prometer que iríamos nos comportar melhor dali para frente. Confesso que a escalada da volta foi milhões de vezes mais difícil. As alturas estavam invertidas e nossas pernas, não sei por que, insistiam em tremer, desprezando, inclusive, o calor que fazia naquele fim de tarde. Uma coisa posso garantir, embora a aventura tenha sido assustadora, não foi nunca impeditivo para novas travessuras. Criança é fogo!
tocava a campainha para receber uma parcela do pagamento. Era assim. Era lindo! Lá estava o dinheiro já separado. Era só pagar. Não tinha financiamento no banco. Uma situação que “cheirava” a credibilidade. Muitas vezes, da janela, eu via ar os carros com a liberdade de enxergar, coisa que, antes, não tínhamos, num apartamento de fundo. O JK, por exemplo, era um carrão. E lá vinha a minha mãe falar bem do Presidente Juscelino e da “implantação da indústria automobilística no Brasil”. Eu podia ver que o mundo tinha sua dinâmica própria, muito especial e enriquecedora, as pessoas estavam realmente vivas, envolvidas com as suas famílias e a vida era regular, os horários de aula, de trabalho. Tudo funcionava. Eu ia sozinha ao Peg-Pag, no Largo do Cambuci, comprar algum mantimento para casa. Era um supermercado simples, mas ainda novidade fora de São Paulo. Quando os parentes de Minas vinham nos visitar, eles ficavam extasiados com um mercado onde só se pagava as contas no final, de uma vez só. Eu achava o máximo, em termos de liberdade, ir até lá ou à farmácia do Luís comprar remédios para o meu pai. Comecei a aprender a falar com as pessoas, olhava os vizinhos com curiosidade e respeito, querendo saber mais, me tornar adulta e entendida do comportamento humano. Numa tarde, minha mãe e eu estávamos voltando para casa com um pacotinho de café Moka moído na hora, com aquele cheiro inebriante, quando uma vizinha, senhora viúva, exclamou para minha mãe: — Sem marido a gente vive, mas sem café...
Brincadeiras, alegrias e folia Cristina Jakobowski
Nosso sobrado da Rua Albuquerque Maranhão Vera Moratta Quando saímos de mudança da Rua Dom Duarte Leopoldo para a Albuquerque Maranhão, em 1967, a situação foi extraordinária. Era um doce dia de sol, íamos a pé: a minha avó, a minha irmãzinha, então com 3 anos de idade, e eu, com 9. Era como se estivéssemos crescendo, evoluindo, saindo de um apartamento alugado, de fundo, para um sobrado. O sobrado era nosso! O meu pai havia comprado, com um largo sorriso, com ar de vitorioso. Minha avó dizia que a minha mãe deixaria a casa “um brinco”. Era um sobrado simples, sem garagem, geminado. Eram dois conjuntos de cinco casas, separados no meio por uma vila extremamente simpática. Antes da mudança, o pintor deu um jeito, pintou as portas a óleo, de cor cinza. As janelas, mesmo a da sala, eram de veneziana, mas era a nossa casa, o nosso espaço, pela primeira vez. Todo mês o antigo proprietário, senhor de idade,
Sou paulistana, nascida na Pro Matre Paulista e criada no Planalto Paulista, próximo à Igreja de São Judas Tadeu. Lembro-me de cada detalhe de minha infância, das brincadeiras, as alegrias e a folia que fazíamos quando juntava toda a criançada para eventos fantásticos na corrida atrás de “capucheta”, tipo pipas feitas de jornal, brincávamos de carrinho de rolimã, bolinha de gude, caveira de abóbora, entre outras. Não se assustem! Não era um moleque e, sim, uma menina! É que o meu irmão Nelson, era meu verdadeiro ídolo. Ele era 3 anos mais velho do que eu e para mim não existia exemplo melhor. Era bonito, forte, cabeça cheia de cachinhos “tipo São João” e acima de tudo, meu melhor amigo. Organizávamos festas juninas na rua onde morávamos e convidávamos todos os vizinhos: cada mãe levava uma guloseima, os pais as bebidas, outros preparavam o quentão e a fogueira queimava solta, onde pulávamos o fogo e colocávamos as batatas doces. A festa acabava de se concretizar quando meu pai, sempre presente em todos os momentos de minha vida, chegava com seu táxi 75
depois de uma jornada brava de trabalho duro e nos presenteava com os fogos de artifício: chuva-de-prata, biribinhas e fósforo de cor. Gravei em minha memória a imensurável alegria que sentia ao acender e rodar os fósforos sempre em local bastante escuro – não havia iluminação de rua – e irava o colorido como se fosse um arco-íris! Naquela época, décadas de 1960 e 1970, as crianças eram educadas e aprendiam a respeitar aos mais velhos, existia o romantismo, o cavalheirismo, enfim, os valores eram outros. Tenho muita saudade de tudo isso.
Garotos da Vila Mandu Jayro Eduardo Xavier Fui criado na Travessa Tangará, na Vila Mariana, que ficava dentro do Parque do Ibirapuera. Com as obras do IV Centenário, fomos expulsos e mudamos para a última travessa da Avenida João Dias, antes da ponte sobre o rio Pinheiros. Até então, 1953, o lugar era conhecido como Vila Mandu. Consegui me enturmar de imediato. O primeiro amigo que fiz e que foi mais constante até sua morte foi o Zé Franguinho. Esse apelido devia-se ao fato de ele ter namorado uma tal Ana Galinha, a quem não conheci. Com ele e a turma, aprendi molecagens típicas do interior. “Roubar” cavalos era comum. Fazíamos cabresto com o que estivesse à mão e íamos cavalgar na margem do Pinheiros. Certa vez, fui perseguido pelo dono de um dos animais, que me ameaçou com um facão. Como se vê por este relato, consegui escapar. No exato lugar ao norte de onde está o Hotel Transamérica, havia um pesqueiro onde eu pegava traíras. Era um tanque formado no areal, resultante do bota-fora das dragas da Light que escavavam o fundo do rio Pinheiros. Entrar n’água ali era perigoso porque o fundo era uma trama de raízes que cedia ao peso de um homem e dificultavam o escape. Para nadar, tínhamos duas lagoas à disposição: uma que ficava onde está o Carrefour Pinheiros e outra, mais próxima, ao pé do morro onde está o Centro Empresarial. A trilha da Avenida João Dias até essa lagoa era estreita e ladeada por touceiras de capim barba-de-bode. Nós andávamos descalços. As festas juninas eram um capítulo à parte. Comemorávamos os dias de Santo Antônio, São João e São Pedro. Durante o dia, íamos cortar bambu pra decorar a casa do Zé. Chegávamos a ir a pé até o Morumbi. No altiplano da avenida, que vai da ponte Morumbi para o Palácio do Governo, ainda há remanescentes do bambuzal. Era então uma estradinha de terra e numa dessas idas encontramos, no meio do mato, dentro de um táxi que fazia ponto no Largo 13 de Maio, uma respeitável senhora de nossa rua em plena transa com o motorista. 76
Enfeitada a casa, à noite vinha a festa e o esperado baile. Fogueira, quentão, pipoca, pinhão, amendoim e muita bombinha e rojões. Espalhávamos fubá no chão pra deslizar melhor. Além das músicas comuns às festividades, sempre se dava um jeito de tocar boleros, os preferidos de moças e rapazes, pela oportunidade que davam de roçadinhas furtivas. A tal senhora sempre comparecia com o marido e os filhos, mesmo depois do flagrante. Só que agora havia briga entre nós, porque todos queriam tirá-la pra dançar bolero, já que o marido só assistia. Numa noite, avisei meu pai que iria estudar na casa do Zé e que dormiria lá. Ele anuiu com certa desconfiança quanto ao estudo. Juntos, o Zé, o Dito e o Otávio, que eram irmãos, e eu, afanamos uma galinha do galinheiro de sua própria mãe e fomos ar a noite pescando no rio Guarapiranga, perto de onde atualmente está a fábrica da Caloi. No caminho, encontramos um despacho de macumba. Pegamos os charutos e a cachaça e fomos em frente. Assamos e comemos a galinha, fumamos os charutos, bicamos a cachaça e amos a noite pescando. Quando o dia nasceu ficamos pelados e pulamos n’água para mergulhar e catar os mexilhões que abundavam no fundo do rio. Afastei-me pra procurar um lugar menos explorado para a cata quando, numa curva, dei com meu pai que pescava. Ele fez cara de bravo é só falou: — É! Estudando! Pois sim.
Tecelândia e o cheiro de marmelada Vera Lúcia de Angelis Meu pai trabalhava na Rua Ribeiro de Lima, no Bom Retiro, e por isso ávamos pelo Parque da Luz antes de chegar ao trabalho dele. Como eu tinha que ir ao médico todo mês, ele me levava com ele para o trabalho no dia da consulta, no Sindicato dos Comerciários, no centro da cidade. Eu adorava ir para andar de escada rolante, para comprar chocolate Seresta, um chocolate tipo Prestígio, recheado com coco, e para ficar no escritório da loja Tecelândia, onde ele trabalhou muitos anos. Era uma loja comprida e era preciso ar em meio aos dois balcões e às prateleiras forradas com os rolos de tecido para se chegar ao escritório. Lembro do barulho quando o vendedor desenrolava a peça para cortar o tecido. Arrumavam uma mesa vazia e me davam lápis e papel para eu me distrair. Ali só trabalhavam homens e alguns vinham conversar comigo, como o Felisberto e o Pinheiro – que me vêm agora à memória. O banheiro ficava nos fundos. Quando se abria a porta vinha o barulho da fábrica ao lado e o cheiro de marmelada, que era o produto fabricado. Meu pai dizia que nem podia ver marmelada de tanto conviver com aquele cheiro.
primeiros tempos
Meu pai e meu irmão trabalhavam na Tecelândia e, algumas vezes, tive a oportunidade de ir até lá para ear e olhar as novidades dos tecidos. Lembro que meu irmão trazia um mostrador para que pudéssemos escolher em casa. Minha mãe comprou muito aquele tecido branco chamado morim, para fazer fantasias para o carnaval e outras coisas mais. Sem contar com os tecidos para fazer calças masculinas e saias femininas. Os tecidos da Tecelândia, segundo minha mãe, Dona Linda, sempre eram os melhores. Margarida Pedroso Peramezza O Parque da Luz, para nós, que vínhamos de trem de Campinas, era o “portal” para São Paulo. E que portal! Era lindo e tranqüilo. Lembro dos lambe-lambes e suas arcaicas câmeras, e da gruta, que ainda existe. Lá vi o primeiro bem-te-vi de minha vida! Luiz Saidenberg
O carrinho de rolimã Luiz Manoel Magalhães Gomes Os rolimãs conseguidos depois de percorrer várias oficinas mecânicas do Paraíso finalmente estavam comigo e tinham o valor de um troféu conquistado. Agora, a primeira coisa a fazer era chamar meus irmãos Paulinho e Cassinho para, na garagem da casa da Rua Abílio Soares, arquitetar os planos de construção de um carrinho de madeira com duas rodas no eixo traseiro e uma única, maior, no eixo dianteiro, que daria dirigibilidade ao veículo. É isto mesmo, eixo traseiro e dianteiro, era assim que os meninos do bairro falavam. A oficina mecânica de onde vieram os rolimãs ficava na Domingos de Morais, ao lado do Colégio Ipiranga, ali perto do Largo Guanabara onde havia o bebedouro dos cavalos. Para chegar até a oficina, percorria a Bernardino de Campos até o fim, atravessava a Tomás Carvalhal em frente à mansão da Família Splendore. Seguia pela calçada, via a Santa Generosa à esquerda, o depósito de bananas à frente e o ponto com uns quatro carros de praça aguardando freguês. A oficina em questão dava manutenção aos carros daquela época, os Chevrolets Bel Air, os Fordões 1950 e 51, os Pontiacs, os Mercuries, os Dodges e os sofisticados Oldsmobiles, todos carros importados. Era lá que o meu tio Nico levava o Studebaker. Aquilo sim que era um automóvel. Os rolimãs bons para fazer os carrinhos vinham da transmissão destes carrões americanos. Isto também era falado pelos meninos do bairro. A madeira para o chassi, um pedaço de tábua de pinho usada nas fôrmas de coluna de concreto, era um material muito comum no nosso bairro,
onde sempre tinha um edifício em construção. O tamanho da tábua era de aproximadamente 90 cm de comprimento por 20 cm de largura. Estas medidas eram obtidas a serrote e não podia faltar o corte do bico, em forma de “V” para caracterizar a frente do carro. Para os eixos das rodas, sarrafos de pinho, também material de construção. A madeira usada era toda da obra do prédio de apartamentos que dava fundos para o nosso quintal. Os pregos, Ah! Os pregos. O papai tinha alguns, mas não serviam. Ou eram muito grandes ou muito pequenos. A solução encontrada era catar no chão os pregos das caixetas de frutas que os feirantes desprezavam no final da feira livre que acontecia na Rua Desembargador Eliseu Guilherme. Esses pregos tinham o tamanho certo. Ainda faltavam duas coisas muito importantes: um parafuso de uns 15 cm com porca e arruelas e fazer um furo no bico do carrinho para montar o eixo da frente. O parafuso tinha em casa. Era remanescente de um balanço de madeira, cujos caibros de peroba rosa ainda estavam lá debaixo da escada da garagem, mas estava enferrujado e com a porca muito apertada. O jeito encontrado foi deixá-lo de molho dentro de uma lata, embebido em óleo de cozinha, por um dia e uma noite, para depois, com ajuda do grifo inglês e do alicate, desapertar a porca e liberar também as arruelas, que por sorte faziam parte do conjunto. Agora só faltava fazer o furo no bico da tábua, mas como? Não tínhamos uma furadeira. Talvez um arco de pua com uma broca grande. Ficou no talvez, pois o buraco foi feito na raça. Um prego grande, o martelo e um pequeno formão foram usados para conseguir fazer o furo no tamanho certo, sem estragar a madeira. Uma semana de trabalho e o carrinho estava pronto. Não custou um centavo. Custou a imaginação, os improvisos e o tempo que era um recurso interminável naquela fase da vida. Lá pelo final da década de 1960, quando a Avenida 23 de Maio estava quase pronta e o asfalto sentido Rua Cubatão, Obelisco do Ibirapuera, novinho, novinho – eu cursava o último ano do Científico e já estava preocupado com o vestibular – meus irmãos, ainda moleques, construíram nosso derradeiro e último carrinho de rolimã. Que delícia descer aquela ladeira de asfalto novinho. Isto aconteceu nas férias de julho. Dois meses depois, a avenida foi inaugurada. Acabou a brincadeira e rapidamente nos tornamos adultos. Hoje, o todo dia naquele trecho da 23 de Maio, lá pelas 18h30, horário de congestionamento, com velocidade de 10 km/h e recordo que o carrinho de rolimã andava muito mais que isso, chegando pelo menos, a uns 30.
Nosso antigo bairro era realmente um “Paraíso”. Minha família morava no então Largo Guanabara, onde meu pai tinha um grande açougue, próximo da antiga Santa Generosa, onde os cavalos pastavam. Eu adorava a Mansão dos Splendores que eu, menina, dizia que era um castelo. 77
Que tristeza quando foi demolida, seguida da igreja e da casa de minha avó. Engraçado como estas imagens ainda permanecem vivas. Márcia Lembrando do carrinho de rolimã, nós morávamos na Rua Diogo Moreira, entre a Rua Iguatemi e a Eusébio Matoso, e todos os moleques da rua tinham um, que nós mesmos fabricávamos. Corríamos na rua ou íamos para o Morumbi, na descida da Bardhall, e sempre alguém saía ralado. Essa era a infância que tínhamos, com alegria e tempo. Luiz Aurelio Boglar
Rolimã cor-de-rosa Marina Gonçalves Na rua em que cresci tinha apenas uma menina além de mim, e como sempre fui travessa, gostava mesmo é de brincar com os meninos, junto com meu irmão mais velho. Eram maravilhosas as tardes em que descia as ruas da Vila Prudente, com toda velocidade, em meu carrinho de rolimã pintado de cor-de-rosa, feito especialmente pra mim. Descíamos aquelas ladeiras nos sentindo pilotos de Fórmula 1, claro que eu encarnava a Penélope Charmosa. Roubávamos pitanga e amora do jardim da dona Júlia, empinávamos papagaios, fazíamos guerra de mamona, brincávamos de queima e estátua. Eu adorava cabular aula no São Miguel Arcanjo para ir ao cinema Ouro Verde, na Rua da Mooca, e depois ava na Igreja de Santo Emídio, no Largo da Vila Prudente, e acendia uma vela. Ah, as festas de San Gennaro e da Igreja São José, na Vila Zelina, as missas do São Miguel Arcanjo e seus inesquecíveis professores, o Edmundo e a Manonque, levo em meu coração. Aos sábados e domingos de calor, ia na piscina do Juventus, e não perdia uma domingueira ao som de muito new wave e sessões de lenta, claro. ei minha infância e adolescência nesses bairros adoráveis, onde as pessoas sempre têm um sorriso a oferecer. Mooca, Vila Prudente e Vila Zelina, são meus amores para sempre. Já residi em outros Estados, mas não agüentei de saudade e voltei, sinto falta da pluralidade de São Paulo, acho que sou paulistana na veia, São Paulo é meu grande amor.
cíveis. Tinha amigas também nas travessuras inocentes. Obrigado por me levar àqueles tempos. Valeu. Joel Moura
O molequinho grudado na minha mão Magali de Moura Belfort No começo da década de 1960, morávamos na Avenida Santo Amaro, próximo ao Hospital São Luiz. Paralela à avenida, havia uma ruazinha pequena, com vários sobradinhos geminados, muito tranqüila, quase não ava carro. Era ali que os meninos e as meninas do pedaço se reuniam para as brincadeiras de rua. Jogávamos peteca, queimada, vôlei, andávamos de patins, patinetes e bicicletas. Bolas de gude, pipas e outras mais. Eu tinha uns 11 anos e não via a hora de chegar da escola, tirar o carrancudo uniforme de colégio de freiras, vestir minha calça rancheiro e meu Bamba, para ir me juntar à turma. Aos sábados e domingos valia ir de saia plissada de tergal e conjunto de Banlon. De vez em quando, eu tinha um grave problema: minha mãe, atarefada com os afazeres domésticos, mandava eu tomar conta do meu irmão que devia ter uns 4 anos. E aí, mixava a liberdade de brincar à vontade. E ela ainda dizia: — Nelsinho, não larga a mão da sua irmã! Mas como correr, brincar, jogar bola com um molequinho grudado na minha mão? Só me restava uma alternativa; então eu juntava algumas meninas e caminhávamos pelas ruas vizinhas para dar uma canseira nele e logo levá-lo para casa, alegando que ele estava exausto. E íamos descobrindo os arredores. Num desses eios, vimos uma porta entreaberta. Era os fundos do Hospital São Luiz, mais precisamente, um necrotério, onde os defuntos aguardavam o serviço funerário. Como crianças curiosas, é claro, entramos e ficamos apavoradas, meu irmão mais ainda, aí saímos correndo para casa. Apesar do susto, foi válido, pois toda vez que minha mãe mandava eu levar meu irmãozinho comigo, eu ava pelo local apavorante e ele logo queria ir para casa. Por essa e por outras é que acho que meu irmão não gosta de mim!
Aventuras financeiras Miguel Chammas
Morei no Brás, depois no Tatuapé e no Brooklin (já adulto). Sua pequena crônica levou-me aos anos 1950 e 1960. Maravilha a nossa adolescência. eios de bicicleta pelo bairro, lembranças gostosas e inesque78
Sou, orgulhosamente, brasileiro e paulistano, mas minha descendência ajudou a forjar minha personalidade. Sou neto de sírios por parte de pai e meu avô, por parte de mãe, era italiano, melhor ainda, napolitano. A nacio-
primeiros tempos
nalidade da minha avó materna, que não cheguei a conhecer, era russa mas foi criada, desde muito pequena, na França. Assim sendo, sou uma salada internacional em se tratando de formação sanguínea. Vai daí que a minha característica artística deve ter vindo da parte italiana, e a minha queda comercial da parte síria. Todo esse preâmbulo eu fiz para iniciar o relato desta minha memória. Os anos eram os primeiros da década de 1950, eu morava na Rua Augusta, 291. A casa era antiga, de pé direito muito alto e tinha um porão com mais de um metro de altura, utilizado para guardar tranqueiras, coisas obsoletas, livros antigos, garrafas de vidro e “litros” vazios que eram bastante importantes naquela época. O porão ocupava a totalidade da área construída e na sua parte fronteira, tinha pequenas janelas resguardadas por grades de ferro que ficavam a pouco mais de trinta centímetros do piso da calçada fronteiriça. Nos primeiros compartimentos desse porão, eu, meu irmão e meu primo havíamos delimitado o nosso reino de fantasia. Ali brincávamos e guardávamos nossos poucos brinquedos oficiais e os muitos brinquedos de faz-de-conta que construíamos. Como um verdadeiro rei, por ser o mais velho, eu não permitia aos demais componentes daquele reino a ultraagem para as demais dependências daquele escuro porão. Para lá, só um verdadeiro e heróico rei poderia fazer incursões e eu as fazia, e nessas minhas explorações eu dava vazão não só ao meu espírito aventureiro, mas, também, ao meu espírito de comerciante. No meio desse porão, ficava o depósito de garrafas e “litros” vazios. A mim cabia, então, a importante tarefa de transportar essas preciosidades até as janelinhas frontais do porão e, depois, na primeira oportunidade, já na calçada, resgatá-las com cuidado, e oferecê-las no empório que ficava na esquina da Rua Caio Prado com a Augusta, para o seu José, proprietário do estabelecimento que as comprava de muito bom grado. As verbas obtidas nessas transações eram aplicadas em doces, sorvetes e ingressos nas matinês do Cine Odeon para assistir aos seriados de Dick Tracy, O Cobra, e os filmes de Esther Williams, Doris Day, Fred Astaire e muitas outras celebridades. Essas aventuras financeiras duraram muito tempo, eu até pensava que elas não teriam mais fim. Um dia, sem mais nem menos, minha fonte de rendas foi descoberta. As garrafas já em fase terminal assustaram minha mãe, minha tia e meu avô. A falta das garrafas já transacionadas promoveu uma grande surra neste que lhes escreve e, como castigo, um mês sem cinema e guloseimas. Hoje, ao me lembrar do caso tenho, mais convicta ainda, certeza de que não tive a mínima culpa em toda a história, a culpa é devida, totalmente, à minha descendência oriental.
São Paulo no mês de maio Raphaela Viggiani Coutinho Ao viajante que queira conhecer São Paulo recomendo que venha no mês de maio. As manhãs são frescas, de céu azul, os dias ensolarados ainda quentes, em alguns períodos recebem um vento suave. As noites são agradáveis, às vezes frias, lembram o inverno próximo. Raramente chove nessa época. É o outono paulistano. Quando pequena estudava em um colégio de freiras só para meninas, o Madre Cabrini. O mês de maio era dedicado a Maria. Durante as missas diárias cada aluna preparava uma poesia para declamar a Nossa Senhora. Para entrar na igreja usávamos um véu branco sobre a cabeça e eu me sentia orgulhosa por ser “Filha de Maria”, honra essa representada por um colar de fita azul com a medalha da Virgem Maria.
Rua Souza Coutinho, ali aprendi a voar Maria Isabel Gallardo Por volta de 1957, quando eu estava com 7 ou 8 anos, fui viver na Rua Souza Coutinho, a dois os da Estrada das Lágrimas. Filha única de emigrantes espanhóis, lá ia eu pelo bairro do Sacomã a fazer rir, vestidinha toda de branco, bolsinha, chapéu, luvas, meias e sapatinhos. Devia manter a compostura: nem correr, nem saltar e ainda menos, sujar-me. De fato, é muito complicado ser filha única, pois não é nada fácil fazer tolices sem ser descoberta. Porém, um dia que eu ia com pressa à Igreja São Vicente de Paulo, que se encontrava na Via Anchieta, decidi inovar na minha atitude e, deixando a vizinhança espantada, pus-me a correr, correr... com tanta velocidade, que os meus pés despregaram do solo escorregadiço de terra batida. Sim, senhor! Estava mesmo a voar! Foi uma sensação maravilhosa. Mas pouco durou. Ao chegar perto da Rua Alencar Araripe, onde avam os carros, os ônibus e, se me lembro bem, até os bondes, eu decidi por prudência moderar para suspender o meu movimento. A minha impetuosidade era tal que lá caí de bruços no chão, manchando-me de lodo roxo. Foi muito contrita que voltei para casa, esfarrapada e enfeitada de cor vermelhinha, cor da terra e do líquido que escorregava dos meus joelhos ensangüentados. O sermão e a surra que levei dos meus pais não me curou do espanto, pois cada vez que tive a oportunidade reiterei a experiência, e foi duplicada por dois. Na ida, ia a voar da Estrada das Lágrimas até a Rua Alencar Araripe, e na volta da missa era da Via Anchieta até a Alencar Araripe. 79
Meus pais ignoram essa história. Como foi gostoso ter a liberdade de voar, sobretudo porque esse foi o único desporto que eu tive a habilidade de fazer em toda a minha vida.
No Mappin com o papai Virgínia de Freitas Brito — Filha! Acorde, já são 7 horas da manhã, você quer ir ao Mappin? Então, eu levantava, tomava o nosso café matinal e ia. Andávamos por todos os seus andares, e sempre havia uma novidade, mas tinha algo que não podia deixar de levar e que minha mãe sempre pedia: — Não deixem de trazer minha bala predileta – uma bala de anis que não há mais no mercado e que só encontrávamos no Mappin. Depois íamos andar e ver tudo, tão lindo, mesmo com a garoa que caía. Bom, sempre me emociono ao falar desse tempo, vi a loja que era o marco de São Paulo ser fechada como se ela não significasse mais nada, até hoje sei o jingle desta maravilhosa loja, era mais ou menos assim: Mappin, venha correndo, Mappin! Chegou a hora, Mappin, é a liquidação! Mappin, abre ás oito, Mappin, até meia-noite, Mappin, é a liquidação: liquidação é no Mappin.
O eio das moças no Parque Trianon Adalgisa Minha avó morava no final da Avenida Paulista. O edifício fica na Rua Minas Gerais, bem perto do Hospital Emílio Ribas. Da janela do quarto dela dava para observar as pessoas de um certo casarão da rua localizado bem em frente. Nós, crianças mexeriqueiras, ficávamos olhando e comentando sobre as moças que alegres se arrumavam e se enfeitavam, nos finais de semana, para ir ao Parque Trianon, cujo eio era um especial programa de domingo. Queríamos acompanhar tudo! Pena que nós, as crianças mexeriqueiras, no momento de seguir as moçoilas, não tínhamos pernas suficientes para agüentar a caminhada e, choramingando, pedíamos para voltar no meio do caminho. Os maiores, que tinham tido a compaixão de levar consigo, nós, os menores, ficavam muito aborrecidos de não poder acompanhar o final do eio. O casarão foi demolido e deu lugar a parte do viaduto da Avenida Rebouças. E nós, meros mortais, não saberemos jamais se aquelas moças de calças compridas, sapatos “maria-mole”, tiveram lá seus encontros ou desencontros... 80
O dia em que seqüestraram o Beckenbauer José Carlos Munhoz Navarro O meu time de futebol é o maior do mundo. Anda meio desacreditado, diria irreconhecível e praticamente esquecido. Mas já foi bom, e quando eu era criança ele era o maior do mundo. Hoje, a infância é ada quase que individualmente, com videogames, e computadores. Na minha época, existia uma enormidade de formas para brincar e guardo de cada uma, um carinho especial. Tínhamos muitas opções e jogar futebol era a principal delas. Primeiro na rua de terra, quando a Rua Taufik Camasmie ainda se chamava Nevada; na Rua Atlântica, já no asfalto e depois, quando colocaram luz na rua, os jogos noturnos. Que delícia que era ficar até as 10 horas da noite e chegar em casa cansado, suado, com o joelho em pandareco e a roupa idem. De noite, muitos abraços pelos gols feitos na rua, de manhã, alguns safanões pelas roupas sujas, do corpo e da cama. Agora a turma vai num futebol society e tudo bem. Se o dia fora de chuva, a atração era a corrida de palitos de sorvete, aproveitando a enxurrada na guia. A festa era quando um concorrente se enroscava em qualquer pedra ou pedaço de papel e a gente ganhava a corrida. O duro foi quando o meu Vicking Rompedor se enroscou no pneu de um carro e o dono chegou bem na hora que eu estava praticamente todo debaixo dele, tentando salvar minha nave. Saí de mansinho e o velho ficou uns cinco minutos cismado, tentando descobrir o que eu estaria aprontando por ali. Com a chegada da eletricidade, a velha brincadeira de pegador acusado ficou mais constante. Na nossa versão, a gente jogava uma lata amassada para bem longe e todos corriam para se esconder, enquanto o pobre coitado que tinha que nos achar pegava a lata e colocava perto do poste onde era o pique. Nessa brincadeira, nós pulávamos muros, invadíamos jardins, nos escondíamos atrás de carros, até conseguirmos ludibriar o adversário e nos salvar, batendo no pique. Quando tinha as 1000 milhas de Interlagos, fazíamos nossa versão com os 10.000 metros de bicicleta, dando voltas e voltas no quarteirão. A regra era simples, ouvíamos a Panamericana noite a dentro, com a narração do Velho Barão Fittipaldi e dos repórteres que, espalhados por todo o circuito, iam dizendo se o piloto tinha ado por ali ou não: Aluane Neto, Reali Júnior, Otávio Munis, Cláudio Carsughi e outros e, no dia seguinte, tão logo terminava a corrida, íamos para a rua. Quem tinha bicicleta corria, quem não tinha era o narrador ou repórter, cada um em uma esquina do quarteirão. Eu geralmente era um repórter, minha bicicleta nunca saía dos boxes, pois o chefe da minha equipe sabia que na segunda-feira eu tinha que fazer entregas com ela e não podia ir com a bicicleta arrebentada. O chato mesmo era brincar com as menininhas da turma que inventavam cada coisa. Era um tal de lenço atrás, a anel, pular corda e o mais
primeiros tempos
escabroso de todos, aquele que a gente pegava uma bola, jogava na parede e começava: ordem, sem lugar, sem rir... sem... Ah! Pára com isso! O único consolo era o a anel, minha mão sempre se demorava mais quando eu ava na mão dela. E nem todos sabiam por que eu demorava mais naquela mão, mas sabiam que o anel nunca iria estar ali, porque ia ser duro vê-la esfregando a mão na mão de todos. Mas, voltando ao futebol, o meu time era o maior do mundo. Tinha jogadores de muitas nacionalidades e nunca tive preconceito de cor, tamanho ou origem. O meu goleiro era o Yashin, pesado, todo de preto como se estivesse envolvido com fita adesiva preta. Aliás, era disso mesmo que ele era revestido. O reserva era mais modesto, chamava Luminar. Tinha dois beques famosos, o Bobby Moore e o Jack Charlton. Meu ataque era arrasador, com o Del Sol, na ponta direita, o Uwe Seller, no centro, o Gigi Riva, na esquerda e o meio de campo com o Gianni Rivera, o Overath. Depois vieram o Pedro Rocha, o Bobby Charlton e o Beckenbauer. Às vezes, íamos até a Rua 25 de Março ver se encontrávamos nas lojas de armarinhos algum jogador que servisse. De vez em quando, um relojoeiro amigo nos dava umas tampas de relógios que faziam cada gol de cobertura que deixaria qualquer Pelé, Ronaldinho ou Rogério Ceni com inveja. Primeiro nossos campos eram no chão. Na mesa da sala ou da cozinha tinha aquela emenda no meio do campo que enchia as paciências, até que um dia descobrimos que a metade de uma mesa de ping-pong era um campo ideal. Assim, na mesma época do Palmeiras, tínhamos nosso “Jardim Suspenso”. Meu time não era imbatível, mas era um esquadrão. E como todo esquadrão que se preze, tinha registrado em sua história grandes tragédias. A primeira ocorreu quando, num ímpeto de marcar um gol sensacional, imprimi força maior e o meu Uwe Seller, um puro e ariano vidro de relógio, não uma simples cobertura de plástico, mas uma pura tampa de relógio, despencou mesa abaixo e rachou ao cair ao chão. Como bom atleta, foi preservado, só entrando em jogos especiais. Mas ele não resistiu, pois, num descuidado aperto, fiquei com as duas partes no meio do campo, numa verdadeira fratura exposta. A segunda tragédia, a maior e praticamente a que me desmotivou a continuar, foi o seqüestro e prisão do Beckenbauer. Um vigoroso botão de capa, daquelas de gabardine, sólido na pancada, suficientemente liso para alcançar qualquer bola em qualquer ponto do campo; firme nos chutes, direto e maleável nos chutes por alto. Mas que, infelizmente, confesso, não fora adquirido de maneira, digamos, mais ou menos legal. Assim, num dia, fatídico dia, quando tirava um duelo com um primo lá em casa, ele foi seqüestrado, surrupiado, desapropriado, na minha frente, na frente de todos. É que minha mãe – em triste hora – reconheceu no meu Beckenbauer aquele botão da sua capa que julgava ter perdido. E, desprezando todas as regras futebolísticas, ando por cima de mim, do meu time, do juiz, levou embora aquela preciosidade. Triste era ver o meu sofrido meio de campo,
preso, amarrado, jogado à vala comum junto aos outros botões, exposto às intempéries, todas as vezes que minha mãe usava a famigerada capa. Coloquei de novo o Pedro Rocha, insisti um pouco mais com o Rivera, mas eu nunca mais senti o mesmo que sentia antes. Hoje, dentro da antiga caixa do rádio Spica, empoeirado e perdido em qualquer canto do armário embutido, está o velho Racing Club, o mais legendário time de botão do mundo, inclusive os restos vidrais do Uwe Seller. Só não está o Beckenbauer, que junto com a capa e nos resíduos do tempo, deve ter se perdido, anônimo e largado, sem que ninguém soubesse e lhe desse o seu verdadeiro valor.
Os jogadores de botão de mesa eram feitos com o vidro de relógios, que pedíamos nas relojoarias. Tinham de todos os tamanhos e colávamos a foto do jogador por baixo. Já os goleiros eram de caixa de fósforos, naquele tempo da marca Pinheiro. Clésio de Luca
Recordações da infância e dos costumes de outrora Neuza Guerreiro de Carvalho A primeira lembrança que eu consigo resgatar é a do macaquinho, do sagüi que pertencia à senhoria da casa onde morávamos na Rua Benjamim de Oliveira, no Brás. Depois, já maiorzinha, me lembro que meu pai cantava para minha irmã – ainda viva – e para mim, uma cantiga espanhola: — Se quieres que te cante La seguidilla, Llena-me la guitarra de pelaillas. Seguidilla – dança característica da região de Sevilha; Pelaillas – amêndoas envoltas em casca de açúcar. E cantava também uma canção de ninar, com certeza aprendida com sua mãe e também em espanhol. Lembro até da letra. — A dormir se vá mi nêne que viene la reina moura buscando de casa em casa qual é el ninho que llora pra meter-lo em la capaça. Seria o equivalente a “a cuca vem pegar”. Sempre em São Paulo – porque nunca saí da cidade –, em 1936, aconteceram as primeiras corridas de carro do Brasil. Duraram pouco tempo porque logo começou a Segunda Guerra Mundial e a falta de gasolina dificultou o progresso desse esporte. Na época, as corridas eram na Avenida Brasil. Por nossos padrões, nossas possibilidades financeiras precárias, nossa condição familiar de casal com duas filhas pequenas de 7 e 3 anos, nem se aventava a hipótese de ir assisti-las no local. Ouvia-se a transmissão pelo rádio, torcia-se muito e eu e as outras crianças “rezávamos” pelos ídolos de então, Pintacuda, um italiano, e Helen Nice, uma sa, Elenice, como 81
a chamávamos, porque subconscientemente abrasileirávamos o nome. Na única corrida realizada na Avenida Brasil, o carro de Helen Nice ou Elenice, perdeu a direção e subiu numa ilha, matando alguns espectadores. Aconteceu nessa época também a tragédia do Cine Oberdan, na Avenida Rangel Pestana, também no Brás, bem perto de casa. Durante uma matinê, com o cinema lotado, alguém gritou “fogo”. Todo mundo procurou sair e muitos morreram pisoteados, a maioria crianças. Minha mãe se lembra da quantidade enorme de ambulâncias que avam por nossa rua, e eu me lembro do som das sirenes. Entre os costumes da época, eu me lembro que: Banhos eram em geral aos sábados, e de bacião. Na casa da Rua Correia de Andrade, também no Brás, a água era aquecida em fogo de lenha, no quintal, em latas de vinte litros. Um quintal relativamente grande, com um banheirinho minúsculo no fundo e em um nível bem mais baixo. Só meu pai tomava banho de chuveiro frio – que temeridade e que comportamento pouco usual na época! Dada a distância das “privadas” eram indispensáveis os penicos. O de minha mãe era de louça inglesa, verde, todo decorado, e fazia parte do jogo de bacia, jarro, penico e peças de toalete como saboneteira, recipiente para pentes e baciazinha para preparar sabão de barba, então feita com navalha. Como os banheiros eram distantes, não havia pias para lavar mãos e rosto, o jarro ficava sempre com água, que se usava na bacia. Por isso os “toaletes” tinham um tampo de mármore. O nosso era cor-de-rosa. Era costume comprar roupas a prestação, que geralmente eram oferecidas por um russo – ou judeu – que batia de porta em porta. Era uso da época as famílias tirarem fotos, em fotógrafos, para ofertarem aos parentes mais próximos. Meus pais fizeram isso. Minha mãe estava no começo de sua segunda gravidez e achou que estava aparecendo a barriga – imagine! Que vergonha! – e não deu nenhuma foto para ninguém. Tenho um punhado delas, onde estou com 3 anos, acompanhada de meu pai e minha mãe. Íamos todo fim de semana ao cinema que ficava a uns dois quarteirões, o Cine Dom Pedro I, na Rua Silva Bueno. Era costume nosso – de nossa família – ir aos domingos ao cemitério, tomando dois bondes: do Ipiranga até a Praça da Sé, seguindo a pé toda a Rua Direita e Viaduto do Chá e, na Praça Ramos de Azevedo, outro bonde que subia a Rua da Consolação, ava pela atual Avenida Doutor Arnaldo e descia a Teodoro Sampaio até a Rua Cônego Eugênio Leite, onde ficava o Cemitério São Paulo. Sempre comprávamos flores miudinhas, brancas, de cabo curto, para minha irmã, que depois soube chamarem-se “idrem” e “saudades”, e flores roxinhas, pequenas, agrupadas na ponta de um ramo, uma flor para adulto, para meu avô. Nunca mais as vi. Lembro bem de tudo isso porque eu já tinha 9 anos. Minha irmã morreu com 5 anos. E aos meus 10 anos, em 1940, terminou minha infância quando ei para o ginásio. 82
Natal na Sears Lygia O Natal começava pra gente no dia primeiro de dezembro, pois esse era o dia em que íamos à Sears, no início da Avenida Paulista, ali onde hoje se encontra o Shopping Paulista. Meu pai chegava em casa mais cedo, nós já estávamos prontos, eu de vestido novo, meu irmãozinho todo arrumadinho e de cabelo penteado. Íamos a pé, subindo a ladeira do Paraíso, ando pela mal-cheirosa cervejaria Brahma, dando uma paradinha na papelaria Caratin, onde eu comprava os meus humildes cartõezinhos de Natal, os quais me pareciam tão lindos. Dali, ando pela Praça do Índio, com uma estátua de um índio com um arpão tentando pegar um peixe dentro do laguinho, chegávamos à Sears, toda enfeitada para o Natal. Subíamos para o quarto andar, onde os brinquedos se encontravam e ali ávamos momentos mágicos, sonhando com o que Papai Noel poderia nos trazer. O mais estranho é que ele nunca trazia nada daquilo, só uns carrinhos para o meu irmão e uma bonequinha para mim. Mesmo assim sonhávamos, corríamos em volta de tudo, até que meu pai cansado e com fome nos chamava para ir comer no barzinho ao lado. Sempre pedíamos salsichas no espeto. Que delícia que eram aquelas salsichas! Depois das salsichas com Guaraná, tomávamos um sorvete bem grande ou comprávamos um pacote de pipoca na porta da Sears. Vínhamos embora para casa comendo a pipoca e eu toda feliz com meus cartões de Natal. Meu irmão ganhava um pacotinho de cavalinhos plásticos ou um soldadinho. A lua sempre aparecia, branca e muito redonda, a gente até via estrelas no céu de São Paulo. Estávamos cansados, porém muito felizes. Vínhamos pulando e sentindo que tudo era Natal. Em casa ainda podíamos abrir o panetone e pegar um pedacinho antes de ir dormir. O Natal havia começado mesmo!
Nessa loja Sears foi instalada a primeira escada rolante de São Paulo. Do lado esquerdo da loja, na calçada, tinha a porta de um elevador que dava para um salão de festas, chamado Blue Room. Do lado direito ficava a lanchonete, especializada em misto quente. Também sempre tinha um aspirador em demonstração, soprando bolinhas para o ar. Israel Beigler Minha avó morava perto da estação do bonde da Vila Mariana e no Natal eu ia ear com ela pela Sears, me sentindo mocinha de luva e bolsa. Jussara Xavier A bomboniére da Sears tinha uma inesquecível castanha de caju, bem quentinha da marca Kenmore: satisfação garantida ou seu dinheiro de volta! Mauro Souza
primeiros tempos
Já no começo da década de 1980 eu ia à Sears com minha mãe, que achava a loja muito chique, pois minha “tia bem-vestida” que trabalhava na Nestlé, fazia compras lá. Mamãe me levava à lanchonete para comer “salsicha de casaca”, um cachorro-quente com bacon e queijo derretido. O lanche nem era tão bom assim, mas o evento era ótimo. Adorava umas rosquinhas que vendiam lá e que a minha tia da Nestlé às vezes comprava para mim. A loja era linda e a lembrança é bonita e terna. Marcus A minha boa lembrança, com relação à Sears, era a loja que ficava na Água Branca. Na ocasião, eu trabalhava nas Indústrias Matarazzo e o nosso eio, na hora do almoço, era ir à Sears, com suas castanhas de caju e seu aroma se espalhando pela loja. Realmente, no Natal a loja se transformava numa festa! Olhar as roupas e sonhar era muito bom! Sonhava também com alguns carros, da Sabrico, loja que ficava ao lado. Só sonhava, claro! Marina Em 1963, eu ia até a Sears para comprar a calça de jeans Sears Roebuck, aquelas que desbotavam em listas. Roque Vasto
A chácara da dona Ângela Mário Lopomo No meu tempo de morador na Rua do Porto, oficialmente chamada Leopoldo Couto de Magalhães Júnior, no início da década de 1950, o Colégio Costa Manso era parte da chácara da dona Ângela, a Chorenga, e os fundos da minha casa davam para seu terreno. Todos os anos após o Natal, ela ia para Poços de Caldas e só voltava em março. Aí competia a nós – eu, meu irmão e os netos dela, Santino e Leo – tomar conta da chácara. Conhecíamos o terreno palmo a palmo, mesmo na escuridão da noite, e ficávamos horas a fio pegando girinos nos poços, que ficavam onde hoje é o colégio. Além das frutas que comíamos a “dar com pau”, tinha a mandioca que tirávamos da terra e cozinhávamos no fogão a gás. Privilégio de poucos na época. Todos os demais moradores tinham fogão à lenha ou a carvão. A mandioca, por ser fresca, era molinha e cozinhava rápido. Estando no ponto, colocávamos no prato e muito açúcar por cima. Era uma festa. Tínhamos também à nossa disposição, o galinheiro com o galpão onde as galinhas botavam ovos. Eu entrava debaixo do galpão para pegar os ovos e me enchia de pulgas. Era um tal de ter que tomar banho todos os dias – naquela época só se tomava
banho aos sábados e na bacia. Eu me sentia o verdadeiro “dono” da chácara. Mas a coisa ficava feia quando a dona Ângela retornava das férias. Ela ia logo cedo na chácara, olhava para todos os cantos e gritava naquele seu linguajar italiano: — Me mandiájate tuti larandja, tuti banana, tuti caqui. Filhos de uma Putanaaa. Da chácara ficaram muitas lembranças.
eios de domingo na Vila Galvão Roque Vasto Gosto de ear pela cidade aos domingos, revendo os lugares onde não vou há tempos. Lembrei-me de um, na zona norte, onde fui muitas vezes quando menino. Esse lugar chamava-se Vila Galvão, e eu só o descobri porque a mãe de um colega tinha uma irmã que morava lá, e algumas vezes ia visitá-la levando junto o filho apelidado de Rato e seus dois colegas: o Ermelindo e eu. A condução saía da Cantareira, sim, da Estação da Cantareira, onde uma maria-fumaça seguia pelo meio das ruas do Carandiru, soltando fagulhas e apitando para avisar os pedestres e veículos, e assim, ia se afastando cada vez mais da cidade, até trilhar sua própria linha. Nada havia nas margens da ferrovia. Só uma casinha aqui, outra mais adiante, até que se chegava na Estação Vila Galvão. Era uma festa. A casa aonde íamos ficava perto de onde estava sendo construída uma estrada de rodagem, e as máquinas de terraplanagem cortavam os morros e deixavam enormes barrancos de terra vermelhinha. Não dava outra! Íamos rolar por esses barrancos, engolindo terra até ficarmos vermelhos de tanta poeira, e todos grudados. A bronca era enorme, mas o prazer de rolar naquela terra fresquinha e fazer guerra de pelota de terra molhada, era inigualável. Na volta para casa, quase sempre lá pelas 19 horas, dormíamos no trem, sob os olhares assustados dos ageiros, pois a roupa voltava imunda. Não reconheci a Vila Galvão, nem mesmo sei onde era a antiga estação, mas a rodovia que estavam construindo era a Fernão Dias.
Era o famoso Parque da Vila Galvão. A estação ficava onde hoje tem um ponto de táxi, na avenida que começa sob o viaduto da Fernão Dias, caminho de Jaçanã. Até pouco tempo era conhecida como Praça do Avião porque tinha uma réplica de um avião da FAB, Força Aérea Brasileira. Velhos tempos. José Eduardo 83
Eu era feliz, e sabia
Brincadeiras de moleques
Silvio de Lima
Jayro Eduardo Xavier
Tinha a tenra idade de uns 8 anos. Era o sexto de uma família de nove filhos. Se, por um lado, era bom ter tantos irmãos – tinha sempre com quem brincar –, por outro, as desavenças e brigas eram comuns. Meu pai era de poucas palavras – bastava um olhar e o recado já era entendido –, não itia que respondêssemos aos mais velhos e exigia que os tratássemos por senhor(a). Não posso dizer, com isso, que nosso pai fosse autoritário. Tínhamos liberdade de brincar na rua e participar de todas as brincadeiras imagináveis. Jogávamos taco, bolinha de gude, amarelinha, pega-pega, esconde-esconde, pipa, pião, bater figurinha, arco e flecha, polícia-ladrão, Daniel Bonne, Zorro, Nacional Kid, enfim, tínhamos infância num tempo em que brinquedos eletrônicos eram coisas de um futuro tão distante que não parávamos para pensar. E foi com essa idade que vivenciei minha primeira, e hoje sei, irresponsável aventura. Morava na Rua Ouvidor Peleja, próximo ao que é hoje a Avenida Doutor Ricardo Jafet. Em seu período de construção formavam-se poças d’água grandes o suficiente para serem consideradas lagos. E para lá íamos nadar. Nada de mal, não fossem as brincadeiras que se davam: ora empurrando um do barranco, ora puxando outro pelos pés, e o pior de tudo, às vezes fingia-se estar se afogando – brincadeira que não deve ser repetida por ninguém, nunca – para, depois do susto que meu irmão mais velho levava, cairmos numa gargalhada sem fim. E assim fizemos por várias vezes, sempre tomando cuidado para chegarmos antes do pai, porque se chegássemos depois, no dia seguinte o castigo se fazia notar. Dito e feito, num desses alegres dias, digo alegre porque quando se tem infância todos os dias são alegres, saímos para nosso nado costumeiro. Depois de um bom tempo, um dos meus irmãos resolveu fingir que estava se afogando, o que já era comum, e meu irmão mais velho, embora já pego nessa brincadeira noutras vezes, instintivamente mergulhou lagoa adentro, e encontrou um caco de vidro cortando seu peito logo acima do coração (cicatriz que traz até hoje). A choradeira foi geral, acredito que por duas razões: a primeira pelo derramamento de sangue, a segunda, acho que intimamente, para cada um, era por ter que contar para o pai o ocorrido. Não lembro o que inventamos, só sei que hoje em dia, cada vez que vemos nosso irmão com aquela marca no peito, lembramos daqueles tempos. E rimos muito porque sempre tem um que diz que era o bom na bola, no pião, no pega-pega. Não importa quem era bom ou não, não tínhamos a pretensão de sermos campeões, só queríamos nos divertir, como devem fazer todas as crianças.
Ano de 1947, Vila do Sapo, onde hoje é o final da Rua Jorge Chammas, perto do Detran. Além de brincar de esconder, de Mandrake, licença e de caubói, havia brincadeiras que exigiam certa perícia e os que se destacavam eram irados e invejados pelos demais. Box: consistia em um círculo de aproximadamente 80 cm de diâmetro riscado na terra e com um buraco no centro. Era jogado com bolas de gude. Para sortear a ordem dos jogadores, cada um ‘estecava’ – com a bolinha presa pelo dedo indicador, dava-se um golpe súbito com o polegar – sua bola em direção ao box ou buraco central. Jogava primeiro o que acertasse ou mais se aproximasse do box. Iniciado o jogo, cada um voltava a tentar embocar sua bola. As bolas iam se acumulando dentro do círculo. Aquele que primeiro embocasse a sua, ava a estecar as dos outros para expulsálas do círculo. Quando conseguia expulsar a bola adversária do círculo, essa ava a ser sua. Quando não conseguia expulsar, perdia a vez e o segundo jogador reiniciava a rotina. Espeto: o espeto era feito de uma vara de ferro de 3/8” de aproximadamente 20 cm e com uma ponta afiada. O objetivo era cobrir uma distância preestabelecida em trajeto de ida e volta. O jogo era feito em solo duro e era iniciado pelo primeiro sorteado. Este tinha que atirar o espeto ao chão, cravando-o. Se cravasse, tomava o espeto e novamente o atirava. Cravando, traçava uma linha ligando essa marca à anterior e prosseguia até errar. Quando errava, o adversário iniciava sua jogada na tentativa de cercar a trajetória do outro, de maneira a impedir sua progressão. No erro do segundo jogador, o primeiro tinha que sair do cerco feito pelo segundo para depois prosseguir. O que dificultava a saída do cerco era que só podiam ser feitas linhas retas ligando as marcas. A disputa entre dois sujeitos exímios podia levar um tempão e fazer verdadeiros labirintos. Aquele que conseguisse voltar primeiro ao ponto de partida era o vitorioso. Arco: era necessário fuçar nos ferros-velhos pra conseguir um aro, fosse ele de bicicleta ou de velocípede. O arco era feito de um pedaço de arame grosso galvanizado ou de ferro de 3/8. A brincadeira consistia em correr manobrando o aro com o arco. Os mais hábeis faziam malabarismos e os mais velozes faziam o aro cantar pelo atrito com o arco. A atenção para com o brinquedo desviava a atenção com o caminho e, como andávamos descalços, topadas feias eram freqüentes. Caixeta: no centro de um círculo de aproximadamente 50 cm de diâmetro colocava-se uma caixa de fósforos em pé. Sobre ela eram colocadas as apostas, geralmente moedas de duzentos réis. De uma distância de dez os, os jogadores, atirando por ordem de sorteio, deviam acertar a caixa de fósforos e jogá-la fora do círculo, ficando com as moedas que não
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saíssem do limite da circunferência. As moedas usadas para serem atiradas contra a caixa de fósforos eram os quatrocentões. Raras foram as vezes que tomei cascudos de meu pai, e quando isso acontecia, sou obrigado a reconhecer, os cascudos eram justificados, mas se ele me pegasse jogando caixeta seria surra na certa. Aquilo, pra ele, era jogo de azar.
Comentarei o box e o espeto: no box o nome dado por nós era “triângulo” e tinha outro jogo, o das três búricas, também conhecida como gude. Tínhamos que primeiramente ar pelas búricas e depois apontar a bola adversária. Se o alvo fosse atingido a bola ava a ser sua. Quanto ao espeto, o jogo era feito com facas de cozinha com ponta. Você fazia o caminho até um ponto e voltava, deixando-o mais estreito possível para dificultar para o adversário. O jogador perdia a vez quando a faca não fincava. Clésio de Luca
Infância na chácara de Vila Prudente
encontrar, papel e linha a gente comprava na venda do senhor Augusto e da dona Madalena, e a cola era farinha de trigo com água. Nessa época, não existia ainda esse famigerado “cerol” – vidro moído que é colado à linha –, que dizem já causou algumas vítimas. Era uma época sem violência. O que se disputava com as pipas era quem conseguia dar mais linha. Um, dois ou três carretéis de linha. Alguns meninos afirmavam que sua pipa tinha voltado úmida por ter entrado nas nuvens. Era uma maneira de sonhar. Havia outras brincadeiras: jogar bolas de gude, rodar piões, bater bafo com figurinhas e fazer estilingues para atirar mamonas. Recordo-me do IV Centenário de São Paulo. Fui até o Ibirapuera ver as grandes exposições, mas a chuva de prata só vi de casa, ao longe, quando os holofotes iluminavam o céu. Tenho até hoje uma daquelas flâmulas de alumínio da Wolff, com as quais as Indústrias Pignatari homenagearam a festa. Nesse mesmo ano, 1954, ganhei um cineminha Barlam, comprado no Bazar Lord, na Rua São Bento. Seu corpo era de baquelite, tinha uma lâmpada de 60W, filmes de papel “manteiga” e projetava imagens na parede. Hoje não tenho mais o cinema, ficaram apenas imagens que giram em minha mente como um fantástico carrossel, com as coisas boas da minha infância querida.
Milton Garcia Fui morar na Vila Prudente em 1949, com quase 5 anos de idade. Nossa casa era na Rua Américo Vespucci, 45, próximo da Rua José Zappi. Dessa rua em diante, em direção à Mooca, no espaço entre a Avenida Paes de Barros e a Rua do Oratório, havia uma imensa área ainda não urbanizada que nós chamávamos de “chácara” e tinha muita coisa interessante ali para se fazer. Logo que chegamos, nos fins de semana, íamos meu pai e eu explorar a região. Não tardou para descobrirmos que no fundo do vale corria um pequeno córrego, mas muito pequeno mesmo. Um fiozinho de água, muito limpa, que por entre a vegetação bem rasteira formava aqui e ali pequenas bacias onde havia peixinhos. Depois, sempre que podíamos, voltávamos e fazíamos pequenos aquários em garrafas com pedrinhas no fundo e tudo mais. Com o ar do tempo, mais e mais coisas fui descobrindo, como o campinho de futebol. Havia por lá muito capim, mas também pés de pêras, daquelas duras, e pés de ameixas amarelas, que hoje conhecemos por nêsperas, maiores, mas cujo sabor não se igualam àquelas. Essa “chácara” era istrada por um senhor português de sobrenome Canado. Corria uma lenda entre os meninos de que ele era muito severo com intrusos, mas nunca vi nada que confirmasse isso. Inclusive, era amigo de seu neto Valdir e morava no mesmo quarteirão de muitas famílias Canado. Lá pelos meus 8 anos, meu divertimento predileto ou a ser as pipas, que aprendi a fazer com meu pai Salvador. O bambu era fácil de se
Boas recordações. Eu cheguei na área muitos anos depois, porém esta parte ainda existia com sua intensa vegetação. Nós viemos de Piracicaba para as festas do IV Centenário de São Paulo, quando eu tinha 3 anos e por incrível que pareça eu me lembro de uma grande ponte de ferro com um restaurante sobre um pequeno riacho. A caminho do Ibirapuera paramos no centro onde papai comprou umas lembrancinhas da festa, tenho ainda guardada uma medalha de prata muito bonita. As bandeirinhas de alumínio marcaram muito e era tão bonito vê-las caindo com intenso brilho. Muitos anos depois, quando mudamos para São Paulo, fomos ao Bazar Lord, quantas boas memórias. Nélio Nelson Gonçalves
As águas límpidas do Pinheiros e a hora certa Mário Lopomo Hoje, quando o pela Ponte Cidade Jardim, rebatizada Engenheiro Roberto Zucollo, sobre o rio Pinheiros, sinto uma enorme saudade dos tempos de garoto, quando andava pelas águas límpidas desse bonito rio. Andava desde a Usina da Traição até a Ponte Cidade Jardim e estava sempre a pegar guarus, peixes pequenos, um divertimento de muitos garotos. Hoje quem 85
fizer isso sai com as canelas pretas de lama, misturado com resquícios de esgoto. As máquinas da usina eram silenciosas, e a gente só se lembrava dela por causa da sirene que tocava todos os dias às dez para as sete da manhã, alertando os funcionários, e depois às 7 horas para a entrada. Às 11 horas, tocava novamente para o almoço. E ao meio-dia, para o regresso. Às 11 da tarde a sirene era tocada pela última vez naquele dia, quando os funcionários iam para casa. No turno da noite, a sirene não era tocada. Quando se ouvia o soar da sirene nossos ouvidos eram todo atenção e podíamos acertar o relógio. Mesmo porque, a Light dizia: É melhor prevenir do que remediar.
Meu contato com o rio Pinheiros foi por volta de 1970 e, infelizmente, já estava começando a ficar degradado, mas no Tietê eu peguei o final do cocho, na região do Corinthians, quando dava para nadar. Antonio Souto
lambaris no rio Pinheiros, sob a Ponte do Socorro. Tio Olindo tinha um barco atracado junto à barragem da Represa de Guarapiranga e uma vez fomos dali até a Praia do Sol, onde só se chegava pela água ou por trilha no mato. Atualmente ali está o Posto de Bombeiros da Avenida Robert Kennedy.
Eu nasci na Avenida de Pinedo e, aos domingos, eu e minha irmã íamos com nossos pais até a represa ear; ao longo do trajeto havia vendedores de pipoca e de balas deliciosas. Também nadei e pesquei muito nessa represa, na qual me lembro ter encontrado uma pequena tartaruga aquática que acabou vivendo conosco por mais de vinte anos. Alberto dos Santos
Nas corredeiras do Tietê Carlos Ogasawara
Pescarias no rio Pinheiros e na represa Jayro Eduardo Xavier Ocasionalmente, ia com papai pescar na Represa de Guarapiranga. Levantávamos de madrugada, pegávamos o farnel preparado por mamãe e subíamos até o Instituto Biológico pra pegar o bonde Santo Amaro. Era o “amarelão”, um bonde que parecia um vagão de estrada de ferro e que tinha reboque. Eu gostava de viajar no reboque, que tinha as janelas mais baixas. O bonde iniciava a viagem na Praça da Sé. Pontualmente às 4h43, na Parada Instituto Biológico, apitava com um som de locomotiva, abandonava a Rua Conselheiro Rodrigues Alves urbana e entrava numa parte da Rodrigues Alves exclusiva para a linha de bondes, numa reta de quase quinze quilômetros até Santo Amaro, na Parada Floriano Peixoto. Na lateral do Clube do Banespa, o motorneiro descia e, com uma chave especial, acionava um semáforo de aviso de linha ocupada. Explicando melhor, até ali a linha era dupla. Dali até a entrada de Santo Amaro, linha singela. No 7º Desvio, onde é a bifurcação das avenidas Adolfo Pinheiro e Vereador José Diniz, o motorneiro descia novamente para acionar o semáforo, liberando a linha. Depois ávamos por uma antiga estação de trens, pelo centro de Santo Amaro e Largo São Sebastião. A viagem terminava junto ao rio Pinheiros, perto da Ponte do Socorro, onde havia um abrigo de madeira betumada. Cruzávamos a ponte de madeira e tomávamos a Avenida de Pinedo até o paredão da represa, o qual era uma atração turística, com estaleiros e restaurantes nos arredores. O golpe de 64 tornou aquela área de Segurança Nacional e, desde então, continua fechada ao público. Sou um dos poucos paulistanos ainda vivos que pescou acarás e 86
Na minha pré-adolescência, lá pelos idos da década de 1950, eu e um amigo que era sócio do Clube Floresta, atual Espéria, costumávamos freqüentar o clube durante as férias escolares. Entre outras atividades, saíamos de bote, remando Rio Tietê acima. No local da atual ponte da Avenida Cruzeiro do Sul existia a ponte da Estrada de Ferro da Cantareira, cuja base consistia de diversas pilastras e naquele trecho o rio formava uma corredeira por onde tentávamos subir remando contra a correnteza. Era emocionante porque, na época, disputávamos com o pessoal do Clube de Regatas Tietê quem chegaria primeiro na parte de cima. Era uma disputa acirrada e muitos não conseguiam atravessar. Transposto esse obstáculo, seguíamos até o Parque São Jorge para observar os treinos de remo e natação dos atletas do Sport Club Corinthians Paulista e, invariavelmente, éramos enxotados de lá por causa de nossas gozações. Quando o clima ajudava, nadávamos naquele trecho, pois as águas ali, próximo ao cocho, eram mais calmas e tínhamos onde amarrar os botes. No retorno, chamavam a nossa atenção, pois não era permitido subir o rio além daquelas corredeiras. Bons tempos aqueles.
Lembro de uma vez que remando num dos botes do Clube de Regatas Tietê fui carregado pela forte correnteza que havia sido formada depois da chuva, rio abaixo. Apavorado, na época com 15 anos, encostei o bote na margem e voltei ao clube agarrando nos capins da beira do rio. Quanto à correnteza na altura da ponte Estrada de Ferro da Cantareira, tenho a frustração de nunca ter conseguido ultraá-la. José Carlos
primeiros tempos
Eu e meus amigos nadadores do Corinthians também fizemos muitas travessias, a chegada era em frente ao Espéria e ao Tietê. Theophilo Pereira de Moura
Nadando pelado no Riacho do Ipiranga Julio Celeste Teshainer Na minha infância de 1947 a 1955, morei na Rua Vasconcelos Drumond, situada nas cercanias do Riacho do Ipiranga. Próximo ao Monumento da Independência havia uma ponte sobre o riacho e numa outra, um pouco mais à frente, uma comporta que era fechada, de quando em quando, represando as águas. Assim, quando aberta, a força das águas promovia a limpeza do rio Tamanduateí, levando os detritos embora. Quando a comporta era fechada as águas do riacho subiam e formavam uma lagoa, na qual os moleques da redondeza iam nadar pelados, próximos à primeira das pontes. Era uma farra! Na época minha família tinha um cachorro pastor alemão que metia medo nos moleques. Sabendo disso, eu e mais alguns amigos, cientes de que os moleques que estavam nadando no riacho deixavam suas roupas em suas margens, levamos nosso cachorro para o local e o atiçamos em cima deles que nadavam nus obrigando-os a sair da água. Nada mais constrangedor! Saíram da água e não conseguiram chegar próximo às roupas, pois o cão investia sobre eles. Imploravam para tirá-lo dali e nós e as pessoas que avam ficávamos rindo da desgraça alheia. Coisas de criança! Por fim, depois de muita risada de nossa parte e pedidos desesperados dos “nadadores” prendemos o cachorro e o levamos embora. Nossa arte foi motivo de conversa em nossa turma, durante muito tempo, mesmo depois que todos se tornaram adultos. São lembranças de uma cidade que não existe mais.
Chefe dos coroinhas Miguel Chammas Po volta de 1952, com 11 ou 12 anos, estudo no Colégio Santa Mônica que fazia parte do complexo educacional compreendido pelo Colégio Santo Agostinho e Colégio Santa Mônica, situado no quarteirão formado pela Rua Augusta, Caio Prado e Marquês de Paranaguá. Estou começando minhas primeiras malandragens, esgueirando meus olhares para as meninas da escola e da rua. Surge uma oportunidade para me tornar coroinha da Igreja Nossa Senhora da Consolação, eu topo e então sou treinado para ajudar a Santa Missa. Devido a minha desenvoltura e desinibição, consigo, em rápi-
do intervalo, ser nomeado como chefe dos coroinhas. Assim, o a ajudar a missa das 11 horas, onde a freqüência das meninas era muito grande e as doações das coletas bastante polpudas. Confesso que dividi muitos desses donativos com a Santa Igreja e o finado Monsenhor Bastos. Eu e o sobrinho dele, o João, o Juca Batista. Outra pilantragem que fiz naquela época foi, também, bastante engenhosa. Como chefe dos coroinhas, eu tinha a chave do quartinho do almoxarifado, pois quando o senhor Francisco, o sacristão, não tinha tempo, eu era encarregado de reabastecer os cálices com hóstias que vinham diretamente da fábrica da Cúria Metropolitana. Elas vinham em latas grandes como as latas de biscoitos. Então, quando minha mãe não tinha dinheiro suficiente para que eu comprasse o ingresso do Cine Odeon e uns doces na bomboniére, eu ava na igreja, me abastecia de um punhado de hóstias e, muito comercialmente, as vendia aos moleques dentro do cinema. Com a receita dessa venda, comprava meus doces preferidos e, em muitas ocasiões, sobravam ainda uns trocados para o sorvete na hora da saída.
O grande piloto Nelson de Souza Lima Na minha época de criança, que não faz tanto tempo assim, as brincadeiras eram outras. Era a fase da inocência de jogar bolinha de gude, rodar pião, empinar pipa e, claro, bater bola na rua com a molecada. Brincávamos despreocupados. Os únicos objetivos eram a diversão e a alegria de ser criança. Ah, que saudade da minha infância. De tempos em tempos, um brinquedo tinha a sua vez. Havia a fase da pipa, a dos piões, entre outros. O que eu mais gostava eram os carrinhos de rolimã. Feitos com pedaços de tábuas, fixas sobre quatro rolamentos, os carrinhos tomavam conta das ruas e eram inevitáveis os acidentes. Quando menino morava lá na Vila Matilde, conhecida por dar nome a uma das mais famosas escolas de samba da capital. A minha rua era uma ladeira bastante íngreme e quem a descesse num carrinho de rolimã era considerado um grande piloto. Algo como descer as Cataratas do Niágara num barril. Um dia, junto com um primo, construí um supercarrinho cujo objetivo era desafiar a assustadora ladeira. O bólido, que mais parecia um avião, impunha respeito aos outros moleques. Pintamos, colocamos número de carro de corrida, adereços e afins. Os freios consistiam em duas alavancas pregadas na parte de trás que, uma vez puxadas, encostavam nas rodas traseiras e paravam o carro. E chegou o dia tão esperado. Descer a ladeira e sair vivos da aventura. A visão do alto da rua era mesmo de meter medo. Uma curva para a direita e outra para a esquerda culminando em 500 metros de ladeira abaixo. 87
Uma espécie de “S” do Senna, nesse caso, de Sundance. Mas não tinha como desistir. Se desistíssemos, seríamos considerados os covardes do bairro. Eu seria o piloto e meu primo iria atrás para comandar os freios. Era um domingo à tarde, dia de pouco movimento, mas de qualquer forma, o risco de colidir com um automóvel existia. Posicionei-me na frente do carro e meu primo sentou atrás rezando e fazendo o sinal da cruz. Munidos apenas com nossa coragem, pois não tínhamos nenhum equipamento de segurança, iniciamos a descida. O carrinho foi ganhando velocidade, amos a primeira curva à direita, com maestria e com a galera gritando empolgada. Vencemos a curva à esquerda. Beleza. Agora era descida até o final. Mas para nossa infelicidade e parafraseando o poeta: havia uma pedra no meio do caminho. Não tive tempo de desviar. O carro deu um solavanco e capotou. Meu primo rolou por cima de mim e fomos juntos parar na calçada com rolamentos para todos os lados. Resultado da tragédia: tive várias escoriações nos cotovelos, joelhos e um corte na cabeça. Meu primo ficou pior, além de um rasgo na perna, quebrou o braço direito em dois lugares. Não é preciso dizer que nossos pais nos censuraram e ficamos de castigo por vários dias.
os de minha infância Dalton Valim Alcoba Ruiz Sempre achei que deveria ter alguma vantagem em envelhecer. Pois bem, hoje descobri pelo menos uma: olhar para este roteiro e lembrar momentos remotos de minha distante infância. Não, não morei em nenhum destes lugares que vamos ar. Na realidade, para chegar até aqui precisava acordar às 4 horas da manhã em um distante subúrbio. A obrigação rotineira e monótona de meu pai era meu intenso e breve prazer. Dia festivo, o meu turismo! Tomávamos o “trem japonês” e chacoalhávamos por uma hora até a Estação Júlio Prestes. A saída da estação parecia uma largada da São Silvestre. Multidão de gigantes sem rosto, apressados para algum lugar. Aos poucos avançávamos por ruas, àquela hora, pouco habitadas. Apenas simpáticas moças. Sorriam para meu pai e falavam algo que eu não entendia. — Pai, a moça chamou! O senhor conhece ela? — Vamos mais rápido, estou atrasado! – a resposta de sempre e para qualquer situação. Lá íamos nós, agora mais rápido, virando aqui e ali e eu me perguntando como podia meu pai saber o caminho direitinho, por tantas ruas, esquinas, prédios, carros. Pouco a pouco, a visão tornava-se mais agradável: Largo do Paissandu, com seus grandes cinemas onde, por certo, em algum domingo incerto e não sabido, eu iria com minha família assistir ao último lançamento do Mazzaropi. Mas não aquele dia, dia “útil”, dia de trabalho. Lazer, só para mim. 88
— Vamos mais rápido, estou atrasado. Enquanto meus inhos voavam pela calçada, meus pensamentos fervilhavam com tanta coisa para contar amanhã, na escola. Por exemplo: a magnífica visão daquilo que para mim era um castelo gigantesco. O que será isso? O que tem lá dentro? Não dava tempo de perguntar. Outro prédio mais à frente eu sabia: a sede da Light, companhia de eletricidade. E do lado do Mappin – Ah! Sim, o Mappin da televisão! O o diminuíra um pouco agora. Parece que meu pai também apreciava aquela visão, a essência de São Paulo, o viaduto que um dia descobri chamar-se “do Chá”. Também, pudera! Tudo estava ali! Os maiores prédios, a maior concentração de carros abaixo do viaduto, bondes, a praça limpa e muito verde com centenas de gatos preguiçosos, o “Castelo” imponente, o Mappin um pouco atrás e gente, mais gigantes sem rosto. E assim, já num o mais preguiçoso, chegávamos ao que considerava a “reta final”. Ruas estreitas, aconchegantes. É verdade que os prédios pareciam mais antigos, igual a imagens do livro de História da minha irmã. Mas era ali meu pequeno “mundo maravilhoso”, tinha também a praia, mas essa é outra estória. Parávamos na porta de um bar. Ao lado, quase na calçada, nosso lanche matinal: uma esfirra dupla que nem precisava ser pedida para o moço de bigode; ele conhecia cada freguês e sabia se era com molho, limão, dupla ou simples. Entre uma dentada e outra, fazia a recorrente pergunta: — Foi por aqui, pai? E ouvia mais uma vez, deliciado, sua desventura na primeira tarefa do primeiro emprego ali, quem sabe na José Bonifácio, São Bento ou Quintino Bocaiúva. Recém-chegado do interior, lhe foi atribuída a incumbência de trocar o papel higiênico do banheiro da empresa. Ficou quase uma hora desenrolando o papel que tinha nas mãos, para enrolá-lo novamente no rolo de madeira, preso à parede – “a vida na cidade é muito complicada”. Com esse reforço, reiniciávamos nossa caminhada, e alcançávamos a primeira daquelas duas grandes praças. Duas praças tão grandes e tão juntinhas? Pensava, adivinhando o destino da Clóvis Bevilácqua, incorporada à Sé muitos anos mais tarde. Ali, na Sé, meu pai me permitia uma parada para ir à “estrela”, o Marco Zero do Estado de São Paulo. Então, num ritualismo formal, ficava sobre a “estrela” imaginando-me no centro do Universo, o meu universo! — Estou atrasado, vamos! Do centro do Universo descia para a realidade paulistana... dali para o laboratório, na descida da Tabatingüera, eram mais cinco minutos. Depois do almoço, na Lisbonense, o dia ava mais rápido, que pena. A volta era por outro caminho. Mais novidades para contar amanhã, na escola! Imponentes prédios faziam-me lembrar novamente o livro de História de minha irmã: aquele prédio que parece com o Senado Romano. O Páteo do Colégio, onde foi fundada nossa capital – parecia ouvir o professor falando para mim. Dali via a cidade até onde minha vista alcançasse no
primeiros tempos
horizonte. Uma sensação de fragilidade me acometia ao ar próximo aos gigantescos prédios. Ao mesmo tempo, a segurança da mão paterna que me conduzia para dentro daquele templo católico, onde ficávamos por algum tempo calados, ouvindo o nada. Dali saíamos mais leves, prontos para o chacoalhar do “trem japonês” de volta ao lar. Mais um viaduto. Ao longe, via o outro, do Chá... distante. Abaixo, os reluzentes carros, mais prédios, pessoas, os gigantes sem rosto. — Vamos mais rápido, estou atrasado!
Escolas de minha infância Neuza Guerreiro de Carvalho Quando fiz 7 anos, entrei para o Grupo Escolar Romão Puiggari, na Avenida Rangel Pestana, onde fiz o primeiro e parte do segundo ano primário. Durante a minha permanência nessa escola, entre 1937 e parte de 1938, foi feita uma agem para a travessia de pedestres, em frente ao mesmo. A construção foi complicada, atrapalhava muito a circulação dos alunos e era um barro só. Atravessávamos a rua longe da escola e como as calçadas estavam tomadas pela terra, era preciso andar se apoiando nas grades do jardim. No ano de 1997 voltei ao local desse Grupo Escolar. Ele continua lá, está sendo reformado porque o prédio é muito bonito. Com a construção do metrô, tudo mudou ao redor e a agem subterrânea não existe mais. Por essa ocasião meu pai lia muito para mim, uma das poucas, senão a única poesia que ele conhecia e que me marcou muito: Meus Oito Anos, de Casemiro de Abreu. Lembro-me, também, que uma das primeiras histórias que eu li foi uma folclórica holandesa, de um menininho que salvou a cidade colocando seu dedo no buraquinho de um dique que vazava, até que outras pessoas viessem consertá-lo. Acho que todas as pessoas do meu tempo leram essa história. Quando mudei para o Ipiranga, cursei o terceiro e quarto anos primários no Primeiro Grupo Escolar do Sacoman, hoje Visconde de Itaúna. Funcionava em um sobradão adaptado, com uma construção anexa no quintal onde havia uma das salas de aula. A professora falava tão alto que eu, de minha casa que ficava em outra rua, mas com os fundos próximos, a ouvia em suas ladainhas alfabetizadoras. Por meio desse Grupo Escolar, mesmo depois de ter saído de lá, participei do primeiro alistamento eleitoral e da primeira eleição em 1945, depois de quinze anos do governo de Getúlio Vargas, de regime ditatorial. Aos 10 anos, tirei o diploma do curso primário. No terceiro e quarto anos do curso primário, 1939 a 1940, minha professora foi a mesma: Maria José Gallet. Lembro que depois de assistir a um filme de Dorothy Lamour, acho que Princesa da Selva, fiz um minúsculo
livrinho, que entreguei à professora como um grande feito. Ela me incentivou muito e acho que ficou latente em mim, durante muito tempo, esse desejo de escrever, que agora aflora, cinqüenta anos depois.
Largo Ana Rosa da década de 1960 Luiz Haroldo do Espírito Santo Sou nascido e criado na querida Aclimação e moro em Campinas há treze anos. Quando era menino ia com a minha avó, uma vez por mês, ao Largo Ana Rosa, às reuniões das associadas das oficinas de caridade de Santa Rita de Cássia, no Convento de Jesus Crucificado, já demolido, onde ela costurava roupinhas e enxovais para mães carentes. O gostoso do programa era o lanche no final da tal reunião: diversas iguarias que as associadas ou as freiras preparavam. Já na adolescência, ia com outros garotos do bairro nas matinês de domingo do Cine Cruzeiro, com suas sessões duplas. No largo tinha três sorveterias. A minha favorita era a Casa Emílio, de uma família italiana onde todos eram muito gordos e faziam delícias. Minha avó sempre comprava pastieiras ou então doces napolitanos como crispellie canurilho; o meu sorvete preferido chamava-se petsi duri, e era um mix de frutas secas, nozes, avelãs e amêndoas, cujo sabor é inesquecível. Lembro que na época de Natal as árvores do largo eram enfeitadas com luzes coloridas e isso reforçava ainda mais um certo lado interiorano desse largo tão presente em minha memória. Quando começaram a construir o metrô e a estação, as árvores foram arrancadas, as sorveterias fechadas, o Cine Cruzeiro virou supermercado, tudo mudou e a lembrança ficou, agora resgatada neste breve relato. Quem conheceu o Largo Ana Rosa na década de 1960, com certeza, lembrará do que estou contando.
Na época que eu vivi na Rua Vergueiro, no Paraíso, eu gostava de visitar a estação dos bondes, na Joaquim Távora. Lembro-me também da sorveteria – não sei precisar se era a Casa Emílio –, do Cine Cruzeiro, na Domingos de Morais. Quase ao lado, se não me falha a memória, tinha uma Casas Pernambucanas, onde a minha mãe costumava comprar aviamentos para ser usado na tinturaria. Quando tinha oportunidade, o meu pai ia até a Confeitaria ABC, na esquina da Domingos de Morais com a José Antonio Coelho e trazia doces e pães. Na proximidade do Natal, eles faziam os incomparáveis Panetone 900. Carlos Ogasawara
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O Cine Cruzeiro... que beleza. Enorme. Sessão dupla. Muitas vezes eu entrava às 2 da tarde e só saía lá pelas 8 da noite, que era para aproveitar bem o dinheirinho suado da entrada... drops Dulcora, embrulhadinhos um a um... você quer um?.. Cinema sem drops não era cinema...e depois tinha também o Cine Capri, um pouco adiante, na Avenida Domingos de Morais. Não havia metrô. No lugar da Estação Paraíso, havia um grande terreno baldio que servia como um campinho de futebol, e mais abaixo, onde hoje está o Centro Cultural Vergueiro, a Chácara da Suzi, dona de bordel no mesmo lugar e nome, onde perdemos a virgindade... tempo bom... Geraldo Moreno
São Paulo minha cidade Ignez Fontana da Mota Silveira Minha querida cidade, apesar de viver há tanto tempo longe de você, todas as vezes que venho aqui, meu coração bate forte. São Paulo, como me sinto feliz por poder falar o que sinto por você. Não sou quatrocentona. Sou neta de imigrantes. Meu pai, filho de italianos, minha mãe filha de árabe casado com neta de alemão. Que mistura! Isto é São Paulo. Nasci numa maternidade do Belenzinho em 1940 e, até os 5 anos de idade, fui criada na Rua Tuiuti, no Tatuapé. Ah! Como foram bons esses anos que lá vivi. Lembro-me de nossa casa, com um grande quintal. Lembro-me do pessegueiro carregado de flores e frutos, do pé de pêra e do de mexerica. Quantos caldeirões de doce eram feitos com seus frutos. Lembro-me das noites na calçada, das brincadeiras de roda: O cravo brigou com a rosa, debaixo de uma sacada, o cravo saiu ferido, a rosa despedaçada. Lembro-me da casa do “Nono” e da “Nona” na mesma rua em que morei. Ah! Como era doce a minha “Nona”! Lembro-me do dia em que houve um casamento em uma chácara que era do Matarazzo. Nós, crianças pequeninas e que não iríamos participar daquela festa, ficamos contando a enorme quantidade de carros que desciam a rua a caminho da chácara. Lembro-me das mulheres com belos chapéus, acompanhadas por senhores vestidos de modo muito elegante. Meu “Nono” era o ferreiro responsável pelas ferraduras dos cavalos do dono da chácara, o Matarazzo, como o chamavam. Depois meu pai se mudou para Recife, para gerenciar a filial da Mesbla naquela cidade. Meus avós, tios, primos, ficaram em São Paulo. Por isso e pelas saudades de tudo que deixamos, todas as nossas férias de fim de ano eram adas em São Paulo. Lembro-me do sobrado na Avenida Celso Garcia para onde íamos, casa de meus avós maternos, dos almoços no dia 25 de dezembro, quando todos nos reuníamos, das correrias com meus primos, do bonde camarão 90
ando em frente e nós, crianças, olhando da sacada. Na década de 1950, com a morte de minha avó materna, meu avô mudou-se para a Rua Bom Pastor, no Ipiranga. E as férias eram agora nesse endereço. Já adolescente lembro-me das matinês do Cine Metro na Praça da República, dos cines Lido e Ipiranga; eios na Barão de Itapetininga, das idas ao belíssimo Museu do Ipiranga, Museu de Ciências e do picolé de coco queimado do italiano da Rua Bom Pastor. Lembro-me do IV Centenário de São Paulo, muitas comemorações, a chuva de papel laminado caindo do céu no Parque Ibirapuera. Por muitos anos guardei um daqueles papéis que apanhei no meio da grande quantidade de pessoas que lá se encontrava para homenagear a cidade quatrocentona. Depois, em plenos anos dourados, lembro-me dos bailes de formatura que íamos, minhas primas, meu tio e eu, no salão de festas do Aeroporto Congonhas. Em cada temporada de férias eu tinha oportunidade de ir a uns quatro ou cinco bailes: formandos de Engenharia, Arquitetura, Odontologia. Esses momentos fizeram parte de minha vida e recordo de tudo como se tivesse acontecido ontem.
Reminiscências da cidade grande Maria Cecília Alcântara e Silva ei minha infância numa fazenda, eu era a mais velha de sete irmãos e minhas vindas para São Paulo se tornaram inesquecíveis porque, por serem raras, tinham um quê de espera, de ansiedade. Na década de 1950, numa fazenda do interior, para se falar ao telefone era uma “áfrica”: logo cedo já se pedia à telefonista para fazer a ligação que ficaria pronta só na hora do jantar. Meus pais, muito moços e sociáveis, ficavam meio isolados, então, quando vínhamos para São Paulo, geralmente para os partos de minha mãe, era uma romaria de visitas, parentes, primos, tios e tias que, por não termos o convívio, se tornaram muito mais importantes na minha memória afetiva. Eu tenho nítida na minha memória a esquina da Alameda Jaú com a Rua Padre João Manoel, era a senha “chegamos”! A casa de meus avós era preparada para nos receber. Teve um ano que minha querida tia Regina desenhou com giz de cera a Branca de Neve e os sete anões na parede do quarto das crianças. Isso cinquenta anos antes de virar moda. Me lembro nitidamente da casa enorme e cheia de roseiras do Horácio Sabino, onde mais tarde construíram o Conjunto Nacional. O mural de azulejos da Sabesp da Alameda Santos continua lá, no caminho para o Parque Trianon, aonde íamos todos os dias levados pelo Zé da Babá. Só que hoje parece tão mais perto... será que era por isso que minha avó dizia que iríamos visitar nossos primos, os bichos preguiça? Que raiva que me dava
primeiros tempos
ouvir isso de uma avó tão querida, a que me levava ear na Rua Augusta de tantas e tantas lembranças, que vão ficar para um outro dia, porque lembranças dessa cidade tão grande e fascinante tenho tantas e tantas que mal cabem dentro de mim.
E ali pertinho da sua Alameda Jaú, esquina da Alameda Itu com Haddock Lobo, eu jogava futebol na rua nos anos de 1960. Vi e andei em bondes que avam na Rua Augusta e na Haddock Lobo também. E na Alameda Jaú, entre a Augusta e Padre João Manoel, estava o Externato Elvira Brandão que tinha a dona Marina como Diretora e dona Cacilda e dona Hilda como minhas professoras. Lá estudei e vesti calça curta xadrez com suspensórios, camisa branca e gravata vermelha. De lá, em 1964 – ainda na Alameda Jaú –, fui estudar no Colégio Dante Alighieri, de onde só saí para as Arcadas. Eram tempos em que o italiano e o latim conviviam com nosso dia-a-dia. E lá vivi também as brigas com a turma do Colégio Paes Leme, cabulei aulas para assistir Help e outros filmes inesquecíveis no Conjunto Nacional, e conheci meus primeiros grandes e eternos amores. Caio Luiz de Carvalho
Minha primeira escola Roberto Pavanelli Será que alguém lembra da escolinha improvisada do seu Moreira, no Socorro? Essa escola começou pela boa vontade dessa família, mais ou menos em 1955. Consistia em uma sala de aula instalada nos fundos do quintal do senhor Moreira e uma de suas professoras era a sua filha, Alice. Pois é, foi lá que conheci a Maria Amélia, minha primeira professorinha. Talvez Freud tenha uma explicação, mas a verdade é que, embora muito criança, me apaixonei por ela. Onde andará hoje a querida Maria Amélia que me fez entender que a letra B, mais a A, soava “BA”, e ainda, mais importante, que as letras A, M, O e R, juntas, significavam a palavra amor, um sentimento que ela parecia transpirar ao se dedicar a todos nós, pequenos alunos. O mais curioso dessa pequena escola é que funcionava junto ao curral das vacas leiteiras do Moreira. Isso era um problema, porque os alunos, afoitos, voltavam do recreio descalços ou com seus sapatos esverdeados e com um cheiro não muito agradável. Porém, éramos todos felizes e agradecidos àquelas pessoas dedicadas ao nosso saber. Essa pequena escolinha também funcionou por uns tempos na sede do Socorro, time de futebol que fez história na várzea da nossa região.
Cabe esclarecer que a escola a que me refiro não é o Grupo Escolar da Represa, que sempre existiu na Rua Marcílio Dias, cujo prédio ainda se encontra em pé, resistindo ao tempo. Por tudo isso, às vezes me pego a refletir sobre os primeiros os da minha vida escolar e, ao lembrar daquelas pessoas, levo a certeza de que para os alunos de hoje, também felizes à sua moda, seus atuais professores se tornarão inesquecíveis no futuro.
Parque Shangai Luiz Haroldo do Espírito Santo Sou nascido e criado na Aclimação, e há treze anos moro em Campinas. Tenho em minha memória fatos vividos e muitas lembranças de uma infância e adolescência deliciosa nesse bairro e nessa cidade tão querida. Morávamos em um beco sem saída, numa travessa da Avenida Aclimação e em todas as casas tinham crianças, a turma era grande e lembro-me que não faltavam brincadeiras, além dos vendedores de algodão doce, de pipoca, de sorvete e de quebra-queixo. Mas a recordação mais querida era as tardes no Parque Shangai. Aos domingos, quando tínhamos alguns trocados da mesada, íamos, num bando de meninos, a pé para o Parque Shangai que era localizado na várzea do Glicério, onde hoje tem aqueles viadutos todos. Descíamos a Rua Bueno de Andrade, pegávamos a Lavapés, Glicério e a felicidade suprema: o nosso querido Parque Shangai, com seus brinquedos incríveis e a sua temida montanha-russa de madeira que, pra nós, meninos, era o máximo, sendo preciso uma dose extra de coragem para enfrentá-la. As tardes corriam soltas em meio àquelas atrações e essa lembrança me deixa muito emocionado.
Sou um italiano que foi criado em São Paulo, precisamente no bairro do Ipiranga, na Rua Bom Pastor. Há muitos anos que voltei para a Itália, porém a lembrança de São Paulo da década de 1960 é sempre viva. A última vez que estive em São Paulo percebi que o Parque Shanghai desapareceu e fiquei muito triste. Apesar de ter viajado muito e feito muitas experiências, nada é tão fantástico quanto foi para mim o Parque Shanghai. Giuseppe Orsini No Parque Shangai tinha uma boneca enorme, de uns três metros de altura, bem gorda, com uma bolsinha pendurada no braço, que dava gargalhadas engraçadíssimas. Durante muito tempo, quando alguém ria, a minha mãe falava: — Parece a boneca do Parque Shangai. Mariana Capobianco 91
Lembro muito bem do Parque Shangai. Fui lá uma vez no mês de junho de 1954, o mês e ano não me saem da cabeça porque era um domingo em que o selecionado brasileiro foi desclassificado do campeonato mundial de 1954, perdendo da Hungria por 4 a 2. Fomos lá motivados pela festa junina que a Portuguesa de Desportos fazia todo ano, enquanto não tinha comprado o Canindé. Lá na festa da Portuguesa tinha a famosa “sardinhada”, que só portugueses sabem fazer, e os famosos bolinhos de bacalhau. Era um parque que não ficava nada a dever aos parques de hoje, em termos de atrações. E aquela boneca tamanho normal dentro de uma gaiola que ria sem parar? Eu e meu irmão a batizamos de dona Lesse, nome de nossa vizinha, que era tão feia quanto a boneca. Mário Lopomo
potinhos com leite, sucrilhos e mais um monte de coisas. E havia também os brinquedos, igualmente grátis. O mais concorrido era o dos carrinhos elétricos que davam trombada, novidade na época. Ficava-se até uma hora na fila. Muitos desistiam para não perder as outras atrações. Saíamos de lá já tarde da noite e subíamos a Sena Madureira de volta para casa, na maior escuridão, principalmente sob a ponte do bonde. Nos anos seguintes as atrações do Salão aram a ser cobradas e o meu foco voltou-se para o Salão do Automóvel, onde eu ia ver principalmente os ônibus, “busófilo” que era e que sou, até hoje. Mais tarde, as exposições aram a acontecer no recém-inaugurado Parque Anhembi.
Também lembro do Parque Shangai. Eu morava na Rua 25 de Março e o freqüentava de vez em quando, pois era pequeno e tinha que ser levado pela minha mãe. Só lembro de um brinquedo em especial: os carrinhos que andavam em uma pista, em fila indiana, e subiam e desciam. Era final da década de 1960. Acho que esse parque nem entrou na década de 1970. Até hoje só vi uma única foto dele, ilustrando o livro de poemas Paranóia, de Roberto Piva. Eduardo Britto
A primeira vez que fui à UD, foi para trabalhar em um stand como propagandista. O pavilhão não possuía ar condicionado – imaginem o calorão que fazia. A segunda vez, foi no Salão da Criança, como figurante de um tema americano: o Buffalo Bill. Vestido a caráter, igualmente ei o maior sufoco. Urbano Coaraci
O Salão da Criança Tony Silva A musiquinha era anunciada no rádio e na TV: O primeiro Salão da Criança, a bandinha de música voltou. O palhaço alegrando a criança, avisando que a festa começou. No Ibirapuera, tem competição, tem prá criançada muita diversão. Na metade da década de 1960, começaram aquelas exposições organizadas por Caio de Alcântara Machado, que ficaram famosas e aconteciam anualmente. Havia, além do Salão da Criança, o Salão do Automóvel, a Feira Nacional da Indústria Têxtil, Fenit, a Utilidades Domésticas, UD, a Feira de Mecânica Nacional, entre outras. Eram realizadas em um Pavilhão do Parque Ibirapuera, mas não no da Bienal, que tinha a sua própria finalidade. Eu tinha 15 anos e estava no Ginásio, morava na Vila Mariana, na Rua Madre Cabrini, e fui pela primeira vez ao Salão da Criança com os colegas de escola que moravam no mesmo bairro. Descemos a Sena Madureira a pé, amos por baixo da ponte por onde circulava o bonde de Santo Amaro e ficamos uma tarde inteira nos divertindo no Salão. O ingresso ao Pavilhão era pago, mas lá dentro tudo era grátis. Entrava-se na fila e ganhava “refris”, 92
Como lembro! Que saudade! A Sönksen fazia um castelo e enfrentavase uma fila enorme, mas compensava, porque eram distribuídos para a criançada saquinhos com deliciosos bombons e balas. Meu irmão, minha irmã e eu trocávamos as camisetas e entrávamos novamente na fila, com óculos de vovô e tudo, para não sermos reconhecidos e no final da tarde, tínhamos dezenas de fartos saquinhos. Cristina Lembro desse salão no Ibirapuera, e de ter deixado meu primeiro carro, um Fusca verde, mal estacionado perto dele, com duas rodas na calçada. Lá dentro, aquele reboliço e abafamento, como você conta, para ganhar bobagenzinhas nas filas de brinde. Luiz Saidenberg A música nunca saiu da minha memória. Éramos da Mooca e ao chegarmos ao Ibirapuera, comprávamos um balão de gás, amarrávamos um barbante bem comprido e fixávamos uma fita com a parte adesiva para cima para capturarmos, no teto, os balões que as crianças deixavam escapar das mãos. Ótima época. Flávio Coelho Eu ainda me lembro. Atravessava a ponte de ferro do Ibirapuera e chegava ao Pavilhão, que, se não me engano, tinha uns tirantes de aço
primeiros tempos
que iam do teto até o chão. Cada fabricante montava seu estande para mostrar seus produtos. Cada um com uma atração diferente. Parecia um grande parque de diversões. Era ótimo, a gente ganhava amostras e brindes da Cica, Toddy e refrescos Orsata, Milani, entre outros. Pena não ter fotos para lembrar. Wilson Nessa época eu estudava na Escola Estadual Manoel de Paiva e, muitas vezes, matava a aula para ir aos salões. Em um salão do ano de 1965 ganhei do Sesc um exemplar de uma poesia de Rudyard Kipling, chamada IF, e que se tornou para mim uma verdadeira oração. O bom daquelas feiras era que a entrada era livre, pois como estudante, estava sempre duro. Roque Vasto Bons tempos de criança, nós saíamos da Rua Batatais, 70, no Jardim Paulista e caminhávamos até o Salão da Criança, na Bienal, todos os dias depois da escola. Como diz a musiquinha acima, lá havia várias competições e eu, juntamente com os primos, voltava para casa com uma enorme sacola cheia de doces e presentes. E como era festa tudo aquilo, até mesmo a longa caminhada de volta pra casa. Nélio Nelson Gonçalves
Morei num dos primeiros edifícios da Paulista Jorge Behrens Quem a na Avenida Paulista observa na esquina com a Alameda Joaquim Eugênio de Lima o Edifício Savoy, com suas janelas de vidro dourado espelhado. Poucos talvez saibam – ou ainda se lembram – que aquele prédio já foi residencial, dividido em três blocos de apartamentos que abrigaram famílias por mais de 25 anos. Eu nasci na Pro Matre Paulista, prédio vizinho, em 6 de janeiro de 1972 e posso dizer que minha primeira casa foi o apartamento 33 do 9º andar do Edifício Lawisa que, na época, correspondia ao bloco central do prédio e que atualmente, é ocupado por um escritório de advocacia. Minha mãe contava que foi um dos primeiros edifícios da Avenida Paulista e das janelas do apartamento avistava-se até o Morumbi, sem obstáculos à frente. Na década de 1960, o famoso estilista Denner montou seu atelier no andar térreo, na esquina da avenida. Hoje, está ali o McDonald’s! No apartamento 33, moraram meus avós paternos Hilda Hahnemann e Isaac Lippel, de 1954 ou 1956 até o mês de novembro de 1979. Foram uns dos primeiros moradores do recém-entregue edifício,
propriedade de uma família abastada da cidade. Curioso o fato do bloco da esquina da Paulista ser de apartamentos duplex, o que deveria ser um luxo para a época. Ainda é possível, para quem a na avenida à noite, visualizar as escadas entre os andares, quando as luzes internas se acendem. Eu vivi a fase decadente do edifício como residencial. Lembro quando criança de seu ar sombrio, do cheiro de mofo dos elevadores revestidos de madeira; também dos vitrais de pássaros que ornamentavam a entrada do bloco central. Havia uma piscina rodeada de uma pérgula, nos fundos, que deu lugar a um piso de garagem após a reforma. Lembro-me, também, do seu Otacílio, zelador do prédio, o qual meus pais e avós consideravam amigo. Ele veio da Bahia no final da década de 1940 e trabalhou na construção do edifício. Terminada a obra, permaneceu como zelador. Em 1978, os proprietários venderam o prédio para o Grupo Savoy. Os inquilinos tiveram que se mudar para que os apartamentos se tornassem escritórios. Meus avós foram os últimos a fazer a mudança e lembrome com uma certa tristeza da saída. Mas o Otacílio continuou no prédio! Trabalha lá até hoje como zelador. Mais de cinqüenta anos vividos entre aquelas paredes. Outra lembrança que tenho dessa época era a de um casarão, também na esquina da Paulista com Eugênio de Lima, que eu via da janela da sala da minha avó. Esse casarão tinha uma pequena torre, uma espécie de mirante; era branca e rodeada de jardins. Em 1982, ele foi demolido, mas houve resistência de um grupo preservacionista que abraçou a construção na tentativa de evitar a demolição. Em vão: restam hoje apenas as grades e os portões... O terreno deu lugar a um estacionamento. Anos mais tarde, o mesmo ocorreu com a casa dos Matarazzo. E espero que o mesmo não ocorra com a Casa das Rosas, o casarão do McDonald’s, a casa 1919, a do Bank Boston e uma outra, de estilo moderno, entre a Rua Pamplona e a Alameda Casa Branca. Acho que já há prédios demais na Paulista. E pouca coisa para se lembrar... Que tal alguém ir até o Savoy e pedir para o seu Otacílio contar a sua história e parte da história da avenida mais emblemática de São Paulo?
O pântano que virou shopping Antonio Carlos Antes de construírem o Shopping Morumbi, havia ali um pântano e, do lado, um campinho onde eu e muitos garotos nos reuníamos para bater uma bolinha de final de semana. Isso foi antes de construírem a Marginal Pinheiros. Meu pai me levava lá antes da inauguração para aprender a dirigir, já que era linha reta. Nesse campinho, onde jogávamos bola, a Kibon costumava levar caminhões com produtos que eram recusados pelas em93
presas ou por problemas na embalagem ou por estarem quase vencidos. A verdade é que os funcionários da Kibon colocavam fogo nesses produtos e iam embora, e nós, logo em seguida, apagávamos o fogo e pegávamos tudo o que não estava queimado – enchíamos baldes de produtos como chicletes e outros doces e comíamos ou mascávamos dias e dias. Ali, também, caçávamos arinho com estilingue, embora eu nunca tenha conseguido pegar nenhum, o que valia era a diversão de estarmos juntos. Ah, também andávamos de carrinho de rolimã na Rua Verbo Divino, próximo do atual Carrefour da Marginal Pinheiros, no final da descida já existia a marginal e não eram raras as vezes em que a atravessávamos direto sem tempo de ver se vinha ou não algum carro – naquele tempo era só uma pista de duas mãos. Quanto tempo... E o Ibirapuera então... chegávamos às 4 horas da manhã para reservar lugar na quadra de futebol de salão. Na época, quem chegava primeiro era dono da quadra até ir embora, e só saíamos de lá quase noite, bons tempos...
Rotina dominical Neuza Guerreiro de Carvalho Era o começo da década de 1940, e eu, nos meus 11 ou 12 anos. Todos os domingos eu e meus pais tínhamos um programa certo. Morávamos no Ipiranga, bem lá em cima, perto do Sacomã e aos domingos nós três saíamos pela manhã, tomávamos o bonde Fábrica nº 20, atravessando o Ipiranga todo, o Cambuci, a Rua do Lavapés e da Glória, chegando à Praça da Sé. Era então uma praça pequena, cinzenta, com a Catedral em construção, o belo Palacete Santa Helena com seu relógio central e o abrigo de bondes bem no meio. Da Praça da Sé, seguíamos para a Rua Direita, então uma rua de lojas boas e chiques. Chegávamos à Praça do Patriarca, e nos encaminhávamos para o Viaduto do Chá. Para mim, menina, um lugar imenso, altíssimo, assustador. Na Rua Xavier de Toledo tomávamos o bonde, ou íamos a pé. Bonde, podia ser o Vila Buarque ou qualquer um que subisse a Rua da Consolação. O bonde Vila Buarque fazia tremer tudo à sua agem e uma vez descarrilhou e invadiu o quarto de minha avó. Felizmente não havia ninguém dormindo. Descíamos em frente à Igreja e íamos pela Rua Rego Freitas até a casa de minha avó e tias comer a tradicional macarronada dos tios italianos e o frango assado ou com ervilhas, dos quais nunca me esqueci. Frango com ervilha é sinônimo da casa da avó e tias. À tarde, muitas vezes, como a mais velha dos cinco primos, eu os levava ao Cine Odeon, na Rua da Consolação, um pouco abaixo da Igreja, na calçada oposta. Tinham duas salas com filmes diferentes: a Vermelha e a Azul. Lembro de uma vez que tive que mudar 94
de lugar com a tropa toda porque o menor fez xixi na cadeira e alagou o chão. Eu e meus pais saíamos de lá à noite e a volta era um pouco diferente. Ao chegarmos à Praça do Patriarca, desviávamos da Rua Direita porque nos domingos à noite ela era dos negros, que lotavam, literalmente, a rua. O preconceito era mútuo – nem os brancos queriam atravessar o mar negro, nem os negros gostavam da intromissão dos brancos na “sua” rua. E desviávamos pelas ruas São Bento e José Bonifácio, para chegar pela Benjamim Constant ou Senador Feijó até a Praça da Sé, aos abrigos cinzentos e feios, onde os bondes faziam ponto. O Fábrica-20 nos levava de novo para o Ipiranga, era o fim do domingo em família.
Céu azul e belos balões no ar Mário Lopomo Eu morava na Rua do Porto, bairro do Itaim Bibi, ao lado da casa da dona Elza, que um dia me deu uma tremenda bofetada na cara – eu devia ter uns 10 anos de idade. Motivo: seu filho, ovelha negra da turma, queria entrar na brincadeira de pique, já em andamento. Disse-lhe que não. Ele, munido de uma barra de ferro, deu na minha cabeça, perto da têmpora, ficando um galo bem grande. A brincadeira continuou, eu no pique contando até dez para depois procurar os escondidos. Quando terminei a contagem e olhava para os lados tentando saber onde estavam os “fugitivos”, veio dona Elza em minha direção e, sem dizer uma só palavra, deu-me uma tremenda bofetada na cara. Em frente, dona Laura e dona Elvira duas fofoqueiras da rua se espantaram: — Que é isso dona Elza? Ficou louca? Batendo num menino indefeso? Minha mãe ficou sabendo e ela, uma covarde, se trancou em casa e não deu as caras. Sorte dela que meu pai não ficou sabendo. Na casa do outro lado, à esquerda, morava dona Antonia e seu Phascoal, pais de Neno, Vado, Orlando e Tota. Os três jogavam bola na rua e eu, como era pequeno perto deles, era colocado no gol, feito de dois tijolos a uma distância de uns cinco metros um do outro. No jogo estava também o Dudu, filho de dona Izolina e irmão de Dondoca. Como me dei bem no gol, fiquei com lugar cativo. Quando eu não estava na rua, eles iam à minha casa, batiam palmas e diziam para minha mãe: — Dona Orlinda, chame nosso goleiro, por favor. Em frente, morava seu Fiori, o sapateiro, orgulho da Rua do Porto e de todo Itaim. Nunca vi na minha vida um sapateiro tão caprichoso e bom como aquele. Sua meia-sola durava quase que eternamente. Seu filho Tito, que era estudante, o ajudava nas horas de folga. Naquele tempo, durante as festas juninas, o nosso pensamento era só catar balão. E era cada balão lindo que se via no céu. Durante o dia, em que
primeiros tempos
geralmente o céu estava azul, os balões mais belos eram colocados no ar. Tinha balão de todo tipo. Balões Estrela e Cruz eram a predileção de quem gostava de fazer e soltar. Vi, numa ocasião, um balão Rádio, mas o que mais me impressionou foi um balão Elefante. Uma verdadeira obra-prima, até a tromba saiu direito, com ela levantada. Meu irmão José se transformou num balonista. Fazia balão desde pequeno. Tocha que nem ele, ninguém fazia, o balão subia na certa. Eram tochas padronizadas, pesadas, mas ele só usava velas de parafina molhadas com querosene. Tinha preferência em fazer balão Charuto de 96 folhas. De vez em quando, ele deitava o balão que se transformava em barrica, de quatro bocas. Era uma festa. Em 1958, num sábado à tarde, todo mundo olhava para cima. Tinha um aviãozinho tipo teco-teco querendo furar um balão. Eram várias tentativas em vão. Por incrível que pareça, o piloto não conseguia varar aquela peça de papel de seda. Ouvia-se alguns gritos, quando o avião se aproximava dele, e quando ele por fim conseguiu varar o balão, ouviu-se um forte alarido que mais parecia um gol do Corinthians. Aí se teve a dimensão que toda a cidade estava assistindo aquele espetáculo. Depois ficamos sabendo que se tratava de Olavo Fontoura, um hábil aviador. Quando terminavam as festas juninas, chegavam as férias escolares. Aí o negócio era soltar quadrados, hoje pipa. Nesse metier, eu, o cara especializado, pegava bambu verde na chácara da dona Ângela e afinava as varetas que mais pareciam macarrão talharim, bem fino. Eram quadrados leves. Fazia todo tipo de quadrados: Barrilete, Peixinho, Maranhão. Usava sempre linha 24. Naquele tempo não existia ceról. O rabo era de pano, hoje rabiola, de saco plástico de lixo. Para derrubar outros quadrados a gente colocava na ponta do rabo uma rolha de garrafão de vinho com uma lâmina fincada nela, para atingir a linha de outro. Enquanto os quadrados não enroscavam nos pés de eucaliptos da Rua João Cachoeira com a Rua do Porto, onde ficava o curral de vacas do seu Jacinto e a casa da dona Virgínia, tudo era festa.
A vitória da turma da Rua Bandeirantes Antonio Carlos Bernardo Vivíamos no começo da década de 1950, quando o Brasil havia perdido a final do Campeonato Mundial de Futebol para o Uruguai, lá no Estádio Mário Filho. Todavia, apesar da tristeza pela perda do título, a nossa turma da rua continuava a aproveitar o tempo livre sem deixar de lado os estudos. Afinal, estávamos freqüentando o ginásio e não podíamos perder tempo. Uma de nossas brincadeiras mais emocionantes era descer a Ave-
nida Tiradentes até o Clube de Regatas Tietê do qual éramos sócios. Após a entrada triunfal no clube, pegávamos nossos cabides ou sacos para efetuar a troca de roupa. Afinal, éramos descendentes de assalariados que não podiam pagar aluguel de armários personalizados aos seus filhos muito queridos. Trocada a roupa, dirigíamo-nos para perto da garagem de barcos que, praticamente, beirava o rio, que emprestava seu nome ao clube. E aí sim, caíamos na água – acreditem, limpa – e nadávamos alegremente até a outra margem, onde ficava o antigo Clube Floresta, atual Espéria. Adentrávamos sorrateiramente e nos dirigíamos à porta de entrada da piscina Olímpica, com 50 metros de comprimento, igualzinha a do nosso clube. Agora, a turma iniciava uma conversa longa e animada com o encarregado de verificar as fichas médicas dos sócios para entrar na piscina. Seu Chico, um homem bonachão, rosto corado, um bigode muito branco, olhos vivos e risonhos ouvia as lamentações. Essa era a tática de um grupo de moleques que, sem ter a ficha médica ou dinheiro para pagar o exame exigido, lhe pedia para entrar na piscina. Depois de muita conversa, o alegre senhor – nunca ouvi dele um impropério – permitia a nossa entrada. Era a vitória. Afinal não havíamos conquistado a Copa, mas “furar” a piscina do Floresta, atravessar o Rio Tietê a nado e voltar incólumes, era a maior vitória da turma da Rua Bandeirantes.
Ciganos no Alto de Pinheiros Roberto Penteado Masagão Em 1958, residíamos próximo a uma das melhores escolas públicas da época, o Fernão Dias Paes, e eu, com 12 anos, mais alguns amigos do bairro de Pinheiros praticávamos o “roubo” conjunto de varais de roupa de cordinhas usados por nossas mães e, depois, íamos ao Alto de Pinheiros fazer troca com ciganos que lá viviam acampados – ainda era uma área de loteamento recente, com poucas casas enormes sendo construídas. Em troca dos varais, recebíamos o direito de andar por três horas em seus cavalos, cobertos apenas por uma espécie de colchonete e cabresto de corda. Cavalgávamos felizes, geralmente em grupos de três a quatro meninos, alguns mais velhos, com 15 ou 16 anos, e partíamos para encarnar o Rei Arthur e seus escudeiros pelas bandas da Estrada da Boiada, atual Avenida Diógenes Ribeiro de Lima e, muitas vezes, pela estreita pista de terra da marginal do rio Pinheiros. Era muito bom e – felizmente – nós sabíamos!
Em 1958, eu estava na segunda série do Fernão Dias e participei desta aventura. Que bom saber que Roberto Penteado, de quem não tenho 95
notícias desde aquela época, está por aí, lembrando nossa infância. Uma vez roubei bebida do barzinho de meu pai para dar aos ciganos. Que saudades. Maravilha! Paulo Theodoro Fortes
Flanelinhas do Trote Roberto Carvalho da Motta Nasci em uma rua defronte ao Trote da Vila Guilherme e residi naquele local até o meu casamento, que se deu em maio de 1967. Lá pelos meus 9 a 13 anos, quando havia corridas de cavalos, eu mais outros colegas de infância íamos ao portão da Sociedade Paulista de Trote, atualmente localizada na Avenida Nadir Dias de Figueiredo, e assim que começavam a chegar os caminhões dos feirantes que lá iam para fazer as suas apostas, nós fazíamos a eterna pergunta dos flanelinhas: — Podemos tomar conta do seu veículo? A maioria deles era de nacionalidade portuguesa. Uns permitiam, outros nos diziam uma série de impropérios e não autorizavam. Aí, nós, garotos, não deixávamos por menos: a lateral da Sociedade Paulista de Trote era toda cercada de bambus vivos e havia uma cerca de bambus cortados tipo lança, que eram entrelaçados com arame, deixando a cerca bem fechada para que as pessoas que quisessem assistir às corridas realmente pagassem entrada. Não era possível visualizar a pista de corridas pelo lado de fora. Mas não nos fazíamos de rogados: munidos de um alicate, cortávamos os arames da cerca, abríamos o local, escondíamos a carga de alguns caminhões dentro das dependências do Trote, fechávamos a cerca e aguardávamos a saída do proprietário do caminhão. Quando este vinha nos procurar, dizia: — Ei moleques, “boces biram” quem foi que roubou toda a minha carga? E, logicamente, a resposta era pronta: — Não vimos, porque o senhor não nos autorizou a tomar conta de seu caminhão. Falávamos isso e íamos longe do local. O motorista nos seguia, olhava e dizia: — Dou-te dez contos se me disserem onde acho a minha carga. Ficávamos bem quietos, por vezes ainda retrucávamos: — É muito pouco. E eles ofereciam mais, até que achávamos suficiente e fechávamos o negócio. Mas o dinheiro teria que ser adiantado, nova discussão e eles acabavam concordando. Entregue a importância, chamávamos todos os garotos que ali estavam, abríamos a cerca e então carregávamos o caminhão com a mercadoria, deixando o português bem feliz! E já na corrida seguinte, eram eles quem nos procuravam para que guardássemos o seu 96
caminhão, ocasião em que também oferecíamos o programa do Trote com as corridas anotadas, todas as “barbadas” (possíveis páreos vencedores), que conseguíamos com os tratadores de cavalos. Havia um índice de acerto médio de 40 a 50% e no fim das corridas a maioria voltava feliz e nos dava uma gorjeta mais polpuda. Quando se tratava de um novo e este se esquecia de nos agradar, ficávamos bem quietos, mas na corrida seguinte, mal ele chegava, a primeira coisa que perguntava era se tínhamos o programa: dizíamos que não, porque na corrida anterior ele não havia dado nada. Ele insistia e acabava dando uns trocos, aí fornecíamos o novo programa, desta vez, no fim das corridas e ele nos dava uma importância melhor, deixando-nos bem satisfeitos.
Todo o dia dez era uma festa Esther Bacick Quando completei 12 anos, minha mãe me autorizou a pagar a conta de luz todo o dia dez de cada mês, como era o costume. Era o meu dia de festa, eu me produzia toda, pegava o ônibus elétrico Margarida Maria, número 505 e descia na Biblioteca Municipal, na Avenida São Luís, seguia pela Rua Xavier de Toledo e entrava triunfante no prédio da Light, onde no saguão havia os guichês com grades douradas, que brilhavam e dificilmente tinham fila, era muito tranqüilo. Eu cumprimentava o caixa e sempre batia um papinho. Depois, atravessava o Viaduto do Chá, pegava na ladeira o ônibus que me levava até a Clipper, uma loja muito chique que ficava no Largo Santa Cecília, para comer o sanduíche American Club e tomar um Sunday. Foram anos felizes da minha vida.
O prédio da Light ainda existe, embora abrigue um shopping, mas alguns guichês com grades douradas persistem ao tempo e ainda estão lá. Agora, o chá da Clipper não existe mais. Miguel Chammas
A cabra de estimação Nelio Nelson Gonçalves Tudo era festa na Rua da Assembléia. O jogo havia terminado com a vitória do Brasil sobre a Tchecoslováquia por 3 a 1. Brasil Bicampeão Mundial de Futebol, no Chile. Fogos de artifício, balões coloridos, um
primeiros tempos
maior que o outro, flutuando no ar. De repente, para minha surpresa, vi uma cabra que caminhava rua abaixo. Tinha as pernas um pouco esfoladas. Eu não sabia de ninguém que tivesse cabras no centro de São Paulo e, portanto, essa deveria ter pulado de um caminhão indo para o mercado. Para um menino curioso de 11 anos, não demorou muito pensar que teria um outro animal de estimação. Já tínhamos o Peri, o Nero, a Chiquita e agora, talvez, uma cabra. Comecei a seguir o animal bem de perto e, nas proximidades daquele casarão amarelo, uma antiga mansão que existia no lado esquerdo da rua, esquina com Asdrúbal do Nascimento, achei uma corda de juta de dois metros mais ou menos. O animal seguia meio assustado devido ao barulho dos rojões e entrou no campo de peladas, seguindo em direção à Liberdade. No campo, eu atraquei a bicha com a ajuda de outros moleques e amarrei a corda no seu pescoço. Estava voltando para casa quando, ando por uma vila decadente, cujas casas com coqueiros na frente já haviam sido um lugar refinado, fui abordado pelo residente, que com cara feia e más intenções, perguntou: — Menino, onde vai com esta cabra? — Para minha casa – respondi, e por ingenuidade, disse que a havia encontrado na rua. O malandro logo disse que conhecia o dono e que ele ficaria com a cabra para devolvê-la. Voltei para casa chateado. No dia seguinte, à tarde, depois da escola, ei na casa do amigo Aristides e fomos pegar goiabas daquelas ‘bitelonas’ entre os viadutos Dona Paulina e Brigadeiro, perto do prédio do DAE - Departamento de Águas e Esgotos, e segui pela Itororó, atual Avenida 23 de Maio. Depois de muito caminhar, chegamos àquela vila quando, olhando para o quintal da primeira casa, que era todo aberto, para meu espanto, vi a pele da cabra estendida numa espécie de varal. O que era para ser animal de estimação tinha virado churrasco no dia que o Brasil foi bicampeão. Naquele momento, o menino de 11 anos começou a duvidar do ser humano.
Pipas no ar nas manhãs de sábado Luiz Carlos da Silva Em 1970, éramos adolescentes, morávamos no bairro da Cidade A. E. Carvalho e o nosso atempo favorito era confeccionar e empinar pipas nas manhãs de sábados. Nosso encontro acontecia na área de entrada da casa do meu amigo Israel. O alegre ritual era acompanhado pela garotada da periferia que tentava descobrir como fazer belas e multicoloridas pipas. Tudo era feito com muita descontração, desde o preparo da cola feita com farinha de trigo, que eu levava de casa e que exigia muito esmero para não sujar o belíssimo fogão da dona Ondina, mãe do meu colega Israel, às folhas
de papel de seda adquiridas na lojinha da dona Matilde e que eram escolhidas cuidadosamente, entre as diversas cores dispostas na prateleira. Havia um momento que exigia grande concentração: era quando começávamos a “afinar” as varetas, que eram retiradas do bambu do varal de roupas da dona Ondina com uma afiadíssima faca. Durante a confecção das pipas, dialogávamos sobre as novas namoradinhas, os estudos na Escola Estadual Cidade de Hiroshima, em Itaquera, e sobre o serviço de office boy numa companhia de seguros do centro de São Paulo. Mas o grande prazer era estar ao lado dos amigos que não víamos há uma semana e poder detalhar o perfil das novas namoradas que trocávamos com freqüência, assim como éramos trocados. Às vezes, éramos obrigados a abandonar nossa área de lazer, pois dona Ondina queria varrer a mesma, o que ocasionava um tempo de espera, encostados no velho carro Ford semidesmontado pelo senhor Luís, pai do meu amigo, que era mecânico. Aí o Zé Roque, irmão do meu amigo, ava lá com algumas peças de televisão na mão, pois tinha uma oficina de conserto no quintal, e zombava da nossa capacidade de confeccionar pipas. Os raios de sol da bela manhã de sábado e a chegada do Lalá, com seu tradicional assobio chamando a namorada, que era a irmã do Israel, completava a nossa felicidade. Ela saía toda perfumada, sorrindo e pisando com cuidado sobre as pipas para não amassá-las. Os dois abraçavam-se carinhosamente e nós abaixávamos a cabeça, concentrados na confecção da nossa namorada, que era a pipa. Constantemente olhávamos o céu azul e a nossa maior preocupação era com o vento e, entre a confecção das pipas e a eterna paciência em fazer aquelas “rabiolas” quilométricas, molhávamos o dedo com saliva e colocávamos ao vento para saber qual era a direção que o mesmo soprava e a sua intensidade. Dessa maneira, tínhamos uma vaga noção por onde nossas pipas e nossos pensamentos voariam. O vento da periferia sempre era bondoso conosco e jamais deixava de soprar aos sábados de manhã e, às vezes, trazia o aroma agradabilíssimo do café coado pela dona Ondina, que era servido em xícaras de porcelana pelo Lalá e sua linda namorada, que o fazia sempre sorrindo e desejando-nos bons ventos. Talvez, por não existirem prédios, o vento soprava uma agradável brisa, na quantidade exata às nossas expectativas e aos nossos sonhos de adolescente. Fazíamos as pipas com perfeição e elas raramente deixavam de voar. Tínhamos uma brincadeira maravilhosa que consistia em batizar nossas pipas, geralmente, com os nomes das últimas namoradas e assim que a mesma ganhava o céu, imaginávamos que subíamos junto com elas. Havia sábados em que o vento soprava em direção ao bairro de Itaquera e nesses dias nossos pensamentos avistavam cenas e situações indescritíveis. Lá de cima, de onde imaginávamos estar, podíamos avistar a padaria com sua enorme máquina de assar frangos, pessoas saindo com saquinhos de pães, carros com o volume do rádio um pouco acima do normal tocando músicas de 97
Roberto Carlos, Caetano Veloso, Beatles e Morris Albert cantando Feelings; o ponto de ônibus em frente à padaria, e motoristas e cobradores sorrindo entre um gole de café, uma coxinha e um cigarro aceso. Pessoas entrando pela porta traseira e o ônibus saindo, vagarosamente, com motoristas com óculos escuros acenando aos companheiros com destino à Praça Clóvis Bevilácqua. Viagem longa que nossas pipas não conseguiam acompanhar. No entanto, acompanhavam as crianças correndo alegremente, pelo pátio da Escola Professor Milton Cruzeiro durante o recreio e o ônibus Mogi – Parque Dom Pedro II que ava em alta velocidade, deixando-nos atônitos. Eis que a pipa e os nossos pensamentos pairavam sobre a igreja do bairro e podíamos nos deliciar com a tradicional quermesse, e ver as meninas com seus cabelos cortados “a chanel”, devidamente arrumados com laquê, trajando vestidos rodados coloridos e os meninos, com calças “boca de sino” com cintura alta, parecendo toureiros da periferia, e suas inconfundíveis camisetas “volta ao mundo” ou “gola olímpica”. Sentíamos o aroma dos bolinhos caipiras preparados pelas mães do bairro e avistávamos as barracas coloridas que ajudávamos a montar para abrigar diversos jogos e vendas de guloseimas. Também avistávamos as meninas sendo vigiadas pelas mães ou irmãos que não permitiam beijos ou abraços, só uma piscada bem longe dos olhos severos dos pais de antigamente. O alto-falante sussurrando uma inaudível música de Nelson Ned, entrecortada pela voz rouca do amigo Israel, locutor oficial da quermesse, completava a paisagem. O vento começava a parar de soprar e era hora de recolher as pipas, nossas imaginações e nossos sonhos e retornar às nossas casas, depois de um abraço e um aperto de mão. Estávamos novamente na terra e ficávamos torcendo para que a semana asse rápido e o vento mudasse de direção para que pudéssemos nos encontrar e avistar novos lugares e acontecimentos do pacato bairro da Cidade A. E. Carvalho.
As pipas de hoje, no meu tempo, eram chamadas de quadrado ou papagaio. Eu fazia muitos quadrados. Barrilete era um que dava gosto de empinar, embora fosse mais difícil de fazer. Peixinho era o que mais se via no ar. Meu irmão desenvolveu um Peixinho que não precisava de rabo. Para que não fosse preciso colocar as tiras de pano nos quadrados, ele envergava a vareta horizontal, e o vento deslizava por eles, que permaneciam no ar. Naquele tempo, não tínhamos a tal rabiola de hoje. O rabo era de pano, e quanto mais leve fosse, melhor. Mas quando o quadrado era grande o “rabo” também tinha que ser. Um barrilete grande tinha um metro de altura e, talvez, um pouco mais de largura. Para empinar eu levava barbante colchoeiro usado nas tapeçarias. Ninguém era louco em querer laçar o “bicho” e nem de colocar lâminas na ponta do rabo para tentar quebrar a linha (na época, barbante). Mário Lopomo 98
No Belenzinho da minha infância Oscar Romano Em 1956, meu pai mudou da Penha para o Belenzinho, à Rua Julio de Castilhos, 505, e fui estudar no Grupo Escolar Amadeu Amaral. Tempo bom no Largo São José do Belém, quando saíamos da escola e ao atravessar a rua o guarda gordo estava lá para nos dar a mão, cumprimentando a todos. O bonde que ava em frente à escola ainda era o bonde aberto e as pessoas se vestiam com a moda da época: mulheres de chapéu e homens de terno, era fascinante mesmo. Nesse tempo, o lazer dependia da criatividade da meninada e as brincadeiras eram de pular corda, esconde-esconde, pião, balão, pipa e carrinho de rolimã, e cada uma tinha a sua época, de acordo com o mês.
O cabeleireiro do magazine Clipper Maria Augusta Lembro quando eu tinha 5 anos de idade. Minha avó morava em Santana, lá pelos anos de 1954, e me levava para cortar os cabelos na Clipper. Não me lembro o local, mas devia ser lá pros lados da Rua 24 de Maio. Eu ia chorando porque não queria que cortassem meu cabelo, que era liso e muito claro. Guardei na memória o carrinho que eu sentava e a bola que eu ficava brincando. Pelas fotos que ainda tenho, a franjinha ficava cheia de falhas, mas era chique cortar o cabelo no magazine Clipper e minha avó pagava com o maior gosto.
Ah... a Clipper... doces lembranças da minha infância. No Natal as suas vitrines eram espetaculares e tinha uma das maiores seções de brinquedos que uma criança pudesse querer. O Papai Noel da Clipper sentava-se em um verdadeiro trono, de alto espaldar, todo em tecido vermelho acetinado com molduras em dourado. Guardo até hoje uma foto tirada junto ao Papai Noel com o meu cabelo cortado no único estilo reco que os cabeleireiros da Clipper sabiam fazer nas crianças que sentavam naqueles carrinhos coloridos. Tinha ainda o Circo da Clipper, onde se ganhava garrafinhas do Biotônico Fontoura. A escada rolante era algo quase espacial para a época e proporcionava sempre uma forte emoção de aventura. Saulo Regis A Clipper que eu conheci era na Rua Sebastião Pereira com o Largo Santa Cecília. Loja grande, com vários departamentos, me lembro bem
primeiros tempos
do cabeleireiro de crianças e do automovelzinho em que elas sentavam. Havia também um microônibus para os usuários da loja irem até a Praça do Patriarca, onde ficava a Exposição Modas, filiada à Clipper. Turan Bei
Parque do Ibirapuera ou Vila Puéra Mário Lopomo No início da década de 1950, o Ibirapuera era somente um matagal com um estradinha estreita e asfaltada que fazia a ligação da Avenida Brasil com a Vila Mariana. Nessa época ninguém conhecia como Ibirapuera, mas sim Vila Puéra, como dizia a molecada, que sempre era corrigida pelos adultos. Além do lago em que a gente ia nadar, havia somente árvores, muitos eucaliptos, mais ao fundo, perto da Rua França Pinto, o Instituto Biológico e um campo de futebol, onde a Portuguesa de Desportos treinava. Era muito gostoso ver Djalma Santos, Brandaõzinho, Júlio Botelho, o Pinga, e muitos outros que brilhavam no futebol paulista e brasileiro. Dizia-se, na época, que toda aquela área era propriedade de uma viúva que teria doado o terreno à prefeitura para as comemorações do IV Centenário de São Paulo, que seria comemorado em 1954. Quando o parque estava em obras era comum, para quem estava sempre lá como eu e meus amigos, que morávamos no Itaim, bisbilhotar tudo o que se via e fazia. O Obelisco Mausoléu aos Heróis de 32 estava sendo erguido em blocos pelo mestre Galileo, cujo nome a gente ouvia a toda hora e que depois fiquei sabendo tratar-se do escultor Galileo Emendabili. O monumento foi inaugurado bem depois do Parque do Ibirapuera, sua solenidade aconteceu em 21 de agosto de 1954, com muita festa. Tinha o Parque Shangri-lá, o Museu de Cera, a Casa do Japão e o Salão de Exposições, que ficou até o início da década de 1970. Depois, foi transferido para o Anhembi. Tinha a lanchonete dentro do lago, onde se alugava um pequeno barco e o Viveiro Manequinho Lopes, que existe até hoje.
Aeroporto: dois caminhos Rubens Cano de Medeiros Em 1958, eu então com 10 anos, em manhãs de domingos, ia com meu pai ear no Aeroporto. Como morava na Vila Mariana, tomava o bonde 66-São Judas Tadeu e ia até o ponto final. De onde, andando um pouco à frente, se chegava próximo à cabeceira da pista. Nesse percurso,
ava em frente ao então Grupo Escolar Marechal Floriano, na Rua Dona Júlia, onde fiz o chamado curso primário. Como não lembrar da figura simpática de seu Osvaldo, um esguio guarda-civil, baiano, que ficava incansavelmente zelando pela segurança das crianças, na travessia em frente à escola, parando carros, ônibus e bondes. Àquela época, de raríssimos semáforos, eram os guardas-civis, com seus fardamentos azuis, que cuidavam do trânsito, usando um quepe diferente do tradicional em forma de calota, branco, com abas. Desde a Domingos de Morais até o final da Avenida Jabaquara, os bondes trafegavam por um largo corredor central, lembram-se? E os meninos de rua que neles se dependuravam, perigosamente, como se falava, “chocando” os bondes? Muitas vezes, com final trágico! A Praça da Árvore, pela qual necessariamente se ava, ainda era conhecida como a “Primeira Seção”, muito longe de ser o grande universo de lojas, da atualidade. Outro modo também de chegar ao lindo Congonhas era através do ônibus 48-Paraíso, até o Anhangabaú, e então do 113-Aeroporto, nas proximidades da Galeria Prestes Maia: logradouro onde, por certo, foi instalada uma das primeiras escadas rolantes de São Paulo. E onde, entre outras coisas, havia, num canto, uma grande maquete de uma estátua de São Paulo, o “Santo”, que – dizia-se à época – seria instalada no topo do Jaraguá! No caminho, ávamos, na Rua Curitiba, pelo então Parque Infantil do Ibirapuera, como se chamava um dos precursores das atuais EMEIs, no qual ei um pouquinho da infância. Que, àquele tempo, dispunham, para a garotada, de assistência médica e odontológica! Retomando, pois, a viagem, o 113-Aeroporto, via Avenida 9 de Julho, me proporcionava uma surpresa: à altura da Praça 14 Bis, numa encosta, um curioso tapume de outdoor; era uma propaganda, creio que da Studebaker, um caminhão – tamanho real! – incrustado no tapume! Com motorista na boléia; e a caçamba basculante, intermitentemente, baixando e subindo! Esse anúncio lá permaneceu por muito tempo. Chegando ao Aeroporto, era desfrutar não só do “espetáculo” de pousos e aterrissagens, como do próprio logradouro: simplesmente lindo! Nomes como KLM, SAS, Alitalia, Iberia, Air e Pan Am, tão presentes à época, migrariam – com o advento do jato – para Viracopos. Seriam os 707 e DC-8 no lugar dos Constellations e DC-7... E como não lembrar daquele possante farol, de auxílio à navegação, no topo de um dos hangares: girava 360 graus, lançando dois fachos – diametralmente opostos – um de cor branca, outro meio verde, meio azulado... Embora moleque, os traços arquitetônicos do Aeroporto e seus equipamentos me chamavam a atenção. Por exemplo, muitos recordarão dos postes de ferro, do tipo “ornamental”, que orlavam toda a calçada à frente de Congonhas. E como esquecer os relevos que maravilhavam a parede exterior do Aeroporto, glorificando a conquista do ar – e que, infelizmente, foram reduzidos (a parede e os relevos) a pó... É isso: um simples eiozinho era o suficiente para encantar um paulistano de 10 anos. Saudade! 99
São Paulo será sempre a minha cidade Maria Isabel Gallardo Sou espanhola nascida em Barcelona. Cheguei a São Paulo em 1957, com 6 anos de idade. Morei um tempo ao lado da fábrica Matarazzo. Ia numa escola que era um barracão de madeira montado em cima de troncos de árvore. Pouco tempo depois, fui viver no bairro de Sacomã. A nossa casinha era pequenina, mas linda. Tirávamos água do poço para beber e para o uso doméstico. Os proprietários fizeram no quintal uma sala de banho e nós enchíamos a banheira com balde – e se nos descuidávamos um pouco, alguém mais esperto nos roubava o lugar. Lembro da escola primária Santa Rita de Cássia. Íamos vestidas de uniforme. O senhor diretor era muito severo, cada dia verificava se íamos bem limpas. Eu adorava o país, a cidade, e a alma brasileira, cheia de calor, de amor e de generosidade. Minha mãe me levava muito ao Mappin, e eu gostava de ear no ascensor e de comer “gelados”. A primeira vez que vi o Viaduto do Chá, fiquei irada de ver como o chão brilhava. Minha tia dizia, brincando, que era porque o enceravam a cada noite. Com 9 anos fui para a Escola Comercial Maria de Azevedo, na Avenida Ipiranga. Ainda tenho um caderno onde os meus professores e todas as minhas amigas me escreveram palavras de amizade quando, em 1963, meus pais decidiram ir embora para a França. Foi um sofrimento muito grande. O Brasil era a minha pátria. Ali aprendi a amar e a respeitar todas as raças e religiões. Hoje tenho 56 anos e viajei por muitos países, porém em nenhum lugar encontrei tanta fraternidade como a que vivi em São Paulo, que foi e será sempre minha cidade.
Casas Pirani José Carlos Nascimento Ainda me lembro como se fosse hoje o colosso que era a loja das Casas Pirani, instalada na Avenida Celso Garcia, onde na época natalina era muito comum, a presença do Papai Noel. Os pais levavam seus filhos para tirarem fotos com ele e logicamente fazerem os pedidos dos presentes. Esses, na inocência, acreditavam que aquela bondosa figura viria trazer o presente solicitado ao seu ouvido. Era, na época, a única loja que atendia aos anseios dos paulistanos, de pequenos utensílios do lar até determinados tipos de embarcações, que eram vendidas no setor de esportes e camping. Sem contar que tinha um setor de fotos, onde a criança podia fazer pose com um instrumento musical. Eu mesmo tirei uma foto, simulando tocar um acordeom. 100
Digo simulando porque nunca toquei qualquer instrumento. Foto que tenho até hoje nos meus guardados. Doces lembranças que o tempo não apaga.
Como lembro dessa loja, ali na Celso Garcia e também na Avenida São João, que em 1969 sofreu aquele trágico incêndio e eu presenciei uma coisa inusitada: a Avenida São João totalmente tomada por pedestres que olhavam atônitos e não acreditando no que estava acontecendo. Mas, voltando às coisas boas e à Celso Garcia, o que ficou marcado na minha lembrança foram as luzes coloridas que colocavam no terraço do prédio da Pirani: ali montavam um parquinho que na visão de uma criança se transformava em uma coisa mágica. Paulo Sergio Saffiotti Nasci no bairro do Pari e a lembrança que tenho das Casas Pirani são as fotos. Minha mãe era cliente da loja e sempre que podia levava eu e meus irmãos para fazer a tradicional foto frente a um instrumento musical. Bons tempos esses, onde acreditávamos em Papai Noel, que nessa loja se fazia presente. Suely dos Santos Guirado Sou nascido e morador do bairro do Brás há 43 anos e me lembro bem das Casas Pirani e de seu triste fim e gostaria de corrigir alguns dados que muito provavelmente sejam lapsos de memória, pois, afinal de contas, não estamos falando do dia de ontem. Ao consultar meu pai, antigo morador do Brás, ele disse que as Casas Pirani tiveram início com a loja de calçados e órios na Avenida Rangel Pestana, defronte ao Grupo Escolar Romão Puiggari, e que por ter sido uma das primeiras lojas a comercializar eletrodomésticos teve um crescimento vertiginoso, mudando-se para a esquina da Rua Domingos Paiva com Avenida Rangel Pestana, onde nas décadas de 1960 e 70 funcionava a Loja Pejan, de calçados. Em meados de 1940, a loja mudou-se definitivamente para a Avenida Celso Garcia, tornando-se um império comparável às lojas Mappin, se é que não foi maior, tanto fisicamente quanto no imaginário da população. Chegando ao triste fim, não com um incêndio na loja Pirani, mas sim com o pavoroso incêndio, ocorrido em 1972, no Edifício Andraus, situado à Avenida São João. Esse que abrigava os escritórios das lojas Pirani, teve todo o sistema de controle de crediário da loja queimado. Aí sim, ela teve o seu fim decretado. Essa época das lojas Pirani ficou incrustada em mim, pois fez parte da ótima infância que tive. Marcelo Remorini Collalto
primeiros tempos
Sou descendente de italianos, e logicamente só poderia ter raízes no Brás. Também me lembro, quando criança, que íamos todos nas lojas Pirani, principalmente em épocas de Natal, onde lá, eu ficava totalmente encantado, me sentia tremendamente feliz. Fato curioso ocorreu certo Natal, quando fui com minha tia, às pressas, até a Pirani e ao atravessar a Avenida Celso Garcia, em meio ao trânsito, perdi meu sapato, pois o piso ainda era de paralelepípedo. Toninho Chiummo Eu também tenho uma foto tocando piano feita na loja Pirani que guardo até hoje... Mas o que mais me marcou foi a roda-gigante que havia no topo da loja, quando dava a volta, parte dela saía do prédio, dando pra ver os carros lá embaixo, na Celso Garcia. Quando estava esperando por minha vez, ainda não me dava conta do que ocorria. A fila estava muito comprida e eu insisti para ir. Minha mãe não queria esperar, mas o fez, por mim. Quando subi na roda-gigante e percebi o que acontecia, cada vez que ava por minha mãe olhava pra ela e suplicava: — Me tira daqui. Ela só sorria. Eu pensei que ela não escutava. Mais tarde fiquei sabendo que ela o fez pra me castigar; o que contava para todos, achando muita graça. Até hoje, vejo com olhos de criança, e não vejo nenhuma graça no que ela fez! Anônimo
Uma onça no meu quintal Maria Cristina Masagão No final da década de 50, fui morar numa casa, na Rua Tucumã, em frente ao Clube Pinheiros, onde atualmente há um espigão em obras embargadas. A Avenida Faria Lima era ainda a Rua Iguatemi, uma rua estreita, com uma pequena ponte na altura da Gabriel Monteiro da Silva e que ligava o final da Rua Joaquim Floriano à região de Pinheiros. Os Jardins já eram os Jardins, as escolas da região as mesmas de hoje, os clubes também, mas não havia o Shopping Iguatemi. Em seu lugar, existia uma chácara, um grande terreno arborizado, que se destacava para nós, crianças, por um grande atrativo: acorrentada a uma árvore, víamos maravilhadas, uma oncinha! Imagine uma oncinha em pleno Jardim Paulistano: era uma aventura para nós ir olhá-la, mesmo à distância. Não sei dizer quanto tempo ela lá permaneceu mas, às vezes, quando vejo o shopping sinto saudades de ver a oncinha...
Lembro quando uma tribo de índios acampou onde hoje é a Marginal Pinheiros, no fim da Rua Tucumã. Naquela época, a Marginal era um morrinho e o trem ava bem atrás. Um dia, uma tribo de índios lá acampou assustando todos os adultos e mexendo com a imaginação da criançada. Pena que nossos pais não nos deixaram chegar perto! Só meu tio foi até lá, comprou um arco e flecha e saiu correndo atrás da minha mãe! Isso foi por volta de 1960. Regina Oliveira Pereira
O Recanto Anhangüera Clara Maria Lopes de Alexandria Talvez apenas minha memória afetiva esteja funcionando neste momento, mas como eram boas aquelas saídas com a minha família para jantar na Churrascaria Recanto Anhangüera, perto da Ponte da Anhangüera! O ritual é que era legal. Se estávamos brincando com os amiguinhos na rua e minha mãe nos chamava para sair, já antecipávamos que seria uma delícia! Ela arrumava a todos: dava banho, trocava de roupa, penteava. Quanta choradeira quando o cabelo estava embaraçado! Imaginem o alvoroço! Meu pai na direção, minha mãe no banco da frente, sempre com alguma criança no colo, fazíamos a contagem das pessoas no carro e partíamos. Pensando bem, acho que meus pais tinham que fazer rodízio de filhos para sairmos de carro, já que era tanta gente! Eu estou falando do comecinho dos anos 70, quando eu tinha ao menos seis irmãos. Nós morávamos em Osasco, e agora vejo que aquela distância toda até o restaurante estava apenas na minha cabeça de criança. A gente não chegava nunca! Ao estacionarmos o carro, já podíamos ver o prédio do restaurante, todo de madeira envernizada, rústico, cheio de pequenas luminárias acesas... parecia um navio ancorado por lá! Normalmente, tínhamos que esperar um pouco para um garçom achar uma mesa grande o suficiente e trazer o cadeirão alto para um irmão mais novinho se acomodar. Meus pais faziam os pedidos e, enquanto a comida não chegava, lá íamos eu e a minha irmã Susana para o playground nos fundos do restaurante! Quanta emoção, quanta brincadeira! Lembro que havia um vagão de trem todo de madeira, com bancos e tudo mais... nós sentávamos e já partíamos para uma viagem imaginária. Não tinha luzes que piscavam, não fazia som algum, era apenas um vagão de trem estilizado, mas quanta saudade. Será que as crianças de hoje o achariam totalmente sem graça? Não sei... E os balanços, então? Nós competíamos para ver quem balançava mais alto – que perigo, vejo agora... lá ficávamos até que a minha mãe aparecesse e nos levasse de volta à mesa, pois o pedido já havia chegado e a comida 101
estava esfriando. Qual era o pedido, normalmente? Não me lembro muito bem, mas sempre tinha um espeto misto, arroz branco, batatas fritas, farofinha, vinagrete, enfim, nenhum sonho gastronômico, mas para nós, crianças, era o manjar dos deuses!
As aventuras dos meninos de Indianópolis José Eduardo Soares de Castro Levantávamos cedo e íamos nadar no poção, na esquina da Avenida Indianópolis com a Ibirapuera, ao lado do Clube Monte Líbano. A água que vazava do encanamento que ia para Santo Amaro era limpinha. O nosso trampolim era a linha do bonde que ava por ali. Naquele tempo, final da década de 1950 e início de 1960, a maioria das ruas do bairro era de terra e havia um único prédio, na Avenida Inhambu. Nosso ponto de encontro era na esquina da Avenida Pavão com a Canário, onde havia uma pequena indústria de condimentos que pertencia à família Hirata, ali, à noite, contávamos histórias de assombração. Nosso campinho era na Rua Canário. Lá aconteciam os clássicos contra os meninos da Rua Gaivota. Outras aventuras vivíamos no Córrego da Traição, havia muito verde, eucaliptos imensos, era quase uma zona rural. Nesse trajeto morava o saudoso palhaço Arrelia que, muitas vezes, vimos numa saleta repleta de troféus. No domingo íamos à matinê do Cine Joá. Hoje me pergunto, onde andarão os meninos daquele tempo?
A Turminha da Rua Canuto do Val Maria da Glória Fagundes Souto Ah! A Rua Canuto do Val, quanta saudade de um tempo em que se podia brincar nas calçadas e o único medo que tínhamos era de encontrar um bêbado pela frente. Eu morei durante muitos anos no nº 44, um prédio de três andares e que era muito gostoso. A gente tinha amizade com todos os moradores. Foi lá que um dia meu pai juntou todas as crianças e nos levou de táxi para conhecermos o Parque do Ibirapuera, que na época, tinha muitos brinquedos, como roda-gigante e trem fantasma. amos a tarde toda brincando. Lembro do senhor Júlio, um senhor gordo e alegre que tinha um Chevrolet verde e morava numa casa em frente ao prédio. Lembro também da Tati, uma menina filha única e que tinha a garagem cheia de brinquedos, que para nós era um grande encantamento. Ela 102
tinha fogãozinho elétrico que funcionava e fazíamos bolinhos de verdade. Tinha também uma caixa registradora, que abria a gaveta e tinha dinheiro de mentira. Nossa que legal! Eu adorava brincar com ela. Se não me engano, lá também tinha um cãozinho, chamado Biriba. No prédio também tínhamos muitos amiguinhos; o Zé Eduardo, a Caía (que era a Clara Maria), cujo pai, senhor José, era muito bravo e o Paulo, que morava no apartamento 1. Ainda me recordo que fomos os primeiros a ter TV e que cobrávamos ingresso, por meio de um papelzinho. Para acompanhar a folia minha mãe fazia Pãezinhos de Minuto que a gente devorava. Naquela época, eu já queria ser secretária, então colocava os garfos numa mesa e batia neles como se fossem uma máquina de escrever. Adorava brincar de ter muitos “filhos” e só saía com todos eles. No corredor de casa, tínhamos uma adeira, que na minha mente infantil era a rua. Ali, eu, carregada de filhos, esperava o carro imaginário ar e atravessava a “rua”. Eu estudei no Grupo Escolar Arthur Guimarães, que fica ainda na Rua Jaguaribe, onde conheci professoras de verdade. Ainda me lembro que a do 1° ano era dona Sofia, a do 2°, a dona Maria Tereza, que tinha problemas de estômago e de lanche trazia um pedaço grande de queijo de Minas, que punha água na boca da gente. A do 3° era a dona Eliza Nair Cardozo Perón, um amor de pessoa. Nos meus aniversários ela sempre me dava presentes e tenho até hoje um livrinho que ela me deu, com dedicatória e tudo. A filha dela, Matilde, às vezes vinha brincar com a nossa turminha. A do 4º ano era a dona Eleonor, que morava na Rua Dona Veridiana e que faleceu pouco tempo depois. Acho que foi a primeira vez que vi uma pessoa morta. No mês de junho fazíamos fogueira na porta de casa e brincávamos muito, sempre aos olhos do senhor Júlio que também nos levava num campinho, onde soltávamos balões. Naquela época, criança era criança mesmo. Não tínhamos nada parecido com o computador de hoje e as brincadeiras eram com tico-tico, esconde-esconde e bola. Tive uma infância muito feliz. Ainda me recordo que na véspera de Natal, minha mãe, dona Aída, nos vestia, eu e minhas duas irmãs, Maria Lígia e Maria Izabel, com os melhores vestidos brancos, e nos punha laços nos cabelos. Com a casa toda cheirando a Natal, ficávamos esperando os parentes. A tia Milóca sempre trazia torta de nozes e um bolo americano, cujas receitas herdei. Lembro também que o nosso “Papai Noel” saía à noite para comprar nossos presentes na Clipper, os quais procurávamos embaixo das camas no dia de Natal. Sinto até hoje o cheirinho de talco Johnson, que vinha como amostra junto com o bebê que ganhei, boneco que me acompanhou por muitos anos. Tinha enxoval de verdade e eu não viajava nas férias sem ele e a respectiva malinha. Enfim, tempinho bom, que não esqueço jamais...
primeiros tempos
Corrida Maluca Nelson de Souza Lima Na minha infância e começo da adolescência gostava muito de andar de bicicleta, aliás, quem não curte dar umas pedaladas como o Robinho, ex-craque do Santos? Com meus 13 anos, a onda lá na Vila Matilde eram os grupos de moleques que andavam de bike à noite. Já que éramos todos menores de idade e não podíamos dirigir, o jeito era tentar paquerar as meninas usando muito xaveco, andando em turmas que chegavam às vezes, a contar com trinta garotos. Atrevo-me a dizer que fomos os ancestrais dos Night Bikers, aquele pessoal que dá suas pedaladas depois que o sol se põe. Cada um se virava como podia, ou seja, havia aqueles que tinham bicicletas simples, algumas sem freios, pintura descascada e assentos de madeira e aqueles que possuíam as bikes mais incrementadas. Na época, as melhores eram as Monaretas e as Caloi 10, com dez marchas e muito velozes. Essas poderiam ser consideradas as Ferraris das bicicletas. Nossos eios consistiam em pedalar pelos bairros próximos ao nosso. Íamos até a Vila Carrão, atravessávamos a Vila Santa Isabel, Vila Formosa, Tatuapé e, então, retornávamos. Era muito legal ver a turma pedalando como uma horda de cavaleiros medievais em busca de batalhas e belas donzelas.
Meus heróis de papel José Carlos Munhoz Navarro Nós sempre vivemos rodeados pela sabedoria popular e pelas frases prontas e feitas. Nos longínquos 1953 e 54, meu universo era delimitado pelas ruas Guaicurus, Vespasiano, Faustolo e Caio Graco, e nele habitavam todos os meus heróis de carne e osso e de papel. Meu pai tinha um restaurante em frente à Rua do Curtume, ainda com muitos terrenos vazios e mato e que para mim, era cheia de mistérios e terminava na linha do trem. Eu e meu amigo Décio éramos os maiores do mundo e ele, por ser cinco anos mais velho que eu, sempre comandava as brincadeiras, seja de teatro, futebol ou as mais caseiras como jogar ludo real, naqueles tabuleiros de quatro jogos, trilha entre outros. Quando me via sozinho, porém, tinha aventuras especiais. Uma delas era comprar gibis. Os heróis que devorava sem um instante de folga eram Capitão Marvel, Tio Patinhas e seu sobrinho Donald, Cavaleiro Negro, Gene Autry, Roy Rogers, Flecha Ligeira, Don Chicote, Luluzinha e Bolinha, entre tantos outros. Minha aventura era a seguinte: para comprar gibi de manhã, eu pedia dinheiro para a minha mãe e para comprar gibi de tarde, eu pedia para o
meu pai, às vezes, eu ainda surrupiava uma gorjeta no restaurante e comprava outro. Para completar, na frente do nosso restaurante tinha um espaço onde, com a autorização do meu pai, o jornaleiro colocava revistas e jornais em exposição. Com isso, eu sempre lia mais alguma coisa chegando a ler de três a quatro gibis todo dia. O grande suspense da história era que meu pai não deveria saber que minha mãe me dava dinheiro, e vice- versa. Até que um belo dia, fui pego com a boca na botija, isto é, sentado na banca lendo mais um deles. A bronca foi tão marcante que o Superman que eu lia voou longe, mesmo ele ainda estando vestido de Clark Kent. Alguns anos depois, já mais assentado e lendo menos gibi, resolvi relembrar tempos gloriosos e transformei minha bicicleta em fogoso corcel, meu jaleco azul de entregador em uma garbosa armadura e a Rua Groenlândia no cenário especial para reviver meu tempo de herói da Távola Redonda. Aposentou-se o Don Chicote e surgiu o Ivanhoé. Numa manhã especial, com a costumeira lista de entregas de leite, a bicicleta carregada e pronto para sair, vi a menina que me enfeitiçava brincando na calçada e não deu outra: como um herói arrebatador aprumei meu elmo, que nada mais era que um boné, estiquei o jaleco e me imaginei pedalando ao lado dela todo imponente e enfrentando todos os infiéis inimigos do rei, quando o impensável aconteceu e a bicicleta desequilibrada por tanto peso na traseira deu um pinote para trás, num instante os dezesseis litros de leite misturaram-se no asfalto, em cacos e líquido. Não sabia se me lamentava pela menina que me olhava ou pelo meu pai que se aproximava. Está bem, diriam tantos que não se deve chorar sobre o leite derramado. Mas eu sabia que iria chorar sobre o leite derramado. E como chorei, pelo leite derramado!
Não tínhamos as frescuras de hoje Flávio Rocha A gente andava de bicicleta “prá lá e prá cá”, sem capacete! Bebíamos água de torneira ou de uma mangueira, ou ainda de uma bica... e não havia águas minerais, em garrafas esterilizadas... Andávamos em carrinhos de rolimã e nos soltávamos “por ladeiras abaixo”, freiando com a sola do sapato, às vezes, até descalços, nos ralando todo! Íamos brincar na rua, com aquela condição: — Voltem antes do jantar. Não havia celulares e nossos pais sabiam onde estávamos. Comíamos doce à vontade, pão com manteiga, bebidas com o “perigoso açúcar”, comida feita na banha de porco e não se falava em obesidade, pois estávamos sempre correndo na rua e éramos superativos. Dividíamos aquela Tubaína comprada no rateio na vendinha da esquina, que era tomada “na boquinha da garrafa” por todos nós e nun103
ca ninguém morreu por essa prática. Nada de Playstations, Nintendo 64, X boxe, jogos de vídeo, Dolby surround, de micros; só amigos de rua. E a nossa “cachorrada”? Comiam os restos de feijão com arroz sem a carne, que era o “santo” bolinho da janta, e não tinham banho quente ou xampu, que nada... era banho de mangueira mesmo e fria. Íamos de bicicleta ou a pé, à casa dos amigos entrando sem bater. Jogávamos futebol no meio da rua, marcando o gol com duas pedras e mesmo que não estivéssemos escalados, ficávamos até o final do jogo e não nos frustrávamos por isso. Se no final do ano não ávamos, não éramos mandados para o psicólogo, pois a reprovação era porque “não colávamos direito”. Nem se falava em “dislexia”, “falta de concentração”, simplesmente repetíamos a tentativa de aprovação no ano seguinte e ninguém deixou de se formar por isso! Tínhamos liberdade, fracassos, sucessos e especialmente, deveres e lidávamos com cada um deles! A única e verdadeira questão é: como a gente conseguiu sobreviver sem essas “frescuras” de hoje?
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Batendo bola
“Ainda que organizados, com uniformes completos e até bandinha tocando para incentivar, o jogo não perdia a alegria. Driblar era preciso.”
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batendo bola
Transmissão primitiva Mário Lopomo Senhores ouvintes da Rádio Pan Americana, boa tarde. Estamos aqui no Pacaembu, neste domingo 28 de janeiro de 1951, para transmitir o jogo que vai apontar quem será o campeão paulista de 1950. O próprio, da municipalidade paulistana, apesar da chuva forte que assolou a cidade de São Paulo, está lotado, imaginamos que estejam 65.000 espectadores, espremidos por todas as dependências das sociais e populares, para assistir o choque rei do futebol paulista, Palmeiras x São Paulo. Mesmo com a intempérie mandando chuva a “cântaros”, na cidade de Piratininga, torcedores tricolores e esmeraldinos vieram em peso ao estádio. O gramado assaz escorregadio, deverá ser um pesadelo para o golkiper que não tiver muita atenção para o detalhe da bola escorregadia. Mesmo porque onde eles atuam não tem grama e tem poças d’água, formando um lamaçal. — Alô, Mário Franquera Júnior, a chuva pára ou continua? — Olha Pedro, o Instituto de Meteorologia diz que a chuva vai parar. — Obrigado Franquera... esperemos que sim. Neste momento, os altofalantes do Pacaembu anunciam as escalações das equipes. O posto de serviços Esso, de Francisco Zambrana, informa: Escalações das equipes. São Paulo: Mário, Savério e Mauro; Bauer, Ruy e Noronha; Dido, Friaça, Leopoldo, Remo e Teixeirinha. Palmeiras: Oberdã, Turcão e Palante; Valdemar Fiúme, Luiz Villa e Sarno; Lima, Canhotinho, Aquiles, Jair e Rodrigues. O árbitro da partida será o inglês mister Bradley. Que já está entrando em campo sob os apupos e xingamentos da torcida que superlota o estádio. — Alô Pedro... — Fala Ansaldo... — Daqui de trás do gol da concha acústica, diviso um torcedor sentado nos ombros da estátua de Davi. E muitos outros em cima da concha acústica. — É verdade Ansaldo, daqui também eu vejo... A sorte fica com o spiker, que tem o privilégio de estar dentro de uma cabine indevassável, protegido da chuva, que cai em menor intensidade agora. Neste momento, os litigantes desta pugna esportiva adentram o gramado com alguns mascotes à frente para o início de uma partida que poderá ser muito significativa para o esporte bretão. O lysleman da partida e os capitães estão no centro do gramado para tirar o toss e ver quem dará o pontapé inicial desta contenda. O golkiper Oberdã, do time do Parque Antártica, defenderá o arco dos portões monumentais e o kiper Mário, do tricolor do Canindé, ficará no arco da concha acústica. São 16 horas. Hora do Rio de Janeiro. O balão de couro está no círculo central. E quem vai dar o ponta-pé inicial é o center fours do tricolor Leopoldo. Este rola para Friaça que atrasa para o center half Bauer, este deriva para o asa média esquerda Noronha. Quando este vislumbra uma brecha da defesa esmeraldina, vê o couro ser interceptado pelo beque
central Palante, da esquadra de Parque Antártica. Este por sua vez, da linha fronteiriça da grande área, chuta para frente sem destino, sendo que o center half Rui, de cabeça manda para a ponta esquerda à Teixeirinha, que entra livre à frente do golkiper Oberdã, mas o bandeirinha aciona seu instrumento, indicando off-sider, invalidando um tento que seria do São Paulo. O cronômetro marca 45 minutos de jogo da primeira etapa e o lylesman Bradley apita o fim do tempo inicial. Esta é a Rádio Pan Americana, a emissora dos esportes, em sua jornada esportiva dominical, sob os auspícios de Lonas Locomotiva: Lavrador, para maior segurança de sua carga, use Lonas Locomotiva, um produto Alpargatas, produtora do brim Coringa. Que vai de sol a sol, que fabrica as famosas calças rancheiro. — Alô São Paulo. — Fala Rio! — Pedro, começa no maior estádio do mundo o Flá-Flú. — Obrigado. Narciso. E agora vamos para os comentários de Mário Moraes. Senhores ouvintes da Pan. Tivemos neste primeiro tempo um jogo morno, com as duas esquadras com medo uma da outra, fazendo uma peleja retrancada e sem motivação. Se por um lado o antrener esmeraldino colocava seu time mais na retaguarda, mesmo porque o empate o beneficia, o treinador do São Paulo fazia o mesmo, deixando por muitas vezes o círculo central sem jogadores. Por isso tivemos um primeiro tempo sem a marcação de tentos. O único lance que despertou maior emoção foi um córner, chutado pelo ponteiro Rodrigues, que quase entrou direto no arco são-paulino, defendido pelo guarda-valas Mário. Saindo a pelota pela linha de fundo, tiro de meta. — Como é que você viu esse lance, Raul Tabajara? — Com muita preocupação, Mário. Quase que a redonda entra onde a coruja faz o ninho. — Os litigantes dessa porfia voltam depois do descanso regulamentar, e volta com vocês, Pedro Luiz. — Vai começar a segunda etapa. Tudo pronto para o reinício da peleja, o placar é de zero a zero. O center fours Aquiles, do Palmeiras, movimenta do círculo central para o ataque e a bola chega às mãos do guarda-valas tricolor. Mário lança a pelota para a ponta esquerda e Teixeirinha recebe, toca para Remo que devolve a Teixeira, que entra na área e chuta para gooool. Aberta a contagem no Pacaembu. Numa tabela fantástica entre Teixeirinha e Remo que culminou com chute final do ponteiro para as redes defendidas pelo guarda-valas Oberdã. — Vai ser dada a nova saída, Nelson Spinelli. — Pedro, foi uma jogada fulminante do ataque tricolor, a tabela Remo e Teixeirinha, culminando com a bola indo às redes de Oberdã, foi sensacional. Um tento a zero, para o tricolor do Canindé. Já foi dada a nova saída, quem recebe é Jair, domina a redonda, mas quando Jajá da Barra Mansa tenta lançar é desarmado por Mauro. Mas a 107
bola retorna ao ataque esmeraldino e Jair lança Aquiles que invade a área, chuta pra gooool.... Empatada a contenda no Pacaembu. Um tento a um. Depois de dada a nova saída, Savério atinge o ponteiro Rodrigues com violência, Spinelli. — Sem dúvida Pedro, a contusão é séria, o craque esmeraldino está sendo levado a um “nosocômio” mais próximo do estádio. O São Paulo tenta de todas as formas desempatar a partida e vai todo para o ataque. Dido na direita vê Friaça, mas este é interceptado por Luiz Villa que entrega a Valdemar Fiúme, que foge de Dido, e atrasa pra Turcão. Este entrega a Jair da Rosa Pinto, quando o craque de Barra Mansa domina o couro ganhando tempo, o árbitro inglês, mister Bradley, finaliza a peleja. Com o placar de 1 x 1, dando ao Palmeiras o Título de Campeão Paulista de 1950, que pela segunda vez tira o tri-campeonato do tricolor do Canindé. — Pedro... — Fala Otávio Munis. — Os jogadores do Palmeiras neste momento dão a volta olímpica pela pista de atletismo do Pacaembu. Oberdã, visivelmente emocionado, não conseguiu dizer uma só palavra. Glossário: Arco: Trave Asa média: esquerda, aquele que joga na lateral esquerda Balão, pelota, redonda e couro: a bola Córner: escanteio Chove a cântaros: muita chuva Center half: centromédio Center fours: centroavante Cotejo, contenda, pugna e peleja: o jogo em si Esquadra: time de futebol Antrener: treinador Golkiper ou kiper: goleiro Guarda-valas: goleiro Litigantes: jogadores Tento: gol Spiker: locutor Off Sider: impedimento Onde a coruja faz o ninho: ângulos da trave Lylesman: árbitro da partida Tricolor do Canindé: porque naquela época o campo do São Paulo ficava no bairro do Canindé Maior do mundo: estádio do Maracanã Nosocômio: hospital
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Só faltou escrever uma coisa: o juiz inglês, que Deus o tenha, anulou um gol legítimo do meu tricolor, impedindo assim nosso tri-campeonato. Tudo bem, porque o troco veio 20 anos depois, em 1971, com o gol também anulado do Palmeiras marcado por Leivinha, pelo Armando Marques. Portanto, estamos empatados! Carlos Roberto Teixeira Trindade Até hoje não vi ninguém dizer que aquele gol do Teixeirinha estava impedido. O lylesman realmente deu uma mãozinha ao meu Palmeiras. Graças a Deus. Porque 1950 era o Ano Santo. Carlos, o futebol tem coisas que você nem imagina. Eu, como radialista que fui nos anos de 1960 e parte dos anos de 1970, sei de coisas que, se reveladas, ninguém mais iria assistir jogos no estádio. E foram todos os clubes grandes que foram beneficiados. Em 1957, tiraram o título do Santos na penúltima rodada, num dos maiores roubos da história, numa quarta-feira à noite, em que o árbitro garfou o time de Pelé contra o São Paulo, fazendo o tricolor disputar com o Corinthians, vencendo por 3x1. Mário Lopomo
A primeira transmissão da Copa do Mundo Adalberto Amaral O grande acontecimento do ano de 1938 foi, sem dúvida, a transmissão da Copa do Mundo de futebol realizada na França. A cobertura dos cinco jogos disputados pela Seleção Brasileira e a grande final foi realizada pela cadeia de emissoras Byinton, que era formada em São Paulo pela Rádio Kosmos, Piratininga de São Paulo, antiga Rádio Cruzeiro do Sul e a Rádio Clube de Santos. Quem não tinha rádio em casa, se aglomerava no Largo do Paissandu. Por esse país afora, onde fosse viável, as pessoas se reuniam para não perder as transmissões ampliadas pelos alto-falantes que as emissoras espalhavam em lugares estratégicos, inclusive nos estádios de futebol: os apaixonados pelo futebol não queriam perder a façanha dos craques patrícios nos campos ses. O patrocínio exclusivo foi do Cassino da Urca. O locutor foi o Leonardo Gagliano Neto que enfrentou muitas dificuldades na transmissão realizada em ondas curtas, e teve que narrar as partidas na rês do gramado ou, quando possível, de algum telhado nas redondezas do estádio, e até da geral. Gagliano era o único radialista sul-americano em ação nos estádios ses. Assim como o Brasil era o único time participante abaixo da linha do Equador.
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Naquele tempo não existiam comentaristas, repórter de campo e toda a equipe que atualmente participa de uma transmissão. O êxito das irradiações superou as expectativas. Os jornais estamparam as peripécias que Leônidas, Domingos da Guia, Batatais, Perácio e seus companheiros aprontavam a cada jogo na França. Acostumados a transmissões de rádio dos jogos pelo Brasil e em território de países vizinhos, era a primeira vez que podiam acompanhar ao vivo a seleção nacional em gramados europeus. Notícias dão conta de que em 1938 o Brasil parou para ouvir as irradiações de Gagliano Neto. O povo, incrédulo e fascinado com os sons vindos do outro lado do oceano, vibrava. Na estréia, no dia 5 de junho, Brasil 6x5 Polônia mostraram jogo ofensivo, com uma chuva de gols das mais espetaculares de todos os Campeonatos Mundiais. Nas quartas de final, Brasil x Checoslováquia (1x1 e 2x1) disputaram duas partidas seguidas para desempatar: os teams travaram uma verdadeira batalha na praça de esportes. Jogadores expulsos de ambos os lados, alguns checos hospitalizados, feridos com gravidade. Apesar dos nervos, um lance duvidoso garantiu a vitória nacional: a bola escapa das mãos do goleiro brasileiro, entra, mas o juiz não vê e nossa imprensa faz de conta que não aconteceu, evitando comentar o assunto. O tira-teima ainda não existia...
Em 1938, eu era garoto e minha família havia mudado para a Rua Itapicuru, 648, em Perdizes, entre as ruas Ministro Godoy e Doutor Franco da Rocha. No quarteirão inteiro existiam três casas, a minha e mais dois sobradinhos geminados. A rua estava em obras, colocava-se a canalização de esgotos e os condutos de gás encanado. Era uma buraqueira infernal. Meu pai, velho servidor da Justiça, Nelson Washington Pereira, tinha um rádio “capelinha” que acabara de adquirir, substituindo o velho galena de fones de ouvido. Os vizinhos, pouco numerosos, aglomeravam-se em minha casa para ouvir as transmissões do Gagliano. O receptor era colocado na janela para que todo mundo ouvisse... até aquele pênalti que o Domingos fez no Piola, da seleção italiana, na semi-final! A alegria só viria vinte anos depois. Expedito Marques Pereira
A Copa no radinho de pilha Roque Vasto Alguém se lembra da Copa de 1966? Foi realmente emocionante ouvir no radinho de pilha, um Spica, a narração do jogo contra Portugal. O problema era que as ondas de rádio sumiam de repente, e isso no melhor
do jogo. Nessa época eu trabalhava na Companhia de Seguros da Bahia, que ficava na Praça da Sé, 170, sétimo andar, e nesse ano apenas a Rádio Bandeirantes colocou um grande de madeira onde estava pintado um campo de futebol. Esse era cheio de furinhos e tinha em cada furo uma lâmpada. A partida de futebol era irradiada e as lâmpadas indicavam o lugar onde a bola possivelmente estaria. Era uma sensação! Eu queria estar lá em frente ao para assistir o jogo, mas as empresas não dispensavam os funcionários como acontece hoje, apenas toleravam que se ouvisse o jogo bem baixinho para não atrapalhar o expediente. De vez em quando, se ouvia a frase: — Gol de quem, gol de quem?
Aquele placar eletrônico era fantástico. Eu estava lá quando o Brasil jogava contra Portugal em Liverpool e o Euzébio deu um show de bola, perdemos de três a um. Num certo momento, o Euzébio marcou um gol e um português, que era dono de um bar no lado da praça, soltou um caramuru que abalou o lugar. Coitado, o bar foi depredado. Nélio Nelson Gonçalves
As vibrantes locuções do rádio José Luiz Batista da Fonseca Sempre gostei de futebol. E é tanta essa paixão que acho que até sou meio fanático, a ponto de deixar alguns compromissos familiares de lado, só pra poder ir ao estádio assistir à partida do meu time. Mas, não é só de futebol que gosto. Gosto também de ouvir rádio. Isso desde criancinha. Não sei por que o rádio sempre me atraiu. Quando era criança, na minha casa tínhamos um rádio na sala. Era habitual. Todas as casas tinham seu rádio na sala. Mesmo porque não havia ainda televisão. Aliás, minto, já havia. Nós é que não tínhamos dinheiro para comprar uma. Na verdade, poucas eram as famílias que as tinham. Depois a coisa foi ficando mais ível. Daí a TV acabou sendo incorporada àquele ambiente. Não para tomar o lugar do rádio, pois esse era insubstituível. Mas, sim, para somar. A TV ficava em um canto e o rádio no ambiente central. Mas não vou falar aqui da rivalidade do rádio e da TV, vou falar das minhas paixões pueris, que na verdade continuam até hoje, talvez porque eu ainda não tenha crescido, ou essas paixões cresceram comigo, as duas: futebol e rádio. E por falar nelas, nas duas paixões, que tal pensar, então, nas duas misturadas: o futebol no rádio. Como me fascinava ouvir no rádio as transmissões das partidas de futebol. Que emoção! Quanta vibração! Jamais locutor nenhum na TV conseguirá colocar tanta energia numa transmissão 109
de jogo como nas transmissões do rádio. Mesmo porque, como dizem, uma imagem fala mais que mil palavras. Talvez por isso, o locutor de rádio seja obrigado a falar duas mil palavras para tentar construir na mente do ouvinte a precisão do lance, a precisão do momento da partida. E nesse esforço, eles acabam se tornando insuperáveis! Ainda me lembro da Copa de 66, aquela fatídica em que o Brasil entrou de salto alto (“a taça do mundo é nossa, com brasileiro não há quem possa”), por conta dos dois títulos nas Copas anteriores, a de 1958 e a de 1962. Também lembro daquela em que quebraram o rei, Pelé, daquela em que reinou o príncipe, Euzébio, e daquela em que a Coréia mostrou que não tinha só radinho de pilha: tinha também futebol. Daquela em que fizeram tudo para o time da rainha da Inglaterra ganhar, sobre o time do kaiser da Alemanha. E não deu outra! Essa foi a primeira Copa que acompanhei. E pelo rádio. Transmissão tecnicamente ruim, cheia de chiado, como se as ondas magnéticas viessem ao sabor das ondas do mar que atravessam os dois continentes. Mas tudo isso era superado quando “abriam-se as cortinas e começava o espetáculo”. Era o brilhante Fiori Gigliotti, o moço nascido em Barra Bonita, mas criado em Lins! Divino Fiori. Entrava em campo com os jogadores. Sentíamos o coração saindo pela boca a cada jogada de ataque, do “escrete canarinho”, termo por ele lapidado. Ele coloria a transmissão! Dizem que a Copa de 50 foi a pior de todas, a Copa da frustração, mas, “o tempo a...”, como diria o meu amigo Fiori e veio a Copa de 70. Aquela que não teve pra ninguém e talvez a mais espetacular trajetória de nossa seleção em uma competição. Todos os resultados foram incontestáveis. E era a estréia da TV, que ofuscou as transmissões de rádio, na voz do Geraldo José de Almeida, que na verdade vinha da escola do rádio, como muitos outros que migraram para a televisão, como o Walter Abrahão, comandando a Equipe 1040 da Tupi. O nosso rádio da sala aos poucos trocou de lugar com a TV. Ele que era de madeira brilhante, tipo móvel, acabou cedendo seu espaço e se retirou para um canto da sala, mas ainda era útil. E nessa de ser encostado, teve que inovar. Deixou de ser de válvula, que levava um século para ligar, o que muitas vezes fez com que eu perdesse o lance do gol, e incorporou outra tecnologia: a do transistor. Ficou menor, ganhou mobilidade e outro nome: Spica. E assim, deixou o canto da sala, nos acompanhando para todos os lados, mais ágil em todos os sentidos. Bastava acionar o botão e lá começava ele a tagarelar sem parar, ando todos os lances das partidas, não me fazendo mais perder o lance do gol. E assim, eu continuei fiel a ele, por todas as partidas dos campeonatos paulistas. E ele nunca me decepcionou. Mandava suas transmissões de todos os cantos: de Ribeirão Preto, a “Califórnia Paulista” ora com o Comercial, ora com o Botafogo; de Piracicaba com o Quinze;. de Araraquara, a “Morada do Sol”, com a Ferroviária; de Prudente, com a Prudentina, lógico; de Campinas, com a Ponte e o Guarani. Sempre o Fiori. E só o Fiori pra criar essas imagens do rádio. Quantas noites de quarta-feira eu ia pra cama com o meu radinho de pilha, 110
ouvindo as partidas de futebol. E quantas vezes meu pai tinha que tirar o radinho, pôr de baixo do travesseiro para poder desligá-lo, pois quando o jogo era morno ou meu cansaço era grande, que me descule o Fiori. Eu o deixava falando sozinho! E os anos foram ando. Novos campeonatos. Os torneios RioSão Paulo, também pelas ondas do rádio. Vieram os primeiros campeonatos brasileiros. Vieram outros locutores criando suas próprias ondas: “Pimba na gorduchinha”, era o Osmar Santos. Talentoso Osmar, que o destino quis que se calasse e asse a ser ouvinte apenas, como eu. Mas enquanto deu seu recado, falou bonito, criou escola e deixou um irmão, o Oscar Ulysses, que apesar do gene da família, tem seu estilo próprio. Teve o Joseval Peixoto, nome de cantor, mas um tremendo locutor! E o Zé, também! O José Silvério. Locutores e seus estilos, que vão e que vêm, nas ondas etéreas do rádio. E com todas idas e vindas, a TV procura agressivamente atingir as transmissões de rádio. São um, dois, três, trinta canais, livres e pagos, transmitindo várias partidas, de vários campeonatos ao mesmo tempo, com tudo que é recurso técnico: o slow motion, o replay, o tira-teima, a computação gráfica, as dezoito, vinte e quatro câmeras espalhadas no campo, nos vestiários e corredores, a tomada aérea do dirigível. Tudo, pura covardia! E o rádio, o radinho, coitado, tem resistido bravamente. E talvez esse seja o seu segredo. Hoje com seu imperceptível tamanho, resoluto, diminuto, consegue se esconder no bolso dos seus fiéis ouvintes, que sempre o acompanharão, atrás das emoções que só ele, com seus vibrantes locutores, sabe ar!
Eu também sempre gostei de ouvir rádio. Lembro-me dos primeiros radinhos de pilha que saíram no começo da década de 1960. Foi surpreendente ouvir o som saindo do bolso da camisa das pessoas. O rádio era sem fio. Podíamos ir com ele em qualquer lugar. Mas o que eu ouvia era daqueles com fio na tomada. Gostava das novelas da Rádio São Paulo. Saudades... Carmela O Spica foi meu primeiro rádio de pilha! Que novidade na época! Ainda tenho guardada a estrela central do dial de plástico! Wagner
A taça do mundo Luiz Ramos São Paulo, 17 de junho de 1962. Eu era só um menininho; sabia nada de futebol. Um dia, meu pai me tomou pela mão e lá fomos nós ao bar do
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Armando. Eu só pensava no sorvete que iria ganhar, qual sabor escolher, limão ou milho verde; meu pai, claro que somente soube disso muito tempo depois, tanta coisa na vida só descobrimos quando já é muito tarde, ia com o coração disparado, suando frio. Era a final da Copa de 1962. No bar haveria a transmissão do jogo. Os homens com rostos afogueados, alguns excitados pela aguardente, pela emoção, a maioria aguardava febril. O cheiro forte de suor dos homens misturava-se ao odor que exalava dos cavalos arriados que, à porta do bar, aguardavam seus cavaleiros. No jardim, em frente à igreja, crianças da minha idade corriam, brincavam; mulheres tricotavam, cerziam. Acho que o que atraia minha atenção para o mundo lá fora era a indiferença. No bar, homens rudes emocionados “urravam” a cada lance, a cada gol. Dois nomes martelavam em minha cabeça: Garrincha e Amarildo. Foi meu jogo inesquecível. Depois disso, veio o fracasso de 1966. Em 1970, eu era um adolescente, já sabia muito de futebol, mas também sabia de coisas que talvez não devesse saber. Sentia uma espécie de dor na alma ao ler notícias – quando era possível ler essas notícias – da crueldade que era o Brasil dos militares. Acho que sofria por não ir, por não lutar. Claro que me emocionei com a seqüência de dribles do Clodoaldo contra o Uruguai, com o quase gol do Pelé do meio da rua, aquele que não entrou, com a conclusão de Carlos Alberto, fechando a goleada histórica contra a Itália, mas já não era a mesma coisa. O processo de desconstrução já se instalara. A taça do mundo fora servida.
A Copa de 62 e o telão da Praça da Sé
do goleiro Gilmar, um dos mais vibrantes, radiante de alegria, estampada no rosto a alma e paixão dos brasileiros.
Eu lembro muito bem daquela época na Praça da Sé. Lembro também, em 1966, quando o Brasil perdeu para Portugal, os restaurantes dos portugueses... Eu sou um italiano criado em São Paulo que morava no querido bairro do Ipiranga e trabalhava na região central do Mercado Municipal, na Rua da Cantareira. Para mim é difícil falar de São Paulo sem morrer de saudades da década de 1960. Voltei para a Itália há muitos anos, mas a lembrança é sempre viva. Giuseppe Orsini Fui testemunha viva desse dia, pois estava na praça vendo o telão de pequenas lâmpadas que, apesar da falta de imagens, emocionava a todos em função das belas narrações, principalmente do falecido Geraldo José de Almeida, de quem, entre outras frases, selecionei estas mais marcantes: “Brasil Patrão da Bola” “Pelé craque café” “Olha lá, olha lá, olha lá, no placarrrrr” “Qui que é issssso minha gente”. Roberto Motta de Sillos
Copa de 70 Alceu Mendes
Turan Bei Foi a Copa do Chile e Vinã del Mar sediou os brasileiros. Nós, aqui ficamos. Vontade de estar lá não faltou, mas a televisão trouxe a emoção mais próxima dos nossos anseios, embora em preto e branco. Na Praça da Sé instalaram um telão, não destes de agora, pois a tecnologia de então era incipiente, mas encheram a tela de pequenas lâmpadas para se dar uma idéia da posição dos jogadores em campo, e à medida que as lâmpadas se acendiam, a gente acompanhava o vai-e-vem dos ataques e contraataques, sempre com a voz poderosa dos famosos locutores da época, como o Geraldo José de Almeida, Fiori Gigliotti, Pedro Luís. A Praça da Sé regurgitava de gente e quando dos gols do Brasil, a gritaria e os estampidos dos morteiros enlouquecia os torcedores. Foi aí que aconteceu o bi. Quando os campeões retornaram, foi na Praça da Sé que se concentrou a imensa massa humana para as homenagens e os jogadores desfilaram nos caminhões do Corpo de Bombeiros. Na praça não cabia uma agulha e por muitas horas os campeões ficaram recebendo a ovação popular. Lembro
Após ganharmos a Copa do Mundo de 1970, lembro-me da comemoração, em plena Avenida Santo Amaro, quando o amante de futebol José Dias, ex-diretor do São Paulo, entrou com um trator na avenida, paralisando o trânsito, e todos comemoraram esse brilhante título mundial. Bons tempos... Bons tempos... Saudades... muitas saudades...
Flamengo da Vila Olímpia Mário Lopomo O Flamengo da Vila Olímpia tinha sido um clube dos mais respeitados do bairro. Porém, de uma hora para outra, ficou parado. No início da década de 1950, a molecada pegou as camisas que estavam guardadas e, com ordem dos diretores, ou a usá-las. A partir daí o time começou a jogar. Como a maioria era de garotos de 15 a 18 anos, o time era chamado de 111
Flamenguinho. Não tinha campo, por isso sempre jogava no do adversário, geralmente aos domingos à tarde. Era difícil encontrar um adversário cujo time de jogadores tivesse a nossa idade, eram sempre adultos. Mesmo assim, dávamos um banho de bola em muitos times. Como jogávamos bola juntos, estávamos bem entrosados. Tomávamos muitos pontapés devido ao atrevimento daqueles que driblavam num autêntico desrespeito aos mais velhos. Pelé, um crioulinho que jogava com uma meia de mulher na cabeça, era o verdadeiro diabo em campo, era o terror dos adversários. Tinha também o Feió. Era o apelido de um garoto chamado Sérgio, que era mais feio do que a sogra do diabo. A molecada na gozação gritava: Feió, toma bonitó. O interessante é que ele levava tudo na brincadeira, já que também era um gozador. Além de feio, era ruim de bola, e como ele era da turma desde o tempo que jogávamos descalços, tinha vez no time. E, como todo ruim de bola, ou ia para a ponta esquerda ou para o gol. Ele preferiu o gol. E não é que ele estava catando bem? Um dia, em 1959, fomos jogar na favela do Vergueiro, a primeira favela de São Paulo. Um campo de terra vermelha, cercado de favelados por todo lado. Como sempre, a molecada dava seu show de bola. Como o campo era de terra, a bola não pulava muito, os es saíam redondinhos e os dribles também. Um monte de maloqueiros ou a torcer para nós. Isso era comum, porque éramos todos moleques raquíticos. De repente, os adversários começaram a marcar um gol atrás do outro. Quando eles marcaram o sexto, fui até o Feió e falei: — Assim não dá, pomba. A gente sua a camisa aqui e você deixa ar tudo! Ele estava mais branco do que palhaço quando ava Alvaiade na cara. — Olha, tá vendo aquele cara ali? — Sei, tô vendo, o que tem ele? — Ele faaalô, queee, see, euuu… não deixar a bola ar vai dar uma facada na minha bunda. Perdemos o jogo de oito a zero. Na Vila Maria também fomos jogar certa ocasião, em 1960. Ali, quem fazia xixi fora do pinico apanhava pra burro. O campo era numa baixada com morros dos dois lados. Num dos morros estava escrito: Jânio vem ai. Eu estava jogando de half direito, volante de contenção nos dias de hoje, e tomando um baile do meia-esquerda adversário. ei a marcá-lo em cima e os dribles continuaram. Então desci a bota no cara, que nem reclamava, ele queria mesmo era driblar. Quando estava perto do árbitro, vi por baixo da camisa um revólver que tinha o cano cromado. Aí comecei a jogar “direitinho”, respeito é bom e todo mundo gosta, inclusive eu. Aos poucos, o pessoal adulto foi voltando e muitos dos garotos continuaram no time. Sua reestruturação se deu em 1962. Foi formado um time 112
de peso. A diretoria tinha seu Gê, o Jesuíno, como presidente, Celestino, o padeiro, como vice e Celestino, o leiteiro, como tesoureiro. Malvino Pereira era o diretor esportivo e eu, o secretário-geral. O Flamengo era por demais conhecido em Santo Amaro. Seu grande adversário era o Palmeirinha de Santo Amaro onde jogava o meia-esquerda Marin, que foi Vereador, Deputado Estadual, vice-governador de Paulo Maluf e depois Governador de São Paulo.
Domingo das bolas Nelson Arjona No início da década de 1970, eu fazia parte de um time muito bom, o Santista do Mangalot que, inclusive, era um dos melhores da região da zona norte e de Osasco, onde éramos muito conhecidos. Certo domingo, havia um jogo muito importante, pois tínhamos 29 partidas invictas e, na 30º, teria uma comemoração: uma feijoada regada de cerveja e caipirinhas. O jogo acertado seria contra o Sete de Setembro do Piratininga, de Osasco, ou seja, um festival finalista com o dono da casa. Partimos para o local do jogo, do bar do Neco, que era a nossa sede, com dois ônibus, muito samba e muitas mulheres, mas, eis que no ônibus surge um cara, que eu não lembro o nome, e começa a distribuir um tubo de “bola” ou arrebites. Eram os tais Artenis, que o cara tomava duas e via “bicho”. Os jogadores que iam jogar no primeiro quadro, uns quatro ou cinco, o beque central, o quarto zagueiro, enfim, um monte deles tomou esse tal de Artenis, inclusive o nosso ponta, que era o melhor jogador do time e que desequilibrava o jogo – ele, que não tomava nada de álcool, era um puritano, naquele dia tomou uns dois Artenis. O segundo quadro nós ganhamos, aí fomos para o jogo principal, o jogo das invictas. Nos primeiros 5 minutos, tudo bem, mas com o ar do tempo, os nossos jogadores começaram a não enxergar a bola, os nossos zagueiros entregaram o ouro, nosso ponta, que era a esperança, logo nos primeiros minutos de jogo teve um ataque de choro e precisou ser medicado em um hospital de Osasco. Eu só sei que o jogo terminou em 3 a 0, nós tomamos um baita de um show, o nosso treinador, o Nando, que era um policial militar, daqueles “sujo” com drogas, ficou fulo da vida. Sempre quando eu vejo ou ouço alguém falar em arrebites ou “bola”, eu me lembro desse desastroso domingo, das invictas, do Santista, do Sete de Setembro de Osasco e dos Artenis.
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Melô Futebol Clube, um time de várzea
Times da Vila
Luizinho Trocate
Walkiria Santiago
Joguei bola em diversos times de várzea. Atualmente o pessoal joga futebol, naqueles tempos a molecada jogava bola. Parece tudo a mesma coisa, mas não é. O jogo de bola, a pelada, tem suas regras criadas no momento, não tem impedimento, banheira vale e vale muito, se não tem goleiro, reduz-se o gol pra “garrafa” e um bloco de concreto faz as vezes de arqueiro, embora não tenha arco. A bola pode ser dos mais diferentes formatos, talvez o mais comum seja o oval, só quando já está meio quadrada que não dá jogo, mas tem uns que jogam, por mais quadrada que esteja; chegamos a jogar até com potinhos de iogurte. Era a bola! Nos times que joguei, a coisa já era mais ou menos séria; disputei vários torneios no campo da FRUM, na Vila Maria, por exemplo; no ABC, joguei no Alvinegro, no Parque Oratório e no Nacional, disputei torneios em Taubaté; disputei o campeonato amador de São Paulo por um time de São Mateus, mas, ainda que organizados, com uniformes completos e até bandinha tocando pra incentivar, o jogo não perdia a alegria. Driblar era preciso. Uma vez fui convidado pra bater uma bolinha em um time recém-formado e, no primeiro jogo, contra o Flamenguinho do Jardim Elba, perdemos por 2 a 1. Fiz dois gols, pena que um foi contra, eu brincava na ponta esquerda; me meti a zagueiro no final, pra “reforçar” a defesa, e desempatei o jogo. O time acabaria aí; o resultado desanimou a turminha, principalmente o zagueiro – bom de bola – chamado Solera, já falecido. Mas, na sede, no Bar do Raí, alguém disse que o time, então sem nome, não poderia melar por causa de um mau resultado, foi daí que amos a chamar o time de “Melô” Futebol Clube e fechamos um acordo: o dia que o time perdesse um jogo, nós acabaríamos com ele. Ficamos invictos 26 partidas; perdemos a 27ª e o time encerrou suas atividades. Melou de vez! Pena, ficou na saudade.
Nas décadas de 1950, 60 e 70, morei na Rua Fradique Coutinho, esquina com Rua Harmonia, na Vila Madalena. Lembro dos festivais de futebol que aconteciam nos campos do Leão do Morro e Sete de Setembro, onde atualmente existe um conjunto de prédios do BNH. Lembro também da época em que a Fradique Coutinho foi asfaltada, brincávamos de carrinho de rolimã naquela tremenda rampa, era maravilhoso! Hoje a Vila é um bairro totalmente diferenciado, acampado de lindos bares e famoso por suas diversificações e qualidade de vida. Amo São Paulo!
No meu tempo de moleque era a mesma coisa. Estranhamos quando deixamos de jogar descalço para colocar chuteiras. Não demorou muito para a gente se acostumar, mas que era gostoso jogar descalço, isso era. Tínhamos muitos terrenos gramados na Vila Olímpia e Brooklin. A natureza se incumbia de fazer aquele gramado reto e com grama miúda, que a bola rolava redondinha, mesmo se fosse bicuda. Quando cismávamos de jogar no gramado da Sociedade Hípica Paulista, na Rua Guaraiúva, a gente se quebrava todo. O gramado era um tapete. Só que cheio de buracos, por causa do jogo de pólo, os buracos eram feitos pelas patas dos cavalos. Moleque sempre procura sarna para se coçar. Mário Lopomo
Não só vivi como joguei, nas décadas de 1950 e 60, no Sete de Setembro, um dos times tradicionais da Vila Madalena. Também contávamos com os campos do Primeiro de Maio e do Vasco da Gama, o Vasquinho, que ficava ao lado do campo do Sete de Setembro, onde atualmente encontra-se o Fórum de Pinheiros. Valter Basile
Campeonato Varzeano de Futebol Mário Lopomo Era o ano da graça de 1956. O campeonato varzeano estava em franca evolução. Estávamos no primeiro turno e os grandes clubes da várzea eram colocados em diversos grupos para a classificação para a fase seguinte. Num dos grupos estavam dois gigantes do futebol varzeano da zona sul: Marechal Floriano do Itaim Bibi e Estrela do Ipiranga. Quando esses dois gigantes se encontraram, ainda no primeiro turno, o jogo foi no campo do Estrela, perto da Avenida Nazaré. O campo ficava no alto, uns dois metros acima do planalto do bairro. A preliminar estava em desenvolvimento e ouvíamos comentários de como se portava o time do Estrela. Era um time que jogava duro, marcava bem, e dificilmente perdia em seu campo. Dizia-se também que o Estrela tinha certos jogadores e muitos torcedores destemperados, que para ir à agressão não pensavam muito. A impressão era de que tudo aquilo era dito para amedrontar o time do Marechal. O jogo começou com arbitragem de um juiz da Federação Paulista de Futebol e seus auxiliares. O Marechal se mostrou bastante à vontade e foi para o ataque em busca dos gols, como sempre fazia quando estava no seu campo, apesar de nunca ter se curvado 113
no campo do adversário. O primeiro gol não tardou a acontecer; o Estrela, surpreendido, se desarticulou e o Marechal marcou o segundo. O campo apinhado de pessoas, todas incrédulas. Gritavam, xingavam os adversários, que não estavam nem aí, pois alguns já tinham jogado em times da divisão primeira do campeonato de futebol profissional, como: Olegário, James, Ari e Simãozinho, que tinham jogado no Radium de Mococa, no início da década de 1950. Mas o que havia sido dito sobre o temperamento dos jogadores do Estrela se mostrou ainda no primeiro tempo. Oscar, zagueiro central, dominou a bola no peito, deixou cair ao chão e, para esfriar o time adversário que fazia forte pressão, atrasou a bola para o goleiro Bolívar, que também tinha sido profissional. Quando Bolívar se agachou para pegar a bola, o centroavante do Estrela veio de encontro a ele chutando sua clavícula, que foi fraturada. Algum jogador do Marechal disse que, mesmo que tivesse que morrer, o Marechal ganharia a partida. O jogo continuou, e como naquela época não era permitido fazer substituições, o ponteiro esquerdo Branca foi deslocado para o gol, e o jogo terminou em seu primeiro tempo com dois a zero no placar para o Marechal. No segundo tempo o Estrela foi com tudo pra cima dos Itaienses, mas com uma defesa muito boa, onde se destacavam o zagueiro central, Oscar, e o lateral esquerdo, Jacó, os quais tentavam evitar que a bola chegasse ao gol, agora defendido pelo improvisado Branca. Mesmo assim, o Estrela conseguiu empatar a partida em dois a dois. O jogo estava chegando ao final, sendo que esse empate já era uma grande coisa para o time da casa, mas o que eles queriam mesmo era a vitória, empate para eles em casa, era derrota. Eles queimavam todos os cartuchos em busca do gol da vitória, a pressão era muito forte, e o jogo ia chegando ao fim. Numa das investidas finais do Estrela, o zagueiro central, Oscar, deu um chutão para frente, um clássico, aquele que matava no peito e dava de chapa para um companheiro. Aí o centroavante Baba pegou a bola, ainda no campo do Marechal, tendo somente o zagueiro adversário para marcá-lo. Baba corria feito louco, e o zagueiro não conseguiu acompanhar: ando pela intermediária, o goleiro do Estrela saiu do gol e já estando fora da grande área viu a bola ser rolada por Baba do seu lado, indo para o gol lentamente. Tinha gente atrás do gol que até assoprava para a bola não entrar. Mas, infelizmente, a bola entrou. Não deu tempo para muita coisa e o juiz terminou o jogo. Três a dois para o Marechal. Assim que o apito final foi dado, os torcedores invadiram o campo e as agressões covardes aconteceram. O caminhão que tinha levado os jogadores foi totalmente destruído. Carros que eram de diretores também sofreram avarias. Os jogadores do Marechal não sabiam para onde correr, tinha jogador que se atirava do barranco ficando todo arranhado, sem contar os rostos e outras partes do corpo inchadas, devido a socos e pontapés recebidos. Jacó, lateral esquerdo que tinha uma deficiência na perna esquerda, cor114
reu para o meio da Avenida Nazaré e se postou à frente de um ônibus do Expresso Brasileiro que ia para Santos. Quando a porta se abriu, Jacó, bastante assustado, gritou para o motorista: — Fecha a porta, por favor, eu desço no quarteirão seguinte. Não precisou explicar nada, pois tanto o motorista quanto os ageiros assistiam à selvageria. Os jogadores voltaram para casa com o uniforme do time, porque as roupas ficaram no vestiário. Bolívar, que já tinha voltado do hospital, com gesso no pescoço e uma tala no braço, foi cercado por dirigentes do Estrela para evitar que ele também fosse agredido. Tinha gente que chegou ao Itaim às 5 horas da tarde, sendo que o jogo devia ter terminado por volta da uma. No Itaim, só se falava em vingança no segundo turno, caso eles viessem jogar no campo do Marechal, mas, numa reunião da diretoria do Marechal, o time deixou o campeonato. Para evitar uma carnificina, caso o jogo fosse realizado. Dois anos mais tarde, voltei a jogar no bairro do Ipiranga, pelo Flamengo da Vila Olímpia, contra o Democrático, num campo de terra vermelha. O jogo transcorreu numa boa e os jogadores do Democrático e os torcedores eram bastante educados. Perdemos por 4 x 2.
Joguei no Marechal Floriano, em 1965, e ficamos dois anos sem perder, o que aconteceu contra o Juvenil do Corinthians, em 1967. Que saudades desse tempo! Conheci todos os jogadores citados, como o Jacó. Que lateral! O time era espetacular na minha época. Alceu Mendes Era difícil o jogo de várzea que não tinha uma encrenca. Mas essa pelo jeito foi de “cachorros grandes”. Luiz Lopes
Jogador de pelada Clésio de Luca Com 19 anos fui para São Paulo com a intenção de estudar e trabalhar. Queria ser alguém e acreditava que num centro grande as chances e oportunidades seriam maiores. Morei, a princípio, em Santo Amaro com um amigo conterrâneo, o Zé Paulo, palmeirense roxo. Íamos aos estádios para ver e assistir o “Parmera” jogar. Não era palmeirense, mas como o Zé Paulo, meu cicerone, era “verdão”, não podia me manifestar. Quanto mais o Zé torcia, mas eu ficava com raiva daquele time. Atualmente, encontro o colega e amigo com pouca regularidade e ele não desconfiou nunca da minha torcida anti-palmeirense.
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Minha intenção nessa história é contar também um secreto segredo: queria ser jogador de futebol e também foi por esta razão que vim para São Paulo me aventurar. Mas fiquei somente nas peladas que meus colegas de trabalho arrumavam. As portas dos clubes eram e são bem fechadas, tanto naquele tempo quanto agora. Se o atleta não tiver um “padrinho” ou um empresário, não consegue espaço nem para treinar. Com isso, me revelo: sou daqueles atletas ditos frustrados, por não terem tido uma chance de atuar em um time profissional. Querer eu queria, mas não foi possível. Cogitei, é a pura verdade, treinar no Corinthians quando o Reizinho, do Parque São Jorge, iniciava a sua carreira de glória, o agora chamado Bigode. Mas certas coisas não são para todos, mesmo assim, não fiquei magoado nem ferido com ninguém. Para terem uma idéia do meu potencial, em minha terra natal joguei bola com Valdomiro Vaz Franco, que se profissionalizou muito rápido, ex-Internacional, e também com alguns jogadores do meu tempo como o Nilzo, ex-Santos, o Hélio, Portuguesa de Desportos, o Tenente, ex-São Paulo e já falecido, e tantos outros. Foi assim, então, que por muito pouco não me tornei um jogador corinthiano. Os colegas que me conheceram atestam a minha capacidade futebolística. Minha esposa, para não me deixar inflado, costuma dizer: — Menos, tá! Abaixa tua bola.
Eu também queria porque queria jogar bola. Um dia minha namorada me disse: — Você escolhe, ou o futebol, ou eu. Falei na hora: — Prefiro o futebol. Para me despedir, a peguei para dar umas palmadas no bumbum... Aí pensei... Má que futebor, que nada. Me casei. Mário Lopomo Tive um amigo que foi goleiro do juvenil do Fluminense, quando o Paulo Emílio era o técnico do mesmo. ado alguns anos, esse amigo se tornou gerente de vendas de um laboratório farmacêutico e, numa viagem à Bahia, soube que o técnico do Bahia era o Paulo Emílio. Não vacilou, foi ao Bahia com o nosso propagandista de Salvador, que era um grande gozador. Na concentração o Paulo Emílio reuniu os jogadores e apresentou: — Pessoal, esse é o Odilon e foi meu goleiro no juvenil do Flu. Ao sair, quase que o Odilon não cabia no carro e com seu sotaque bem carioca perguntou ao propagandista, cheio de orgulho: — Vistes? A resposta foi curta e grossa: — Chefe, se tu fosses bom de bola não serias propagandista, com a típica malemolência baiana. Antonio Souto
O Largo da Briga Nelson Arjona Largo da Briga, um dos locais mais tradicionais de Pirituba, onde fica o Centro Educacional Geraldo José de Almeida e o antigo campo da União, local de grandes clássicos de Pirituba. O Centro Educacional, como é conhecido, foi inaugurado em 1966, se eu não estou enganado, e eu participei da inauguração jogando pelo Brasil de Pirituba contra o Máquinas Piratininga: vencemos por 3 x 1. No jogo de fundo, a seleção de Pirituba enfrentou o juvenil do São Paulo Futebol Clube, e o São Paulo acabou vencendo o jogo. O Brasil de Pirituba era mais conhecido como o time do Garrincha, pois o Garrincha era tudo: técnico, diretor e grande descobridor de talentos como Zé Roberto, ex-Palmeiras e Londrina, Toninho Vanuza, Carlos Alberto, exNáutico e vários outros jogadores. O Largo da Briga, ou Centro Educacional, era o local dos grandes clássicos de Pirituba, como o Santista do Mangalot versus Comercial de Pirituba, São Carlos versus Sidoni. Nos dias de jogo, bares como o do Raul, do Severa e do Augustinho ficavam cheios, o dia inteiro com grandes batucadas, só que no meio da brincadeira aconteciam os bate-bocas, tanto que foram as brigas no Largo que deram origem ao nome do local.
Campinho Luiz Aurelio Boglar Éramos crianças e todos do bairro iam para lá jogar bola, empinar pipa, jogar bolinhas de gude, enfim, era um lugar que todos avam e acabavam voltando de tão gostoso que era. Estou falando do campinho da Avenida Eusébio Matoso, cujo espaço foi ocupado pelo atual Shopping Eldorado. Bons tempos! Aí nesse campinho, que não era tão campinho assim, jogava o Brasil de Pinheiros. Quem conhece bem esse time é o Muricy, hoje técnico do São Paulo... tanto ele quanto o pai jogaram muito por lá. Wilson Borges Na Vila Olímpia e no Brooklin existia terreno para milhares de campinhos. E como era gostoso jogar bola naqueles campinhos. Tinham terrenos que a grama era sempre ralinha. A bola corria solta. Era somente futebol o nosso jogo. Fosse nos dias de hoje, fatalmente teriam várias quadras gramadas com rede de vôlei, tabelas para basquete e até tênis, depois do fenômeno Guga. Mário Lopomo 115
Sou do Caxingui... Joguei várias vezes no campo que ficava ali, onde hoje é o Shopping Eldorado. Era o campo do Brasil de Pinheiros. Jogar bola, bolinha e empinar pipa, eram as diversões dos garotos da cidade, quando ser moleque era algo saudável. Francisco Lemme Filho
dia, quando decidi desobedecer meus pais. Ao voltar para casa, só fiquei mais calmo quando soube que os amigos estavam bem, apenas arranhões. Muitos anos depois, o córrego foi canalizado e o Campo do Éden foi enterrado pela nova Avenida 23 de Maio. Hoje em dia, quando arem por lá, façam o sinal da cruz em respeito aos que ali tombaram... jogando ou assistindo o nosso famoso futebol de várzea.
Campo do Éden Nélio Nelson Gonçalves Certas coisas eram proibidas na minha vida de criança. Eu não podia ir para os lados da Rua Aurora, na Boca do Lixo, porque era o paraíso das drogas e da prostituição. Já a Major Quintino, na Boca do Luxo, era mais tolerada porque as casas noturnas estavam sempre fechadas durante o dia. Parque Shangai era um não e não, porque corria o boato que crianças desapareceram por lá. Outro lugar proibido era o Campo do Éden. Minha mãe até se benzia quando eu falava nesse nome. O Campo do Éden estava localizado na várzea, mais ou menos onde atualmente está o Viaduto Jaceguai, entre a então Rua Liberdade, hoje avenida, e a Conde de São Joaquim. Era uma fedentina danada devido ao córrego cheio de esgotos que por ali ava. Aos sábados, sempre tinha jogo e quebra-quebra, e alguém saía sangrando. Apesar de tudo, eu pensava em ir para aquele lugar assistir um jogo de futebol, porém, tinha receio de que meus pais descobrissem e me dessem uns cascudos. Até que um dia, lendo a Gazeta Esportiva, na seção “Convites para Jogar”, fiquei sabendo que o time da Sudan, penso que era uma fábrica de cigarros, viria jogar naquele campo no sábado seguinte e decidi desobedecer. No sábado, juntamente com outros pirralhos, fomos para lá e acabamos nos perdendo durante o jogo e eu fiquei sozinho. Havia muita gente, veio até uma caravana de caminhões da várzea do Glicério. Lá pelas tantas, com o time da casa perdendo, o beque central deu um pontapé no guardavalas do time visitante e o quebra-pau começou. E eu ali, sem saber para onde ir porque eram garrafas de cerveja e pedras voando por todo lado. Como aquele lugar era um verdadeiro lixão, onde pessoas depositavam velhos sofás, camas e tudo mais, os valentes começaram a usar esses objetos como armas. O jogo acabou. E eu ali escondido atrás de umas bananeiras pensando o que estaria acontecendo com os meus amigos. Estariam vivos? Pensava eu. E meus pais, quando sentirem minha falta? Já estava escurecendo, quando escutei latidos de cachorro e era a Força Pública chegando. Foram recebidos a pedradas, porém alguém gritou que mais reforço estava vindo pela Rua Asdrúbal do Nascimento e os briguentos se dispersaram. Havia vários feridos graves, penso que ninguém morreu, pelo menos naquele 116
Participei de vários “rachas” no famoso Campo do Éden. Jogávamos o dia inteiro até escurecer, com intervalo só para almoço. O Éden F.C. tinha bons jogadores e era quase imbatível; quando perdia o jogo, ganhava no tapa. Tive a oportunidade de ver um jogo do Éden que mudaram de juiz umas quatro vezes, só não mudaram mais porque não acharam ninguém com coragem para apitar e o jogo terminou sem juiz. O Éden tinha bons jogadores, um deles, o Torresmo, jogou profissionalmente pelo São Paulo F.C. com o nome oficial, Souza. Se não me engano ele foi até negociado para um time do exterior, o que não era tão comum como hoje em dia. O Torresmo tinha um irmão mais novo, também muito bom de bola, cujo apelido era Torresminho. Não sei que fim levou. Francisco Barroso Durante algum tempo a sede do Éden Liberdade foi na Vila Itororó, o excêntrico conjunto arquitetônico da Martiniano de Carvalho. Naquela época era conhecido como “A Arca”. Luiz Saidenberg
General Couto Magalhães, um time do Itaim Mário Lopomo Este era o nome de um dos melhores times de futebol do Itaim - Vila Olímpia, no início dos anos de 1950. Seu campo era na esquina da Rua Joaquim Floriano com a Avenida São Gabriel. Sua sede, um bar, na Avenida Santo Amaro quase esquina com a Rua Firmino Ladeira, Santa Justina. Dali saía o caminhão levando os jogadores e alguns torcedores para seu campo ou para o campo do adversário. Quem não perdia um jogo sequer era seu Alfredo. Quer no campo do Couto ou no do adversário. Ele não sentava no chão da carroçaria do caminhão, tinha seu banquinho predileto que levava todo domingo e, na volta deixava, guardado no bar. Num domingo meio chuvoso o Couto foi jogar no campo do adversário. O caminhão lotado de jogadores do primeiro e segundo quadros, e mais
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os torcedores de sempre. O percurso era em direção ao centro da cidade. Quando o caminhão estava saindo da Avenida Santo Amaro para entrar na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, que é uma curva fechada, a carroçaria do caminhão, 40 cm maior que a cabine, bateu no poste que estava bem na beirada da guia. Com o baque, a carroçaria se desprendeu do chassi e ficou no chão virada, pois tinha muita gente sentada na beirada. Todos caíram. Um ficou por cima do outro. O motorista que estava embriagado nem se deu conta do acontecido e continuou a caminhada metros a frente, só parando perto da Rua Oliveira Dias. Conclusão: no acidente, quatro mortos e muitos feridos. Dentre os mortos, seu Alfredo. Foi uma tristeza sem tamanho. No dia seguinte, os corpos que estavam sendo velados nas próprias residências, o que era normal naquele tempo, saíram todos no mesmo horário e pararam em frente ao bar-sede do Couto. Depois de uma pequena solenidade cada qual foi para o cemitério de origem. Sendo que um corpo foi trasladado para uma cidade do interior. Ali terminou a gloriosa carreira de um time muito bom. Em seu campo foram montados circos e parques de diversões, até que foi construído o segundo supermercado do Brasil: o PegPag. A primeira loja já havia sido instalada na Vila Mariana. Anos mais tarde, final dos anos de 1960, alguns saudosistas resolveram reerguer o Couto, mas não tinha nada a ver com aquele esquadrão inicial.
O Juventus da Rua Javari César Lapinskas Não havia nada como assistir a um jogo na Rua Javari e poder ver o “garoto travesso” – time do meu coração, de carteirinha e de tudo até hoje – aprontar uma para o Palestra ou o Corinthians. Nada como ver um Ferroviária de Araraquara, com o Rosa e o Dudu, o Botafogo de Ribeirão Preto e outros do interior, que deram tantos craques. Poder ver o Pelé e o seu Santos fazer um dos gols mais memoráveis de sua carreira e ainda por cima ter o Felix, ex-seleção e campeão, como vizinho. Eu morava na Hipódromo com a Rua dos Trilhos, isso sim era emoção, poder xingar os jogadores bem de perto, com os sempre diabólicos juízes, quase pegando nos cabelos deles pelo alambrado tão próximo... saudades mesmo... Atualmente a Rua Javari e o Juventus são tristes, que pena que a nova molecada não tenha as emoções que pude ter...
A Rádio Bandeirantes transmitia esses jogos emocionantes e, mesmo à distância, por esses rincões afora, quem não se lembra com saudade desse Juventus da Rua Javari. Claro, um time de muita tradição. O último
jogo do Juventus que assisti ao vivo foi no Pacaembu contra o Corinthians, o resultado foi de 1x0. Nesse jogo, o Viola bateu com a cabeça na trave e ficou meio desacordado, foi só um susto e o Juventus, como você disse, “garoto travesso”, venceu. Clésio de Luca Eu também tive essa felicidade de poder freqüentar a Rua Javari. Em 1949, fui com meu pai assistir a decisão da segunda divisão entre Guarani x Batatais, em que o Batatais foi escandalosamente roubado pelo juiz e quem subiu foi o Guarani, me explicou papai, pois eu não entedia nada de futebol. Quanto ao Felix, que você cita em seu comentário, também tive a felicidade de estudar com ele na antiga Escola Técnica de Comércio Brasilux, Não sei se é do seu tempo, eu morava na Rua da Mooca. Hoje resido em Araraquara, mas esquecer a Mooca, jamais! Carlos Roberto Teixeira Trindade Nos fins de semana eu ligava o rádio para ouvir os comentários antes dos jogos e, de repente, ouvia: — E na Rua Javari o Juventus enfrenta o..... Pegava o ônibus na Rua do Orfanato e lá ia ver qualquer jogo que tivesse. Noroeste, Guarani, até o Santos de Pelé & Cia, mas não fui no jogo que o Pelé fez aquele gol... o jogo que eu vi foi 4x2 e já tinha Milton Buzzeto, Antoninho... Otavio de Camargo
Rua Javari, templo do futebol Luiz Seman Saí de São Paulo em 1994, para morar em Curitiba. Desde então, volto à cidade uma ou duas vezes por ano, por períodos rápidos de uma semana, para visitar meus pais que ainda residem na Mooca. Numa dessas visitas, fui com meu pai assistir um jogo do Juventus na Rua Javari, para relembrar os anos de 1970. Mais precisamente 1972 e 1973, quando o Juventus formou um timaço que, com poucas alterações na escalação, tinha: Miguel, Carlos, Celso, Oscar e Osmar; Brida, Brecha e Adnan; Luís Antonio, Antoninho e Ziza. Todo domingo eu e meu pai íamos à Javari ver esse time ganhar de quase todo mundo. Jogávamos sabugo de milho na cabeça do goleiro adversário, xingávamos o bandeirinha que corria perto do alambrado, comíamos “canolis”, tomávamos Guaraná Champagne caçula e ouvíamos a mesma marcha tocada nos velhos alto-falantes... Um 117
espetáculo simples, porém cheio de significado e magia, que hoje carrego na memória. E sempre que volto à cidade, procuro resgatar essa memória tão doce e feliz!
Francisco Rodrigues: o Tatu Mário Lopomo Rodrigues, também conhecido como Tatu, veio do Rio de Janeiro. Jogava no Fluminense e entrou para o Palmeiras em 1949, no mesmo ano que Jair Rosa Pinto. O Palmeiras tinha uma ala esquerda de fazer inveja a qualquer clube. Jair lançava de 40 jardas e tinha um chute potente, apesar de suas canelas finas. Rodrigues também chutava forte e quando fazia seu chute, se curvava, o que lhe rendeu o apelido de Tatu. Além do Palmeiras, jogava também na seleção paulista e brasileira. Foi o ponta esquerda da seleção que foi à Copa de 1954. Ganhou muito dinheiro. Além do ordenado, ganhava também o “bicho” pela vitória ou empate. Era pago em dinheiro vivo no vestiário, logo após o jogo. Era uma exigência dos jogadores de todos os clubes. Às segundas-feiras, Rodrigues era visto na mesa de um bar da Rua da Mooca, contando dinheiro com ajuda de amigos. Tinha também algumas propriedades por ali. Era um boêmio inveterado. Fazia o que praticamente todos faziam. Gastava muito dinheiro com a mulherada. Jogava nos cavalos. Um sábado, no Pacaembu, foi até o alambrado perguntar a um amigo seu, ali postado a pedido dele, se sua barbada havia ganhado o páreo. As pernas começaram a fraquejar. Ele já não era mais aquele jogador maravilhoso de anos anteriores naquele ano de 1955. Estava praticamente fora do futebol. Não era qualquer clube que se arriscaria a contratá-lo, devido sua fama de boêmio. Ainda tentou de novo no Palmeiras, em 1957, mas não tinha mais condição de jogo. Para ter algum ganho foi trabalhar nas Indústrias Francisco Matarazzo, como representante comercial. Um dia o encontrei na Avenida São João, conversamos um pouco, vi que ele estava pouco falante, triste. Já não tinha mais família, estava à mercê da sorte. Os amigos de fastígio viraram as costas. A doença veio, o caos estava estabelecido. A diabete o pegou em cheio. Uma perna foi amputada. Tempos depois a outra. Estava sobre os cuidados do INPS. Naquele triste estado, entrevistado pelo jornal A Gazeta Esportiva, disse: — Se tivesse que começar de novo, faria tudo igual ao que fiz. Fui feliz. Fiz tudo o que quis. Não demorou muito veio a morte. Pelo que foi no futebol, praticamente morreu como indigente. Seu filho que tinha um pouco de semelhança fisionômica, mas fisicamente mais alto e forte, jogava de meia-esquerda no 118
clube do Mé, do Itaim Bibi, onde atualmente está situado o Parque do Povo. Um dia fui dizer a ele que tinha conhecido seu pai e que ele era um grande jogador. Percebi uma réstia de vergonha por ser reconhecido como filho de Rodrigues. Disse que seu pai tinha sido um bom jogador, e só.
Lembro-me do bom Rodrigues na escalação do álbum de figurinhas das balas Futebol. Conhecíamos todos jogadores e clubes, naquela época de poucos grandes times e escassos campeonatos. Luiz Saidenberg Que bom novamente relembrar do Brás e Mooca, do ponta-esquerda Rodrigues, o Tatu... pois é, antigamente existiam as posições dos jogadores nas equipes: center half, laterais, beque, pontas, centroavante, meia-esquerda, meia-armador, meia-direita. O grande Tatu viveu bem com o salário e “bichos”, mas teve fim não digno, como outros. O Rodrigues gostava muito de vir comer camarão paulista, com seu terno de linho branco e gravata, e nas oportunidades que tinha tomava vinho branco na Cantina Adega do Brás, que foi da minha família. Ficam as lembranças dos grandes ídolos do nosso futebol. Domingos Ricardo Chiappetta
Julinho Botelho, o craque e a velha Artulândia Rafael Andrade Marques Prado Onde hoje fica a estação Penha do metrô havia, até o início dos anos de 1980, uma imensa área verde entre dois córregos. Um deles, hoje canalizado, ava bem onde fica a plataforma de embarque e o outro era o famoso córrego Rincão, que ainda hoje de vez em quando transborda, para tristeza dos que moram nas proximidades. Essa área era chamada de Artulândia ou chácara do Alemão, acho que o antigo dono chamava-se Artur e era alemão, não tenho bem certeza... e ali havia cinco campos de futebol de várzea. Foram nesses campos que tive a honra de conhecer e ainda ver jogar uma das lendas do futebol brasileiro: o grande Julinho Botelho. Era lá pelo final da década de 1960, ele havia encerrado a carreira profissional no Palmeiras e tinha montado um time de futebol que a gente chamava de Palmeirinhas. Meu pai Álvaro me levava todo final de semana para ver os jogos lá na Artulândia... E eu, como corinthiano, ficava encantado com a humildade daquele craque que havia brilhado na Portuguesa de Desportos, na Fiorentina e no Palmeiras, pois, além de nos brindar com suas jogadas geniais, ele nunca deixava de dispensar sua atenção e carinho com todos
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aqueles que tiveram o privilégio de assisti-lo de pertinho; ele que calou a vaia de um Maracanã lotado ao substituir Garrincha na Seleção Brasileira e marcar em seguida um gol antológico, história que meu pai contava. Fica aqui uma sincera e carinhosa homenagem ao grande Julinho Botelho, por certo, irado por todos aqueles que como eu amam futebol e reconhecem em sua figura um legítimo representante do cavalheirismo, da esportividade e do respeito, de uma era da história de nossa cidade e do futebol que não voltará jamais. É realmente maravilhoso ficar sabendo que os jogadores da Portuguesa voltavam de ônibus para casa, entre eles o Julinho, que por certo estará em nosso quadro da memória eternamente, voltando em meio ao povo e aos torcedores, lá pras bandas da Penha, dos românticos anos de 1950... Que essas histórias possam sempre ressaltar esse lado pitoresco e humano dessa nossa metrópole, que se é “o avesso do avesso do avesso” também nunca deixará de ser o “possível Quilombo de Zumbi”... Abraços alvinegros para todos...
Acho que a minha história é bem diferente de todas. Quando eu tinha mais ou menos 8 anos, meu pai, que era pedreiro, trabalhou na casa do inesquecível Julinho. Quase todos os dias eu e a minha mãe íamos levar almoço para o meu pai na casa do Julinho, na Penha. Agora eu estou com 54 anos e sempre fui fã do Palmeiras. Um dia, junto de meu pai, me aproximei e disse ao senhor Julinho: — Será que o senhor poderia me levar ao Palmeiras para fazer um teste? Acontece que eu era muito magrinho, mas bom de bola e ele olhou bem pra mim e disse: — Você tem que comer mais ou menos uns dez sacos de feijão, ficar bem forte, que aí eu te levo ao Palmeiras para fazer um teste. Bem, depois de muitos anos, talvez eu já tivesse uns 18, voltei à casa dele e fui muito bem recebido, porque ele se lembrava de mim e do meu pai, e pedi outra oportunidade para ir ao Palmeiras. E ele me disse que as coisas estavam muito difíceis para testes. Até hoje eu nunca vou me esquecer dos momentos em que eu era pequeno e olhava pra ele com tanta iração, sem dizer que naquele tempo, dos álbuns de figurinha, ele era meu jogador predileto. Ari Oliveira
Nenê, um grande meia-esquerda Leonello Tesser E lá se foi o Nenê, seguiu para morada eterna após longo tempo de sofrimento. Iniciou sua carreira no juvenil do C.A. Ypiranga, galgou a posição da
equipe profissional e, graças ao seu talento, foi contratado pelo Corinthians, ou pelo Juventus, ou pelo São Paulo F.C., onde jogou com grandes astros da época, tais como Teixerinha, Canhoteiro, Albella, Negri, Poy e tantos outros. Quem o viu pelo Ypiranga, na década de 1940, conta que num jogo contra o Corinthians, Nenê aplicou uma finta no famoso Domingos da Guia, deixando o lendário zagueiro sentado no solo. Descanse em paz.
Palmiro, o taxista Mário Lopomo Palmiro era centroavante do São Cristóvão do Itaim. Tinha o mesmo perfil de Ademir Queixada, centroavante do C.R Vasco da Gama, do Rio de Janeiro, e centroavante da seleção brasileira. Vice-campeão do mundo de 1950. Até a fisionomia era do Ademir Vascaíno. O progresso foi se acentuando e os campos de várzea foram terminando. O campo do São Cristóvão, onde também joguei em 1959, teve seu terreno vendido e ali foi construída uma igreja de crente. Um dia, ergueram novamente o São Cristóvão. E quando vi estava de frente com Palmiro, ele, já veterano, envergando a camisa nove do seu São Cristovão, e eu, goleiro do Flamengo da Vila Olímpia. Foi um dia inesquecível para mim, em 1962. O São Cristóvão fazia naquele dia o 13º jogo, e estava invicto há doze partidas. Lembro do Rodolfo no gol do São Cristóvão, do Balota, o Osvaldo, na lateral esquerda, do Gazal, na ponta esquerda e do glorioso Palmiro, centroavante. Logo de início o São Cristóvão marcou um gol. Levei uma bronca do meu beque central, seu Luís, por ter saído lentamente do gol na hora que um adversário veio à minha frente. Logo depois Antônio empatou. Daí para frente eu fui o dono do espetáculo. Na verdade, o São Cristóvão era muito mais time que o nosso Flamenguinho. Era o jogo preliminar, o segundo quadro como se dizia na época. No segundo tempo, o São Cristóvão veio todo para cima de nós. E eu ia pegando tudo. Marcamos o segundo gol, eles não queriam acreditar no que estava acontecendo. A bola veio da direita e Palmiro, de voleio, mandou no meu canto esquerdo, e eu, me estirando todo, mandei para escanteio, com a mão esquerda, que não era meu forte. O São Cristóvão era todo ataque, o que nos dava a chance de contra-ataques. Num desses, marcamos o terceiro. Com 3 x 1, e eu pegando tudo, nossa vitória já parecia certa. Logo depois, outro centro da direita e Palmiro, sozinho, dentro da pequena área, cabeceou certinho no meu canto esquerdo novamente. De novo voei com tudo, e mais uma vez a bola foi a escanteio. Caído no chão, vejo Palmiro quase se ajoelhando em cima de mim gritando: — O que você tem hoje, filho da puta. 119
Não me contive, dei muita risada. Na verdade, éramos grandes amigos apesar de ele ser bem mais velho do que eu. Vencemos o jogo por 3 x 1. Ao término da partida, todos aqueles que estavam em volta da cerca do campo do Marechal Floriano foram perto do vestiário para ver de perto quem era aquele pentelho que evitou a derrota do Flamengo por uns 7 x 3. Nunca me esqueci daquele dia. O futebol tem dessas coisas, um dia dá tudo certo. Outros... Em outra ocasião, fomos jogar no campo das Monções, bairro que era a extensão do Brooklin Novo. O jogo era contra o próprio Monções, clube que jogou Canhoteiro, depois que ele parou com o futebol profissional. O jogo seria de manhã. O campo todo de terra amarelada. Grama, só nas laterais, assim mesmo um metro e meio para dentro da linha. Para a marcação das áreas pequena e grande, foi feita a demarcação da linha com uma enxadinha que acabava formando uma valeta. Coisa comum nos campos de várzea. Teve um lance em que o adversário chutou uma bola no meu canto direito e eu me atirei nela, mas a bola bateu naquela demarcação e foi para o meio do gol. Quando voltei o corpo para o meio, a bola lentamente ia caminhando. E ou por debaixo da minha barriga. Uma grande alegria para quem gostava de chamar o goleiro de frangueiro. Mas teve uma pessoa que disse que aquilo não foi frango. Foi um elefante branco, dizia ele, para a gargalhada de todos. A gozação foi muito grande. O futebol me deixou boas recordações. Mesmo quando apareciam belos frangos. Muito tempo depois, início dos anos 1980, encontrei Palmiro dirigindo um táxi. Me deu uma carona até a Avenida Santo Amaro. Fomos conversando, relembrando velhas agens do Itaim. Aquele jogo também. Isso eu não poderia deixar ar em branco. Ele disse que estava morando na Vila Olímpia, na Rua Alvorada. Na conversa pude ver como era versátil e criativo. Contou-me que pegou um ageiro por ali mesmo e o levou até a Rangel Pestana. O cidadão era um executivo do Serviço Público Estadual. No dia seguinte, viu novamente o cidadão acenando para pegar o táxi. Então teve uma idéia. Disse para o ageiro: — Vamos fazer um acordo? Em vez de o senhor sair à procura de um táxi, como faz todo dia, que tal eu já ir à sua casa logo cedo e pegá-lo. Tal pedido foi aceito. Nas conversas que tinha com ele viu que era um sujeito ocupado e tinha que pagar suas contas: — Doutor, que tal se eu pagar suas contas para não ter que perder seu tempo? Outra proposta aceita. Ele já ficava logo cedo com todas as contas, luz, água e carnês. Das contas ele ganhava um percentual. Não demorou muito veio outra proposta. Desta vez do cliente: — Seu Palmiro, vou te dar outra tarefa. O senhor vai levar minha mulher ao supermercado todas as sextas-feiras e, depois, deixá-la em casa. Do supermercado, veio também as terças-feiras para levá-la à feira. Com isso, 120
Palmiro estava trabalhando somente para um cliente. Não tinha salário fixo. Ganhava por cada serviço realizado. Era dinheiro vivo a cada término de trabalho. Se vivo for, Palmiro deve ter mais de oitenta anos.
Rafael, um craque que encantava Modesto Laruccia Em 1946, depois de um “rachinha” no Parque Dom Pedro II, nos reunimos no salão de recepção da paróquia de São Vito Mártir. Quase todos Congregados Marianos, dirigidos pelo Roque Teófilo, colaborador da antiga Rádio Nove de Julho e, posteriormente, militar e mensageiro cristão pela Rádio Bandeirantes. O Roquinho, como o chamávamos carinhosamente, atendendo ao apelo da garotada, como eu, na faixa de 14 a 16 anos, resolveu fundar um clube de futebol. Em junho desse ano nascia o Juvenil São Vito, posteriormente o “Extra” e ainda depois o São Vito F.C. Quase todos os elementos de origem italiana, “bareses”, de Polignano a Mare, pequena província de Bari e que hoje empresta seu nome à antiga Rua Álvares de Azevedo, onde está localizada a Igreja São Vito. Na formação da diretoria, além de mim, estavam: meu primo Vicente Carrieri, Rafael Chiarella, Francisco Stoppa e o Roquinho, naturalmente. Nos sobrenomes de todos, no time, predominavam os oriundos: Chiarella, Laruccia, Mônaco, Carone, Labate, Calcagnite, Stoppa, Teófilo, Dragone, Batelli, Zupo, Carrieri, Scarico, Latini, Borreli. Junto à “baresada” contávamos, também, com os espanhóis Rufino, Salgueiro e Ruize. E com os árabes Scaf, Simbol, Moisés e Carduz. É com muita saudade que recordamos os jogos de rua, que antecederam a formação do Clube São Vito, onde já se vislumbrava o vistoso e brilhante futebol do Rafael Chiarella, que todos queriam ter ao seu lado nos “rachinhas” de rua ou no Parque Dom Pedro II. Pra se ter uma idéia de como o Rafa tinha uma intimidade com a bola, a partir de uma jogada simples, mesmo que seu marcador soubesse o que ele faria, driblava com toda a facilidade. Tinha um lance, quando a pelada era disputada na calçada do “parafuso”, antiga metalúrgica na então Rua Álvares de Azevedo, em que ele usava a parede como tabela, como se fosse snooker, deixando seu adversário com cara de bobo, inclusive eu. Não era preciso ser adivinho ou futurologista pra prever que o Rafael seria um craque. Os jogos do São Vito eram todos nos campos do adversário e quando chegávamos a assistência era enorme, porque sabiam que aquela tarde ia ter Rafael. Só em uma coisa ele decepcionou: era palmeirense “roxo” de carteirinha, mas mesmo com ajuda de parentes, conselheiros do Palmeiras, não conseguiu entrar no “verdão”. Na época, o Palmeiras já sofria o
batendo bola
assédio dos famigerados “corneteiros”, que sempre prejudicaram o time na seleção de novos valores. Com a ajuda de Nardo, outra vítima dos “corneteiros”, foi pro Corinthians, com 17 ou 18 anos, completando uma carreira simplesmente brilhante, tendo conquistado, entre tantos títulos, o de Campeão do XIV Centenário, em 1954. São Paulo, Palmeiras, Corinthians, Santos, Portuguesa, entre outros, tinham grandes craques mas o Rafa se destacava pelo finíssimo futebol que praticava e encantava. Ele era a somatória de um Heleno de Freitas, com Ademir da Guia e Didi. Hoje, só resta a lembrança daqueles bons tempos. O Rafael, como quase todo o time do Coringão daqueles anos, já faleceu.
Francisco Sarno Mário Lopomo Vi Francisco Sarno jogar. Simplesmente, Sarno. Ele era beque, lateral esquerdo do Palmeiras, campeão do Ano Santo de 1950. O jogo que eu vi foi no velho Parque Antártica. Que não era esse jardim suspenso de hoje. No lugar da ferradura tinha uma arquibancada de madeira em toda a extensão da linha de fundo, coberta por telhas de zinco. Foi num jogo que o Palmeiras fez pelo campeonato paulista, contra o Nacional da capital. Resultado: 4 x 1 para o Palmeiras. Não me lembro quem marcou os gols do Palmeiras, mas o gol do Nacional, me lembro. Foi Turcão, contra, quando bateram um escanteio pela ponta direita e ele estava rente ao poste esquerdo. Quando a bola veio em sua direção, ele se atrapalhou, a bola bateu no bico da chanca, chuteira, e foi para as redes sem que Oberdã, que estava atrás dele, pudesse fazer nada. Naquele dia, o Palmeiras, salvo algum engano meu, jogou com: Oberdã, Turcão e Palante; Waldemar Fiúme, Luiz Villa e Sarno; Nestor, Canhotinho, Aquiles, Jair e Rodrigues. O técnico era Jim Lopez, substituído nas últimas seis partidas por Ventura Cambon, técnico dos aspirantes. Eterno quebra-galho dos que eram despedidos.
recebeu a geladeira, sim, mas que ela foi vendida e o dinheiro foi dividido entre os jogadores. Sylvio Freitas
Brás, berço do futebol Pedro Nastri Em 14 de abril de 1895, entre as ruas da Figueira e do Gasômetro, por iniciativa de Charles Miller, realizou-se a primeira partida de futebol no Brasil. Jogaram os funcionários da São Paulo Gás Company e da São Paulo Railway, da Estrada de Ferro Santos-Jundiaí. O Brás seria, assim, o berço do esporte mais popular do Brasil. Muito mais do que isso: Charles Miller nasceu no Brás, a primeira partida foi disputada no Brás e os dois times eram sediados no Brás. Charles Miller nasceu na Rua Monsenhor de Andrade, travessa da Avenida Rangel Pestana, filho dos ingleses John Miller e Carlota Alexandrina Fox Miller. Aos 10 anos de idade foi mandado à Inglaterra, como aluno da Banister Court School. Voltaria aos 20 anos com uma bola, dois uniformes e uma idéia de implantar em São Paulo o Association. Era considerado, segundo a crítica da época: Emérito fintador, perito dominador da bola com gula para gastá-la entre suas chuteiras. Sofreu o desgosto de ver o Brasil derrotado em 1950, na única Copa Mundial disputada aqui, mas não teria o prazer de vê-lo campeão pela primeira vez em 1958: morreu em 1953. São Paulo reconheceria o valor e a importância de Charles Miller dando seu nome à praça situada em frente ao Estádio do Pacaembu, homenageando, indiretamente, o bairro do Brás, local de nascimento do “Pai do futebol brasileiro”. Charles Miller foi o artilheiro do primeiro Campeonato Paulista, marcando dez gols. Jogou durante muitos anos pelo São Paulo Atlético Clube, situado, então, nas esquinas das ruas da Consolação e Visconde de Ouro Preto. Deu ao seu time o título de campeão no Primeiro Campeonato Paulista de Futebol, marcando os dois gols decisivos da partida, levou seu time ao tri-campeonato, marcando nove gols.
Lendo sobre o Turcão, o Alberto Chuari, lembrei que conversei com ele há muitos anos atrás, quando o encontrei em um armazém. Soube que, após deixar o futebol, ele se dedicou ao ramo de secos e molhados. Na época, eu perguntei a ele sobre aquela história do gol contra que ele próprio marcou no Oberdã, no Campeonato Paulista de 1947 – o goleiro palmeirense ficara inúmeras partidas sem tomar gol e uma loja de departamentos até ofereceu uma geladeira para o jogador que conseguisse fazer um gol no Oberdã. Então perguntei para o Turcão se ele ganhou a geladeira. E ele, com muita simpatia, contou-me que 121
Onde vivemos
“Minha casa possuía uma grande banheira de ferro, água de poço aquecida com eletricidade e o indispensável sabão de cinzas, feito pela minha querida mãe.”
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onde vivemos
Jardim das Rosas, Campo Limpo Carlos Chegamos ao bairro Jardim das Rosas em 1970 e lembro muito bem como ele era. Nessa época, quando minha mãe nos levava ao médico, tínhamos que andar até a Estrada de Itapecerica, mais ou menos uns três quilômetros de casa, para pegar o ônibus para a Praça das Bandeiras. Pra comprar pão, só havia uma mercearia, a Mercearia do Valtinho. Onde foi construída a COHAB, no Jardim Irene, antigamente ficava a granja do japonês e o campo do Jardim das Rosas, onde jogávamos bola, hoje é a Fundação Cafu. A 1ª linha de ônibus do bairro, inaugurada em 1976 pela CMTC, foi a Jardim das Rosas-Largo São Francisco e a tarifa custava cinqüenta centavos. Em 1979, o então Prefeito Reynaldo de Barros, por meio da Light, colocou postes de iluminação em todas as ruas do bairro, que ainda não contava com a luz elétrica. Depois de uns dois dias, a prefeitura montou um palanque bem próximo ao ponto final do ônibus e, à noite, o prefeito subiu no mesmo, fez o seu discurso e depois ligou uma chave geral acendendo as luzes de todas as ruas do bairro. Nessa época, lá só havia uma escola, e era de madeira.
Do Caxingui só existe o nome Francisco Lemmi Filho A Rua da Quitanduba está a dois quilômetros da Avenida Professor Francisco Morato. Ali nasci, fui criado e vivi até os 26 anos de idade. Até casei no Largo do Caxingui, na Igreja de Santo Antônio, em 24 de abril de 1976. Se eu mencionar o bairro que vem após, a maioria conhece, mas quando eu falo em Caxingui, a maior parte nunca ouviu falar. Hoje de Caxingui só existe o nome, os imóveis são todos novos, tudo mudou. Minha escola chamava-se Grupo Escolar Senador Adolfo Gordo e ainda está lá, se não me engano, na Rua Julieta que era também a rua da fábrica de roupas Regência que, por sua vez, fabricava confecções para importantes lojas de São Paulo. No Caxingui também havia dois grandes times de várzea, o mais popular era o Grêmio e o mais simples, o Nacional, e era nesse que eu jogava.
Eh, Caxingui. Vivo nele até hoje, desde 1964. Estudei no Senador Adolfo Gordo do pré até o 3° colegial e foi nesse bairro que fiz grandes amizades. Por volta de 1980, fundamos o América Futebol Clube, time de várzea, ganhador de muitos troféus. Faziam parte desse grande time meu
irmão Carlos, o Carlinhos, Fábio, Serginho, Angelo, Damião, seu irmão João e muitos outros, quase todos moradores do Caxingui. Marco Graciano Visitei muito o Caxingui na minha juventude e até pouco tempo atrás. Nasci no subdistrito do Jardim América, próximo à Igreja do Calvário, e como tínhamos uma equipe de teatro amador, freqüentemente fazíamos representações na Igreja do Caxingui. Na Rua Três Irmãos existia uma fábrica de móveis, a Móveis Cestari, hoje desativada. Paulo Theodoro Silva
O descampado Morumbi Mário Lopomo O Morumbi era um descampado. Um dos latifúndios estendia-se nesse fim do mundo. Não havia estradas. Alguns esportistas e apaixonados pela natureza eavam, de quando em quando, a cavalo pelos atalhos, debaixo das árvores, descobrindo, a cada o, panoramas maravilhosos, espaços imensos que as montanhas emolduravam sem estreitar. Como se respirava bem neste lugar! A cidade longínqua ficava esquecida. Paulista algum jamais imaginaria que o Morumbi chegasse algum dia a fazer parte da cidade, tornar-se-ia um bairro habitado. Houve, porém, uma extensão: o arquiteto Oswaldo Arthur Bratke tanto se entusiasmou pelo lugar que comprou um grande terreno e instalou um sítio onde vinha ar os fins de semana. Viu possibilidades imensas na região. Tanto que não se cansava de ficar propagando o lugar irável que descobrira e incentivando amigos a comprar terrenos na região. Convenceu Fábio da Silva Prado e depois Oscar Americano. Então, o arquiteto planejou o bairro do futuro. Nessa época, já pensava num lugar completamente autônomo, com escolas, hospital, um cinema, um centro comercial do tipo dos department stores americanos, que abasteceria mil famílias e evitaria a famigerada venda da esquina. Em 1938, construiu-se a primeira estrada com a ajuda do Prefeito Prestes Maia, que demonstrou a maior boa vontade por um projeto que a maioria ainda achava inexeqüível e doido. Os poucos proprietários uniram seus esforços. Fizeram a primeira estrada asfaltada, instalaram luz e água. Alguns artistas já estavam se habituando a ar os fins de semana no Morumbi. O pintor Francisco Rebolo alugou uma casinha com Sérgio Milliet, Bruno Giorgi e Antônio Moura. Rebolo acabou ficando com a casa, há uns dez anos. Só lhe foi possível agüentar as dificuldades de toda ordem graças à sua mulher Elizabeth, que tem alma pioneira e que pôde conformar-se com o isolamento absoluto, pois achava que a beleza ambiental compensava todas as difi125
culdades e que sua filhinha cresceria sadia e feliz no campo. Pouco a pouco, os amigos de Rebolo – artistas de São Paulo – começaram a freqüentar a casa que a hospitaleira dona Elizabeth tornava adorável. Já se falava no Morumbi. Não era mais um fim de mundo... Depois a senhora Renata Crespi tomou a iniciativa de oferecer uma igreja ao Morumbi, aproveitando as ruínas de uma capela que se erguia numa elevação com vista deslumbrante. Gregório Warchavchik restaurou as poucas paredes que ainda estavam em pé e levantou o restante do edifício sobre esta base. A sua decoração foi confiada a Sunaé, que pintou cenas do evangelho e anjinhos, cuja ingenuidade está de acordo com o estilo primitivo da igreja e que retrata o Brasil com seus brancos, negros, índios. Depois Lina Bo Bardi construiu sua magnífica casa que se integra perfeitamente na paisagem, não somente porque permitiu aos moradores gozá-la ao máximo, mas também porque faz parte dela, da mesma maneira que suas árvores, suas colinas, suas plantas. Outros arquitetos como Eduardo Kneese de Mello, Corona, Luiz Sala já escolheram o Morumbi para viver. Oswaldo Bratke, o descobridor das matas, o descobridor do Morumbi, já tinha projetos mais ambiciosos. Na sua prancheta estava um hospital para crianças, clínica, cirurgia, laboratórios, um pronto socorro. Enfim a semente do Morumbi foi lançada.
Piquenique em Interlagos Jayro Eduardo Xavier Num domingo, em 1948, juntamos as famílias Loscchiavo, Seckler e Xavier e fomos para um piquenique em Interlagos, numa praia onde está o setor náutico do Clube Costa Azul. Uma praia artificial com areia do mar. Fomos no caminhão do Álvaro Seckler. As matronas na cabine, com o motorista, e o resto na carroçaria. Onde está o Clube Costa Azul era uma praça cheia de mato e destinada a receber o Grande Hotel Interlagos. Arranchamo-nos sob uma ameixeira num terreno em frente à praça, onde hoje é a esquina da Avenida José Carlos Pacce e os jovens logo foram para a praia. Havia ali uma enorme gangorra que comportava muitas pessoas de ambos os lados. Não demorou para eu cair de cabeça na areia, após um tranco maldoso do outro lado. Fui levado para junto de meus pais, mas a excitação fez com que eu me recuperasse rapidamente. Depois do almoço fomos ver, num trecho de terra, parte da atual Avenida Robert Kennedy, um sujeito se exibindo numa motocicleta Indian. Ele ia até o fim do arruamento e voltava de pé sobre o selim e com os braços abertos. Era Baby Pignatari, a quem fui encontrar muitos anos mais tarde, em Viracopos, onde ele aguardava sua mulher, a princesa Ira de Fürstenberg. Mas, decididamente, aquele não era o meu dia! Voltando ao arranchado, subi na árvore para catar ameixas e caí 126
do galho com o pé sobre uma ponta de raiz lascada e seca. Tive um corte na lateral do pé, cuja cicatriz ainda tenho. Mamãe lavou o ferimento com álcool e embrulhou meu pé num pano de pratos. Afinal, ferimentos como aquele faziam parte da rotina semanal. No retorno para casa, demos uma volta completa na pista do autódromo.
A Represa de Guarapiranga era linda Roberto Pavanelli Ela era Linda! Refletia brilhante a luz do sol nas tardes de domingo! Seria impossível envelhecer tamanha beleza, mas o tempo também lhe foi implacável. As pessoas a rodeavam fazendo-lhe a corte, e só elogios eram a ela dirigidos por todos. Bondosa, matou a fome e a sede de muita gente. À sua volta era só alegria e diversão. Hoje abandonada, chora o desgaste que os dias ados lhe impam. Pois é! A Represa de Guarapiranga já foi palco de muita alegria e de várias tristezas também. Alegria, quando à sua volta recebia a visita, nos fins de semana, de quase toda São Paulo, como um dos principais pontos turísticos da cidade. Ali, havia linhas regulares de grandes barcos que levavam as pessoas para belíssimos eios. Havia até um pequeno avião, que pelo ar, de perto de Deus, mostrava Santo Amaro de cima, aos olhos extasiados dos visitantes. Mas apesar de tudo, ela continua muito importante para nós: é de lá que tiramos a água que bebemos. Hoje, pude constatar o quanto envelhecemos: nós pela ação natural do tempo, ela por culpa da omissão de todos nós.
Morei a metade da minha vida com ela, ali vivi momentos felizes e também coisas tristes, ou a época que a represa era muito comentada por todos, brinquei às margens dela todos os dias quando chegava da escola... Diego
A Santo Amaro de Florentina e Madalena Vera Lúcia Dias Madalena Moya nasceu em São Paulo no dia 1° de abril. Verdade! O ano ela sabe aproximado, talvez tenha completos 75 anos de idade. Os pais vindos da Espanha aram pela antiga Hospedaria de Imigrantes.
onde vivemos
Depois, percorreram várias fazendas da região sudeste do Estado de São Paulo. Um dia, a família conseguiu adquirir um terreno financiado por uma empresa imobiliária que oferecia tijolos e telhas, no bairro da Vila Nova Cachoeirinha. Era início do século XX, um tempo em que ainda estavam por lá as tais pequenas cachoeiras. O pai de Madalena, por ser extremamente violento, mais tarde viria a ser expulso de casa pelos próprios filhos, cansados de seus desacatos. Devido à convivência nesse lar turbulento, desde quando morava na área rural, a jovem Madalena buscava outros caminhos. Foi então que ela conheceu e fez boa amizade com a mineira Florentina, a qual lhe apresentou um sobrinho, o José, com quem ela se casou. Esse José, um sanfoneiro nascido em Minas Gerais, trabalhava o dia todo como lavrador ou, ainda, construindo casas, e nas noites de final de semana animava bailes em terra de chão batido. Claro que a família de Madalena protestou, pois além de tudo ele era negro. Foi aceito logo depois, porque seu temperamento era calmo e alegre, porém ele adoeceu vindo a falecer com apenas 33 anos. Ela, então, completamente atordoada, pegou a mão da única filha desse casamento e seguiu para uma fazenda na região de Itu. Isto aconteceu no ano de 1954, quando ainda havia riqueza gerada pela produção do café determinando o crescimento de São Paulo. Nessas propriedades o que se encontrava era um trabalho duro, mas para pessoas guerreiras como Madalena, isso não assustava. O dinheiro é que era bem pouco. Florentina também prestava serviços como cozinheira para esses mesmos proprietários fazendeiros de café. Com eles permaneceu por mais de quarenta anos. Na sede da fazenda, Madalena conheceu então um jardineiro, o migrante sergipano Antonio. Casou-se e soube que ele havia adquirido um terreno no Jardim Pedreira, distrito do bairro de Santo Amaro. Antonio, assim que chegou de Sergipe em caminhão pau-de-arara, naqueles anos 1950, viu-se sem agasalho durante o forte inverno paulistano. Raciocinou ele que somente teria futuro se fosse proprietário de algum lote de terra. A propaganda da época era belíssima mostrando barcos navegando na imensa Represa de Guarapiranga. Para lá seguiram e tiveram dois filhos, no mesmo ano! Uma menina, a Maria Aparecida, nascida em janeiro, e um garoto, o Carlos, em dezembro. Com os dois bem pequenos, Madalena e Antonio começaram a vida na capital paulista morando numa pequena casa construída nessa periferia da cidade. Logo depois nasceu o Maurício, que recebeu esse nome em referência ao antigo patrão de Madalena. O bairro, chamado Jardim Pedreira, só oferecia possibilidade de transporte até a Estrada do Alvarenga, nas proximidades da represa. Todos su-
biam a ladeira caminhando no barro vermelho e chegando lá no alto até a capela de Nossa Senhora Aparecida. Fogão a gás ninguém tinha não, a rotina era buscar madeira na mata próxima com rodilha na cabeça e então cozinhar no fogareiro à lenha, bem caseiro, construído todo de barro. Os banhos se faziam de bacia e caneca com água retirada do poço, que era bem profundo. Na entrada das casas, as famílias colocavam uma barra de ferro para tirar o barro, era o limpador de sapatos. Durante os dias congelados, Madalena punha no chão um braseiro, feito num galão de vinte litros. Esse piso era feito de tijolos. O artefato, então, aquecia bem o quarto. No fundo do quintal uma grande bananeira gerava cachos que serviam à família. E havia grandes sapos escondidos coaxando por entre essas bananeiras! O casal vizinho também criava seus cinco filhos. Nunca fizeram muro dividindo os terrenos. Isso funciona até hoje. Usavam apenas uma pequena cerca, por onde trocavam verduras, uma colher de sal ou brincadeiras comuns entre as crianças. Os meninos cresceram e quando se encontram, atualmente, ainda dizem morar “na Vila”. Para eles, Santo Amaro sempre foi e sempre será “o Centro” e o Anhangabaú fica lá bem longe, “na Cidade”. Madalena ganhava roupa das patroas e dividia com a vizinhança. Antonio, como jardineiro, floriu várias casas santamarenses. Havia muita vontade de colaborar entre os demais vizinhos, seja cedendo água ou remédios, seja tomando conta de crianças. A escola pública mais próxima chamava-se Manoel Borba Gato, tinha ensino de qualidade, porém abrigava crianças e jovens apenas até o final do curso primário. Santo Amaro, como centro onde todos se dirigiam para resolução de problemas, estava sempre movimentado com a sua linda igreja no alto do morro. Era onde estavam os serviços de cartório, correio, posto de saúde e algum lazer como as procissões ou festas dos cavaleiros. Madalena e Florentina nunca deixaram de conversar durante essas décadas e parecem duas grandes aventureiras cruzando a cidade de São Paulo em busca de preservar a amizade e criar filhos e netos. Como figuras atuantes do crescimento da metrópole, viram toda sua transformação. Elas se conheceram nas fazendas de café. Florentina, a negra de Minas Gerais, trabalhando desde a infância para grandes proprietários de terras, e Madalena, a filha de espanhóis, também buscando sobreviver desde criança. Trabalharam para a mesma família e também colheram café; hábito que Madalena nunca esqueceu e sempre que pode pratica, já que seu marido jardineiro, também quase chegando aos 80 anos, ainda planta as mudas em terreno próximo de casa. Ainda hoje, faz com a boca um som de apito usando a folha do cafeeiro bem enroladinha. Sempre ouviu falar que na região repleta de chácaras, nessa zona sul, havia muitos empregos, seja nas indústrias, nos laboratórios ou mesmo nas 127
casas de família. E de fato, muitos amigos seus do Jardim Pedreira trabalharam nesses locais. Durante o crescimento de seus filhos, lá pelo final dos anos de 1970, a família de Madalena utilizava o bonde para circular pelo bairro de Santo Amaro e para chegar ao Centro. Os filhos de Madalena também observavam as mudanças da região. Assim que souberam da criação de um clube da prefeitura no centro de Santo Amaro, iniciaram a peregrinação para freqüentá-lo. Não era nada fácil utilizar as piscinas por volta de 1970. Era preciso tomar vacinas, tirar chapas dos pulmões, levar fotografias e ar pelo médico. Como não havia possibilidade financeira de usar clínicas particulares, tudo era providenciado pelo Posto de Saúde de Santo Amaro com filas e agendamentos intermináveis. Talvez tenham aproveitado apenas umas três vezes, porque logo conseguiram emprego e tinham que colaborar com as despesas da casa. As ruas no bairro do Jardim Pedreira eram de terra e a denominação feita através dos números. E assim se comunicavam: quem conhece a Madalena da Rua 12? A escola mais próxima para seus filhos ainda era de madeira e localizada bem próxima à Usina Piratininga. Madalena nunca esquece esse nome Piratininga, já lhe contaram que é o mesmo da aldeia que deu origem à Vila que se tornaria a gigante cidade de São Paulo. No centro de Santo Amaro, Madalena fazia suas compras. Lá também sempre utilizava a Santa Casa e o pronto-socorro, que por muito tempo foi o único na região. Imagine que Madalena constatou ainda hoje não haver nem mesmo qualquer agência bancária no seu querido bairro Jardim Pedreira! O encanto desse local era percebido quando todos circulavam a pé pelas vielas cumprimentando vizinhos, como o senhor Augusto, que benzia as crianças. E os moradores do bairro se juntavam nos domingos subindo até a Igreja Nossa Senhora Aparecida para rezar, pedindo boas mudanças. A região cresceu muito, mas Madalena acha que falta transporte, como o metrô, para toda região de Santo Amaro. A Pedreira transformou-se muito durante os últimos trinta anos, com novas casas, asfalto e também os problemas de toda a cidade. A população mudou hábitos, da lenha para o uso do fogareiro com carvão e depois para o gás. A água agora é encanada e não é necessário mais emprestar luz. Até telefone chegou. Da mata anterior, pouco restou. Favelas apareceram. Em 1995, Madalena deixou um dos filhos no Jardim Pedreira e se mudou para a Estrada da Varginha com outro deles, Carlos. A sua filha Maria Aparecida casou-se e reside no bairro do Sapopemba, zona leste. É para lá que Madalena vai a cada duas semanas visitar o bisneto Vinícius. Hoje ela freqüenta as atividades da Casa de Cultura de Santo Amaro e sabe que ali funcionava um antigo mercado. Também lá lhe disseram que nas noites de segunda-feira tem Samba da Vela. Madalena pratica um pouco de ginástica para idosos no mesmo antigo clube da Prefeitura. Já esteve no 128
Teatro Paulo Eiró para ver espetáculos e também freqüentou o Sesc para ver exposições. Circula bastante, mas sua maior caminhada toda quinta-feira é visitar a amiga Florentina no bairro do Tatuapé. Sai cedo, chegando lá se preparam para ir à feira livre saborear pastel. Ela volta da casa da amiga após o almoço. Seu marido, o Antonio jardineiro, levanta diariamente às quatro da manhã e segue plantando mudas de árvores nos poucos espaços do bairro. Madalena gosta de recordar os tempos da fazenda ouvindo canções sertanejas e ainda aprecia agitar o café com uma grande peneira, como fazia na roça. No ano ado até criou algumas galinhas. Florentina, que tem esse nome diferente, é uma apaixonada por plantas e concorda que antigamente não se comprava alguns legumes porque nos quintais sempre havia um pezinho deles. Madalena adora dançar. É sua paixão. Rodopia no seu próprio ritmo sem se importar com quem está olhando. Adora ouvir canções com seu nome. Florentina é mais velha e sua vida também foi pautada por ricos momentos. As duas caminham pela feira e falam de fatos acontecidos, falam de seus filhos e netos ou de um tempo que dançavam naquele chão de terra levantando poeira. Contam fatos acontecidos por Santo Amaro, pelos Jardins onde trabalharam ou pela zona leste. Lutaram muito, choraram bastante nessa cidade de São Paulo e em suas vidas. Mas de todas as histórias que recordam, sempre tem algum detalhe que provoca as boas risadas de Madalena!
As antigas fábricas de Santo Amaro Roberto Pavanelli Certa feita, há algum tempo ado, resolvi terminar uma sexta-feira em um daqueles jantares no romântico Restaurante Interlagos. Jantar daqueles difíceis de esquecer! Aquele local era muito aconchegante. Sobre o prato que me serviram, deitaram uma enorme, maravilhosa e deliciosa lagosta. Tal crustáceo, somado às demais delícias da casa e regado com cerveja e caipirinha, era tudo que o encerramento de uma cansativa semana exigia. Pois bem, comi muito e logo depois, sonado, fui pra casa dormir. É claro, não podia ter conseqüência diversa. À noite, tive um enorme pesadelo. Sonhei que tinha perdido o emprego de muito tempo no Curtume Dias, uma das pioneiras atividades industriais de Santo Amaro. Ficava na Avenida João Dias, logo após a ponte do mesmo nome, do lado direito de quem vai para Itapecerica da Serra. Desesperado, então, comecei uma homérica odisséia em busca de um trabalho. Na empresa Plásticos Dias, que depois ou a ser a fábrica de esparadrapo York, sediada entre as Ruas Amaro André, Barão do Rio Branco e Tenente Coronel Carlos da Silva Araújo, não adiantava ir, porque era dos mesmos que me demitiram. Fui
onde vivemos
então à indústria do senhor Juvenal Sayão que ficava na Rua Amador Bueno, próximo do atual Poupatempo Santo Amaro, que aliás funciona muito bem. Não consegui emprego. Fui então até o fim da Rua Barão do Rio Branco e cheguei no Laboratório Squibb. Lá havia uma placa dizendo: Não estamos itindo. Saí de lá e fui até a Rua Isabel Schmidt bater às portas do Frigor Eder, onde também não me empregaram; segui então pela mesma Rua Isabel Schmidt e ei na Fábrica de Relógios Hora, ali próximo do cemitério, como também nada consegui, fui em frente pela mesma rua, que ao mudar de nome para Rua Carlos Gomes, sediava a Companhia Nacional de Veludos Velnac, indústria não menos tradicional de Santo Amaro que era de dois imigrantes italianos, senhor Leoni e senhor Caneppa. Eu, já preocupado, tentei de todas as formas um emprego e não consegui. Falei com o Amilar, gerente, com o Rui, do departamento de vendas, com o Virgílio e o seu Alberto, mestres em tecelagem e nada. Inconformado, mas persistente, segui em frente e cheguei na Textil Gabriel Calfat, cuja casa ocupada por um de seus diretores, um tal de senhor Bolzan, havia abrigado o antigo Cassino Vila Sofia de outros tempos. Já sem esperança de arrumar emprego, naquele maluco pesadelo, me lembrei que ainda havia um tradicional Laboratório Farmacêutico, que nos anos 1950 empregara as mais lindas e honradas operárias santamarenses, a Laborterápica, na Rua João Alfredo. Aguardei a saída das referidas moças, às 14 horas, juntamente com vários outros amigos santamarenses que costumeiramente para lá se dirigiam com o propósito de ver as beldades deixarem o expediente diário. Incrível, também lá não consegui o procurado emprego e acabei, naquele sonho maluco, terminando o ano, vestido de Papai Noel, batendo o sininho em frente às Lojas Barroso. Quando acordei, percebi, graças a Deus, que tudo não ou de um terrível pesadelo, mas que serviu para lembrar onde se localizou um dia, a força de trabalho em Santo Amaro.
Você foi traído pelo pesadelo, pois, se não conseguisse o emprego de Papai Noel, no Barrozinho, poderia ter recorrido ao Mané da 15, que certamente conhecia muitos empresários da região. Pedro Nastri Por que você não me procurou no Laboratório Upjohn ou na Marini & Daminelli que depois virou Westinghouse? Talvez eu lhe conseguisse uma colocação. Antonio Souto
Meus vizinhos da Rua do Níquel Márcia Franco dos Santos Manéo A rua da minha infância é a Rua do Níquel, no Brooklin. Inicia-se na marginal da Avenida Vereador José Diniz e termina na confluência da Platina com a Rua da Prata. É uma pequena agem de apenas um quarteirão, mas que guarda histórias pitorescas de convívio agradável. Mudei-me para lá aos 4 anos de idade, no ano de 1956. Meu pai foi atrás da fábrica de chocolates Lacta onde trabalhou por trinta anos. A rua era de terra e o que mais me marcou nos primeiros tempos foi que toda vez que chovia forte, a enxurrada lavava a esquina e ficava um buracão, tínhamos muito medo que pudesse abalar as edificações ali existentes. Os moradores procuravam, dentro das suas parcas possibilidades, mudar o curso das águas enquanto a prefeitura não vinha resolver o problema. Morávamos em um conjunto geminado de seis casas. Na frente, havia um terreno baldio em forte aclive que terminava no Córrego do Cordeiro e, após, se via uma chácara de flores que se estendia até o horizonte e tornava a paisagem observada do terraço da minha casa muito gratificante. Mais tarde, por ali aria a atual Avenida Vicente Rao. A primeira casa do conjunto era habitada por alemães que se revezariam, coincidentemente, ao longo dos anos. A segunda casa era a nossa e guarda histórias maravilhosas. Eu estudei no Mário de Andrade, na Rua Joaquim Nabuco, desde o jardim de infância, e naquela rua muitas meninas eram minhas colegas de escola e crescemos juntas. Na frente da minha casa havia uma árvore frondosa onde meu irmão fez uma casa de madeira e um balanço nos seus galhos. Meus primos e primas vinham ar férias em minha casa porque era como se morássemos no interior, brincávamos muito na rua durante as férias e voltávamos para casa cobertos de terra vermelha. Na adolescência reuníamos os amigos do meu irmão, como o Filizola, o Caspal, o Irineu, o Palumbo e tantos outros do Meninópolis, que eram fissurados em Chico Buarque e em todo o pessoal da Bossa Nova e da MPB e fazíamos saraus no terraço, alguns deles tocavam violão divinamente. Dos que também faziam parte das nossas relações, lembro-me da Ana, do Delei, do Peri e do Checchia, que estavam presentes na minha festa de 15 anos. Íamos a todas as festas juninas do Beatíssima, aos carnavais e “mingaus” do Clube Banespa. Na terceira casa, moravam o senhor Rocha e a dona Mercedes com uma sobrinha chamada Idalina e um neto chamado Carlos Alberto Barreto, que vivia no Rio de Janeiro e ava férias na casa da avó. Foi meu primeiro namoradinho. Quando meu irmão casou, comprou a casa deles para constituir o seu lar. Na quarta casa morava um casal muito peculiar. Ele chamava-se senhor Fritz e ela dona Tecla, obviamente alemães. Ele era de compleição 129
pequena e dizia ter sido da Marinha, andava sempre com um boné, barba por fazer, camisa listrada e um papagaio eternamente dependurado em seu ombro. Na sexta casa, foi morar depois de algum tempo, o senhor Luiz Pereira. Tornou-se muito amigo do meu pai. Na época em que foi morar na rua era bem jovem e possuía uma lambreta, depois teve muitos carros da moda como um Studebaker e outros carros exóticos. Acampamos muito juntos, do Espírito Santo para baixo conhecemos todos os Estados e até a fronteira do Uruguai, Paraguai e Argentina. Ele era um aventureiro e meu pai gostava de acompanhá-lo. Ele sempre foi muito alegre e guardo nas lembranças momentos hilariantes das nossas viagens, como uma vez que, para termos o a lugares privilegiados ou conseguirmos combustível durante as viagens, em uma época em que ele era controlado, fingíamos que éramos repórteres da revista Quatro Rodas e tirávamos foto de todo mundo, dizendo que sairiam no próximo número. Depois vinha os fundos da casa do Shultswenk – não sei se é assim que se escreve – que dava à Rua do Ouro, seguida da casa da Neusa Maria Quino, que foi a primeira namoradinha do meu irmão. A mãe dela era contra o namoro e eles se correspondiam usando códigos, para que se fossem pegos ninguém pudesse decifrar o que haviam escrito, e eu era o pombo correio. Quase na frente da casa da Neusa, do outro lado da rua, moravam a Lídia e a Sidnéia, filhas do senhor Walter. A Sidnéia foi minha professora de catecismo, fiz a primeira comunhão na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, na Avenida Morumbi, como todos naquele bairro. Ao lado da casa dela morava um garoto, que possuía como animalzinho de estimação um carneirinho preto, e andava com ele na coleira para baixo e para cima. Ao lado da casa dele ficava a casa do senhor Araújo, da dona Maria e da Wilminha. Em determinada época, o senhor Araújo abriu um poço artesiano no quintal da casa deles e isso mudou para sempre a história de vida dessa família, que hoje é proprietária de grande parte dos imóveis da Rua do Níquel. No número 114 da nossa rua, morava um conceituado e premiado pintor chamado senhor Hélio Becherini, sua esposa dona Hermínia e suas filhas, Cibele e Helenice. A casa seguinte era do Casarré. Irmão do humorista vitimado por uma bala perdida no Rio de Janeiro, enquanto dormia em sua cama. O terreno a seguir, nós chamávamos de fazendinha. Ali se criavam vacas, galinhas, patos e cabras. Havia até uma horta. Às vezes, a proprietária levava os animais para pastarem na rua e era muito engraçado ver todos aqueles bichos no meio da rua. Também costumava ar por ali o gado do Matarazzo e os cavalos da hípica de Santo Amaro. Realmente, era uma época em que todos se conheciam, se respeitavam e conviviam com a falta de asfalto e de iluminação, ansiando por um progresso que pudesse trazer coisas boas. Hoje a Rua do Níquel está muito 130
mais moderna, com um condomínio de alto padrão na parte do meio da rua de um lado, e do outro, a Companhia de Águas, fundada pelo senhor Araújo. A casa da Neusa, do senhor Walter e do irmão dele, um prédio de três andares e o nosso conjunto de casas continuam no mesmo lugar, porém elas foram reformadas, melhoradas e hoje estão muito mais bonitas; do mesmo lado, no final da rua também foram construídas três casas de alto padrão. A diferença é que hoje ninguém mais sabe quem é quem e não fecham mais a rua para festas juninas, mas o progresso vai a todo vapor.
No Brooklin Novo, à beira do Córrego da Traição Mário Lopomo Fomos morar lá em 1951. Estávamos bem na divisa do bairro com a Vila Olímpia, à beira do Córrego da Traição. Em 1º de abril daquele ano contava-se nos dedos as casas que tinham por ali. Estávamos acostumados a viver no Itaim e a adaptação não foi muito fácil. O bom para mim, que tinha 12 anos, era que havia um monte de terrenos baldios para jogar bola e brincar. Nesse tempo, não era qualquer um que tinha carro e muitas coisas eram feitas com carroças puxadas por cavalos ou burros. Então havia o verdureiro, o peixeiro e o tripeiro, que vendia carne e miúdos de boi em carroças especiais que tinham um baú aluminizado por dentro. Depois da agem dos animais, usávamos o esterco para adubar as hortas das casas, que normalmente existiam nas terras loteadas. Quem mais comprou terrenos lá foram os portugueses, sendo dois ou mais lotes para revender. Eram em sua maioria padeiros que vendiam pães usando bicicletas com uma caixa de madeira no e. Já no início da década de 1960, aram a usar uma lambreta com a caixa bem maior. Tinham inúmeras chácaras por lá e currais onde se tirava leite na hora e o curral do Totó ficava bem defronte à nossa casa, na Rua Bugio. Toda tarde eu ia com uma a e pegava o leite recém-saído da vaca. Mas o que nos dava alguns dividendos mesmo era o esterco. Eu catava e depois vendia para os chacareiros. O esterco de cavalo era o chamado “exportação”, porque eles diziam que o esterco de vaca não era bom. Mas eu levava para a horta de casa e surtia um bom efeito e meu pai, é lógico, pensava que era de cavalo. Havia duas maneiras de vender o esterco: in natura, ou seja, como saía do animal, ou então batido, bem fininho, que era mais caro. Se o chacareiro fosse português, preferia in natura. Então era só deixar secar e depois com aquele garfo de pegar capim, ir batendo até ele ficar bem diluído. Outra maneira que encontrávamos para ganhar um dinheirinho era catando lata e vidro, pelo alumínio pagavam mais, as latas de óleo também tinham um preço especial.
onde vivemos
Como chegavam muitos estrangeiros, com belas casas, nas ruas Texas, Kansas, Nebraska, devido à Sociedade Hípica Paulista, que circundava as ruas Guaraiúva, Quintana e Porto Martins, tínhamos outro meio de ganhar dinheiro, que era catando funcho, nome popular de um tipo de cogumelo comestível, que surgia na terra de uma hora para outra, que era muito apreciado por eles. Era só chover de madrugada e sair o sol pela manhã que o mato ficava cheio dessa iguaria, tão consumida pelos estrangeiros, notadamente alemães. Também tinha a fábrica de esponja de aço, Bombril, na Rua Nova York a gente pulava o muro dos fundos e pegava os restos de palhinha, fazíamos várias unidades e íamos vendendo. A principal rua do Brooklin, pelo menos a mais famosa, era a Rua Brejo Alegre, um nome sugestivo. Quando chovia, ela fazia jus ao nome. Chamávamos de esmaga sapo, um verdadeiro charco de terra preta, onde atolavam os poucos carros que por ali avam. Até carroça encalhava. Ouvia-se os sapos chiarem, numa verdadeira orquestra afinada. Então o negócio era ficar dentro de casa, à luz de lampião ou lamparina, pois não tinha luz elétrica, que só veio em 1953, graças à conscientização dos moradores e à iniciativa de uma coleta de dinheiro, depois que um orçamento de 53 mil cruzeiros foi feito pela Ligth. Foi o quanto custou para esticar os fios da Avenida Central, da Vila Olímpia, para a Rua Arandu e demais ruas como a Brejo Alegre, Texas, Kansas, Marquês de Cascais, Ribeiro do Vale, Conceição de Monte Alegre e outras. Foi uma festa a chegada da energia elétrica. Quando queríamos nadar, íamos ao rio Pinga, um córrego de águas límpidas onde havia uma ponte de ferro que era usada para saltar na água, atualmente lá está a Avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini. Em 1986, depois de 36 anos de Brooklin, me mudei. Afinal, a beira do Córrego da Traição virou a Avenida dos Bandeirantes a partir de 1971. Muitos caminhões, carros, muita poluição, tanto sonora quanto do ar, já irrespirável, e muitos atropelamentos, vários em frente à minha casa, o último foi de um garoto que corria atrás de um balão. Fui um dos que catou cogumelos junto ao Córrego da Traição. Jayro Eduardo Xavier
O Brooklin dos meus amores Johannes Luyten A minha família mudou para o Brooklin Velho no início de 1954. Vi erguer o primeiro prédio do bairro, um edifício de 3 andares, quase na esquina da Santo Amaro com a Morumbi. No andar térreo ficava a loja de Sapatos dos irmãos Petrella. Ao lado, ficava a Agência do Banco
Brasileiro de Descontos S/A, Bradesco, que anos mais tarde, se mudaria para a nova Agência Colonial, esquina da Avenida Santo Amaro com a Morumbi, onde funcionavam a Padaria Moriatan, uma marcenaria e a Floricultura 3 Pinheiros. Contavam os mais antigos, que as pessoas que iam de ônibus até o Centro da cidade, deixavam na Moriatan, em dias de chuva, os sapatos sujos de barro e calçavam um par limpo, para trocá-los novamente no retorno. Os padres italianos do PIME – Pontifício Instituto Missões Exteriores – construíram a Igreja Matriz do Sagrado Coração de Jesus, no local da antiga igrejinha que ali existia. O Colégio Meninópolis, obra do Padre Carlos Acquani, era de madeira. Graças também às doações e empenhos dos moradores do bairro se transformou no belo prédio de hoje. Dentre os educadores da época, figuravam a dona Ida, diretora e disciplinadora, o Zé Vinte, José Winter, o Werneck e o Padre Teodoro. Ao lado do colégio funcionava o Cine Meninópolis, onde após assistir a missa dominical de manhã e participar da catequese à tarde, a molecada ía assistir a matinê com os famosos “seriados”. No capítulo seguinte o mocinho ou a mocinha sempre se salvavam. Existia a conhecida Turma do Danúbio, que se encontrava regularmente na Padaria Danúbio Azul, no início da Rua Joaquim Nabuco. Se essa turma não fosse convidada para os bailinhos familiares da época, era barulho na certa. Os bailes carnavalescos, no Esporte Clube Banespa na Avenida Santo Amaro e no clube alemão, eram famosos e inesquecíveis, assim como os primeiros hamburguers e milks shakes no Dog Burger, que funcionava perto da esquina da linha do bonde com a Rua Joaquim Nabuco, quase ao lado da casa onde morava o pai do Nachtergale, amigo do meu irmão; havia também a Chácara da China onde a gente brincava de mocinho e bandido, onde hoje funciona a fábrica da Kibon. Lembro dos apitos às 6 horas e às 22 horas da fábrica Orquima, na Avenida Santo Amaro, quase em frente à Marcas Famosas. Poucos, talvez, sabem que lá se processava a famosa areia monazítica, que vinha do Espírito Santo. O Empório Alarcon, na antiga Rua das Acácias, onde tínhamos “conta”. O Dudé, senhor João, senhor Manolo, senhor Pedro e o Zé Boi que assustava pelo tamanho dos pés, sempre descalço, mas gostava das crianças e empurrava um carrinho nas feiras de terça e sexta. O Brooklin dos mais ricos ficava na parte de cima da Joaquim Nabuco e adjacências, o dos mais pobres na parte baixa que se estendia até o rio Pinheiros. A linha do bonde era o “divisor” das classes. Na hora dos bailinhos todos se misturavam e se divertiam. Meninas traziam bolos e salgados, os rapazes rum, Coca-Cola, Crush e Vodca. Elvis, Paul Anka, Little Richard, Pat Boone, Connie Francis, Harry Belafonte e outros embalavam os nossos sonhos e tristezas quando levávamos um fora de alguma guria, que se negava a dançar com a gente – levar tábua, como se dizia. 131
Assim era, e hoje mergulhado nas minhas memórias: nenhuma tristeza, nenhuma esperança, tudo que devia acontecer está acontecendo...
O meu apelido é Lelê, moro ainda na antiga Rua Martim Francisco, atual Rua Laplace, onde a garotada do bairro construiu um salão de festas, o Clubinho, com bailinhos, cinema, futebol e vôlei todas as semanas. Muitas estórias para contar... Muitos da década de 1960 e 1970 ainda freqüentam a Padaria Danúbio Azul e a Pássaros e Flores. José Roberto Felicissimo
alcançarem o bocal. Vindo da zona rural, caipira, e com pouco traquejo social, demorei muito para me relacionar com os vizinhos, na maioria de origem germânica, e as primeiras amizades foram com uma moça russa e uma alemã. Uma vez por semana, ia buscar água na mina perto de casa, naquele tempo já tinha o nome de “Água Petrópolis”. Turan Bei
O velho Brooklin Novo Luiz Saidenberg
Eu morava na antiga Rua Humaitá, travessa da Avenida Morumbi. Chegamos ao Brooklin em l948. Meu pai adquiriu a casa que era de propriedade do senhor Emílio Vian que era casado com a senhora Osvalda Vian, da família Petrella e Natrielli, se não me engano. O “irmão” que é citado como lanterninha do Cine Meninópolis se chamava Mariano, um italiano “invocado prá caramba”. Mas era o Padre Luiz Gargioni que liderava os adolescentes, no sentido de seguirem bons caminhos. No Colégio Meninópolis trabalhava como secretário o André japonês. A dona Margarida que vendia merenda na hora do recreio e que era mãe do professor de Português, Julio Madaraz. O professor Franco, o professor Cruz, a professora Mariana, enfim, aquelas pessoas maravilhosas que faziam do nosso querido bairro um espaço muito simpático. Os campos de várzea do Brooklin, da Caloi, do Piratininga e outros times que se formavam e depois desapareciam. As quermesses ao redor da igreja, o comércio da Joaquim Nabuco com a Casa Noel, o Magazine Morales, a loja de Móveis do Salomão, em frente ao Danúbio, a Farmácia do senhor Roque Petroni, a Ótica Herman, Loja Facci. Na Avenida Morumbi, a Padaria Flor do Brooklin, o Bar do Serra, o Bazar e Papelaria Nossa Senhora Aparecida, o Gallo Dentista, sem falar daquelas garotas maravilhosas do Colégio Beatíssima Virgem Maria, BVM, e do Bar e Bilhar da Raquel. Asdrubal Ferreira dos Santos Filho Lembro dos tempos que morei na parada Petrópolis, no início da década de 1950, quando se atravessava o Clube Banespa livremente para ir até a Avenida Santo Amaro. Lembrei também que às vezes me via em situação de medo quando tinha que ir, de madrugada, às margens do Ribeirão Cordeiro buscar erva-prata, numa daquelas chácaras, para atender a crise de rins do tio com quem eu morava. Ainda bem jovem, tinha muita dificuldade em falar ao telefone naquele armazém de secos e molhados que havia na Joaquim Nabuco com a linha do bonde, o telefone antigo daqueles pregado na parede, tinha um banquinho para os baixinhos 132
Meu tio Sebastião Simões, irmão de minha mãe, era um pé-de-boi. Professor de Educação Física, dava aulas em vários clubes e colégios, em diferentes pontos da cidade. Com isso, juntou algum dinheiro, comprou um terreno na Rua Texas, Brooklin, e iniciou a construção de sua casa que ficou pronta por volta de 1962. Era um terreno grande, 500m2, e o projeto, de autoria de um seu aluno, muito caprichado. Deu-lhe enormes despesas e preocupações, mas naqueles tempos as coisas eram bem mais fáceis. Quando íamos visitar a obra, tínhamos que pegar o ônibus, no Anhangabaú ou na Praça das Bandeiras, que subia a Santo Amaro, e descíamos num grande laboratório que existia junto à Avenida dos Eucaliptos. Depois, atravessávamos a Santo Amaro e pegávamos a Rua Cabo Verde, da qual hoje resta só um toco. O local onde atualmente está a Avenida dos Bandeirantes era conhecido como a Estrada da Traição, assim batizada devido ao córrego do mesmo nome que era ladeado por uma favela, que lhe acompanhava as águas no meio de um matagal. Para se chegar à Rua Texas, era preciso cruzar o córrego e a favela, por meio de uma pinguela, e a favela, pacata, não assustava ninguém. Não me lembro de ver nenhum movimento ali, talvez uma discreta lavadeira cuidando de seus trapos. Incansável, meu tio ainda cultivava uma horta nos fundos. Chegamos a comer couve e pitangas apanhadas do pé. Voltando de lá, vejo-me cruzando a Santo Amaro toda arborizada, mais além, o muro de pedra de uma churrascaria, a Muralha, creio eu. Toda essa tranqüilidade, acabou com o “progresso”. A Avenida dos Bandeirantes irrompeu, mudando tudo, poluindo com sua fumaça e barulho. A Rua Texas, vizinha, ou a servir de alternativa aos imensos congestionamentos. Apesar de até hoje não ser uma má rua, decaiu bastante de status. Meu tio aposentou-se e mudou para Piracicaba há uns vinte anos. Não é mais vivo, mas a casa da Rua Texas sim, agora de muros altos e fechados, bastante modificada.
onde vivemos
Escolinha das Acácias Gabriel Junqueira Leite Eram os idos de 1967, meu pai Manoel Netto Leite, médico, acabara de construir nossa sonhada casa, na Rua das Acácias, atrás dos colégios Meninópolis e Beatíssima. Com dificuldade, pois era funcionário público, ou melhor, chefe do posto de puericultura do Brooklin e médico do antigo SAMDU – Serviço de Assistência Médica Domiciliar de Urgência, além de ter seu consultório particular em cima da auto-escola Feiticinho, do Arnaldinho, na Rua Matias Cardoso. Como se vê, funcionário público já ganhava pouco desde aquela época. Minha mãe, Ruth, para ajudar nas despesas, já que seus quatro filhos iam de manhã para o Beatíssima ou para o Meninópolis, resolveu trabalhar, pela manhã, como professora da Escola Patinho Feio, ao lado da Kibon, do senhor Plínio, mas como havia sido normalista interna da Escola São Domingos de Poços de Caldas, diziam que o seu diploma não valia aqui em São Paulo, portanto, ganhava menos do que as outras professoras. Lembro-me muito bem dela, baixinha, chegando a pé, cansada, carregando nos braços os cadernos encapados da molecada para corrigir e eu e o Nenê, o Carlos Roberto, já no colegial e no ginasial respectivamente, ajudando-a nessa tarefa, era até divertido. Após dois anos nessa labuta e morando na parte de cima do sobradão, pois tínhamos poucos móveis na parte de baixo, minha mãe com o incentivo de seu irmão, meu tio Bié, Gabriel Azevedo Junqueira, grande médico e uma pessoa muito carismática, com consultório em cima da Padaria Danúbio Azul, comprou os móveis de uma escolinha que estava fechando e que no ano de 1969 começou a funcionar na parte de baixo e no quintal, a Escolinha das Acácias, na antiga Rua das Acácias. Meu pai conta que após comprar os brinquedos usados, precisava deixálos como novos e então ia à Mary Tintas, na Avenida Morumbi, do seu Waldir e esse estranhava o doutor comprando tinta e pincel, e ao saber do início da escola, com a confiança que tinha nele, pediu para reservar um lugar para sua filha Isabel, mal sabia ele que ela seria a primeira aluna a ser matriculada. Ao chegar em casa, quando meu tio disse que já tinha sido feita a primeira matrícula, sem mesmo a escola ter sido aberta, todos se animaram. Com o entusiasmo e o carinho de Tia Ruth e já começando a ser ajudada pelas minhas irmãs que estudavam no Beatíssima, a Beatriz, Bia, e a Eliana, Lili, a escolinha progrediu e precisou alugar as casas ao lado, onde então começou a funcionar o Berçário já sob o comando da Denise, psicóloga, casada com o Nenê que veio somar com a família e que com sua experiência e dedicação, preparava os bebês para o ingresso na Escolinha. Papai, após se aposentar, sempre habilidoso, ou a ser o chefe da manutenção da escolinha, era o pintor, carpinteiro, encanador e nas férias
de fim do ano, fazia a revisão geral em todos os brinquedos, era como se fosse o seu jardim de infância, e sempre teve orgulho de estar junto com sua esposa em todos os momentos da escolinha. A escolinha continuou crescendo, ficava a cada ano mais bonita, o que se ganhava era, praticamente, investido na escola para conforto e prazer dos alunos. Hoje, assim como tem professores de muitos anos, os aluninhos já são filhos e até netos de ex-alunos ou de amigos nossos da juventude. E com muito orgulho minha mãe nos conta que eles dizem, orgulhosos, que deixam seus filhos aos cuidados da escolinha por saber que a tia Lili e todas as professoras têm o mesmo amor que ela. Dona Ruth e doutor Manoel são pessoas carimbadas no bairro, pois por onde andam tem sempre alguém que os cumprimenta, ou foram clientes dele ou freqüentaram a escolinha dela, ou foram amigos dos seus filhos e esse carinho para com eles é que faz com que tenham orgulho de sempre terem morado no Brooklin.
Os padres e as freiras do Brooklin João Bosco Petroni Os barbudos missionários e educadores italianos, do Pontifício Instituto das Missões Estrangeiras, PIME, com sede em Milão, chegaram ao Brooklin Paulista em 1948. Assumiram a Paróquia Sagrado Coração de Jesus, implantando inusitada e moderna metodologia de trabalho, centrada nos paroquianos em geral, mas, acima de tudo, na numerosa juventude da região. Surpreendente e grata revolução. Primeiro vieram os padres Attílio Garré, Luiz Gargioni e Carlos Acquani. Aos poucos, foram chegando Aristides Piróvano, Geremia Arosio, Angelo Pighin, Canzio Suardi, Angelo Gianola, Bruno Turato, Santo Cortese, Pedro Locati, Aldo da Tófori, João Airaghi, Teodoro Negri, Vicente Mariani, os irmãos leigos Carlos e Faustino e muitos outros, até o encerramento definitivo do longo e gratificante ciclo do PIME no bairro, com os padres Antonio Turra, Domingos Savino, Ernesto Arosio, Lino Pavaneto, Eugênio La Barbera e Sandro Schiatarella, em fins da década de 1980. Poucos deles permaneciam em São Paulo. Partindo do Brooklin, casa-mãe do instituto no País, seguiam pelos mais remotos e enigmáticos caminhos, até alcançarem os inóspitos sertões do interior de São Paulo, Paraná e Santa Catarina. Com a chegada da primeira leva, padre Luiz encarregou-se dos jovens e adultos e o irrequieto padre Carlos, da garotada. De imediato, o entorno da igreja e imediações transformaram-se num agitado agrupamento de meninos, sugestivamente batizado por padre Carlos de Meninópolis. No início da década de 1950, a Mitra Arquidiocesana vendeu ao PIME, a Casa Paroquial e o terreno contíguo, na esquina da Rua Coronel Conrado 133
Siqueira Campos, com a Avenida Morumbi. A seguir, a Prefeitura cedeu aos padres um velho galpão pré-fabricado, composto de algumas salas de aula. Nascia, assim, por exclusiva iniciativa de padre Carlos, o Colégio Meninópolis. Mas não foi só. Na ocasião, cinema só havia no Centro da cidade ou nos bairros vizinhos ao Brooklin: os Cines Cruzeiro e Phenix, na Vila Mariana, os tradicionais São Francisco, Marajá e Cinemar, em Santo Amaro, ou ainda na Vila Nova Conceição, os cines Villa Rica, Radar e Excelsior. Conscientes das deficiências do lugar, os padres inauguraram anos depois e encostado à pequena escola, o amplo e moderno Cine Meninópolis. Foi erguido no terreno em que anteriormente havia um precário barracão, que padre Carlos adaptara para cinema, carinhosamente chamado de Cineminha do Padre Carlos. Aos sábados e domingos à noite, abria para os adultos e nas matinês de domingo uma multidão de meninos o invadia, logo após o catecismo. O tal cineminha contava com apenas um projetor para filmes de 16mm. Intermináveis e ruidosos intervalos interrompiam as sessões, para a troca de um rolo de fitas por outro. Desfilaram pela tela do inesquecível cineminha personalidades de proa da cinematografia universal. Foi quando centenas de moradores, quem sabe pela primeira vez, puderam assistir às curtas metragens do genial e arisco Charles Chaplin e da dupla O Gordo e o Magro. O Ébrio, com Vicente Celestino e o dramalhão mexicano, O Direito de Nascer, bateram recordes de bilheteria. No entanto, a vibração chegava ao auge com os policiais e faroestes norte-americanos, do apogeu do cinema branco-e-preto, com Ray Milland, James Cagney, Humphrey Bogard, Douglas Fairbanks Junior, Edward G. Robinson, Peter Lorre, Gary Cooper, Ronald Reagan, entre outros, e com as aventuras de Johnny Weissmuller, o Tarzan. Imperdíveis também foram as comédias estreladas por Aldo Fabrisi, o Totó, Pipino di Filippo, Dany Kaye, Bob Hope e Bing Crosby. Conhecer e irar a arte da lendária e melodramática Bette Davis virou status e motivo de vaidade para muita gente. Mas aquele acanhado galpão da primeira escola um dia foi demolido. Em seu lugar, os padres levantaram um moderno edifício, inaugurado em 24 de maio de 1959, para alojar o novo Colégio Meninópolis, reconhecido como um dos melhores estabelecimentos de ensino da zona sul da capital. Bem antes deles, o Brooklin Paulista contava com um outro estabelecimento de ensino exemplar. Quem dos mais velhos não se recorda das irmãs alemãs Maria Zotz, Walburga, Maurícia, Digna, Camilla, Winfrida, Bertilla e Cornélia Scheller? Pertenciam a uma instituição católica, fundada na Inglaterra, por Mary Ward e que aos poucos, foi se espalhando por toda a Europa. Perseguidas na Alemanha nazista, migraram para o Brasil, chegando a São Paulo em 1932. No bairro, começaram a atuar em 5 de julho de 1936, quando instalaram o modesto Colégio Beatíssima Maria Virgem, num velho casarão na Avenida Santo Amaro. Contavam inicialmente com apenas dez alunos. Depois, transferiram-se para a esquina da Rua das Margaridas com 134
a Avenida Morumbi, numa antiga e charmosa chácara, com salas na frente, capela e um impenetrável convento nos fundos. No silêncio das aulas, ouvia-se o canto dos pássaros e respirava-se o aroma dos frondosos jardins que a cercavam. Entender o que falavam era complicado. Um rebuscado português, com carregado sotaque germânico, foi contaminando a maioria dos alunos, sobretudo a gurizada. E a influência era tanta que, para surpresa e espanto geral, muitos começaram a se expressar da mesma forma quando, em casa, repetiam em voz alta as lições adas em classe, ou ainda quando cantavam para os pais as canções que as freiras lhes tinham ensinado. Encontram-se até hoje no mesmo lugar, só que as instalações da saudosa escola não mais existem. Foram absorvidas pelo gigantesco e moderno edifício do atual Instituto de Educação Beatíssima Virgem Maria. Rígida disciplina e excelente qualidade de ensino foram o maior legado que deixaram a dezenas de gerações que aram por lá. Por isso têm o eterno reconhecimento do bairro, grato por tê-las até hoje consigo.
Não posso deixar de fazer minha homenagem, com grande louvor ao Padre Carlos. Que figuraça! Lembro-me que no terreno onde hoje é o saudoso Colégio Meninópolis, onde meu filho e meu genro estudaram, tinha na esquina a casa dos padres e nos fundos o grande barracão que você citou, onde era o cineminha do Padre Carlos. No mesmo terreno, existia um grande espaço e lá o Padre Carlos criou os torneios de futebol. Com sua vestimenta preta, mesmo em dia de muito sol, lá estava ele arregaçando sua batina e metendo sua bota na bola. Apitava os jogos. Queridíssimo por toda a molecada, sabia incentivar a meninada para o estudo, esporte e religião, é claro. Tinha que comparecer na missa da igreja do Brooklin para receber a senha e conquistar o direito de jogar futebol no campo da paróquia e ter o às sessões do cineminha e era comum ele fazer sorteios de brindes, nas sessões, usando o número da senha. A garotada era da pesada, mas ele punha ordem na casa. Lembro da minha primeira comunhão com o Padre Carlos dirigindo, a pé, a tropa de meninos e meninas desde o Grupo Escolar Mário de Andrade, onde eu estudei, até a igreja. No Mário de Andrade, grande parte da meninada da região lá estudava e de lá o Padre Carlos fazia seu elo com a igreja. Tenho certeza que a turma toda que viveu aquela época e que gostava de futebol como eu, não se esqueceu desse grande batalhador que foi o Padre Carlos. Meu filho e meu genro e todos os garotos que estudaram no Colégio Diocesano Meninópolis, devem ficar sabendo que o Padre Carlos foi um dos seus grandes criadores. O colégio fechou em 2004, depois de 54 anos de atividades. L. Valezin
onde vivemos
Conheci o padre Jeremias Arosio e o padre Carlos. Padre Jeremias foi pároco, durante muitos anos, da paróquia do Divino Salvador, na Vila Olímpia, onde fui Congregado Mariano. Uma grande figura, conversava com a gente sempre mexendo em seu cavanhaque grisalho. Se tivesse que tomar uma pinga num bar não regateava. Tomava mesmo, como fazia sempre no bar do Vieirinha ao lado da igreja. Foi ele o responsável, com nossa ajuda, pela construção do salão paroquial, uma obra gigantesca para a época. Padre Carlos ficou durante muito tempo como titular da Igreja de São José, em Cidade Ademar. Também realizou grande obra e transformou a igreja num templo moderno. Mário Lopomo Quando criança, vendíamos um carnê de “tijolinhos” pelas redondezas ao custo de Cr$ 1,00 cada, para ajudar na construção do prédio do Meninópolis. A minha esposa Anna estudou no Colégio Beatíssima Virgem Maria, e numa fase difícil da família dela, foi a irmã Cornélia Scheller que a manteve no colégio, estudando sem poder pagar até que a situação melhorasse. A irmã Cornélia, mesmo muito doente nos seus últimos anos de vida, sempre foi um exemplo de amor, trabalho e dedicação à causa da comunidade e do BVM. Para todos os nossos benfeitores, orientadores e mestres do Meninópolis e BVM que já nos deixaram, deixo esta frase: Do pó viemos ao pó voltaremos, mas que seja em forma de giz para quadro-negro. Johannes Luyten
A vizinhança completava a família Johannes Luyten Boa parte da minha infância e juventude ei na Rua das Acácias, localizada no Brooklin Paulista Velho. A Rua das Acácias começava na Avenida Santo Amaro ao lado das Marcas Famosas e terminava na antiga fábrica da Durex. Era estreita, de terra e sem árvores. A nossa casa alugada, pequena, térrea e geminada não existe mais. Dos nossos vizinhos destaco a dona Olga e o senhor Ruzzi, cujo filho Cláudio era nosso amigo. Era na casa dele que assistíamos na televisão – televizinho – os desenhos animados. Várias vezes amos o fim do ano junto com eles, assistindo à corrida de São Silvestre. Eram pessoas muito bondosas e humanas e agradeço muito tudo o que fizeram por mim. A Heleninha, o meu primeiro amor platônico, morava em frente à família Ruzzi. Menina bonita, estudava no Caetano de Campos, mas não dava bola para mim. O pai dela era uma fera.
Por ser rua de terra, podíamos organizar festas juninas com as tradicionais fogueiras. Os vizinhos se juntavam para torná-las deliciosas com todo tipo de comida e fogos de artifício. O meu pai não se conformava com a compra dos fogos e dizia: — Como estas pessoas podem queimar dinheiro com fogos! No Empório Alarcon, comprávamos tudo o que era necessário. Funcionava nos moldes da década de 1960: óleo comestível era vendido a litro, uma bombinha manual extraía o óleo de um tambor e transferia para uma garrafa vazia de vinho. Bolachas eram acondicionadas em latas – com um pequeno visor que determinava o seu nível – e pesadas para serem vendidas. Arroz, feijão, açúcar, farinha, quirela e milho ficavam expostos em sacos de 50 kg. Lingüiça e paio vinham em latas grandes da Serrano, bem como a manteiga. Tudo registrado nas famosas cadernetas, se pagava no final do mês. As brincadeiras eram jogar bolinha de gude, empinar papagaios, brincar de mocinho e bandido, andar de bicicleta, dos outros, pois não tínhamos as nossas. E assim a vida ava lenta, mas plena de esperanças e a vizinhança completava a família que havia ficado bem longe, na Holanda.
O difícil começo da Cidade Monções Roque Vasto Em 1953, eu era muito criança, mas lembro bem quando meus pais alugaram uma casa na Cidade Monções, na Rua Hollywood. Foram para aquele fim de mundo porque uma tia, irmã de minha mãe, havia comprado um terreno na Rua Guaraiúva e construído “dois cômodos e cozinha” como se falava na época. O problema era que Monções foi loteada sobre um verdadeiro pântano, com o esgoto correndo por canais de drenagem, tanto que não havia água encanada no bairro, e os poços furados nos quintais nunca tinham mais que quatro ou cinco metros de profundidade e quando chovia muito transbordavam. O resultado era que as fossas negras infiltravam no lençol d’água e contaminavam tudo. A água de lavar, banhar e de uso sanitário era malcheirosa, quando fervida, formava uma grossa camada verde-claro que tinha de ser removida. A água para beber era fornecida pela prefeitura, por meio de uma pipa de concreto sobre quatro rodas, puxada por um trator, e deixada na esquina para que todos se servissem. A criançada quase sempre esvaziava os pneus da pipa, e também quase sempre apanhavam dos pais por isso. O ponto final do ônibus era em frente à padaria, pertinho da fábrica da Ponds, e o ponto inicial ficava no Vale do Anhangabaú, à direita da Galeria Prestes Maia. A ausência de recursos básicos e as conseqüentes doenças 135
provocadas pela falta de saneamento na região, fizeram com que meus pais voltassem para o Brás, pois não acreditavam que um dia Cidade Monções pudesse ser urbanizada. A região, onde hoje é a Avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini, apresentava grandes alagamentos quando chovia e não havia habitações naquela área. Existiam muitos portos de areia junto às margens do rio Pinheiros, e várias crianças morreram afogadas naquelas lagoas profundas que se formavam pela extração da areia.
Campo Belo dos sapos, cobras e cavalos Roque Vasto Em 1963, a região sul não era explorada além de Santo Amaro. Naquele tempo, o bonde era um perfeito meio de transporte, pois partia da Praça João Mendes e num instante estava como que navegando pelos trilhos em linha reta por muitos quilômetros. A cada parada, depois do Instituto Biológico, vinham as paradas França Pinto, Ypê, Ibirapuera, Moema, Indianópolis, Vila Helena, Campo Belo e Piraquara, onde eu sempre descia do bonde, bem junto ao Laboratório Carlo Erba, na esquina com a Rua Vieira de Morais, ao lado das padarias Lago Azul e Flor do Piraquara, ao redor das quais se formava o pequeno núcleo de comércio daquela região. Tinha também a farmácia do seu Carlos, uma pequena papelaria e uma loja de ferragens. Mas o que mais me encantava naquele bairro era a tranqüilidade das ruas sem movimento, onde podíamos andar e ouvir o toque-toque do salto dos sapatos, onde andávamos rente aos muros das casas, vislumbrando os jardins com plantas que hoje são quase que desconhecidas, como a giesta, as bocas-de-leão, os copos-de-leite, os cravos de todas as cores, e uma mistura inesquecível de perfumes no ar, que ao final da tarde era invadido pelo cheiro das damas-da-noite. Caminhar pela Avenida Rodrigues Alves era um eio ecológico, pois sempre se encontrava sapos, rãs, cobras, um sem fim de pássaros e muitas vezes, bandos de cavalos soltos, que partiam em disparada quando assustados. Ainda não havia asfalto na região, e a Avenida dos Bandeirantes era um simples projeto que seria mais tarde realizado através da canalização do Córrego da Traição, que ligaria a futura Marginal Pinheiros a São Judas. No verão, lá pelas 16 horas, quase sempre o céu se tornava escuro e caía uma forte chuva. As águas que vinham se acumulando desde o aeroporto, encontravam a barreira elevada formada pelo leito dos trilhos do bonde, e na Rua Amazonas, atual Doutor Jesuíno Maciel, acabavam por inundar as casas com mais de dois metros de água enlameada. A parada do bonde era provida de uma cobertura e de bancos para espera, durante a noite esses 136
bancos serviam de cama para o Fritz, que, segundo diziam, era um soldado alemão desertor da II Guerra Mundial. O Fritz andava sempre segurando a calça na altura da cintura, e muitas vezes ele se jogava no chão quando o bonde ava, pois o barulho fazia com que ele se lembrasse dos tanques de guerra. Ele não falava o português, mas grande parte da população do Campo Belo e Piraquara, de origem alemã, lhe prestava auxílio.
Eu nasci no Campo Belo em 1953, meu pai quando voltou da Hungria, depois da guerra, se casou e foi morar na Rua Dom Pedro II. Depois, papai trouxe para o Brasil a irmã com o marido e filhos e eles também foram morar no Campo Belo. Lembro que nós pegávamos o bonde para ir à escola, que ficava em Moema, no Colégio Nossa Senhora Aparecida ou para ir ao Centro de São Paulo ear. Luiz Aurélio Boglar
Do Campo Belo eu via a Paulista Wilson Fernando Borges Nasci no Campo Belo em maio de 1958, na antiga Rua Amazonas, 1537, atual Rua Doutor Jesuíno Maciel, 1601, onde atualmente há um sobradinho. Lembro que a Avenida 23 de Maio ainda não existia e o trânsito do aeroporto ava pela Jesuíno. Vi a poucos metros, ando em frente a minha calçada, o Presidente da França, Charles de Gaulle e em outra oportunidade, o Senador Bob Kennedy. Vi também quando asfaltaram a Rua Jesuíno Maciel, pois até então a Vieira de Morais era a única rua asfaltada. Ao lado da minha casa tinha o campo da Ponte Preta e meu pai jogava nesse time. Foi o meu tio que construiu a ponte de madeira que ligava a Rua Amazonas à Invernada, sobre o córrego, para as pessoas que iam ao aeroporto. Estudei no Grupo Escolar do Aeroporto, que a partir de 1967 ou a ser chamado Ilka Jotta Germano, estudei também no Chiquinha Rodrigues e Manoel de Paiva. Quando criança ia na padaria Presidente para comprar pão e leite e subia um morro que ligava a Jesuíno Maciel com a Rua Machado de Assis, atual Rua Pascal, e ava ao lado da casa do Tarcísio Meira e da Glória Menezes, aliás, seu filho Tarcisinho, muitas vezes, jogava bola na rua com a molecada da Machado de Assis. Quem não se lembra do Clube de Bilderberg, da Sapataria do Cabral, do Supernac, do Banza , do Snobs Hamburguer, das chácaras na Rua Zacarias de Góes, perto do Córrego da Traição, da ponte para a Vila Helena, do incêndio da Igreja Nossa Senhora de Guadalupe? Quantas vezes ia arrumar
onde vivemos
a bicicleta no Amadeu na Rua Rui Barbosa e depois atravessava a ponte de madeira sobre o Córrego da Traição, ao lado da Casa de Força, na Rua Pirassununga. No dia 10 de maio de 1972, foi inaugurado o Jumbo Aeroporto, anteriormente lá existia um depósito de mercadorias das Lojas Mappin e antes desse, os estúdios de cinema da Vera Cruz, se não me engano, na rua de cima, a Nhu-Guaçu tinha até avião de uma escola de pilotagem da Vasp pousado em terreno vazio. Todas as ruas eram de terra, uma terra bem vermelha. Da janela de meu quarto, na Rua Doutor Jesuíno Maciel, via, lá longe, o letreiro luminoso do Jepp, no Conjunto Nacional, quando na esquina da Avenida Paulista com a Rua Augusta ainda não tinha nenhum prédio. Esse era o Campo Belo... tão belo quanto hoje...
Rua Embaixador Ribeiro Couto, eternamente Olívia Marcia Ovando Num determinado horário do dia, minhas irmãs e eu, afoitas, subíamos as escadas de casa direto para o terraço e em questão de minutos surgia o gigante prateado, pomposo e barulhento: o avião! Durante muito tempo isso se tornou rotina para nós e sempre ficávamos perplexas! Afinal, nunca tínhamos visto um avião assim, quase nos céus... De nosso quintal! Quando mudamos para o bairro Jardim Novo Mundo ou Vila Helena, como alguns chamavam, a Rua Olívia, que um dia apesar dos manifestos e tristeza dos moradores ou a se chamar Rua Embaixador Ribeiro Couto, não tinha asfalto, mas tinha árvores dos dois lados da calçada! A casa de número 152 estava toda feia, judiada, mas em pouco tempo foi reformada, pintada e ficou linda, aconchegante, calorosa, cheia de amor e muita algazarra: cinco filhos! A casa tinha as portas abertas para os vizinhos e amigos... sempre recebidos pelos meus pais Altivo e Tina com um bom café e um gostoso arroz-doce. Um dia ganhei uma grande bicicleta e com ela desvendei agens secretas, caminhos cortados entre os matos, pontes improvisadas com tábuas – uma delas atual Avenida dos Bandeirantes – e ei a ter, com gosto de travessura, ali aos meus pés, as ruas do bairro: Catuiçara, Inhambu, Cotovia, Gaivota, Ilamônia, Iraúna, Pariquera-Açu, Dr. José Cândido de Souza, e as praças Paul Harris e Coronel Fernandes de Lima, Eucaliptos, Jauaperi, Arapanés.... E nessa mesma encantadora Rua Olívia, quase esquina com a pracinha, que pela primeira vez fui beijada, ou melhor, tive docemente os meus lábios tocados. Senti tremor nas pernas, o coração disparou... fechei os olhos e deixei o mundo rodar. O meu primeiro amor! Há muitos anos não moro
mais na Rua Olívia, mas quase todos os dias caminho e me exercito na pracinha, onde surgiu a Rua Embaixador Ribeiro Couto, para mim, eternamente Rua Olívia!
Quando conheci a Rua Olívia, o ano era 1955. O bonde parou em frente à farmácia na parada Vila Helena, e lá, de longe, pudemos avistar a casa aonde iríamos para um churrasco de cobertura da nova construção. Nada havia na Avenida dos Eucaliptos, apenas terrenos e uma casa aqui, outra lá longe, mas já havia aquele conjunto de casas estilo germânico, quase junto do muro de ladrilhos onde estava escrito: Avenida dos Eucaliptos. A casa era da minha tia Izabel, e em frente havia um conjunto de sobrados onde em um deles morava o Dr. Fred, ao lado, uma família alemã, depois uma família japonesa. Freqüentei muito o parquinho que ficava na praça, na verdade era um jardim da infância. Tinha amigos na Normandia, e fomos a diversos bailinhos nas garagens das redondezas. É muito bom lembrar daquela Rua Olívia, sem asfalto, arborizada, cheia de tranqüilidade que era quebrada apenas pela agem dos antigos DC3 e dos quadrimotores da ponte aérea. Roque Vasto
Velha Moema Iara Schaeffer Nem era minha a bicicleta, mas adorava roubá-la de minha irmã para ir buscar a mamãe no trabalho. As ruas eram de terra e ir buscar minha mãe significava buscar canudos de mamona para brincar de bolinhas de sabão, na atual Avenida dos Bandeirantes, onde havia uma chácara e um córrego, lugar de aventura e descobertas. Saía da Rua Nhambiquaras virava na Tupiniquins e, pronto, caminho livre, aí encontrava com diversos amigos que na rua brincavam de taco, bolinha de gude e queimada e eu não perdia a oportunidade de brincar também, então jogava a bicicleta no chão e brincava por uma meia hora, depois pegava a bicicleta de volta e continuava o caminho... Bons tempos... Eu também adorava ir comprar linha, zipper e botões pra minha mãe. Ia primeiro na Loja Sulamita, na Avenida Ibirapuera, depois ava pela Brindes Pombo, e voltava pela Jamaris, mas, antes, dizia um alô para o senhor Julio, que era o relojoeiro do bairro. Aos domingos tinha a feira da Rua Lavandisca e, na volta, a compra do frango abatido na hora na Avenida Ibirapuera. Junho e Julho eram meses de festa, os vizinhos se reuniam e, no mínimo uma vez por mês, a festa rolava na rua, com muito quentão, batata-doce 137
assada na fogueira, bolo de fubá, fogos, estrelinhas, balões, sem esquecer das adivinhações de Santo Antonio... Era uma farra! Lembro dos bailes de 15 anos que a turma da padaria, da esquina da Aratãs com a Alamenda dos Maracatins, sempre invadia. Era confusão na certa! Ah! E os bailinhos na casa da Manja, quando muitos namoros começavam e acabavam ao som dos Beatles, Ray Charles, Golden Boys, Ronnie Von, Roberto Carlos e Marcos Roberto. Saudade... Por onde andam esses rostos? E os amigos, Marilisa, Arlete, Sonia, Roberto e Manja? Talvez, como eu, pendurados nos arranha-céus da nova Moema, entrelaçados na multidão do Shopping Ibirapuera ou em cruzamentos do horroroso trânsito da Avenida dos Bandeirantes.
Morava na Rua Jauaperi, 1324. Se for lembrar de tudo sobre Moema da década de 1960... era só rua, rua e mais rua, o dia inteiro na rua brincando... arinhos, carrinhos de rolimã, estilingue, mamonas à vontade – era nossa munição – bola de capotão que ganhávamos do goleiro Picasso do São Paulo ou do Roberto Dias que moravam perto; bicicletas, esconde-esconde, taco, papagaios, cachorros, sorvetes de creme holandês e de ovos – o sorveteiro buzinando –, futebol na rua com o tradicional grito: Carrôôô, quando vinha algum, geralmente um cada meia hora, e os vizinhos... Ah! os vizinhos... o Pi, o Sala, o Niquita, a dona Ester, carioca da mais gente boa, o Mário japonês, os irmãos Micholla, as meninas, Luciana Pimenta de Pádua, loira de olhos verdes, e Carmem Lúcia Homem de Mello, morena de cabelos negros, minhas paixões. Seu Mário da venda da Bem-te-vi com a Gaivota, o Bazar Bem-te-vi, o Bazar Camurça, a Mercearia Colonial, da portuguesa bigoduda, bombinhas, balão chinezinho, Bazar La Paloma, a feira da Rua Pavão, campinhos de futebol, batata na fogueira, futebol de botão, autorama na garagem, pingue-pongue na garagem também, chicletes Ping-pong, a fábrica da Ki-refresco, de vez em quando, jogavam fora embalagens cheias com pequenos defeitos e nós íamos de carrinho de feira catar; o pastel do balão do bonde, as bombas de chocolate da feira, as caixas de biscoito da feira que os donos deixavam a gente experimentar... Ah! quantas coisas... Vou parar por aqui e para me identificar: Rogério Zanetti, filho da Iracema Zanetti e do Ronaldo Zanetti, neto da dona Jesuína, dona Anita e do seu Ernesto Zanetti, meus irmãos, Ronaldo (Mini) e Sylvia. Morávamos na Jauaperi, 1324, ao lado da sa dona Michel e da portuguesa, dona Manuela, em frente o Bebeto, João Alberto Malpetti. Nunca mais voltei a Moema desde 1988... Prefiro guardar na lembrança o que ela era. Rogério Zanetti
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Cheguei um pouco mais tarde no pedaço, mas não podemos nos esquecer dos cines Joá, na Avenida Ibirapuera com a Jurucê, onde rolava muito namorico. Lembram da Batida do Murílo? E do sarapatel do Tinoco e dona Abigail? Silvio
A República do Líbano terminava na linha do bonde Daniel Carlos Milreu Era meados de 1950, fui morar na Avenida República do Líbano, então arborizada, com muitas casas, bem moderna para os padrões da época. Tudo era calmo e no lado direito da avenida havia um enorme terreno vazio, onde já se sabia que seria construído um parque com inúmeras atrações, tudo para comemorar o IV Centenário da cidade. Ainda eram poucas as construções ao longo da avenida, que terminava na linha do bonde que seguia para Santo Amaro. A partir daí, o asfalto acabava e começava a Avenida Indianópolis, ainda de terra batida. A vida corria lânguida e muito calma, brincava-se na rua que não tinha movimento e raros eram os carros que avam. Bons tempos!
Eu nasci na Avenida Santo Amaro, no Jardim Paulista, em 1943. Aprendi a andar de bicicleta na área onde o Parque Ibirapuera estava sendo construído. Nós brincávamos nos montes de terra. Desde 1965, vivo nos Estados Unidos, mas sempre que vou ao Brasil, visito o Ibirapuera, relembrando tempos felizes da minha juventude. Erika Hausen de Mello
Ibirapuera Nelson Araújo Silva Filho Nascido a pouco mais de 500 metros da Praça da Sé, em 1958, sinto orgulho como poucos de ser paulistano. ando minha infância no bairro do Ibirapuera, pude acompanhar de perto o começo da brutal transformação da nossa metrópole. Shopping centers não existiam, o primeiro, o Iguatemi, na Avenida Faria Lima, só apareceu no final da década de 1960. Do meu bairro ficou a lembrança do bonde que ava na atual Avenida Ibirapuera, ligando o Centro da cidade a Santo Amaro. Como era gostoso e poético andar naquilo. Comum também eram os fatais atropelamentos, que interrompiam temporariamente a linha do bonde.
onde vivemos
O Mercado Gunga Din, que ficava no meio da Rua Joaquim Távora, onde hoje está a Avenida 23 de Maio, foi um dos primeiros supermercados de porte da cidade e ali funcionou, aproximadamente, de 1965 a 1969. Depois vieram os supermercados Peg-Pag, entre outros. Em 1970, quando da Copa do Mundo, fui à Avenida Ruben Berta, praticamente recém-inaugurada juntamente com a Avenida 23 de Maio, acompanhar a chegada dos nossos tri-campeões que nela aram em desfile, num carro aberto do Corpo de Bombeiros com a bandeira do Brasil. Era comum a população afluir naquela avenida quando chegavam presidentes de outras nações ou até mesmo quando da chegada de imagens religiosas, como ocorreu com a de Nossa Senhora de Fátima, vinda de Portugal. O número de veículos em circulação na cidade era muito menor e era possível a interdição temporária de tais vias durante a semana. Em 1968, quando a Rainha da Inglaterra, Elizabeth II, visitou a cidade, houve um desfile na Avenida República do Líbano e, então, eu pude vê-la a pouco mais de três metros num carro aberto, em frente da belíssima e esquecida Praça de Milão. Na ocasião, ela se dirigia ao aeroporto de Congonhas, acompanhada do então Governador de São Paulo, Abreu Sodré, situação que hoje seria impensada, por motivos de segurança.
A Avenida dos Bandeirantes e o Aeroporto de Congonhas Paulo Cotrim Os anos dourados da minha infância, década de 1960, eu ei no bairro de Indianópolis, próximo ao Aeroporto de Congonhas. Da janela de casa eu via os aviões subirem e descerem na pista. Nossa casa ficava na Rua Aratãs, quase esquina com a Guaicanãs, uma das poucas ruas asfaltadas da vizinhança, porque nela ava o ônibus Aeroporto-Perdizes. Já meu amigo José Antonio, a poucas quadras da minha casa, na esquina da Miruna com a Guaicanãs, morava em rua de terra, pois ali não ava ônibus, além de ficar mais perto do “buraco”. O tal “buraco” veio a ser a Avenida dos Bandeirantes. Um barranco para descer, um matagal para atravessar e um morro pra subir, até chegar à cerca que protegia o aeroporto. Só que a cerca não o protegia de nós, moleques, que nos achávamos no direito de entrar, estimulados pelo fato de o pai do José Antonio ser comandante da Varig. Assim, furávamos a cerca e íamos “tentar” parar os aviões no peito... e quando não dava, fazíamos coisas mais prosaicas, como andar de bicicleta e caçar ratos no matagal do buraco. Das minhas reminiscências infantis, hoje eu só enxergo o morrinho no qual está instalado o aeroporto. E os ratos, nem esses devem ter agüentado o movimento da Bandeirantes.
Naquele tempo morava na Guaicanãs com a Aratãs, na única chácara que tinha restado no bairro, que hoje não existe mais, deu lugar a um condomínio de casas. ei a infância e adolescência ouvindo os aviões pousando e decolando, às vezes minha mãe falava: — São 3 horas... o avião acabou de subir... e meu pai me levava ao aeroporto para ver os aviões e para isso tínhamos que descer a rua, pegar uma “picada” no mato, atravessar uma ponte de madeira sobre o Córrego da Traição e depois, subir o barranco para chegar na calçada do aeroporto. Bons tempos aqueles... Que saudades... Rubens Kurosaka Fui morador também de Indianópolis, na Alameda Uapichana, hoje renomeada Uapixana, paralela à Avenida Moreira Guimarães. Lembro-me que somente a Avenida Moreira Guimarães era asfaltada e todas as outras ruas de terra, onde brincávamos de pés descalços e pegávamos peixinhos no Córrego da Traição, onde hoje está a avenida Bandeirantes. Jorge de Melo Macedo Nos meados dos anos 1950, meu tio Raphael, coronel do exército, construiu um belo sobrado na Avenida Traição, que depois viria a ser a dos Bandeirantes, na subida que vai para a Pedro Bueno. Meu irmão e eu íamos ali para andar de bicicleta na “avenida”, que era um matagal com uma trilha e um córrego, o da Traição, no meio. De noite era muito tranqüilo, tirando algum ronco de avião se aquecendo, ou um eventual pipocar de tiro. Mas, nada grave. Até que, no início de 1970, a terrível Bandeirantes literalmente “desabou” sobre o pacato lugar. Meu tio tratou de mudar-se, rapidamente, para o Morumbi. Luiz Saidenberg
Jabaquara sem asfalto ou metrô Isilda Maria Fabris Gonçalves Nasci no bairro de Vila Guarani, Jabaquara, um antigo quilombo de São Paulo. Tenho 52 anos. Quando pequena, ainda não existia a Estação Conceição do Metrô, nem sequer uma única rua asfaltada. Como referência para ônibus, tínhamos o Bar Tupi ou a Igreja de São Judas Tadeu. Não existiam shoppings. Aos domingos, fazíamos eios a pé até o Jardim Botânico, no bairro da Água Funda, ou mesmo até o Jardim Zoológico. Na impossibilidade, íamos até a farmácia do senhor Odilon, que também era um point da época. 139
Fui trabalhar na Vila Guarani em 1972, quando só conhecia a região até a Igreja de São Judas Tadeu. Espantei-me com a densidade demográfica e os núcleos de favela que havia em grande número. Fiz logo muitas amizades e senti-me bem recebido nas sociedades filantrópicas e de amigos dos bairros. Era tempo do Governo de Laudo Natel, sendo os políticos da região Arthur Alves Pinto, Ricardo Izar e o engenheiro Horácio Ortiz, falecido recentemente. Gente muito boa. Lá permaneci por dois anos, com os monges do Seicho-Noye e no forró do Mário Zan, grandes figuras. O metrô estava sendo construído e pude viajar em um vagão sem bancos, em trajeto do Terminal Jabaquara à Estação Santa Cruz. Quando os trilhos se tornaram definitivos, o então Presidente Ernesto Geisel veio inaugurá-lo oficialmente. Meu saudoso pai, Nelson Washington Pereira, servidor da justiça por mais de cinqüenta anos, partiu para eternidade em dezembro de 1975 e os bons amigos da Vila Guarani homenagearam-no dando seu nome à antiga Rua Quatro da Vila Santa Catarina. Lá se vão mais de trinta anos! Mas a Vila estará sempre dentro de meu coração. Expedito Marques Pereira Nasci na Vila Guarani, morei no final da Rua Sigma, uma travessa da Avenida do Café, perto do Colégio Miguel Roque. Na época era bom conviver com todos os vizinhos. Na Rua Soares de Avelar existia o bar do senhor Virgilio, o açougue do Toninho, a sapataria Rápida Renato e a padaria Libanesa. Na Rua Domingos Santa Maria, existia a farmácia do senhor Odilon. Todos estes comércios ficaram na memória de quem viveu na Vila Guarani. Célio Matheus Saudades do campo do Vila Guarani, atual Avenida dos Imigrantes, onde aos domingos nos reuníamos para descontrair assistindo a um bom futebol, contra Grêmio Aliperti, União da Água Funda, Santa Ângela de Vila Moraes, AA Aliados de Vila Moraes, Cometa, Bernardino de Campos e outros. E o cine perto da Avenida do Café, próximo de onde caiu aquele avião por volta de 1960, era o máximo. Meu pai, Alberto Pires, era responsável pelas estufas do Jardim Botânico. Walter S. Pires Eu era pequena, mas lembro bem que o bonde ava lá na Avenida Engenheiro Armando Arruda Pereira, eu morava na Rua Arapuá, do lado que removeram as casas para a construção do o à Avenida dos Bandeirantes e depois fui morar no Jabaquara, perto da estação do metrô, na Cidade Leonor. Ivete 140
Jabaquara: fim do mundo Teresa Ishida Região onde havia índios até o final do século XVII, cujo termo em tupi significa rocha ou buraco. Também era conhecida pelos antigos habitantes como o fim do mundo, já que era muito despovoada até então. Hoje é o nome de um bairro, de uma avenida, e de uma das movimentadas estações de metrô da cidade. Recebi este trecho num papelzinho jogado para o alto junto com milhares de outros, durante as comemorações dos 450 anos de São Paulo, na Avenida 23 de Maio. Achei muito interessante a parte sobre o Jabaquara ser o fim do mundo, porque meu amigo Alessandro sempre falou que morávamos no “Elo Perdido”; e os moradores mais antigos falavam que tudo era mato. Quando me mudei para lá, antes da chegada do metrô, ainda havia um clube de campo e casas com grandes quintais e árvores, no lugar onde seria a estação. Também me lembro que o córrego tinha águas limpas. Isso aconteceu no século ado, mas há 35 anos somente. Com as obras do metrô, o clube virou um grande canteiro, sobrando apenas o Sítio da Ressaca e suas palmeiras. Durante a construção, lembro que brincávamos com enormes tubos de concreto. Aliás, quando a tubulação ficou pronta, por meio delas, os meninos entravam pelos bueiros, chegando dentro do pátio do metrô. Eles também nadavam naquela “piscina” da caixa d’água. Morei por muitos anos na rua que era da Padaria 3J, mas que conheciam como a rua do campinho de futebol.
Lembro da paisagem que vi quando visitei, pela primeira vez, meus tios que moravam no Jabaquara. Desci do bonde na Praça da Árvore e segui por uma rua sem calçamento toda rodeada de mato, com apenas algumas casas muito simples. Carlos Salzer Leal Eu nasci na Avenida Brigadeiro Luís Antônio em 1959 e, na época, meus pais moravam de aluguel na Rua Escobar Ortiz, ocasião em que apareceu uma oportunidade para eles comprarem um imóvel em Pinheiros. Segundo minha mãe, meu pai não quis sequer ver o imóvel, porque jamais moraria num fim de mundo daqueles, onde cobras eavam pelas ruas. Para ele tudo que ficasse a mais de cinco quilômetros da Praça da Sé era considerado um verdadeiro fim de mundo. Por ironia do destino, um ano mais tarde nos mudaríamos para a cidade de Suzano, para morar em uma comunidade construída pelo Serviço Social do Comércio, SESC. Fernando Sanchez Nunes
onde vivemos
Mirandópolis Celso Heládio Ortiz Este bairro paulistano fica na região entre a Vila Mariana e o Jabaquara. Suas ruas têm nomes de flores. Eu morava na Alameda das Boninas. ei lá toda minha infância e adolescência. Quando criança, brincava de correr atrás de balões durante as festas juninas. Em dezembro era a vez da então famosa São Silvestre Mirim, realizada sempre no dia trinta de dezembro. Reunia o bairro inteiro, e eu participei de todas as edições. Conhecia muitas pessoas e, no Natal, visitávamos todos vizinhos, entrávamos nas casas e comíamos um pouco em cada uma. Dá pra imaginar essa situação nos dias de hoje? E as missas do padre Olavo, na Igreja Santa Rita de Cássia? Era um desfile para a gurizada! Era lá que saíam as paqueras com as “minas” e os “pãos”. Todos de salto carrapeta e boca de sino. O Convento das Carmelitas ainda resiste no bairro. Nas esquinas da Rua Luís Góis com Avenida Jabaquara, de onde partiam os ônibus que iam para a cidade, havia duas padarias: Benfica e Amarante. Quem não se lembra das viações: Bristol, Paratodos, Tupi, Útil e Auto Viação Taboão. Eu estudava no Rui Bloem, na Rua Casemiro da Rocha, que rivalizava com o pessoal do Alberto Levy, na Avenida Indianópolis. Sem droga, sem violência. Tudo na boa. Eu também estudei no Rui Bloem e foi na Igreja de Santa Rita de Cássia, com o Padre Olavo, que fiz Primeira Comunhão e usei meu primeiro terno, ainda de calça curta. E quantas vezes não estive na casa de um tal Celso Heládio, irmão do Heraldo, na Alameda das Boninas, perto da Luis Góis, onde morava também meu parceiro de bola Tinóia, saído da 1º de Janeiro, grata revelação da São Silvestre Mirim. Celso Heládio, canhoto desengonçado de letra caprichada, que irava Sentado à beira do caminho e dirigia um Opala 68 na Rua Casemiro da Rocha, ladeira abaixo, de mãe tão simpática e atenciosa que se dava o trabalho de oferecer àquela “pirralhada” lanche e refresco. Outro dia, encontrei outro Celso do nosso tempo, de sobrenome Leite com quem também compartilhei algumas horas de estudo na Rua dos Jacinthos, onde morei, no 484, e também não sabia ser com “h”. Rua dos Jacinthos da professora Maria Helena, que muito nos exigia e muito nos proporcionou. A que nos levou a ver Paulo Autran no Fidalgo Burguês. Vital Kuriki Falar de Mirandópolis me traz lágrimas nos olhos. Morei numa travessa da Luís Góis – que saudades. Hoje moro no exterior, porém me lembro
muito de tudo da infância. Também estudei no Bloem, amado e querido. Meu pai jogou no Estrela Dalva de Mirandópolis e meu avô trabalhou anos na Fundição Itaúna, em Moema. Tudo era tão seguro e lindo... Lembro bem da Igreja de Santa Rita de Cássia, do mangue onde hoje é a Universidade Objetivo e do acidente de avião no Planalto Paulista. Da minha professora de primário, a saudosa dona Olímpia. Da casa do Léo Santos, irmão do Silvio e da construção da Avenida 23 de Maio, quando era moleque. Ai que saudades... Nelson Certa vez, até pensei em morar lá, tanto que gosto de Mirandópolis! Muitas vezes, na hora do almoço descansei naquela sombra deliciosa da Praça Santa Rita de Cássia. Na Rua das Rosas morava um amigo de juventude! Turan Bei Há mais ou menos treze anos atrás, fui diretora e professora do Alberto Levy e, após as mudanças que a Secretária da Educação fez durante o Governo Covas, fui para a Escola Estadual de Segundo Grau Rui Bloem, como professora. Mas o que me deu saudade mesmo foi do tempo que era possível comer um pouquinho em cada casa – vizinhança e parentes – nas festas de Natal. Isso ocorria quando eu era criança e nem a espera pelo Papai Noel era tão boa como essa andança. Ivette Moreira
Meu bairro em 1948 Jayro Eduardo Xavier Eu morava na Vila do Sapo, exatamente onde hoje é a sede da Moto Honda, no final da atual Avenida Sena Madureira. Do outro lado da linha do bonde Santo Amaro havia a Chácara do Barreto, que cultivava agrião entre outras verduras. Nos tanques de agrião, havia rãs e como o Barreto não as apreciava, ele permitia a papai caçá-las. Além da chácara começava o Parque do Ibirapuera, onde, após uma noite de chuva e se o dia amanhecesse ensolarado, íamos catar cogumelos. Meus pais adoravam comê-los fritos no azeite com alho e eu, na época, não gostava. Outro lugar bom para cogumelos era nas margens do Córrego da Traição, onde está a Avenida dos Bandeirantes, no final da Alameda dos Arapanés, próximo ao Viaduto Ibirapuera. Muitos dos próprios paulistanos estranham o nome da Usina da Traição, no rio Pinheiros, no final da Avenida dos Bandeirantes – a avenida está sobre o leito canalizado do Córrego da Traição. Esse córrego recebeu o nome em 141
razão de um assassinato. Dois portugueses, compadres entre si e sócios em negócios, tiveram desavenças e um matou o outro numa emboscada perto da nascente do córrego, onde hoje, no alto da Avenida dos Bandeirantes, há uma padaria com o esquisito nome de Rainha da Traição. Desnecessário dizer que os proprietários da padaria são portugueses, pois que estes gostam de dar o nome de rainha aos estabelecimentos congêneres. O Parque do Ibirapuera começava pelo Campo Experimental do Instituto Biológico e depois o Instituto Biológico Futebol Clube – IBFC – cujas arquibancadas ficavam onde hoje está a ponta nordeste do prédio da Bienal. À sudoeste do prédio atual, do outro lado do Córrego do Sapateiro, ficava a cocheira da prefeitura, onde eram recolhidos os burros que puxavam os carroções de lixo da limpeza pública. Havia poucos veículos motorizados para a coleta de lixo na capital e, em nossa rua, não havia coleta e nem necessidade disso, pois os saquinhos de papel vindos da padaria ou da venda eram alisados e guardados por mamãe para uso posterior; vidros, garrafas e latas eram vendidos ao ferro-velho; restos de comida iam para o cachorro ou para as galinhas e o que sobrava servia de adubo para nossa horta. Não havia lixo plástico. Vizinho à cocheira da Prefeitura havia o cemitério de cães e gatos, dando frente para a continuação da Rua França Pinto, local da atual Avenida IV Centenário. Um cemitério suntuoso, com túmulos de mármore, a fim de abrigar animais mortos e, principalmente, inflar o ego de seus proprietários. A alimentação dos burros vinha de um canavial que se estendia da Estrada do Aeroporto até a linha do bonde, ao longo da Rua Borges Lagoa. Começava onde está o Hospital Gastroclínicas e terminava na atual Avenida Ibirapuera. Para além do campo do Instituto Biológico F. C. só arruados de terra, muito mato, carvoarias, o campo do parque, jardins do F. C. e as lagoas separadas pela Avenida Brasil. Perto do cruzamento da Avenida Brasil com a Avenida Brigadeiro Luís Antônio, havia um cercado de tábuas com altura aproximada de dez metros, pintado com betume. Sabia que ali trabalhava um tal Victor Brecheret e me acostumei a ver aquilo como parte da paisagem, até que, em 1954, as tábuas foram retiradas e surgiu o Monumento às Bandeiras. Meu pai e seu amigo José Kalil foram assistir à inauguração. Quando papai viu o monumento exclamou indignado: — Cavalo quadrado! Deu as costas e voltou para casa. Kalil teve um frouxo de riso e, horas depois, lembrava a frase e gargalhava. Depois do cruzamento com a Avenida Brigadeiro Luís Antônio, a Avenida Brasil tinha quase o mesmo aspecto de hoje, só que as mansões eram realmente mansões e o tráfego de veículos era infinitamente menor. O asfalto ainda não era comum aqui. A pavimentação das avenidas e estradas era feita em concreto com juntas de dilatação. Ruas principais eram pavimentadas com paralelepípedos e as secundárias com saibro. Minha rua, a travessa Tangará, era de terra, com o leito carroçável muito irregular. A Rua Borges Lagoa, onde moravam o Pito e a Cláudia, meu cunhado e irmã, era de saibro 142
aplanado com motoniveladora e compactado com rolo compressor tocado a vapor como uma locomotiva. Na esquina da Avenida Ascendino Reis com a rua Dr. Diogo de Faria, em frente ao canavial da prefeitura, ficava a mansão do seu Milton, amigo do pai do Pito e marido da mulher mais bonita que eu já havia visto – dona Íris. Era dele, também, o terreno ao lado, na avenida. Ali ele promovia festas juninas em homenagem a Santo Antônio, o santo de sua devoção. Ele, seus amigos e parentes faziam barracas como as de quermesse e incluíam até cadeia e pau-de-sebo. Tudo era de graça. Até os fogos eram dados aos convidados. A parte alta da festa era o campeonato de rojões. Soltava-se um balão e quando esse atingia certa altura os competidores deveriam derrubá-lo com rojões de vara. Numa dessas festas seu cunhado tinha os bolsos do paletó cheios de bombas, busca-pés e trepa-moleques que, não se soube como, começaram a explodir. Foi um susto geral e um espetáculo pirotécnico que vitimou apenas o paletó. No Natal desse mesmo ano, 1948, ganhei do seu Alfredo uma bola de capotão amarela e dos meus pais um uniforme do Corinthians com gorrinho, camisa, calção, meias e chancas de bico duro. Virei o rei do pedaço, pois até então jogávamos futebol com bola de meias, isto é, feitas com meias femininas que eram acrescentadas em camadas. Tive que continuar jogando descalço porque o resto da turma não tinha chancas, como eram chamadas as chuteiras. À tardinha, no dia do Natal, vi que vinham a Cláudia e o Pito descendo a estrada do aeroporto. Traziam na mão algo que eu sonhava ter: uma espingardinha de chumbo! Quando me entregaram o presente, decepção. Era um guarda-chuva juvenil, isto é, preto como todos guarda-chuvas masculinos, mas de dimensões menores. Naquela noite, quando ceávamos, vimos um clarão seguindo de um estrondo terrível. Logo soubemos que um bonde, descendo em direção a Santo Amaro, no cruzamento com a França Pinto, colhera em cheio um caminhão carregado de argila para cerâmica. Houve vários mortos e aquilo foi assunto para muitos dias. Volta e meia ocorriam acidentes no cruzamento da linha do bonde com a Estrada do Aeroporto. Depois disso foi instalado um semáforo manual – um dos primeiros de São Paulo a ser instalado na periferia – e a Light colocou um ponto de parada obrigatória antes do cruzamento. Difícil era embarcar nessa parada, porque não foi feita plataforma e a altura entre o solo e o estribo do bonde era para alpinistas. A agem do ano era comemorada pela garotada batendo brita contra os postes da Light e fazendo grande barulho. A brita era retirada do lastro da linha do bonde. Nos cruzamentos de ruas com a linha do bonde havia avisos enormes em forma de ‘X’ onde se lia, numa perna “Cuidado” e noutra “Tramway”.
onde vivemos
Os dourados anos do Jardim da Glória Dante Barini Filho Bairro Jardim da Glória, bairro da Cidade de São Paulo, das avenidas Lins de Vasconcelos e Lacerda Franco, das ruas Cláudio Rossi, Crisoberilo, antiga Zarabatana, Nestor Moreira e outras do bairro e da região. Os anos dourados do Jardim da Glória se aram de 1950 a 1968. Lembro ter mudado para a antiga Rua Zarabatana, travessa da Cláudio Rossi, em 1949. As ruas eram sem pavimentação, e ainda não existia luz elétrica. Poucos anos depois, chegou a eletricidade e em seguida veio a televisão – telefone, nem pensar, somente muito tempo depois. Oh! bairro bom! Grupo Escolar Gomes Cardim, na Avenida Lacerda Franco, próximo ao Cemitério da Vila Mariana, que naquele tempo não assustava ninguém, nem mesmo quando certa vez um caminhão desgovernado bateu no muro, esparramando ossos e crânios pela avenida. Ginásio 7 de Setembro, Liceu Siqueira Campos, Senai Cambuci, Grupo Escolar Oscar Thompson, entre outros. Naqueles tempos, existiam poucas linhas de ônibus, me lembro da linha 140-Jardim da Glória – Praça da Sé e do ônibus elétrico 205-Jardim da Glória – Praça da República. Mas andávamos muito a pé, não tinha essa de estudante não pagar ônibus, embora pudéssemos comprar e escolar, na Galeria Prestes Maia. As famílias eram bem modestas, embora o salário mínimo fosse maior que hoje, nós crianças, não costumávamos ter dinheiro, se tínhamos era pouco, apenas para algum cinema como o Riviera ou Lins, na Lins de Vasconcelos. Nos fins de semana, toda criançada da vizinhança brincava na rua, jogando queimada, unha na mula, vôlei, bola e pique. Ficávamos até umas 22 horas na rua sem qualquer perigo, os pais sentavam nos seus jardins ou na calçada e conversavam entre si, vendo a criançada brincar. Mais crescidos, nos fins de ano, quando aconteciam os bailes de formaturas, nossa turminha de amigos do bairro se preparava: os meninos vestiam smoking e as meninas, vestido longo. Pegávamos um ônibus até os salões como o Rachaia, o Fasano e a Casa de Portugal e como não tínhamos convites, chegávamos umas 21h30 e começávamos a pedir convites para os familiares dos formandos porque sabíamos que sempre sobravam alguns. Esses bailes eram animados com orquestras como as do Sylvio Mazzuca e do Orlando Arruda Paes e terminavam às 4h30 da madrugada, então, voltávamos a pé pelas ruas e avenidas, sem qualquer perigo ou medo. Naquele tempo as pessoas eram respeitosas, as crianças eram “obedientes”, respeitavam os mais velhos, cediam lugar nos ônibus e filas para os mais idosos e senhoras grávidas, respeitavam os professores, diretores e principalmente os policiais, ainda como guarda-civil. Naquele tempo era muito difícil alguém usar drogas, quando se sabia da existência de usuário de maconha, chamado de maconheiro, todo mun-
do ficava longe, até atravessava a rua para ar longe. Naquele tempo foram construídos os parques do Ibirapuera e da Aclimação, o bairro foi crescendo e agora as coisas mudaram, infelizmente, para nós mais velhos e principalmente, para nossos filhos e netos.
Minha rua de terra batida Laila Spinelli Viemos morar em São Paulo por volta de 1955, quando eu tinha uns 3 anos. Nossa casa ficava na Rua Jurubatuba, no bairro do Paraíso. A Rua Jurubatuba, como outras inúmeras ruas da época, era de terra batida, vermelha e marrom, onde podíamos brincar e nos esbaldar de fazer castelos e bolinhos de barro.
A Rua José Antônio Coelho Maria Helena de Andrade Na Rua José Antônio Coelho, no alto da ladeira, ficava a fabrica de chocolates Lacta. Meu pai trabalhava lá, quando eu era criança, e ele tinha cheiro de chocolate. Além disso, na nossa casa sempre tinha Bis e Sonho de Valsa, o que era ótimo! Mas o que me impressionava mesmo era a entrada da “Lacta do papai”: um portão muito largo (ou que parecia muito largo), ladeado por duas pilastras e em cima delas, estátuas de leões. No meio do portãozão tinha um portãozinho, para pessoas, e eu achava tudo meio mágico, meio casa da Alice no País das Maravilhas. Descendo um pouco, era a casa da minha tia Lygia, minha tia e minha madrinha. Ela era tão querida e tão maravilhosa que eu sempre disse que ela era minha fada-madrinha. A casa era um sobrado, e o terreno ia descendo atrás da casa, por isso a gente descia por uma escada lateral e o meu primo e minhas duas primas tinham balanço, um quadrado de areia e até um galinheiro, para guardar galinhas que eles ganharam ainda pintinhos. Além disso, nessa escada e no quintal, dava para ver as chácaras todas verdinhas de plantação, no vale onde hoje a a 23 de Maio! Parece impossível, mas São Paulo era assim.
Meu pai, após perder toda sua fortuna pessoal e política, no ano de 1930, na cidade de Birigui (onde nasci), por não concordar com o “governo provisório” de Getúlio Vargas (meu pai pertencia ao PRP), veio 143
em 1940 para São Paulo, depois de uma agem que durou 4 anos pela cidade de Itapetininga... Éramos 8 irmãos e nossos pais tiveram uma dificuldade enorme na “cidade grande”, porém perfeitamente contornável para quem quisesse trabalhar... Assim meu pai, despojado de todos seus haveres materiais, foi ser um simples operário... e onde??? Na fábrica de chocolates Lacta, que você narrou perfeitamente, com “seu portão de entrada”, inclusive os leões em seu topo, sinceramente eu não me lembrava mais desse detalhe... Lembrei-me que ao entrarmos na fábrica, em festas anuais de Páscoa e Natal, logo após o seu portão, havia a “eterna chapeira” e seu relógio de ponto em que todos os operários e burocratas tinham que “bater”... Adiante, aquele enorme armazém (a fábrica). Estive lá várias vezes, enquanto trabalhou meu pai, e ele também nos trazia Sonhos de Valsa e Bis à noite, que eram disputados por todos nós. Na verdade, Maria Helena, São Paulo era de fato uma cidade mágica, fazendo jus à sua lembrança da “Alice no País das Maravilhas”. Flávio Rocha
Footing no Ipiranga Leonello Tesser Anos de 1950, recordo-me do footing, ou “vai-e-vem”, como era chamado o movimento de pessoas caminhando para baixo e para cima no início da Rua Bom Pastor e parte da Rua Benjamin Jafet. Havia um parque de diversões, um rinque de patinação, que funcionava na Bom Pastor, o Cartório de Registro Civil, a cantina Competidora que servia deliciosas pizzas, uma farmácia e a padaria do Catelli. Os rapazes se postavam na calçada, enquanto as moças desfilavam garbosamente e as paqueras aconteciam, de vez em quando um gracejo ou uma palavra elogiosa era dirigida a uma moça bonita, dentro do maior respeito e elegância. Às vezes, os olhares dos rapazes eram correspondidos pelas damas e fatalmente o encontro acontecia nas matinês do Cine Ipiranga Palácio, lá na Rua Thabor.
A Rua Bravinha Aclibes Burgarelli Nasci no Moinho Velho, Ipiranga, mais propriamente na Rua Dravinha, nº 9, assim chamada porque existia e ainda existe a Rua Drava. Rua curta, mais ou menos cem metros. Rua de terra batida, em declive não muito acentuado e que se caracterizava com a bela paisagem que existia. Ao longo da rua podia ser visto o Alto do Ipiranga, sem prédios ou construções altas. Quando chovia a rua transformava-se em barro e dificultava o tráfego de carroças. O lixo era coletado por uma carroça puxada por cinco cavalos; o leite era entregue em uma pequena carroça, fechada com uma porta na traseira e no interior algumas pedras de gelo. Correio... nem pensar. Gás, absolutamente nenhum. Os fogões eram aquecidos com carvão vegetal. Aliás, meu pai, no fundo do quintal, construiu um barracão de mais ou menos 50m² e o transformou em carvoaria e eu, sem poder reclamar, era o pequeno carvoeiro. Mas a profissão tinha lá suas vantagens. O carvoeiro necessitava de um bom banho à noite e isso somente era possível em uma banheira. Sim, minha casa possuía uma grande banheira de ferro, água de poço, aquecida com eletricidade e o indispensável sabão de cinzas, habilmente feito pela minha querida mãe – soda cáustica, restos de sebo de carne e cinzas de carvão queimado. Era uma beleza o banho, a água terminava totalmente negra por causa do pó do carvão. Pois bem, meu pai colocou uma pequena placa na frente de casa, mais ou menos com esses dizeres: Carvoaria B.B., que eram as iniciais do nome do meu pai, Benjamin, mas, as pessoas da época, ou melhor, os moradores da rua diziam “carvoaria bem bravinha”, conotando o fato de meu pai ser muito sisudo. Depois da Segunda Guerra Mundial, a rua mudou de nome e, acredite quem quiser, a placa foi substituída por Rua Bravinha. Até hoje não sei por que, mas acho que as alusões feitas pelos moradores são uma grande coincidência.
Chovia a cântaros Nélio Nelson Gonçalves
Lembro bem daqueles anos, principalmente da década de 1960, quando se paquerava nas salas de cinemas. Os meus cinemas foram o Anchieta, o Paroquial e o Samarone, esse último no ponto final do bonde Fábrica. Voltando à memória histórica do bairro do Ipiranga, vou acabar morrendo de saudades. Giuseppe Orsini
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O dia tinha sido terrível. A chuva começou a cair quando saíamos de casa e foi assim o dia todo. Por onde amos o trânsito estava parado ou caminhando a os lentos e sempre que tentávamos cortar caminho, mais confusão nos esperava. Finalmente, ao entardecer, chegamos de volta à Rua Lucas Obes, no Ipiranga. Na esquina com a Silva Bueno, olhamos para a baixada, estava tudo alagado e mesmo assim chegamos até a ponte da Rua das Juntas Pro-
onde vivemos
visórias e aí ficamos parados, água atrás e muita água pela frente. O céu para os lados de São Caetano estava preto como breu, pois chovia muito por aquelas bandas e até animais mortos flutuavam no rio, na área entre o Ipiranga e Vila Prudente. — Moço, vai tentar seguir? Pode me levar? Tive uma cirurgia na semana ada e não posso me molhar. — Entra aí, assim que a água baixar, tentaremos seguir, disse meu primo. E aí ficamos por mais de uma hora, os que se aventuravam logo se arrependiam, mas o motor já estava morto. Com o ar do tempo avistamos um enorme caminhão Scania da Ultragaz, que vinha em nossa direção e ao se aproximar, notamos que a água estava quase na porta. Com o caminhão empurrando a água, formou-se uma onda de tamanho razoável que levantou o fusca e nos atirou na parte mais funda da rua – a água, em poucos segundos, alcançou o toca-fitas. Já com nossos pertences molhados, saímos pela janela, pois a pressão da água era tanta que nos impedia de abrir a porta. Eu ainda perguntei ao carona se ele estava bem e ele quase chorando respondeu: — Tô... E foi embora se lamentando. Como tudo estava perdido, o negócio foi empurrar o fusca por dois quarteirões naquela água oleosa e mal-cheirosa e depois tomar um banho de álcool. No dia seguinte, tiramos meio metro de altura de lama de dentro da casa e ali mesmo na calçada baixamos o motor do fusca, abrimos, enxugamos e à tarde já estava funcionando. A nossa casa foi vendida meses depois, por trinta mil cruzeiros e nunca mais amos por lá. A população ainda sofre com enchentes na área. Mas só quando chove...
O Ipiranga popular e o sofisticado Neuza Guerreiro de Carvalho Catorze anos de Ipiranga, de 1939 a 1953. Grandes lembranças, grandes vivências. O Ipiranga de duas etapas de minha vida: uma mais simples, mais popular, mas muito mais humana, onde conhecíamos todos e éramos conhecidos; outra mais sofisticada, um degrau a mais na escala social, mas pagando o preço do isolamento humano, onde nem sequer sabíamos o nome dos vizinhos. O Ipiranga de minhas lembranças se situa principalmente na Rua Lucas Obes, travessa da Rua Silva Bueno, por onde ava o bonde nº 20-Fábrica, que saía da Praça da Sé em direção ao Sacomã. Vivi seu calçamento, com barros profundos, terras revolvidas, isolamento conseqüente. Mas a Lucas
Obes ficou transitável. Por ela avam os enterros a pé, em direção ao cemitério, provavelmente o de Vila Mariana. Rua da grande fábrica de juta que acordava todos os moradores às 6h com seu apito agudo e forte. Rua da Padaria Globo, na esquina, com seus doces que povoavam os sonhos de uma menina naturalmente “gulosa”. Trecho de lojas conhecidas de todos; Loja das Moças, da família Bebber, casa de ferragens e presentes do senhor Wagner. Zona do cinema Dom Pedro I, onde assisti já conscientemente o primeiro filme: A Princesa da Selva, com Dorothy Lamour. Rua Silva Bueno que foi desafio para carros antigos na subida, com trilhos causadores de derrapagens. Ipiranga que assistiu a minha formação escolar mais diferenciada, de curso ginasial e científico. Durante sete anos, percorri de bonde o espaço entre a Rua São Joaquim e a esquina da Silva Bueno com a Lucas Obes. Ipiranga no qual pudemos progredir ando de uma casa simples, parede e meia com a padaria, em contato com o forno e cheia de baratas, para um “sobradinho” e depois, chegar à parte mais nobre do bairro, a Avenida Dom Pedro I. Outro ambiente, com mais linhas de bondes, um grande leito exclusivo para automóveis e outro para o restante do trânsito local; casas grandes, recuadas e espaçosas. Para mim, símbolo maior de status foi o vizinho “castelinho” dos Bernardini, ícone social maior, mas nunca cheguei a conhecer os moradores. Avenida que testemunhou minha maior formação escolar, de onde eu saí primeiro para a Faculdade e depois para o trabalho, e para o casamento. E novamente mudo de bairro, mudo de vida. Saio do Ipiranga, agora não mais unidade social, mas parte de um casal, e vou viver em um espaço onde estou faz quase meio-século – a Lapa.
Eu também morei por algum tempo na Rua Lucas Obes, mais precisamente no nº 473, no quarteirão entre as Ruas Lino Coutinho e Silva Bueno, no período de 1949 a 1952. Na Silva Bueno tinha ainda a casa lotérica, a loja de tecidos do Michel, a serraria do Alexandre Lenci, o Bar Sorriso, um senhor que lavava chapéus, na esquina da Silva Bueno com a Lucas Obes. No outro lado, havia um bar e bilhares, seguindo ainda em direção ao Sacomã, antes do Cine Dom Pedro, ficava o “bar azul” e um terreno enorme onde hoje está o Grupo Escolar Visconde de Itaúna – eu fiz o curso primário nesse grupo quando ainda funcionava no prédio velho, ao lado da loja do Wagner – bons tempos aqueles! Recordo das matinês dos cines Paroquial, do Ipiranga Palácio, do Dom Pedro e dos mais recentes: Anchieta e Samarone. No Anchieta, lembro das intermináveis filas para assistir ao famoso filme Marcelino Pão e Vinho, um grande sucesso e, no Samarone, assistimos ao famoso La Violetera, estrelado pela afamada artista espanhola Sarita Montiel. E as procissões da Semana Santa na Igreja São José, milhares de fiéis acompanhavam o 145
cortejo do Senhor Morto, havia a banda musical que executava músicas fúnebres e as pessoas enfeitavam as janelas das casas da rua por onde a procissão ava. Recordar é viver! Leonello Tesser
Naquele pedaço de rua Leonello Tesser Após o almoço fui dar um eio pelo bairro do Ipiranga e depois de ter caminhado bastante, parei na Rua Agostinho Gomes, no quarteirão situado entre as ruas Lucas Obes e Almirante Lobo, onde ei a minha infância e uma parte da minha adolescência. A tarde vinha caindo lentamente e, de repente, comecei a lembrar do ado vivido naquele pedaço de rua. Hoje ele está bem modificado, as casas foram reformadas e ganharam novo aspecto. No meu tempo não havia calçamento, que tempos felizes aqueles! A vizinhança cordial e solícita – sempre pronta a colaborar indistintamente – senti isso quando do amento de minha querida mãe, falecida prematuramente aos 29 anos. Morei na casa nº 2197, que está modificada, na época era apenas um quarto e cozinha, com banheiro fora. Nos fundos morava uma família de espanhóis, pessoas boníssimas, mas lembro somente dos nomes do Miguel e Melchior. Dos moradores daquele pedaço de rua, guardo lembranças da oficina do senhor Vicente, da Irene e do Enzo, filhos de um senhor alfaiate, da Jane, uma menina de longos cabelos loiros, cujo irmão casou-se com um rapaz de nome Silvio, e da família Vidal. Esse pedaço de rua guardo saudoso no fundo do coração.
Vila Moraes, longe do Centro Walter dos Santos Pires Nasci no bairro de Vila Moraes em 1951, longe do centro de São Paulo. Estudei na Escola Júlio Ribeiro em 1958: a diretora era a Sofia e a minha professora era a dona Branca. Lembro da nossa Igreja Santa Ângela, do padre Mário, com suas quermesses e festas. Nessa igreja fui coroinha e fiz catecismo com a Irmã Paulina. Da Vila avistávamos a Avenida Paulista e os holofotes do Aeroporto de Congonhas, que segundo diziam os antigos, estavam procurando aviões perdidos no céu! A estrada principal era a Avenida do Cursino que, ligando o Alto do Ipiranga, ava pelo Zoológico até o Morro da Macumba – nome que fazia 146
jus, pois eram muitas as macumbas ali existentes –, hoje Jardim Campanário. Na Avenida do Cursino, ainda de terra, jogava bola, taco, bolinha de gude e andava de carrinho de rolimã. Mais tarde ei a freqüentar o Clube dos Aliados que contava com o Alemão, Rosalvo, Tupã, Cazuo, Nato, Lauro, Cidão e outros grandes amigos. Recordo a Coap, que hoje ainda existe, mas como mercado do Honda; a padaria do Chabrega, no ponto final do ônibus Vila Moraes; do outro lado, a padaria do senhor Cruz; a barbearia do Neco, filho da parteira dona Alzira, “mãe” de todos nascidos na Vila Moraes daquela época. A farmácia do Paulinho, irmão do Clóvis; o Empório do seu Leite e dona Bastina; o dentista Siduo Matida e as feiras de sábado. E o lazer? A quermesse na Igreja Santa Ângela; o futebol com samba do Grêmio Santa Ângela; a chácara do Tívole (para pegar frutas escondido!); jogar bola no terreno que hoje é o Centro Irmão X; o baile na sede dos Aliados, estudar no Grupo Júlio Ribeiro. Sem maldade, sem vícios, sem briga, só união, amizade entre as famílias. Tudo se apagou e hoje ficou somente a saudade daqueles tempos.
O Ipiranga e seu jardim de Versailles Roque Vasto Quem é que não se lembra dos tempos de criança, quando a família excursionava nos finais de semana fazendo piqueniques em seus gramados; dos longos eios ao redor da réplica dos jardins do Palácio de Versailles ou do bosque, ali escondidinho nos fundos do Museu. Duvido que alguém não tenha ido lá ear com sua namorada, e trocado longos beijos ao lado das fontes, dos corredores de primaveras e azaléias, ou ainda dos canteiros de rosas. Quando criança, quem é que não se emocionou ao entrar no salão da Independência, diante do majestoso quadro que só conhecíamos pelas capas de nossos cadernos escolares. Os salões das armas antigas, os corredores com expositores de moedas, de armaduras, coleções de espadas, selos, e os aquários que ficavam nas escadarias, contendo as amostras das águas do rio Tietê, de uma limpidez absoluta, mas que o progresso cometeu o crime de turvá-la e contaminá-la covardemente... Quem não sentiu um arrepio de orgulho ao estar ao lado do monumento, e também teve a vontade de gritar: Independência ou Morte. O riacho do Ipiranga, que em 1960, ainda tinha suas águas pouco poluídas, proporcionava bons mergulhos e algumas braçadas no trecho em frente ao monumento, que permitiam sentir e imaginar o que teriam sido suas margens plácidas no tempo da Proclamação da Independência. A casinha simples que serviu de pousada para Dom Pedro, com seu forno de barro, chão de terra batida e paredes de pau-a-pique. A Avenida Dom Pedro I era toda calçada com paralelepípedos, e suas três
onde vivemos
vias ladeadas por um cordão de árvores majestosas que complementavam o quadro do Parque da Independência, fazendo um verdadeiro cartão postal do bairro do Ipiranga.
Na década de 1950, realmente os jardins do velho monumento assistiram aos colóquios amorosos e os beijos trocados com as primeiras namoradinhas daquela época, inclusive com a mulher atual que é minha esposa há 47 anos. Recordar é viver, hoje as coisas mudaram muito, mas as imagens que ficaram na nossa memória jamais poderão ser apagadas. Leonello Tesser Nunca esqueci da primeira vez que fui lá, ainda criança. E, com um detalhe: nos fundos do terreno ficava o hidroavião Jahú, primeiro avião a cruzar o Atlântico pilotado por um brasileiro em 1927, coberto por um toldo. Mais tarde é que foi para a Oca, no Ibirapuera. Luiz Saidenberg
O Cambuci da venda do seu Altino e doces do Shiguero
do baiano vendendo alho e pimenta no meio de tudo, o coco ralado na hora. Eu respirava São Paulo e respirei com mais intensidade a Rua Albuquerque Maranhão e, de noite, pela janela, eu vivia a magnitude das luzes da cidade. Nada mais lindo que São Paulo à noite. Um espetáculo indescritível, vivo, cheio de energia, de força, literalmente, cheio de luminosidade de alma. Ali, da janela do meu quarto, olhando para as luzes, eu preparava o meu futuro, ouvindo a luz da lua, a quietude da noite... Sonhava. A janela era pintada a óleo cinza... Como do ado... E a vida ia... Bons mesmo eram os doces comprados na Lins de Vasconcelos, na loja de um japonês chamado Shiguero. Doces de batata roxa, maria-mole em pedaços grandes, doces de leite, balas de goma, delicados, chocolates. Eu ia lá até de noite, na hora da vontade do doce. Um dia levei até uma multa por colocar o carro na contramão bem na porta da loja do Shiguero. Mas eu já trabalhava, não era mais tão garota... Paguei a multa.
Morar no Cambuci e não comprar doces no Shiguero é uma “heresia”... Eu morava na Hermínio Lemos, ei lá minha infância e choro de emoção relembrando tudo de bom que eu vivi lá. Podem se ar anos, podemos mudar de cidade, Estado, mas o Cambuci nunca sai da gente, também porque não queremos sair dele. Neise
Vera Moratta Vivi toda a minha infância no Cambuci, na Rua Dom Duarte Leopoldo, na década de 1960, com paralelepípedo, serena e silenciosa, apesar da proximidade com a Lins de Vasconcelos. Foi ali que ouvi os primeiros relatos da violência urbana, sem nada, com a cor da miséria humana, aos frangalhos. Eu nunca soube ao certo, mas uma menina de 13 anos foi assassinada a bala. Deu no jornal, pessoas foram chegando indignadas e tristes, num silêncio de alma estarrecedor. Da sacada da casa da vizinha, acompanhávamos o silêncio. Nunca me esqueci do sentimento de impotência que senti nesse dia. Bem ao lado, adas umas duas casas, tinha a vendinha do seu Altino. Vendia vassouras, rodos, sabão Omo, cereais, uns docinhos de leite, outros de amendoim, que eram entregues por um caminhãozinho azul escuro com o nome “Neusa” escrito. Também tinha refrigerante, leite, pão e Tubaína. Foi ali que comprei uns docinhos quando, aos 6 anos, ganhei um dinheirinho do tio Pedro, um velhinho muito amável, que usava chapéu, quando o ajudei a ganhar uma partida de buraco, junto com o meu pai e outros parentes. Do outro lado, tinha a feira, às quintas, com o pastel do japonês, as laranjas doces e a venda de roupas lá no fim. O peixe, os cereais, a banquinha
A Bastilha do Cambuci Mário Lopomo Nas primeiras décadas do século XX, o bairro operário do Cambuci era um foco de agitações políticas. Anarquistas e líderes do movimento sindical que caíam nas garras da polícia, iam parar nas celas da delegacia da Rua Barão de Jaguara. O lugar ficou conhecido como “Bastilha do Cambuci”, numa referência à prisão invadida pelos ses, em 1879. A nossa “queda da bastilha” ocorreu em outubro de 1930, quando da vitória da revolução de Getúlio Vargas, manifestações tomaram conta da cidade e a cadeia foi arrombada e incendiada. O bairro do Cambuci era um local onde havia muitas gráficas e nas décadas de 1940 e 1950 abrigava um dos sindicatos mais fortes do setor, que organizavam greves homéricas, que duravam muitos dias. Quando a greve não era de sua categoria, os gráficos tinham participação ativa nas greves gerais dos trabalhadores, como a do início da década de 1950, que durou dois meses, ou mais. Foi necessária a ajuda de entidades para suprir as necessidades de alimentos dos grevistas. 147
São Paulo já foi a cidade de “briguentos”, e muitas manifestações sangrentas ficaram marcadas na história pela repercussão nos jornais e noticiários do rádio. Em 1947, quando a Ligth aumentou a agem dos bondes de 0,20 para 0,50 centavos, houve um tremendo quebra-quebra. Um menino atirou uma pedra num ônibus, quebrando o vidro da frente, no Vale do Anhangabaú, sendo assassinado ali mesmo pelo motorista do coletivo. Já em 1958, devido o aumento do ônibus, que subiu de 3,50 para 5,00 cruzeiros, e desse movimento hostil eu participei, foi uma grande correria pelas ruas do Centro Velho, quando os cavalarianos da Força Pública vinham pra cima da gente. Naquela peleja, povo-polícia, quatro pessoas foram assassinadas, nas escadarias do Palácio da Justiça na Praça Clóvis Bevilácqua, perfuradas pelas baionetas, facas que ficavam presas às pontas dos fuzis.
Meu pai, Mário Gonçalves, com 15 anos nessa época, participou da “derrubada da Bastilha” do Cambuci. Mário Gonçalves Júnior Sou testemunha do ano de 1958 na Praça Clóvis. O sabre desceu sobre nossas cabeças! Turan Bei
O Cambuci que eu conheço Neise Dias ei vinte anos nesse bairro e dele levarei lembranças eternas. Morava na Rua Hermínio Lemos e todos os dias acompanhava o movimento na Lins de Vasconcelos; aquele lugar parecia não estar em São Paulo, todos os vizinhos eram antigos e se conheciam muito bem, eu brincava na rua e meu quintal era o pátio do antigo Instituto Aché, onde tinha um cachorro de concreto, com o qual todas as crianças da época têm uma foto. Acho que a lembrança mais forte é a de ear com meus pais pela Lins, no período do Natal, com aquela avenida enfeitada, iluminada e movimentada. De comprar jujuba numa loja de doces que existe até hoje na Lins, em frente ao Banespa e de balançar nos brinquedos do Largo do Cambuci. Eu estudei no Oscar Thompson, do lado de casa, nem dava pra matar aula, e como éramos todos do mesmo bairro, eram comuns as reuniões nos finais de semana pra brincar e correr, sempre no meio da rua, ou no Balneário, onde tinha uma feira de artesanato e uma piscina, sempre cheia de gente. 148
E lanche então? O ponto eram as lanchonete Zip-Zip e A Chapa, que inclusive, cresceu bastante, eu sei... Quando minha mãe ia me buscar n’A Doce Vida era uma maratona pra eu voltar pra casa, tinha que subir no murinho do Banco BCN, na Lacerda Franco, no extintor na esquina e na garagem rebaixada da casa ao lado, todo dia... nunca falhava. É, eu cresci no Cambuci, eu vivi no Cambuci, e alguma parte de mim, ainda vive lá.
Sou nascido e criado no Cambuci Pedro Desidério Mosconi Tenho 60 anos, nasci em 14 de junho de 1946 em uma casa na Rua Silveira da Mota. À época eram as parteiras que auxiliavam os nascimentos dos bebês. Meu pai era entalhador, profissão que aprendeu no Liceu de Artes e Ofícios e trabalhava com seu irmão Delvin. Éramos sócios do Clube Internacional do Cambuci, na Rua Silveira da Mota, que, às sextas-feiras, exibia filmes. Só que cada pessoa tinha que levar sua cadeira, pois o clube não dispunha de lugares para todos os moradores do bairro. Joguei muito futebol na várzea do Glicério e fazia “ginástica” na várzea da Rua Clímaco Barbosa, próxima à malharia Cambuci, hoje Penalty. Ajudei muito meu tio Oswaldo Pinotti, proprietário de um caminhão marca Chevrolet, ano 1946, câmbio seco, a carregar fardos de pano de algodão para o centro atacadista da Rua 25 de Março. Freqüentei muito o Cine Itapura, ao lado do Parque Shangai, e também os cines Riviera, na Lins de Vasconcelos e o Roma, quando a entrada ainda era pelos fundos, visto que a Avenida Radial Leste ainda não havia sido construída. Aos 17 anos, namorava no Parque Dom Pedro, sem medo de assaltos e trombadinhas. Aos sábados, ia ao Clube Esso, na esquina com a Praça da República, e depois das 4 da manhã, seguíamos a pé pelo Centro Velho de São Paulo e parávamos na Rua Direita para jogar bilhar. Pegávamos o ônibus na Praça da Sé, ou o bonde na Praça Clóvis Bevilácqua. De madrugada, as ruas eram lavadas e quando amanhecia as ruas estavam limpas. Estudei no Grupo Escolar Armando Bayeux, na Rua Ana Nery, e no mesmo prédio funcionava o Ginásio Estadual Professor Roldão Lopes de Barros. Completei o quinto ano, obrigatório à época, no Ginásio Estadual Oscar Thompson, na Rua Justo Azambuja. Meu pai comprou uma casa na Rua Vicente de Carvalho, 306, para pagar em cem parcelas iguais, com juros Tabela Price, sistema francês de amortização. Várias vezes reformada pelo construtor pedreiro senhor Gildo, embrulhão como ele só. A casa, geminada, ficava próxima
onde vivemos
ao Corpo de Bombeiros, e quando chovia muito, as ruas ficavam alagadas devido o transbordamento do rio Tamanduateí. Lembro do Largo do Cambuci, quando ainda existia o bebedouro para os burros das carroças, o antigo Cine Cambuci, posteriormente transformado em supermercado – Peg-Pag, novidade na época. A cantina Tito Skipa, na Rua Anna Nery, a farmácia do Tuphy, o médico de todos doutor Américo Spinelli, a fábrica de cordas da família Giusti, na Rua José Bento, a garagem da Transportadora Lusitânia, a quitanda do senhor Manoel, a padaria dos italianos Pascá e filhos, o bar do senhor Martins, que depois vendeu para o Belchior. O velho Nicolau, marceneiro de mão cheia. Velhos tempos que me trazem muitas saudades. A mercearia do senhor Elias, na esquina da Vicente de Carvalho com a Rua Ana Nery, tinha um sabor especial, quando se pagava a conta feita do mês, na caderneta, eu e meu irmão ganhávamos um pirulito. Lembro-me das missas aos domingos na Igreja Dom Bosco, do outro lado da Avenida do Estado, onde após a missa minha mãe nos levava para comer churros onde até hoje, segundo soube, o velhinho espanhol ainda os faz da mesma maneira. Adorava pegar o bonde aberto na Rua da Independência e ir até o Museu do Ipiranga, onde ávamos as tardes de domingo, rolando na grama dos majestosos jardins do Palácio Imperial. Em 1961, ingressei na Escola Técnica Antárctica, mantida pela Fundação Antônio e Helena Zerrener, onde estudava das 7 da manhã às 5 da tarde, com aulas teóricas pela manhã e práticas à tarde. Aprendíamos de tudo um pouco. Mecânica – onde eram torneadas as bombas para acoplar aos barris de chope; carpintaria – onde eram fabricados os engradados para os refrigerantes; gráfica – onde eram impressos os rótulos para posterior colagem nas garrafas; a fábrica de pregos, a oficina elétrica – onde aprendíamos a profissão de eletrotécnico; e no período das férias fazíamos estágios nas oficinas e ganhávamos uns troquinhos para os gastos de final de semana. Às vezes, freqüentávamos a Igreja da Glória, na parte alta do bairro, próximo ao Liceu Siqueira Campos. Pizza, quando comíamos, era um pedaço só, na padaria da esquina da Independência com o Largo do Cambuci, depois de assistir uma matinê no Cine Riviera e descer a pé a Lins de Vasconcelos. De vez em quando, meu tio Oswaldo colocava algumas almofadas na carroceria do caminhão e íamos ar o domingo no sítio de meu tio avô Angelin, no alto da Cantareira. Era uma viagem sem fim, só mato e muito ar puro. Isso quando não íamos visitar minha tia Clotilde no Parque Bristol, que era vizinha do atual Parque Zoológico de São Paulo. Quanta tranqüilidade e sossego. Nada de maldade e somente brincadeiras sadias com os primos e amiguinhos. A garagem da CMTC, na Rua Stefano, vivia repleta de ônibus antigos importados que deixavam vazar óleo pelas ruas. Havia também as Lojas Mesbla e as fábricas da Johnson e dos Chicletes Adams, na Avenida do Estado. As Lojas Alhambra, as Casas Weigang e o velho fotógrafo japonês, que
era o único do bairro, portanto, fotografava o batizado, a primeira comunhão e o casamento de todos. Meu tio Carlos tinha uma oficina mecânica na Rua Barão de Jaguara e o meu tio Emilio tinha um açougue na Rua Luiz Gama. A família estava sempre unida e por perto. Hoje todos desagregados e estranhos. Como mudaram as coisas em quase quarenta anos. Que pena. Que saudades dos velhos e queridos tempos, que não voltam jamais. Lembram-se do Parque Shangai, onde hoje construíram uma igreja? E do cine Itapura? Na época de escola, namorei com uma aluna do ginasial, a Maristela Rossetti, e cheguei a discutir com o diretor Oswaldo Amêndola, porque era proibido namorar na escola, nem pegar na mão da menina podíamos. Que tempos, hein? Às segundas-feiras, as aulas começavam depois de todos cantarmos o Hino Nacional e, por diversas vezes, fui chamado para hastear a bandeira. No primeiro ano do curso técnico, a nossa seleção de futebol de salão sagrou-se campeã do primeiro torneio realizado. Namorava pela janela do primeiro andar. Depois do almoço corríamos para as janelas para ficar olhando nossas namoradas. Quanta ingenuidade. Nada de maldade. Bons tempos aqueles.
Essas pessoas e lugares me fizeram o que sou. Nasci em os, Minas Gerais e com a morte da minha mãe fui levado para São Paulo, mais especificamente para o Cambuci, Rua José Bento, 385, casa 3. Em frente à Transportadora Lusitânia. Aos fins de semana, fazíamos gols dignos de placa. A rua de piche ficava verde cada vez que nosso time saía para jogar com a bola de plástico comprada no Peg-Pag e com aquele Kichute com cravos de borracha. Roberto F. Oliveira Nasci na Rua Azambuja, 314, atual Serra de Paraina, rua da escola da Antárctica, em 3 de maio de 1948 e morei na atual Rua Nicolau Ancona Lopes, antiga Azambuja. Meu pai era torneiro mecânico e tinha uma tornearia. Conheci seu tio Osvaldo Pinotti, que muitas vezes fez carreto para meu pai. Conheci o grande farmacêutico senhor Tuphi Abud, senhor Caetano e dona Elvira da Padaria e freqüentei todos os lugares que você comentou. Estudei no Colégio Nossa Senhora da Glória e depois no Colégio Nossa Senhora do Carmo, na Praça Clóvis Bevilácqua, destruído devido às obras do Metrô. Moro no Rio de Janeiro desde 1984 e creio que ao me aposentar, voltarei a residir na região da Lins de Vasconcelos e Aclimação, se Deus quiser. Antonio D´Agostini 149
Sou nascido e criado no Cambuci, desde 1951. Nasci, morei e ainda moro na Rua José Bento, em frente aos Bombeiros. Cheguei a entrar várias vezes no Clube Internacional, com o meu pai Armindo da Silva, que tinha um depósito de bebidas na Rua José Bento, que antes era ferro velho do meu avô. A malharia da Rua Freire da Silva era da dona Marizini. Estudei no Grupo Escolar Armando Bayeux, em 1958 e 1959 (1º e 2º anos). Essa escola fechou e os alunos do Armando Bayeux e Oscar Thompson foram transferidos para uma escola da Avenida Lins de Vasconcelos, esquina com a Rua da 6ª Delegacia. Conheci o seu Tuphi, o doutor Spinelli, o marceneiro, seu Nicolau, da Rua Vicente de Carvalho, o Bar do seu Martins, que foi vendido depois para o Metchó (Melchior), a quitanda do seu Manuel, a vendinha do Gibi, na Rua Ana Nery, esquina com a Rua Vicente de Carvalho. Lembro do bebedouro de água dos cavalos no Largo do Cambuci e dos bondes da Sé. Coronel Marcio da Silva. Quantas vezes fui ao Parque Shangai levada pelos meus pais? Em muitas ocasiões o dinheiro dava só para entrar e comer uma pipoca, mas já era a glória! Então ficávamos vendo as pessoas se divertirem e nós também nos divertíamos muito, rindo na frente daquela “mulher gorda que gargalhava”. Que saudade. Ivette Moreira
Enchentes do Tamanduateí, piscina particular Davi Rodrigues Martins Nasci no bairro do Cambuci, mais especificamente nos prédios do IAPI, primeiro conjunto residencial do País, cuja construção foi promovida pelo Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários, bem em frente à extinta Mesbla, onde me deliciava vendo a chegada dos carros importados que para lá eram levados para consertos, pois ali estavam ótimos profissionais especializados. Como esse local ficava perto do rio Tamanduateí e seu transbordamento era uma rotina, ali também encontrei um ótimo local para adotar essas enchentes como minha piscina particular, onde aprendi a nadar. Como era encantador ver e nadar naquela imensa piscina, que não sabia até onde ia, mas que muito marcou a minha infância.
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Itaim Bibi Mário Lopomo Na metade da década de 1940, quando eu já tinha 6 anos, o Itaim era um simples bairro periférico e o rio Pinheiros ainda possuía águas limpas. Havia um hiato grande entre os bairros seguintes, que já pertenciam à zona Oeste. Era Pinheiros que ficava na outra ponta da Rua Iguatemi ou então a Vila Sônia, Caxingui, da metade da Avenida Francisco Morato em diante. Entre Itaim e Pinheiros iria ser formado o Jardim Europa pela Companhia City. E antes do Caxingui estava o Morumbi, que era simplesmente uma floresta. A ponte Cidade Jardim já não era mais aquela ponte de madeira, pelo fato de o Jockey Club ter se mudado da Mooca para aquele local, a antiga ponte foi substituída pela ponte de concreto até pouco tempo chamada Ponte Cidade Jardim. O Butantã ainda era um deserto e a Cidade Universitária estava apenas no papel, só foi levada adiante em 1963, quando dos jogos Pan Americanos realizados em São Paulo. Os prédios construídos para alojar os atletas ficaram servindo ao Crusp, para moradia dos alunos. O Itaim era aquele quadrilátero que vinha do Largo da Maná, hoje Praça Gastão Liberal Pinto, até o rio Pinheiros. No sentido contrário, o Itaim ficava entre o córrego, divisa do bairro com o Jardim Europa, posteriormente canalizado e transformado na extensão da Avenida 9 de Julho até a Rua Antonieta, atual Rua Miguel Calfat, daí em diante seria a futura Vila Olímpia, formada ainda somente por terrenos baldios e um grande brejo. Lembro-me que na década de 1940, já terminada a Segunda Guerra Mundial, ainda circulavam os ônibus com aquele enorme cilindro de gasogênio que substituía a gasolina, então racionada. A farinha, por ser importada, também era racionada e tínhamos que buscar o pão de madrugada. A padaria do seu Delfin ficava na Rua João Cachoeira, e chegávamos às 4 da manhã para ficar na fila do pão, isto em 1946, quando eu tinha 7 anos de idade. O bairro do Itaim surgiu depois do loteamento da Chácara Itaim, de propriedade de Leopoldo Couto de Magalhães, cujo apelido Bibi deu origem ao complemento dado ao nome do bairro, para não ser confundido com o bairro do Itaim Paulista, na zona Leste. A antiga Rua do Porto foi rebatizada de Leopoldo Couto de Magalhães Júnior, uma homenagem ao inspirador do bairro. A principal rua do Itaim era, e continua sendo, a Joaquim Floriano, que tinha início no então Largo da Maná, atual Praça Gastão Liberal Pinto, e terminava na Rua Iguatemi, em frente a Casa de Saúde Bela Vista. Ela ainda era de terra e lembro quando iniciaram seu calçamento, colocando um a um os paralelepípedos e jogando areia por entre eles. Era uma festa para a molecada, uns ajudavam a levar os paralelepípedos aos operários, os demais jogavam areia nos outros.
onde vivemos
Ao longo de sua extensão, a Rua Joaquim Floriano tinha transversais ou pequenas ruas iniciadas nelas, quase todas rebatizadas, começando com a Rua Brasília, depois Ibiaté, a Bibi, depois Renato Paes de Barros, a Tapera, depois Bandeira Paulista, a Arnaldo, depois Urussuí, a João Cachoeira, a Jeribatiba, depois Manoel Guedes, a Rua da Ponte, depois Clodomiro Amazonas e, finalmente, a Iguatemi. Nesse percurso da Rua Joaquim Floriano, havia o Rinque de Patinação que, além de ser usado por patinadores, era alugado para festas, sendo que a principal, em duração, era de casamentos ciganos, cuja comemoração durava três dias consecutivos. Nessa rua havia ainda a Delegacia, o Grupo Escolar Aristides de Castro e o Circo Teatro Mazzaropi, montado num terreno baldio pelo próprio comediante, que morava na Rua Paes de Araújo. Eram dias de grande alegria com aquele artista que iniciava sua aparição na televisão recém-inaugurada, fazendo um carrinho com um cabo de vassoura e uma tampa de lata de cera, muito comum a nós, garotos da época. A Igreja de Santa Teresa de Jesus ainda era na Rua Tabapuã, sendo depois construída uma nova, na esquina da ainda chamada Rua da Ponte, depois Clodomiro Amazonas. Uma das características do bairro do Itaim era a de homenagear as mulheres, batizando várias ruas com nomes femininos, a Rua Alice, a Rua Sílvia e a Rua Heloísa, que beirava o Córrego do Sapateiro e que posteriormente foi chamada Rua Eduardo de Souza Aranha e ainda, com a canalização do córrego e a coincidente morte do Presidente Juscelino Kubitschek, ou a ter essa denominação. Tinha também a Rua Amélia, hoje com duas denominações: Jesuíno Cardoso até a Clodomiro Amazonas e Alceu de Campos Rodrigues dali em diante, até o Hospital São Luís, na Avenida Santo Amaro. A já citada Rua Antonieta, depois Miguel Calfat, Rua Norma, depois Flado Haidar, a Teresa, a Arminda, a Iara, a Rua Iaiá, que ainda permanece, e a Helena. O Itaim tinha também, ao final da Rua 17, atual Ramos Batista, um porto de areia que, com as chuvas, formava um lago de grande profundidade. O lago ganhou o nome de Descoberta e lá vários meninos morreram afogados. Depois que o lago foi aterrado, formou-se o lixão, justamente onde fica o “elefante branco” da Eletropaulo e da Loja Daslu. Mais adiante, ficavam os campos de futebol do Marechal Floriano, Canto do Rio, Esplanada, América, Araraquara e o Kopenhagen. O Itaim fazia divisa com o Jardim Paulista pela Avenida São Gabriel; com a Vila Nova Conceição pela Avenida Santo Amaro e com a Vila Olímpia até Rua Antonieta, atual Rua Miguel Calfat. Na Rua Joaquim Floriano, principal artéria comercial do bairro, havia o famoso Bar e Bilhar Central, onde os malandros do bairro se reuniam. E como tinha malandro. A Casa Pais era o magazine, lá se encontrava de tudo, sendo superada somente pelo Bazar Mil, na antiga Rua Amélia, cujo proprietário João foi apelidado pelos clientes de João Mil. A única indústria da Rua Joaquim Floriano era a fábrica de chocolates Kopenhagen, de propriedade do seu David, que um dia recu-
sou o título de Cidadão Paulistano e a medalha Anchieta pelo fato de saber apenas fazer chocolates. Isso foi dito em carta dirigida ao vereador autor da proposta. A fábrica de chocolates Kopenhagen marcou fortemente a história da Rua Joaquim Floriano. Em 1943, David Kopenhagen e sua esposa, dona Anna, imigrantes da Letônia, adquiriram o terreno onde se instalaria a indústria Chocolates Kopenhagen. Mais tarde, nas décadas de 1970 e 1980, a Rua João Cachoeira consolidou-se como uma rua sofisticada, tornando-se o point do comércio, principalmente, de roupas. Tudo começou na década de 1960, com a Camisaria Franita, a pioneira, depois veio a Porto Belo, referência em roupas masculinas e, segundo as línguas, cópia da Franita. Daí em diante, deu-se o início do sucesso da João Cachoeira. Os clubes de futebol eram outro ponto de destaque no bairro. O Marechal Floriano era o referencial do esporte Bretão. Seu campo bem gramado não ficava a dever para qualquer campo de futebol profissional. Depois vinha o Grêmio, também Floriano, à beira do Córrego do Sapateiro, que trazia as águas da Vila Mariana e Aclimação. O Grêmio perdeu a fleuma porque seu presidente, seu Pedro, assassinou um jogador do time da Guarda-Civil – aquela de uniforme azul-marinho. Depois vinha o São Cristóvão, o único com uma grande estrutura, campo bem cercado e sede própria, tinham ainda o Marítimo e o Canto do Rio, estes dois últimos ainda em atividade.
Eu nasci no Itaim Bibi, na Rua Tabapuã, perto da Avenida São Gabriel, onde o meu avô tinha uma loja de armarinhos e era conhecido como o Zé Turco. Estudei ao lado, no Colégio Credidio Peixoto e tive uma infância onde eu, meu irmão e amigos, brincávamos na rua e andávamos de bicicleta, foi uma infância muito feliz. Denize Dias Eu cheguei ao Itaim aos 3 anos de idade. Morava na Rua Pedroso Alvarenga com a Paes de Araújo. Também sou do tempo do Mazzaropi. Lembro bem da casa dele. Morava num prédio de esquina que até hoje está lá. Brincava na rua com meus amigos, mas o que eu mais gostava era ir ao salão da dona Cristina, embaixo do prédio. Aí, então, eu e a filha dela brincávamos de gente grande. Depois teve a boutique e a gente adorava vestir roupas de adultos, escondidas é claro. Lembro da inauguração do Shopping Iguatemi. Teve show da Eliana Pittman. Fomos a pé de casa. Era só descer a Pedroso, e seguir reto pela Rua Iguatemi, quando ainda não havia a Avenida Faria Lima. Às vezes, meu pai me levava ao Jockey Club, e eu adorava. Alguém lembra da Pão Kent? Comprávamos pães ali, eram deliciosos. Apesar de ser garota de origem simples, filha de pai italiano, estudei no Sacre Coeur de Marie e também 151
no Costa Manso. Ah! Tempos muito bons. Sem violência. Brincávamos de mãe do muro, esconde-esconde, patins. Não tínhamos medos e nem preconceitos. Éramos felizes. Muito felizes. Vera Fraxini Minha mãe formou uma turma feminina de vôlei do Clube Marítimo: lembro da Lourdinha Palmezano, Maria de Lourdes Serra e sua irmã Maria Tereza, da Elizabeth e da dona Maria, mãe do Pedrinho, que moravam perto do ponto do ônibus do Jardim Paulistano. Isso sem falar da minha irmã, Ana Luisa, que além de jogar muito bem, chamava a atenção por sua beleza... Eu e outras crianças brincávamos nos morrinhos de areia de mocinho e bandido. Uma vez por mês, íamos fazer piquenique no então chamado Parque do Morumbi, depois rebatizado Alfredo Volpi. Anita Mudei para o Itaim Bibi em 1978, para a Rua Paes de Araújo, onde o querido e saudoso Mazzaropi morava, numa casa com enormes quintal e jardim. Todas as manhãs, seus empregados costumavam varrer e lavar a calçada e a rua. Tê-lo como vizinho era uma grande festa e todos os dias compartilhávamos uma alegria lúdica e simples com o saudoso Mazzaropi. Eduardo Wagner
Nasci, estudei e tive filhos no Itaim
méia, a Loseny, a Maria do Carmo, a Theresa, o professor de Ciências, assustando-nos com cobras vivas que levava para a classe! Tantos outros, guardados na memória. Quando fomos para o Clássico, estudávamos à noite, saíamos em comitiva e nós, as meninas, eu, Santina e Glória, nos sentíamos protegidas, pois os nossos colegas do Científico nos levavam até a porta de casa. Começaram os namoricos, mãos dadas, um beijo roubado... piquenique, Hélcias fingindo se afogar, a Glória começando a namorar o professor Brás, com quem acabou se casando, o Alfieri me atormentando de ciúmes, a Flora comandando a turma, o Beto Masagão, tão culto e inteligente, a Regina, minha amiga até hoje. E depois troquei de posição, era a professora, muito jovem ainda, recém-casada, enfrentando as classes abarrotadas de alunos, a nova política escolar, aluno não podia repetir, mesmo que fosse estrangeiro e não soubesse escrever em português! Recordo da Eponina, faxineira da escola. Era muito simpática, sobrinha do seu Fonseca. Depois que saí da escola convivi com ela muitos anos, pois foi minha vizinha no Brooklin Novo desde o início da década de 1950. Ela se aposentou trabalhando no Grupo Escolar Aristides de Castro. Faleceu há um ano. Viveu bem. Foi trabalhadeira, criou três filhos sozinha. Mário Lopomo
São Paulo, uma cidade do interior? Ana Luisa Masagão Menezes
Norma Rago Sáe Souza Pacheco Nasci, cresci, estudei, casei, tive filhos no Itaim e continuo aqui! Como é bom lembrar que ei a infância brincando na rua de esconde-esconde e pulando corda. Cansei de trepar nas árvores do quintal da minha casa, chupando jabuticaba no pé! Sim, o bairro foi crescendo, veio a energia elétrica, as obras de escoamento das águas pluviais, a rede telefônica, as primeiras casas com TV e suas cadeiras enfileiradas, como se estivéssemos no Cine Star. Escola? O Sacré Coeur de Marie era para meninas ricas do Jardim Europa, para nós, o Grupo Escolar Aristides de Castro, depois o Costa Manso. Sim, o nosso velho e amado Costa Manso, Colégio Estadual, privilegiados, nós que lá estudamos! Inesquecíveis professores, uns tão amados, outros tão odiados, mas que deixaram a marca do saber em todos. Inesquecível o nosso diretor, professor Athos, a alegre professora dona Mirtes, que nos acompanhava nos bailinhos de fim de semana, o professor Moreau, a Me152
Dizem que São Paulo é uma cidade desumana, fria, individualista. Contudo, a minha relação com ela é bem diferente. Nasci, cresci e morei, até cinco anos atrás, no mesmo bairro, o Itaim Bibi. Conhecia todo mundo: o seu Brandão da farmácia, o seu Hélio do açougue, a Noriko da quitanda, o pessoal do ponto de táxi, os outros lojistas e, principalmente, as crianças dos prédios vizinhos. O zelador então, nem se fala: o Ademar, que me viu nascer, é hoje um amigo da família, convidado que eu nem podia imaginar que faltasse a meu casamento. Há uns quinze dias, ei por lá, muitos conhecidos mudaram para outros bairros, mas os que encontrei, fizeram uma festa, foi como se eu estivesse voltando para casa. Me senti como uma daquelas pessoas que moram numa cidade do interior, se ausentam e voltam. Quem disse que em São Paulo não existe mais vida de bairro?
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Itaim de tripeiros, peixeiros e verdureiros Mário Lopomo No Itaim toda tarde ouvia-se aquele apito estridente e era comum que qualquer criança o tivesse. Mas quem fazia o uso dele e, muito bem, era o tripeiro. Para os mais jovens: um tripeiro é um vendedor de miúdos bovinos. E tinha somente aquele. Pelo menos no bairro do Itaim. Quando ele vinha assoprando aquele apito, as mulheres já estavam com vasilhames no portão esperando que ele virasse a rua da sua casa. Era uma carroça fechada como um baú, todo aluminizado por dentro, com muita higiene. Quando ele parava, era um tal de escolher fígado, língua ou coração de boi e, aquela balancinha de segurar na mão com uma haste horizontal, onde corria o cilindro que dava o peso, era fiel com os consumidores. Mas, esse atrevido que está escrevendo chegou a duvidar que aquela balança não roubasse minha mãe, dona Laura, dona Elvira e outras vizinhas. O tripeiro então mandou que eu fosse ao armazém de secos e molhados que tinha bem perto para conferir. E não é que fui! Chegando lá, o peso estava certo. — E aí garoto, conferiu? — Sim, conferi. Olha está quase igual. Faltaram poucas gramas. Risos para todo lado, e minha mãe não deixou por menos: isso é bom para não bancar o metido. Logo depois que o tripeiro ia embora, lá vinha a charrete do Chico, o Piqui, com rodas de pneus, era o Peixeiro. Peixe fresquinho, que havia chegado naquele mesmo dia de Santos, pois todos os dias pela manhã, o Nesão descia a Via Anchieta, recém-inaugurada, para pegar na ponta da praia o peixe nosso de cada dia. Tinha vendedor de todo jeito. Mas, ao contrário do tripeiro e do peixeiro, o verdureiro vinha pela manhã. Era um português que não falava direito a palavra verdura. A fonética dele dava a entender “froii”. Ele dizia “verruroi”. Logo que ele entrava na Rua do Porto, saindo da João Cachoeira, eu já gritava: — Mãe, o Froii tá chegando. Mas o que dava gosto mesmo era o sonho que um russo vendia. Era um cara de quase dois metros de altura, mãos grandes, igual às do Oberdan Catani. Quem fazia era a mulher dele, também estrangeira, uma ruiva alta que mais parecia um homem de saia. Mas, que mãos tinha aquela mulher para fazer sonho! Ele era grande, cortado ao meio em sentido horizontal, com creme dentro. Não havia criança que não ficasse com o beiço lambuzado. Um dia, o casal recebeu a visita de ladrões, que antes de roubar tudo, mataram a pauladas o casal que estava dormindo. Acho que se ele acordasse, na certa, sozinho dava conta de quantos tivessem, pois era muito forte.
Meu cunhado, marido de minha irmã, tinha um tio chamado pela família de “tio Caquito”. O sobrenome dele era Lanzelotti, morava na primeira travessa da Rua Joaquim Floriano, à direita, e tinha a tal carrocinha de tripeiro. Jayro Eduardo Xavier
Dos pregões de rua aos agitos do Itaim Hélcias Bernardo de Pádua Mesmo os que já se mudaram do Itaim, quando podem, sempre voltam a certos locais como ao Supermercado Peg Pag, agora Pão de Açúcar, à loja Kopenhagen, à livraria Saraiva, todos na Rua Joaquim Floriano, ou ainda, ao Extra, da Rua João Cachoeira, ao bar Amarelinho, ao Mestre das Batidas, na Clodomiro Amazonas, ao botequim do Hugo, octogenário estabelecimento da Rua Pedroso Alvarenga, ou lá ao Sebo Itaim, pequena e ótima loja de livros, revistas, discos em vinil e CDs usados, na Clodomiro Amazonas. Lugar ideal para bater um bom papo, saber das novas ou recordar aventuras da mocidade. Dentro desse universo gastronômico, cultural, literário, social e urbanístico, sem preocupação de periodicidade, perfaço minha vivência a partir da segunda década de 1940, quando enormes descampados entre as chácaras da região se ofereciam aos moradores, integrando-os através dos jogos de futebol, entre os times da Vila Olímpia e os do Itaim, além dos festejos juninos, das quermesses, das idas às missas e reuniões no terreno das capelas e depois, nas casas e salões paroquiais das igrejas vizinhas. Na minha infância podíamos brincar livremente na rua. Jogávamos bola nos campinhos de terra, empinávamos pipa, também chamado quadrado, sem enroscar nos fios elétricos. Pó de vidro colado na linha, nem pensar. Comíamos frutas oferecidas ou surrupiadas em árvores dos quintais que faziam muro com as ruas e travessas. Em certos dias, saboreávamos o leite de cabra, quentinho, ordenhado na hora e vendido de porta em porta por um senhor português que anunciava: — Olha o leiiiti de cabra, e que era servido em canecas de alumínio, sem rebarba, trazidas pelos próprios fregueses. — Questão de limpeza! Bradava o lusitano, limpando as tetas do animal com um pano “midecido”. Nunca pude saber com o quê. Me recordo da alvura do tecido de algodão recortado do saco de farinha. Outros jargões, do alemão do sonho doce: — Olha o sonho, sonho doce; do vendedor de miúdos, buzinando e gritando: — Fígado, fígado, bucho e moela; do chacareiro português com uma grande cesta na cabeça, sobre rodilha, sempre com verduras fresquinhas: — Olha a verdura, verdura... verdureiro. As sortidas quitandas dos portugueses e dos japoneses vieram 153
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tempos depois. Esperava-se a carroça do peixeiro, refrigerada a pedras de gelo, ouvindo ao longe o badalar de um pequeno sino pendurado no pescoço da cansada mula. Era a minha tia que escolhia, limpava, empanava e fritava as sardinhas, nossa gostosa mistura do jantar daquela tarde. Me impressionava o carrinho do afiador de faca e tesoura e as corridas notas do seu apito. Parado, podia girar uma pedra circular, apertando um pedal e forte tira de couro. Então encostava a faca ou a tesoura da minha mãe na pedra, soltando fagulhas coloridas. Depois vinha o soldador de as. Repetitivamente batia e rebatia um ferro curvado e preso nas pontas a um pedaço de madeira. Um “traratrata”. A histórica matraca. Trocas de favores pelos muros das casas: xícaras de farinha, de açúcar, dois ovos, alguns legumes e pedaços de bolo. Pedia-se quando faltava em casa, mas acho que na verdade, era mais uma forma de bom relacionamento. — Vizinha, não lavei a vasilha para não lavar o teu coração, obrigado pela presteza – dizia minha mãe, dona Benedita, do quintal de casa. Do outro lado do muro, a resposta da dona Miquelina: — Que nada, não se preocupe, quando precisar é só pedir. À tardinha, sentadas em banquinhos ou cadeiras, encostadas no muro da frente de rua, as comadres conversavam. Enquanto isso, a molecada jogava fubeca, estalando bolinhas de vidro. As meninas brincavam de amarelinha. O meu pai, funcionário público do antigo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários, IAPB, chegava, tomava um banho rápido, jantava e ia trabalhar como porteiro no Rinque de Patinação, na Rua Joaquim Floriano. Depois ele se empregou como bilheteiro do Jockey Club de São Paulo. Aí trabalhava nas segundas e quintas-feiras à noite e aos sábados e domingos de tarde. Nas noites de sexta-feira, íamos à reza na Paróquia de Santa Teresa de Jesus, na igreja da Rua Tabapuã, avisados pelo badalar do seu único sino. ávamos em frente da escola de datilografia da dona Marieta, esquina da então Rua da Ponte, depois Clodomiro Amazonas, com a Rua Viradouro. O prédio da antiga igreja se transformou em supermercado, até o desabamento do seu teto, em 1999, após o original e velho madeirame ser arrasado pelos cupins. Reformado, agora serve como cozinha industrial e depósito para os restaurantes do Fasano. A antiga escola de datilografia virou lanchonete. Nos finais de semana, disputas entre o São Cristóvão e um visitante me obrigavam a acompanhar o senhor Orestes, jogador e às vezes, treinador do time da casa. Para ar o tempo, ficava catando as bolas que caíam no Córrego do Sapateiro. Os jogadores machucados procuravam o respeitado senhor Mimi, massagista amador e curioso ortopedista, ali na sua casa ou no armazém, logo após a ponte da Rua da Ponte. Os moradores gostavam de caçar rã com ancinhos – tridentes – nos brejos da Vila Olímpia, ou mesmo em alagados ainda existentes
na margem do rio Pinheiros, esse sem poluição, pelo menos aparente. Aos domingos, os homens usavam terno de casimira ou de linho branco, capa de gabardina, chapéu e os sapatos sempre bem engraxados. Era a roupa da missa. Íamos à padaria todos os dias. Pelas manhãs era para comprar o leite, em frasco de vidro, e o pão recém-saído do forno, quentinho. Eu pedia o pão moreninho e descia pela Clodomiro mordendo-os, saboreando-os e espalhando casquinhas. Não era por medo de me perder como na história de João e Maria. Adoro sanduíche de pão com pão. Aos domingos, pela manhã até a hora do almoço e depois à tardinha, respeitados senhores se reuniam para tomar algumas cervejas enquanto esperavam, como desculpa, os assados saírem do forno a lenha e o fatiar das diversas e costumeiras cem gramas de frios. Lembro que nas grandes festas como Natal e Páscoa, o meu pai, senhor Orestes, mandava assar o leitão ou peru na padaria, na esquina da Rua da Ponte com a Rua Joaquim Floriano. O leitão tinha que ficar à pururuca. Iguarias cuidadosamente temperadas pela minha avó, dona Francisca. As negras senhoras eram requisitadíssimas como cozinheiras de forno e fogão em casas nobres e de tradicionais famílias dos bairros vizinhos, dos Jardins à Higienópolis. Nesses anos, tudo era perto e bonito, ou pelo menos me parecia. Ganhei muitos brinquedos já usados pelos filhos desses pseudonobres. Lembro-me de um reforçado patinete, todo vermelho. Descia orgulhoso pela Rua da Ponte. Na metade da década de 1960, aparece um modestíssimo bar assando frangos temperados. Deliciosos. Foi uma grande novidade, O Frango Assado, na Rua Joaquim Floriano, pouco antes da Clodomiro. Ficou famoso e mudou para a Rua Urussuí, no início do quarteirão da Escola Estadual Aristides de Castro. Lá na esquina da Clodomiro Amazonas com a Rua Iaiá, fazendo um tremendo sucesso, funcionou o inigualável bar Mestre das Batidas, com sua deliciosa lingüiça assada no álcool, especialidade do senhor Armando, o Chapinha. Também mudou de local. Está na esquina com a Leopoldo Couto de Magalhães Junior, com as paredes externas pintadas de um amarelo ovo, por isso conhecido como Amarelinho. A primeira padaria do bairro, instalada pouco antes da Rua João Cachoeira, foi a Padaria Lepera, do Zé Padeiro, José Lepera, fundada em 1922. Não foi no meu tempo. Outra, pouco mais sofisticada, surgiu lá no início da Rua Joaquim Floriano, na praça dos ônibus, atual Dom Gastão Liberal Pinto. Era a Padaria Maná. Bastante modificada, porém ainda no mesmo local temos a padaria da esquina na Rua Tabapuã com a Clodomiro, em frente à nova matriz da Igreja de Santa Teresa de Jesus. Era lá o encontro dos jovens da chamada turma da igreja, no intervalo das missas de domingo, das décadas de 1960 e 1970. Os bons tecidos eram comprados na loja do senhor
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Moisés, na esquina da Joaquim Floriano com a Rua João Cachoeira. Agora vemos a unidade das Casas Marisa. Na carpintaria da esquina da Rua do Porto com a João Cachoeira, mandava-se fazer e consertar nossos móveis. Um dos irmãos carpinteiros, Vicente, era goleiro do Clube São Cristóvão, time de futebol com seu campo logo abaixo, na mesma rua. O jovem goleiro, com grande garbo e prestígio, saía de casa já todo paramentado para jogar. Olhares lânguidos das jovens o acompanhavam. Atualmente, no amplo terreno da família, vê-se um estacionamento. Dizem que ali vai se instalar um famoso restaurante. Na mesma rua, entre a Travessa do Porto, atual Luís Dias, e a Rua João Cachoeira, morava a família do sapateiro, o seu Fiore. Hoje tem o complexo de ginástica Pelé Clube. Comentava-se que além de bom sapateiro era um ótimo tenor. Seu Fiore, remendando sapatos, conseguiu formar um filho, médico, pela USP. Lembro do futuro médico, sempre com suas roupas brancas, se locomovendo de lambreta. Nas folgas, o ainda estudante de medicina, respeitosamente ajudava o orgulhoso pai, numa pequena oficina instalada no terraço lateral à casa. As compras diárias da minha casa eram sempre feitas no armazém do Cabeça de Porco e pagas no final do mês. Os gastos em açougues, armarinhos e bares também eram marcados em caderneta individual. O estabelecimento do Cabeça de Porco ficava no morrinho de um enorme terreno que ocupava a esquina da Rua do Porto, atual Leopoldo Couto de Magalhães Junior, com a Rua da Ponte. Aliás, esse local era o mais alto da área. Depois, no decorrer da década de 1960, para construção dos sobradinhos conjugados, dos quais alguns ainda resistem, é que se retirou a terra, nivelando-o com a rua. O proprietário do armazém Cabeça de Porco recebia todos os anos a comitiva da Romaria à Pirapora do Bom Jesus, soltando dezenas de rojões. Os orgulhosos romeiros, vistosamente paramentados e cavalgando garbosos eqüinos, desfilavam subindo a pequena inclinação da então Rua da Ponte, seguidos por irados habitantes do bairro. Vinham desde o distrito de Santo Amaro. Paravam primeiro numa vendinha, situada no final da então Travessa do Porto, e, depois, em frente à pinguela de madeira do Córrego do Sapateiro. Ali, enquanto os animais descansavam e se alimentavam numa cocheira, a comitiva bebericava algo. Sob o estourar de rojões, seguiam até a Rua Tabapuã, recebendo a bênção dos padres da igreja. Aí pegavam a Rua Iguatemi até o bairro de Pinheiros, encontrando outros companheiros. Era uma festa, tanto na ida quanto no retorno desses considerados nossos heróis. Poucos anos depois, na Rua do Porto, depois Leopoldo Couto de Magalhães Junior, atravessando a Rua Clodomiro Amazonas, quase no meio do quarteirão, na calçada do lado direito, se instalou uma fábrica, a Tecelagem Lady, transferida da Rua Fiandeiras. O apitar da chaminé marcava as horas de
troca de turno dos operários e orientava os moradores da região. Lançava ao ar uma fumaça branca, porém de odor irritante. No quarteirão, em frente, existia uma fábrica impressora de discos fonográficos, com gravação no papelão. Não era em vinil. Pois é, se chegou a gravar músicas em discos de papelão. Mais ao fundo do mesmo grande quarteirão, margeando o córrego, erguiam-se as antenas da Rádio Panamericana. Algumas vezes cruzei com o Paulo Machado de Carvalho, ainda não conhecido como o General da Vitória da Copa de Futebol, subindo e descendo a Rua do Porto. Anos depois, na mesma área foram mantidos viveiros com pássaros exóticos. Na esquina da Rua Pequena, hoje Rua Atílio Innocenti, ocupando quase todo um quarteirão, via-se um terreno gramado e arborizado com uma bela e enorme casa térrea. Eu chamava de “a casa dos alemães”. Em toda rua era a única com campainha, que nós crianças não deixávamos quieta. Na década de 1980, no local funcionou o primeiro Restaurante Leopoldo’s. Depois, grande parte do terreno foi tomado pela Avenida Brigadeiro Faria Lima. Do que restou na esquina com a nova avenida, se instalou um banco com agência privê. Da original e bela casa preservaram – ou esqueceram – uma parte contígua, a edícula, agora com frente para a Rua Atílio Innocenti. Um prédio da região do Itaim Bibi a ser lembrado, situado na Leopoldo Couto de Magalhães Júnior, é o do imponente palacete da família Ritz, cuja construção se prolongou desde os finais de 1950, correndo pelos anos 1960, e onde, atualmente se instala a escola de línguas Cultura Inglesa. Mesmo semipronta serviu de moradia para a família que também tinha uma oficina de torneiro mecânico na Rua Clodomiro Amazonas, vizinha da atual e movimenta Lanchonete Samaro. Na década de 1960, nesse mesmo local existiu um bar, com frente para a Rua Joaquim Floriano, que era o ponto de encontro de artistas, iniciantes políticos e alunos da USP e dos colégios vizinhos. À noite, íamos para lá e trocávamos idéias sobre música, teatro e política. O compositor, cantor e pianista Johnny Alf esteve por lá, levado pelo então estudante e presidente do Grêmio Costa Manso, Edson Simões.
Recordações do Itaim Gabriela de Jesus Ribeiro Morava na Rua João Cachoeira quase na esquina com a antiga Rua do Porto, depois Leopoldo Couto de Magalhães Júnior. O terreno era grande e, como a maioria, tinha um poço nos fundos, de onde puxávamos água na base da corda e carretilha. Só mais tarde papai colocou uma bomba manual. Era comum também jogarmos cal virgem no poço para purificar um pouco a água. 155
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Na frente de casa havia uma fossa negra, ali construída para facilitar o trabalho do caminhão que recolhia os dejetos quando ela ficava cheia. A água do tanque vinha para a calçada e caía na valeta que tinha depois na rua, onde o caminhão da prefeitura sempre jogava inseticida – como eu gostava de ver aquele homem com um tamborzinho verde nas costas, esguichando inseticida naquela água que ficava verde. Lembro também de ir buscar leite na casa do seu Jacinto, seu quintal havia se transformado em curral, ficava na Rua do Porto. No tempo da guerra eu ia comprar aquele pão preto, de madrugada, na padaria do seu Delfim. A gente ia em turma, mas mamãe sempre ficava no portão olhando. Quando a gente perdia a hora e acabava o pão, íamos na Padaria Itaim, ali na esquina da Rua Joaquim Floriano com a Bibi. Só que lá, eles perguntavam quantas pessoas moravam em casa e eu falava que era eu, minha irmã, papai e mamãe, e não adiantava mentir, porque eles sabiam de tudo. Era um tempo muito difícil. Então eles cortavam dois filões em quatro pedaços e mais um quilo de açúcar preto. Na padaria Maná também faziam isso. Às 10 horas da manhã, lembro que havia uns alemães que davam umas voltas pelas ruas, com aqueles emblemas da Alemanha nazista. Eram os presos que, depois de um belo eio, voltavam para a cadeia. Mas o gostoso no Itaim era o carnaval. Todos os moradores iam para a Rua Joaquim Floriano e andávamos até o largo da Padaria Maná. Eu ficava indo e descendo, recebendo confete, que muitas vezes, entrava pela boca, ou então ficava enroscada nas serpentinas que eram jogadas em cima da gente. O ruim era quando o lança-perfume caía na vista, ardia muito. Mas o que eu tinha medo mesmo era do carvoeiro que ava com a carroça vendendo carvão. Era um homem que andava arcado e que estava sempre todo sujinho, preto de carvão, embora fosse de pele branca. Eu, ainda muito criança, pensava que ele era um homem do outro mundo.
O Costa Manso e as pinguelas do Itaim Paulo Eduardo Branco Vasques De 1955 a 1970, estudei no Costa Manso, Escola Estadual Ministro Costa Manso, que foi transferido para o prédio novo da Rua João Cachoeira em 1964, onde ainda permanece. Na época, ali só existia o depósito do Mappin e mais nada. Fiz o Científico e depois ei para o Clássico, onde me formei no colegial. Bons tempos. Tenho a minha namorada até hoje, Vera Romanello, que conheci no “Costinha” quando tinha 18 anos. A Avenida dos Bandeirantes não existia. Era um grande córrego que dividia o Itaim Bibi da Vila Olímpia. Quase não havia ligação entre os dois bairros.
Só pinguelas. Após ter me casado com a Vera, fomos morar na Vila Olímpia, onde assisti a construção da Avenida dos Bandeirantes.
Os currais da Vila Olímpia Mário Lopomo Em 1951, quando fomos morar na beirada do Córrego da Traição, que durante vinte anos não teve denominação oficial, só sabíamos que ali seria uma avenida, atual Avenida dos Bandeirantes. Mas na prefeitura constava que era uma praça. Uma praça sem nome, tanto que, para receber mercadorias, o gás, ou material de construção, vários nomes eram dados àquele pedaço, o que infernizava os moradores; não bastasse não ter luz no bairro: vivemos na base do lampião e da lamparina até 1953. Mas o que mais nos alegrava eram dois currais de vacas que tínhamos um perto do outro. O mais próximo era na Rua Ponta Delgada, bem perto do Córrego da Traição. O outro era mais adiante onde tinha o campo de futebol da Portuguesinha da Vila Olímpia. O curral em que íamos pegar o leite todas as tardes era do Totó e ficava quase em frente de nossa casa. Às 17h30 ele já estava sentado em seu banquinho puxando as tetas das vacas e o leite quentinho espirrando no balde. Depois ia para o latão do leite como a gente dizia. Um dia o xereta do meu irmão José tirou o pano que estava na boca do latão, que era para coar e não deixar algum detrito entrar, e viu que tinha um pouco de água. Gritou: — Totó, você esqueceu de tirar a água que lavou o latão! Na verdade, era aquela aguinha que dava um pouco mais de leite. O lucro. Como gostam de dizer pessoas que nascem no país do sol nascente. Naquele tempo se comia tudo “de prima”. Ao lado do curral tinha a chácara de um português, com verduras fresquinhas. Minha mãe não gostava muito porque ele regava as verduras com a água do córrego. Mas, na verdade, o córrego tinha água limpa, a única sujeira que podia ter era o cascão dos nossos pés. Tinha também ovos frescos, pois todas as casas tinham seu galinheiro, e quando alguém queria comer frango, era só torcer o pescoço do bicho e mandá-lo para a a. O “marvado” era eu. Como não tinha força para destroncar o pescoço do galo, torcia e ficava segurando até ver o bicho com o olho arregalado, como a dizer: — Chega, pô! Sem contar as frutas que também tínhamos em casa. Era difícil uma casa que não tivesse seu pé de ameixa, goiaba, mamão e uva. Só não via pé de banana ou laranja em quintal algum. Depois que Totó mudou seu curral para outro local, ele ou a entregar o leite em casa, por volta das 21 horas. Eu era “escalado” para ferver e era difícil o dia que não deixava o leite cair para fora da leiteira. Cabeçudo, deixou cair de novo? Pá... Um tapa nas fuças, logo vinha. Como
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não tinha luz em casa, Totó era quem dava a notícia dos resultados do futebol aos domingos. Bons tempos.
Saudade da minha casa, da minha São Paulo! Ana Luiza Pereira de Lacerda Minha história se a na década de 1960. A casa ficava na Rua Amauri, esquina da Avenida Europa. A rua era muito arborizada e a casa, linda, guardava uma família unida e alegre. Vizinhos amigos. Domingos festivos. A rua, em curva, entrava na Rua Iguatemi, onde se construía um dos maiores e mais lindos shoppings do Brasil. No outro extremo, na esquina de casa, havia um posto, que dava em frente à Panificadora Pão Quente. Bons tempos. Sinto o cheiro, o clima, e as cores. Atualmente moro em Curitiba, mas alimento o sonho de voltar um dia. Antes de vir para cá, ainda morei na Avenida Angélica, esquina da Maranhão. Onde se eava pela Praça Buenos Aires, onde se corria pra tomar sorvete no bar Luar de Agosto, entre tantas outras lembranças. São muitos os lugares que me marcaram. Igrejas, como a Nossa Senhora do Brasil e a São Gabriel. Escolas como Pio XII, do Morumbi, Madre Alix, da Rua Gabriel Monteiro da Silva e Ofélia Fonseca, da Rua Bahia, a Rua Augusta, a Galeria Ouro Fino, o Bazar Ludi, a Casa Toddy, o Conjunto Nacional. Clubes que freqüentei? Harmonia, Clube de Campo e Pinheiros. Programas com a família nos finais de semana? Visita ao zoológico, Casa dos Bandeirantes, Butantã, almoço com meus avós no domingo, assistir ao Circo do Arrelia, Jovem Guarda, Perdidos no Espaço, Pullman Júnior. Depois, encerrar o domingo em uma pizzaria.
O Iguatemi dos sobrados aos arranha-céus Célia Berardi Spangher Nasci e cresci num sobradinho da antiga Rua Iguatemi, numa vilinha de seis casas, por onde atualmente a a grande Avenida Brigadeiro Faria Lima, mas, por um capricho do destino, a vila ainda existe e o nosso sobradinho está alugado. Tenho muitas lembranças daquela casinha e ali fomos muito felizes. Tanto é assim que, depois que a reformaram e alugaram, nunca mais quis por meus pés ali. Quando o em frente, nem olho... Quero preservar aquele pedaço feliz da minha infância e adolescência, quando o grande Concurso de Bandas e Fanfarras ava em frente à nossa porta. Era uma festa! Lembro também que em plena ditadura militar, lá pelos idos dos
anos 1970 ou 1971, eu, uma moleca de então 7 anos, não entendia porque a minha escola, estadual Fernão Dias Paes, não podia participar mais. Foi quando me contaram que no ano anterior a escola tivera a audácia de tocar o Hino Nacional em ritmo de samba, um pecado imperdoável. Levou dez anos de suspensão do Concurso... Meu pai me levava ao Shopping Iguatemi para assistir Tom & Jerry no cinema, às 10 horas da manhã. Alguém se lembra dos Milkshakes do Julie & Jim? A minha querida Rua Iguatemi se abriu num avenidão que não tem tamanho. Tudo mudou na minha infância pacata. Minhas tardes tomando Nescau – que tem gosto de festa! – ou groselha vitaminada Milani – iahu! – na casa dos vizinhos de vila, já não podiam acontecer com tanta tranqüilidade, porque com a avenida aberta e tanto movimento, meus pais tinham medo que acontecesse algo. E assim, participei intensamente da mudança dessa área da cidade, de vilinha de sobrados a enormes arranha-céus, da rua pequena à avenida de quatro faixas. Um de meus programas favoritos ainda é caminhar pela Faria Lima no domingo de manhã até o shopping, comprar o jornal e ir tomar café com croissant no Café do Ponto. Aprendi a curtir cada centímetro dessa metrópole desvairada e louca, insegura, violenta, um dos piores trânsitos que já conheci, mas, ao mesmo tempo, apaixonante. São Paulo é um vício do qual não consegui me livrar.
O que eu mais lembro da Rua Iguatemi é do córrego verde que ava ao lado de onde o shopping foi construído e atrás da Rua Iramaia. Não tinha calçada e eu tinha medo de cair no córrego. Na esquina da Gabriel Monteiro da Silva, ao lado de umas escadarias, ficava o ponto final de uma das duas únicas linhas de ônibus elétrico de São Paulo, a 54-Jardim Paulistano e a 51-Jardim Europa, que fazia ponto final na Mário Ferraz. Na frente do Shopping, onde hoje está uma das garagens, havia um estacionamento aberto. No terceiro andar do Shopping só existia um restaurante chinês muito chique, acho que chamava Golden Dragon. Dando de frente para a Iguatemi, onde hoje está a C&A, havia uma superlanchonete das Lojas Americanas. Israel Beigler Eu morava na Rua Diogo Moreira, que ia da Rua Iguatemi até a Avenida Eusébio Matoso. Quando pequeno íamos ao boliche na Rua Iguatemi e mais tarde, com um pouco mais idade, tirávamos racha de moto da Reboucinhas até o Clube Pinheiros, era uma época muito boa. Luiz Aurelio Boglar Lembro muito bem da Rua Iguatemi das décadas de 1940 e 1950. Começo falando dela a partir da Rua Joaquim Floriano, onde ela começa. 157
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Ali, no início dos anos 1950, morava um grande jogador de futebol: Leônidas da Silva. Havia até certa implicância por ele ser negro e ter se casado com uma mulher branca de cabelos ruivos. Minha mãe sempre pedia para eu levar tecidos para fazer roupas no Ponto Ajour, que ficava numa vilinha, à direita de quem ia para Pinheiros. Vi o início das obras do Shopping Iguatemi por volta de 1964. Lembro, e com muita tristeza, da derrubada de muitas casas do lado esquerdo de quem vai para Pinheiros, devido o alargamento da rua que iria se tornar a Avenida Brigadeiro Faria Lima. Mário Lopomo Conheci a Rua Iguatemi na década de 1960. Num fim de ano que estive com meu irmão no apartamento dos pais de sua noiva, que ficava na esquina de uma das ruas que saíam direto no Shopping Iguatemi, então em construção. O apartamento deles ficava sobre a padaria, na esquina da Prudente Correia. Os futuros cunhados dele estavam vendendo árvores de Natal, com toques de prateado, na ex-tranqüila rua. O perfume dos pinheirinhos era inesquecível. Luiz Saidenberg A primeira vez que ei na Iguatemi foi em 1966, ela nem sonhava em ser o que é hoje. Lembro de uma enorme paineira, majestosa quando florida. E o primeiro shopping paulistano, reinou por muitos anos. Turan Bei
Dos cinemas às bananas splits da zona sul Alcione Godoy Pires Aos 58 anos, quero destinar essa crônica às lembranças da infância e juventude que ei na Vila Nova Conceição e adjacências, nas décadas de 1950, 1960 e 1970. Quem não se lembra do Cine Radar, na Avenida Santo Amaro, depois transformado em Cine Del Rey? E um pouco mais adiante, o Cine Excelsior, depois também renomeado de Cine Guarujá? E o Cine Graúna, rebatizado Cine Chaplin? O único que nasceu e morreu com o mesmo nome foi o Cine Vila Rica. Mais tarde, nasceria também o Bruni Vila Nova. E as confecções mais antigas do bairro? A Franita, que hoje está na Chácara Santo Antonio, e a Gledson, onde todos os jovens compravam seus jeans... E ao lado do Monumento às Bandeiras, no Ibirapuera, quem não se lembra do outdoor da Trivelato, o primeiro outdoor com movimento? A caçamba do caminhão subia e descia.
Depois tivemos o Chico Hambúrguer, hoje na Avenida Ibirapuera, mais luxuoso, mas com a mesma qualidade de sempre. O Grupo Escolar Martim Francisco, resistindo heroicamente às estocadas de uma prefeitura que queria derrubá-lo para construir uma ”vila” para meia dúzia de amigos; a Igreja de São Dimas, com o Padre Arnaldo, com toda a sua fama; a Paulino Pizzaria, hoje também na Chácara Santo Antônio; os inúmeros boliches que resistiram alguns anos e sumiram; uma pista de skate, que foi considerada a melhor do mundo; uma boite, acreditem, alguns drive-ins, inclusive o último foi substituído há pouco tempo por uma loja de hambúrguer internacional. O Ibirapuera com seus barquinhos a remo e a motor nos lagos, o restaurante sobre o pontilhão e a lanchonete à beira do lago, onde havia o melhor Banana split do mundo... êta mundo bom, que saudades...
Jardim Paulista, o buraco preto Paulo Eduardo Branco Vasques Fui criado no Jardim Paulista, na Rua Guarará. Lá jogávamos futebol de rua, e, quando ava algum carro, a turma gritava para que o jogo parasse e ele pudesse ar. Meu avô fundou um colégio chamado Externato Teixeira Branco, no qual minhas tias Nair e Lourdes e minha mãe, Jacyra, eram professoras e minha tia Eulália era a diretora. Bons tempos, pois para ir ao colégio era só atravessar a rua. Em 1954, o Parque do Ibirapuera foi inaugurado e o Ginásio do Ibirapuera também. Assisti aos jogos de basquete, quando dos Jogos pan-americanos de São Paulo. Hoje as ruas Caconde, Lorena, Joaquim Eugênio de Lima e outras são ruas de extremo trânsito. Quando meu pai foi morar lá, o bairro era todo em terra preta e todos perguntavam a ele: — Você vai morar no buraco preto? Pois, abaixo da Paulista, eram só terrenos de terra preta. Ninguém queria morar lá. A indústria têxtil Calfat era próxima à minha casa e os trabalhadores moravam ao lado da fábrica, em frente ao Ginásio do Ibirapuera, na Rua Jundiaí. Quando havia alguma encrenca no bairro, todos temiam o pessoal da Rua Jundiaí, que eram bons de briga.
Over the Rainbow José Carlos Munhoz Navarro Diz a canção, diz a lenda, que no final do arco-íris há um pote de ouro. O duro era acordar às 5 e meia da manhã, tomar um banho de pingos – ou
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de gato – no chuveiro da casa da vó, colocar a roupa de sair e quase dormindo acompanhar os pais. O duro era entrar no ônibus cheio, do Brás até o Largo do Paissandu, daí andar até a então chamada Rua São Luiz, mais tarde Avenida São Luís, pegar o 54 – Jardim Paulistano, subir e descer a Augusta até chegar na Rua Groenlândia. Descer e dar bom-dia ao casal de húngaros que tinha vendido a mercearia para o meu pai. O duro era saber que ia ficar o dia inteiro na mercearia que o pai tinha comprado e que eu, do alto dos meus 10 anos de idade, tinha que atender telefone e fazer entregas e eu nem andar de bicicleta sabia, ainda. Mas as coisas todas se encaixaram. Aprendi a andar de bicicleta, a atender telefones, a fazer troco. Só não aprendi a bater chantilly. Descíamos a badalada Rua Gabriel Monteiro da Silva, que naquela época se chamada Dona Hipólita. Aliás, muitas ruas tiveram seus nomes trocados. A Salvador Frederico virou Almirante Mascarenhas, parte da Juquiá virou Desembargador Vicente Penteado; a Rua Quilombo virou Ibsen da Costa Manso, a Nevada virou Taufic Camasmie, entre outras. Tínhamos à nossa volta uma mescla de culturas. Na Rua João Moura estava a família israelita, com suas salas austeras e escuras, cheias de quadros, enfeites e sobriedade. Nessa casa eu aprendi a ver laços de família. Na Avenida Rebouças, tínhamos o casal de alemães que só tomavam Pilsen Extra e que um dia a dona Lili, pois era assim que a conhecia, me mostrou um retrato de um jovem, seu filho, morto na guerra. Nessa casa eu aprendi como se convive com a dor. E como superá-la. Na própria Groenlândia tínhamos o incansável industrial e seu inconseqüente irmão. Ambos gerados dos mesmos pais, ricos e um inteiramente diferente do outro. Aí aprendi que “cada um é cada um”. Uma vez, o irmão inconseqüente chegou em casa de manhã e bateu com o carro na coluna do portão, destruindo-a. As empregadas disseram depois que ele chegou meio embriagado. Aprendi também que se ele fosse pobre teria chegado bêbado e não meio embriagado. Mas eu gostava mesmo de ear na Rua Guadalupe, com suas calçadas largas, ajardinadas e que para mim eram as mais bonitas. Ou, então, ir jogar bola no Colégio Nossa Senhora do Brasil, na Avenida Brasil, que tinha uma quadra pequena, mas ível a nós, míseros mortais, em função de que um amigo estudava lá e tinha alguma facilidade para entrar e uma certa rapidez para sair quando éramos descobertos. Vez ou outra eu ia à Igreja Nossa Senhora do Brasil, com seu estilo único e freqüentadores ímpares. Saía da Groenlândia, virava na Venezuela, na Peru, na Panamá, na Brasil e me via contrito e austero, rezando. Mas eu gostava mesmo era da Igreja São José, na Rua Dinamarca. Muitas vezes ia ao Sirva-se, talvez o primeiro ou segundo supermercado de São Paulo. Com certeza, o primeiro que eu tinha visto. Lá, volta e meia, nos encontrávamos com artistas de televisão. Para mim era um “Alô Doçura” quando encontrava aquela moça tão bonita quanto artista. Descendo ainda a Gabriel, tínhamos o Colégio Madre Alix e a Escola
Nazaré. Os dois istrados por freiras sendo o primeiro freqüentado pelas meninas mais ricas e o segundo pelas menos. Bem menos. No Madre Alix, os motoristas que vinham buscar as meninas entravam no colégio com o carro por um portão e saíam por outro. Por isso não havia carros em fila dupla. No colégio Nazaré, nem havia carros. Só mães esperando as filhas saírem. Muitas delas ainda com o uniforme de cozinheiras, babás, arrumadeiras etc. Quase ao lado do Madre Alix ficava a Brunella, que fazia um dos doces mais badalados da cidade. Para confirmar que éramos abençoados por Deus, o confeiteiro-mor era nosso amigo e numa dessas, sobrava muita coisa. Sempre que ia buscar minha irmã na Escola Nazaré, dava uma adinha pra ver o senhor Salvatore na Brunella. Depois ele foi transferido para outra loja em Moema e perdi meus bombons e doces, quase diários. Na Rua Atlântica tínhamos os homens da televisão. Moravam nela a família Machado de Carvalho, da TV Record e a família do senhor Enéas Machado de Assis, que vivia na TV Tupi. Na Rua Polônia, porém, tínhamos o mais importante deles – Assis Chateaubriand – e sua famosa Casa Amarela. Na frente da casa, além do jardim, havia um enorme viveiro, onde dezenas de pássaros viviam em harmonia com a natureza. Não diria que eles estavam confinados, mas sim vivendo livres e devidamente protegidos. Se, durante a semana, crianças e respectivas babás se encantavam, era nos finais de semana que a calçada transbordava de casais e pessoas até de outros bairros que se maravilhavam com a harmonia do canto e o multifacetado colorido que as aves apresentavam. Descendo um pouco mais a Rua Polônia, terminava o arco-íris e aparecia o meu pote de ouro. Nada mais, nada menos que a Igreja São José, na Rua Dinamarca, simples e ao mesmo tempo solene, onde eu e minha namorada, numa quieta e tranqüila tarde-noite, oficializamos sob a lei dos homens, aos olhos dos parentes e amigos de uma forma mais próxima, e a todos de uma maneira geral, uma eterna união feita há muitos séculos antes num plano maior que este, neste interminável e imorredouro sonho.
A minha namorada, se eu soubesse... José Carlos Munhoz Navarro A rua estreita, de terra, se estendia por não mais de 100 metros, acho que 150, se tanto. Nas calçadas apenas uma pessoa por vez, duas, nem pensar. Na esquina com a Rua Groenlândia uma pequena leiteria, mercearia depois, um pequeno armazém no final. No fim da rua, que se chamava 159
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Nevada, agora Taufic Camasmie, ficava a casa do patriarca da família Frederico, como se fosse a casa da fazenda, nas velhas propriedades. Atrás do armazém, uma pequena vila com uma imponente jabuticabeira, palco e testemunha silenciosa de vorazes ataques para saborear seus frutos e engalfinhadas batalhas de cascas e bagaços. Nosso universo era imenso. Grandes jardins pareciam cartões de visitas para as casas. Os muros tinham a altura exata de um pequeno impulso, leve apoio com uma das mãos e suave aterrissagem do lado de dentro. Apenas não ficava tão suave quando a dona da casa via seus crisântemos e margaridas sendo ligeiramente amassados. ada a bronca e relevado o susto, a vida continuava. O veículo mais presente era a bicicleta. Umas com todos os apetrechos e equipadas com o que mais moderno havia, outras, como a minha, por exemplo, tinha em seu bagageiro um engradado de leite, que meu pai teimava em amarrar para evitar que eu o tirasse e esquecesse das minhas tarefas diárias. Entregar leite e todas as encomendas que os fregueses faziam por telefone. Se lembro do número? Claro, 8-1646. Não, não esqueci nada, era assim mesmo, 8-1646. Poucos fregueses pagavam na hora. A regra era sempre no início do mês seguinte. Leite Vigor; pão preto da Falkenburg; e daí um sanduíche com presunto Santo Amaro com queijo tipo prato da Luna. Ou então, está bem, podem falar que estou louco, um belo sanduíche de pão preto – ou então um quentinho pão da Regência, que fechou o ano ado ou retrasado na Joaquim Antunes – com língua de gato, aquele velho e bom chocolate da Sönksen. Apesar de não se achar mais o pão preto e descobrir que não ficou louco, experimente fazer um sanduíche assim e depois me conte. O chato mesmo era quando uma freguesa pedia 250 gramas de chantilly. Chato porque eu tinha que ficar no balcão enquanto meu pai ia lá para a cozinha com dois vidrinhos de creme de leite, um pouco de açúcar num prato, um garfo e, algum tempo depois, lá vinha ele com o saborosíssimo chantilly – que eu não entendia direito e chamava chantilim. E lá ia eu fazer outra entrega. Na Rua Polônia, na casa do falecido deputado Emilio Carlos, na casa do embaixador da Suécia, na Rua Luxemburgo, na casa do ministro, do futuro governador, do imigrante alemão, entre outros. Ah, mas o que mais eu gostava era ir à casa do senhor Lafer, na esquina da Groenlândia com a Colômbia. Entrava lá dentro de bicicleta e tudo e eava por toda aquela suntuosidade até chegar à área de serviços, onde sempre a governanta ou a cozinheira me aguardava. Quando era a cozinheira era melhor, pois sempre sobrava um bolinho ou rabanada para ir comendo na volta. Saí de lá em 1973, levado pela mão de uma moça que me enfeitiçara muito tempo antes. Oficialmente, a primeira linha desta história a-se em 1957, foi naquela rua e naquele ano que conheci a minha namorada, que tinha 7 anos
e eu apenas 10, e que andou de bicicleta por muito tempo junto comigo nessas entregas. Aliás, se eu soubesse – e pudesse – que seria tão feliz com essa menina, teria casado já em 1957 e não esperado como um trouxa até 1973.
A Augusta onde tudo acontecia Doris Day Tenho saudades do tempo em que freqüentava a Rua Augusta. Em 1971, estava desempregada e meu irmão propôs uma sociedade numa boutique na Galeria Ouro Fino. Éramos dois durangos, não tínhamos dinheiro algum, só sonhos! Pedimos dinheiro emprestado ao meu pai, compramos uns móveis usados lá no Hospital do Câncer e pronto, fomos com a cara e a coragem montar a boutique. Ela ficava na sobreloja, subindo a escada rolante, do lado esquerdo, ao lado da loja de uma senhora que confeccionava chapéus femininos. Meu irmão tinha talento para moda, mas talento nenhum para negócios. Eu apenas tinha boa vontade. Lembro que comprávamos algum tecido na casa Etóile e mandávamos confeccionar. As mulheres gostavam muito dos modelos, mas a produção era pequena e o que vendíamos não dava pra pagar o aluguel. Acho que ficamos uns cinco meses e depois fechamos. A boutique levava o meu nome e infelizmente esse sonho gorou. Mas, nesse tempo, andava muito pela Augusta, antes da boutique, e depois dela, por isso lembro bem das lojas da Galeria Ouro Fino. Uma delas eu não esqueci: era a loja Blow Up, onde havia roupas do estilo da grife inglesa Bibba. Roupas extravagantes e de um gosto refinado. Os produtos para maquiagem da Bibba eram deliciosos. Era o tempo em que as mulheres pintavam muito os olhos, com muitas sombras coloridas e cílios emplastrados de rímel. Estilo Twiggy. E por falar em produtos deliciosos, me lembro da loja da Rastro. Adorava seus perfumes e até pouco tempo usava a colônia. Agora não encontro mais. Só o desodorante. Tinha, também, a loja Prado de cristais. Ficava “babando” na vitrine com seus produtos lindíssimos. Do outro lado da calçada tinha a loja de discos Hi-Fi. Ali entrei várias vezes pra “fuçar” discos dos Beatles e outros. Nos anos 1970 era comum encontrarmos lojas de produtos indianos, afinal era a época dos hippies. Adorava ficar olhando tudo: batas, colares, brincos, incensos, sandálias coloridas e roupas com brilho. No final do eio, lanchinhos no Frevinho, ou, então, um hot dog em frente ao Cine Astor, o melhor que já comi na minha vida. Não tinha igual. Depois dessa época, surgiram os shoppings centers, mas nada melhor do que andar a céu aberto e curtir tudo o que a vida nos proporcionava na Rua Augusta. Onde tudo acontecia! Ou não.
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Na Rua Augusta a loja tinha que ter nome estrangeiro e pomposo, por isso a sua não deu certo. Por exemplo: Messiê Madan Doriê Française. Mário Lopomo
ces Bárbaros, Tropicalistas, Mutantes – os precursores – e a Augusta era a arela desses psicodélicos! Turan Bei
Ao lado do Cine Paulista, na esquina da Oscar Freire, depois da Avenida Paulista, a Augusta tinha três cinemas: Picolino, Majestic e Marachá. Do lado direito do Cine Paulista ficava o Hot Dog, o primeiro fast food da cidade. Só tinha duas opções de sanduíches: o cachorroquente e o hambúrguer e os acompanhamentos eram a batata chips ou molho vinagrete. Nada de refrigerantes: só suco de uva ou de laranja. O melhor era o Hot fudge nut: sorvete com calda quente e paçoca. Concorrendo com a Hi-Fi, tinha a loja de discos Eletroarte, quase esquina da Alameda Franca. Sábado, ao meio-dia, era o ponto de encontro depois das aulas no Dante Alighieri. A loja mais “avançada” que se abriu na Rua Augusta era a Drugstore, entre as Alamedas Franca e a Itu. Uma mistura de moda e design. Só teve uma competidora: outra loja, que não ficava na Augusta e, sim, na Alameda Lorena, entre a Augusta e Haddock Lobo, que se chamava, se não me engano: As últimas nuvens coloridas do céu de Angelita. Meu pai teve no número 2.414 uma loja chamada Menina e Moça, de roupas femininas. Por anos, foi um sucesso, enquanto não enfrentou a concorrência dos shoppings. Tinha provavelmente a melhor loja de brinquedos da cidade chamada Ludy, entre a Franca e a Tietê. ava horas olhando suas vitrines e prateleiras. Israel Beigler
A minha Rua Augusta é da década de 1950. Eu namorava numa casa de chá chamada Yara, onde as paredes eram revestidas com belos painéis de madeira, todos eles cortados com canivetes ou similares, inserindo inscrições tipo: Lary e Jaqueline estiveram aqui em 7 de julho de 1951, e havia corações, flores, centenas de outras inscrições. O chá era ótimo, e a torta de maçã, uma delícia. A minha Augusta tinha o Cine Paulista, quase na Rua Estados Unidos. Depois de reformado, foi destruído pelos jovens freqüentadores, quando da exibição do filme Sementes da Violência, cujos créditos eram acompanhados por uma espécie de música totalmente nova e alucinante: Rock Around the Clock, por Bill Haley e seus Cometas. Minha namorada chegou a rasgar o pano da poltrona com as mãos, totalmente alucinada. Era o tal do Rock and Roll! Lary Coutinho
De 1970 a 1987, mais ou menos, havia na Rua Augusta a maior boate gay do Brasil, chamava-se Medieval, era linda. O chique era ficar na porta e ver vários artistas que eram gays enrustidos entrando na boate, e também a Wilza Carla descendo a Rua Augusta em cima de um elefante para entrar na boate. Fui auditor da perfumaria Rastro, o dono era o Aparício, que morreu assassinado por um garoto de programa, também nunca mais vi o perfume Rastro. Rubens Rosa Fui freqüentadora assídua dessa rua maravilhosa. Tinha também a Casa de Chá Yara, com aqueles bancos laterais fazendo uma alusão às lanchonetes americanas, tudo era um charme só! Lembro também da loja chiquérrima que alugava chapéus, sim, minha mãe cansou de alugar lindos chapéus e capelines, um tipo de chapéu mais leve! Marisa Sarmento Na esteira do cometa Beatles vieram outros, como Novos Baianos, Do-
A cabrada da Rua Augusta Miguel Chammas Na década de 1950, a Rua Augusta ainda era romântica e no trecho da Rua Martins Fontes até a Avenida Paulista, quase não havia prédios e as casas eram maioria. Os transeuntes se vestiam com trajes de uma moda formalíssima; os homens com pesada fatiota de casimira inglesa de cores neutras e escuras, calça, colete e paletó, os ternos de outrora, complementados por sapatos de pelica e na maioria das vezes, chapéus da Ramenzoni. Muitos ainda se faziam acompanhar por bengalas que lhes davam um ar de nobreza absoluta. As damas, com vestidos sombrios e compridos até a altura das canelas, meias de náilon mais grossas e, lógico, de pouca transparência. Trajavam, ainda, invariavelmente, por baixo dos vestidos, combinação e sutiã discretos e, quando o vestido era rodado, usavam umas anáguas bastante engomadas. Portavam, também, quase sempre, uma sombrinha que as protegia dos raios do sol. O comércio dessa rua era bastante discreto formado por alguns empórios, farmácias, sapatarias e bares. No quarteirão compreendido entre a Rua Marquês de Paranaguá e a Rua Antônia de Queirós, além desses estabelecimentos, tínhamos uma loja de Podólogos – na época chamados calistas ou pedicuros – que tinha o sugestivo nome de Salva-pés, onde trabalhava uma baiana amiga de minha mãe de nome Eolina. Essa loja ficava do lado par da rua e um pouco acima de um bazar de artigos finos, que vivia encomendan161
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do bordados finos em ponto de cruz à minha mãe, que bordava divinamente e, assim, aumentando os parcos rendimentos da família. À frente do Salvapés, ficava um sobrado muito grande que sediava um renomado buffet da época, chamado João Freire. Sempre que eu ava à sua porta, o aroma dos quitutes e iguarias era atormentador e me enchia a boca d’água. Mas confesso, o que mais me interessava naquela casa, não eram os doces e os salgados, eram as filhas do seu João, lindas meninas que, poucas vezes, me deram uma simples olhadela. Esse era o cenário normal, além dos bondes camarão e aberto e dos carros, alguns ainda a gasogênio e, claro, o motivo principal desta memória: a cabrada que, todas as tardes, descia a Rua Augusta com o seu pastor a guiá-la e com uma barulhenta e característica sineta anunciando sua chegada. Eu, claro, aguardava esse momento sublime e, mercê dos bordados que minha mãe fazia, estava capacitado a chamar o pastor e com uma caneca de alumínio na mão, pedir-lhe uma porção daquele líquido delicioso. Só de lembrar sinto a boca salivar. Era muito bom São Paulo naqueles tempos.
Rua e alamedas Maria Helena de Andrade Eu morei na Alameda Lorena, 882, desde que eu nasci até os 15 anos. São lembranças de infância e adolescência. O Externato Elvira Brandão, que existe até hoje, em outro bairro, foi a minha primeira escola e ficava na Alameda Jaú. Era um casarão muito bonito que foi demolido para construção de um prédio. Lá pelos 10 anos, eu voltava da escola descendo a Rua Augusta e olhando as vitrines, conhecia cada loja e sabia quando cada uma mudava sua decoração. A Rua Augusta tinha duas linhas de trólebus, o Jardim Paulistano e o Jardim Europa. Para ir ao Clube Pinheiros, a gente tomava o Jardim Europa, que fazia ponto final na Rua Professor Artur Ramos, quase esquina com a Rua Doutor Mário Ferraz. São ruas chiques hoje em dia, mas naquele tempo quase não havia casas. Existia, isso sim, pés de caqui, que na volta do clube meu irmão e outros amigos subiam nas árvores para pegar enquanto eu ficava esperando, porque meninas usavam saias e vestidos com laço na cintura. No lugar da atual Avenida Faria Lima havia só a Rua Iguatemi, a Marginal do rio Pinheiros era apenas a Rua do Rio, e pela Avenida Juscelino Kubitschek ava o Córrego do Sapateiro. Hoje existe o Shopping Iguatemi, o comércio chique da Rua Doutor Mário Ferraz. É tudo muito bonito, mas tem muito trânsito, barulho e fumaça de escapamento. Dá saudade daquelas ruas e alamedas em que não havia prédios, só as casas e seus jardins...
Calçadas por onde andei... José Carlos Munhoz Navarro Se a Rua Bogotá foi o meu jardim da infância e a Guaicurus, o primário, a Groenlândia foi o ginásio, a faculdade, o mestrado e o doutorado, tudo junto. Ali eu aprendi tudo. As ruas sinuosas, casas de muros baixos, jardins enormes, calçadas floridas, os nomes dos países, as pessoas discretas e abastadas, famílias tradicionais, carros importados, choferes elegantes, empregadas uniformizadas, patroas exigentes, cônsules estrangeiros, governadores de Estado, o industrial que foi prefeito, que foi governador, que foi secretário, que foi preso, que foi solto, que foi deputado federal, este ainda está por lá. A nata da sociedade morava lá. A mansão dos Matarazzo ocupando um quarteirão inteiro; o Clube Pinheiros na estreita Rua Iguatemi; um projeto novo que diziam que ia ser um shopping – o que era isso? O Clube Paulistano com suas aristocratas damas e péssimas jogadoras de tênis, que sempre mandavam uma bolinha de tênis por cima do muro. E nós lá, de tocaia, só esperando uma delas voar em nossa direção, na Rua Colômbia. E que bolinhas fabulosas para se jogar taco. Jogar taco era outra delícia. Às vezes, uma bolinha bem rebatida sumia lá longe e a gente conseguia, naturalmente, acabar com o jogo. Outras vezes, uma bolinha mal rebatida se perdia na vidraça do vizinho e a gente tinha que, obrigatoriamente, acabar com o jogo. E o jogo acabava, mas dois ou três dias depois, ada a raiva do vizinho, tudo recomeçava. Na Groenlândia tinha uma vila, onde se reunia a fina flor da criançada para ficar de mal, ora com um, ora com outro, sempre amolando os pais. Bem, adas algumas pedradas, nos filhos e não nos pais, e muitas surras, dos pais e não dos filhos, alguns ficaram de bem e estão de bem – e muito bem casados – até hoje. Andar de trólebus era outra missão bem possível e agradável. Subir a Augusta, escolher um cinema: Paulista, Majestic, Picolino, Marachá ou Regência, esses primeiro, o Astor veio depois. Tomar um lanche no Frevinho ou no Frevo? Ou ao invés disso, que tal descer até o Bolonha e devorar uma empadinha ou duas? E se a gente descesse até a Ayrosa, no Largo do Paissandu, e comesse umas pizzas no balcão? Longas caminhadas da Groenlândia subindo a Rebouças e chegando ao Pacaembu e dali, com a cabeça quente ou não, seguir até o Brás e devorar ou ser devorado por aqueles italianos nos comentários do jogo, sempre numa cantina e sempre com antepastos e sardelas. Tantas foram as calçadas que andei que me envaideço de ter as da Paulista como primeiro caminho. Vim na barriga e no colo fui, mas a maior avenida foi o palco dos meus primeiros resmungos. Precisava mais? Não sou sambista nem nada, mas nasci com a Bela Vista aos meus pés. Não sou poeta nem nada, mas tinha que começar tudo na Paulista. E quando eu me for desta para outra melhor talvez seja enterrado por aqui ao som de
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dois amigos, um com seu tamborim – ta ta ta ta ta, ta, outro com seu surdo, tum tum tum tum, ta ta ta ta tum tum, ta ta ta tum tum, arrastando os pés nesta Paulista que tem trepidante amanhecer das manhãs serenas, o sorriso de lindas morenas, querendo a todos enfeitiçar; Paulista onde um sambista sua vida toca, e num instante sua tristeza enxota e faz a alegria consigo morar; nesta Paulista de tantos sonhadores tropeçando nas calçadas, muito boêmio namorando as madrugadas, sonhando com a sorte grande que ainda não ganhou; nesta Paulista onde aquela menina não fez troça nem pirraça, uma Silvinha menina tão cheia de graça que meu coração... meu coração guardou. Ah, as calçadas por onde andei...
Consolação de trilhos e paralelepípedos Vera Lúcia Montebelere Sinto o aroma das uvaias. Lembro-me, com saudades, dos meninos atrás do muro, divisa com o antigo DAE, Departamento de Água e Esgoto, atual SABESP, na Rua da Consolação, 1209, tentando pegá-las. Indignada, minha avó esbravejava e as uvaias que pouco duravam, iam forrando o chão de nosso quintal, quando não viravam uma deliciosa batidinha. Nosso quintal sempre abrigava, a partir de setembro, uma cabrita que, amarrada a uma corda, eava comigo na Rua da Consolação, de trilhos e paralelepípedos. Todo começo de novembro, avam a residir conosco um galo e um peru, que, vermelho, se esgoelava em responder aos nossos chamados. E a cachaça da batidinha de uvaia, ia, invariavelmente, embebedar o pobre galo. ava, diariamente, um sorveteiro, em sua carrocinha puxada por um cavalo, vendendo um sorvete que, hoje, ainda, guardo o sabor, assim como me recordo de um senhor que tirava na hora leite de cabra e nos vendia em copos. Tinha também o Zé Machadinho, na porta do Colégio Santa Mônica, que ficava na Rua Visconde de Ouro Preto. Ele vendia um melado, branco e rosa, que rendeu boas cáries. Nós, crianças, tínhamos um programa predileto, ficar na janela, nossa televisão. Aliás, ouço o eco das palavras de minha família: — Aquelas meninas não saem da janela! Esse programa produzia belas broncas, porque deixávamos a tarefa escolar de escanteio. Nas redondezas, havia a casa de tecidos da dona Rosa, o armazém do senhor Cibus, a casa do senhor Valdemar “das máquinas”, um grande técnico no conserto de antigas máquinas de costura, um auto-elétrico, o Bar do Gamboa, algumas lojas que trabalhavam com jazigos, por conta do Cemitério da Consolação, o Toldo Dias, a barbearia de meu tio. E, quando chovia, sem saber dos riscos, corríamos de pés descalços na enxurrada daquela rua de trilhos e paralelepípedos. Enfim, essa era a Rua da Consolação, da década de 1950, entre a Rua Piauí e a Rua Dona Antônia de Queirós, onde vivi até os 18 anos.
Fruta no pé e piquenique Lourdes Cecília Bove Ciavata Tenho 64 anos e, na década de 1940, morava na Rua da Consolação perto do Cemitério de mesmo nome. Minha bisavó e suas filhas solteiras moravam na esquina da Consolação com a Dona Antônia de Queirós. Na mesma esquina, elas tinham uma loja de armarinhos e logo depois havia uma chácara com todas as árvores frutíferas que a gente podia imaginar. Ali era o meu mundo! Como era bom colher as frutas no pé! Depois do almoço as tias do meu pai se reuniam embaixo de uma árvore, cuja copa formava como que uma cabana com seus ramos até o chão. Lembro-me delas colhendo laranjas,descascando,conversando e eu comendo as frutas e só olhando, porque criança naquele tempo não podia dar palpites. Outra lembrança que eu tenho é de quando era Pascoela – o dia seguinte ao Domingo de Páscoa –, era um costume italiano a gente sair para fazer piquenique com as tias. Íamos andando com nossas cestas de lanche até o bairro do Pacaembu, que naquele tempo era bem desabitado e ficávamos caminhando pelas ruas como se estivéssemos num parque. Depois sentávamos em algum morrinho e comíamos o nosso lanche, eu e minhas primas e tias.
Quanta saudade da Vila Itororó Delbio di Donato Na verdade minha família morou e ainda mora na Vila Itororó. Fomos viver na vila nos idos de 1940, exatamente no numero 255 da Rua Martiniano de Carvalho, que é o início da Vila Itororó. Foi muito bom, quanta saudade daquela minha infância, quanta brincadeira com meus amigos de infância e moradores do mesmo local. Era romântico e ao mesmo tempo muito lírico, quantas serenatas fizemos na calada das noites de verão, eu, o Wiliam, o Getúlio, o Reinaldo e o John. Apenas para lembrar: quantas árvores havia no local, especialmente na Rua Martiniano de Carvalho, quando era época da poda das árvores pela Prefeitura, nós, as crianças, fazíamos cabanas com os galhos das árvores e brincávamos à solta. Dava até para jogar futebol em plena rua, quanta saudade. E o clube de futebol Éden Liberdade Football Club era nosso clube muito querido, pois nadávamos a valer na piscina e jogávamos basquete e futebol de salão constantemente. Quantos amigos da época: o Getúlio, o Tarcio e o Tercio, o Reinaldo, o Orlandinho, o Wiliam e o John, tinha até o Rubião, sem contar ainda com todos os amigos do Éden, mais as senhoras distintas que lá moravam: dona Tercina, tão bondosa, dona Angelina, mãe 163
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do Orlandinho, dona Antonia, mãe do Arnaldo, e todo o romantismo de quem morou e sabe da história da Vila Itororó, com seus casarões artísticos e tantas e tantas histórias desse local que conheceu o esplendor da riqueza e nobreza antiga de São Paulo.
Vila Itororó, cenário de uma ópera barroca Luiz Saidenberg Não esqueço a primeira vez que reparei nela, subindo a Rua Martiniano de Carvalho. O trânsito parou e pude ver as estátuas de pedra e os mascarões me encarando por detrás dos muros. Pareceu-me um cemitério deslocado de lugar, ou um pedaço do Fórum Romano que houvesse desabado em São Paulo. Voltei outras vezes, munido de câmera, para documentar que aquilo era mesmo real. Visto da calçada, o cenário torna-se ainda mais fantástico: vê-se o solo, muito abaixo, e de lá sobem imensas colunas coríntias, ao lado de fontes boca-de-leão, há muito secas. Contrastando com as imensas colunas, esgueiram-se minúsculos seres humanos. Tudo parece uma daquelas gravuras de Gianbattista Piranesi, com seu aguçado senso de surrealismo, a verdade com toques de pesadelo. A Rua Martiniano de Carvalho, íngreme subida até a Paulista, mantém a dignidade de tempos mais amenos, com muito do seu velho casario resistindo à especulação imobiliária. E tem ainda uma linda igreja, à direita de quem sobe. Mas em nenhum lugar dela esta parada no tempo é sentida como na Vila Itororó, que já era, creio, uma excentricidade na época de sua construção. Li que foi erigida por um rico tecelão português, Casimiro de Castro, se não me engano, que usou materiais de um teatro demolido, colocando tudo ali, as colunas, capitéis, mascarões, cariátides, como num jogo de encaixe, ou um quebra-cabeças montado por um louco. A casa vizinha, acima, também estranhíssima, parece fazer parte do conjunto, com gigantescas faces femininas em cada canto, com seus olhos vazios fitando com espanto as modificações da cidade. Faz parte de um cenário novamente teatral, de ópera barroca. Castro fez a primeira piscina particular de São Paulo e lá dava concorridas festas. Depois tudo mudou, mas a mansão sobreviveu às alterações. Um amigo, que ou a infância no bairro, morador que era de uma simpática vila que ali permanece intacta, conta que, durante algum tempo, a Vila Itororó abrigou o Clube de Futebol Éden Liberdade. E era conhecida como “A Arca”. Foi isto e muitas coisas mais, até o que hoje parece ser um grande cortiço, locado e sublocado por centenas de moradores. Mas, que extraordinário cortiço! Fico pensando se os seus habitantes, humildes e preocupados com o pão de cada dia, têm consciência do espetáculo único que os circunda.
É com muito orgulho que escrevo algo sobre a minha querida vila conhecida como Itororó. Minha família, por parte de mãe, quase toda nasceu e se criou no local desde meados da década de 1930. Vivi minha infância e parte da juventude lá, até 1976. Conheço parte da história do lugar, pois meu avô foi morador e zelador da mesma por muitos anos, desde o tempo da dona Leonor Mendes de Barros. Lembro-me das histórias que a família contava sobre o local; na casa em que meu avô morava ficava a nascente da vila, chamada de Biquinha, de onde saía a água para encher a piscina do Clube Éden. A casa térrea do prédio, hoje conhecida como Casarão, na época era chamada carinhosamente, pelos antigos moradores, de Prédio do Dentista. Há pouco tempo estive lá e fiquei muito triste em ver o estado que se encontra. Trago comigo lembranças dos antigos moradores, das nossas brincadeiras de criança e tudo mais. O Clube do Éden, em especial, era o orgulho de todos que por ali moraram. Hoje, nada se faz para recuperar uma parte da história de São Paulo e do local que um dia já foi cenário de tantos filmes e novelas. Por várias vezes, li e ouvi que a vila seria tombada e restaurada pelo patrimônio histórico, infelizmente isso ainda não aconteceu. Meu sonho é a restauração do local sem esquecer que o Éden e a vila são um só. Cássia
Vila inesquecível Alexandre Glosser e João Roberto Chalet Ferreira Minha querida Vila José Ferreira da Rocha, como se já não bastasse ser palco de inúmeras propagandas veiculadas na televisão e cinema, abrigou famílias honradas que dignificaram e ainda fazem parte da história da cidade de São Paulo. Tudo teve início na década de 1940, quando a família Ferreira da Rocha – Nestor – resolveu construir várias casas quase que simétricas dando aparência européia semelhante às vilas portuguesas e italianas. Essa forma de organização do espaço e de convivência urbana agregava um contingente da população, relacionando seus hábitos individuais e familiares. Em um complexo que crescia e cresce absurdamente, lá se encontra imponente, com algumas características um pouco modificadas, é certo, a Vila Ferreira da Rocha. Recordo-me com carinho dessa vila inesquecível, das brincadeiras de infância como bolas de gude, taco, pega-pega, futebol, jogo de botão e, as meninas, amarelinha, vôlei, peteca, enfim todas as formas e tipos de entretenimento salutar. Nela, muitas famílias foram residir, dentre as quais cito
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algumas que a memória ainda me permite e, desde já peço desculpas pelas não mencionadas que a lembrança me traiu, mas que são merecedoras de todo nosso respeito e iração. Famílias Chalet Ferreira, Spinelli, Battaglini, Ferrer, Faria Torres, Fava, Glosser, Freire, Paschoal, Braga, Cobursi, Pella. Acrescidas ainda das famílias residentes à época nas ruas: Taguá, Siqueira Campos, Fagundes, São Joaquim, Galvão Bueno, Travessa Carneiro e Liberdade, ou seja, as famílias: Monteiro, Camargo Brito, Proença, Yamamoto, Paiva Bueno, Andrade, Ribeiro de Carvalho, Vitagliano, França Filho, Pero, Collucci, Dias Luque, Lima Cruz, Lopes, Sacramento Dias, Montoro, Garcia, Paulo de Tarso, Cardim, Faria da Silva, T. de Mello, Bertoncini, Laganá, Almeida, Cintra, Pasquale, Navarro, Rodolfo Guedes, Medeiros, Feresin, Cesar Muniz, Bueno, Vigorito, Melchor, Nogueira Garcez, Quintino, Quilton, Villares, Spindola, Nice e Favori. São Paulo cresceu à luz, à sabedoria, à honradez dessas famílias que contribuíram e contribuem até hoje, bem como através de seus filhos, netos e bisnetos trabalhando, pesquisando, ensinando, instruindo, enfim, colaborando para o engrandecimento desta cidade e a valorização do ser humano.
Sou um dos privilegiados por ter vivido nesse local e nessa época inesquecível. Minha família, Faria da Silva, residiu na Rua Taguá, entre os anos 1950 e 1970 e eu, meu irmão Marcos e minhas irmãs Nádia, Nancy e Solange freqüentamos a Vila. Inesquecíveis os amigos daquela época e mantidos até hoje. Inesquecíveis o Grupo Escolar Campos Salles, o Colégio Paulistano, a Mercearia do Fausto, o Escadão e a professora de tantos de nós, dona Lilly. Celso Faria da Silva
Fui criado no antigo Largo São Paulo Carlos Salzer Leal Em 1948, aos 10 anos de idade, vim morar na Rua Conselheiro Furtado, 373, situada no bairro da Liberdade, bem em frente ao antigo Largo São Paulo; já naquela época com o nome de Praça Almeida Júnior. Era uma praça muito bonita, entre as Ruas da Glória e Conselheiro Furtado, toda ajardinada, com muita grama, flores e árvores, tudo bem cuidado por um jardineiro da Prefeitura, o senhor Salvador, que era cuidadoso e orgulhoso do seu trabalho. Bem no meio da praça foi construído um majestoso prédio que funcionou por muito tempo como Teatro São Paulo, mas que já na déca-
da de 1940 ou a ser um belíssimo cinema, como, aliás, era comum, na maioria dos bairros paulistanos. Nessa praça me criei, ali convivi com meus melhores amigos, onde brincávamos despreocupadamente. Ali, também, conheci minha esposa, vizinha que morava a poucos metros da minha casa. No Cine São Paulo assistíamos aos nossos heróis dos filmes de cowboy, bem como dos seriados semanais. Com muito orgulho testemunhei a instalação da primeira linha de ônibus elétrico em 1950, a Linha Praça da República, que ia até a Praça General Polidoro, na Aclimação, pois o ônibus ava em frente a minha casa. Pude acompanhar o declínio dos cinemas com o advento da televisão, com o fechamento e o abandono do nosso querido Cine São Paulo, para tristeza de todos nós que ali crescemos.
O Largo São Paulo realmente era uma bela praça. Estive lá, com minha mãe e meu irmão, para assistir a peça O tempo e os Comways. Talvez, no final da década de 1950. Lembro-me de que, defronte à praça, no seu lado leste, havia uma estranha construção, com estátuas e torreão. Era uma sociedade teosófica, ou maçônica. Infelizmente, também nunca mais vi nenhuma foto desse belo largo, completamente arrasado. Luiz Saidenberg
Feitiço da Vila Buarque Luiz Saidenberg Vila Buarque, como o Chico... que, aliás, começou sua carreira nos barzinhos dali, redutos de estudantes da Maria Antonia, como o “Sem Nome”. A Vila Buarque teve seus dias de fascínio também para mim, desde que entrei para a agência MPM Propaganda, em 1975. Ela dava seus primeiros os como grande agência de publicidade paulista, ali num modesto prédio da Rua General Jardim. Nosso prédio dava vistas para trás, na Major Sertório, ao famoso La Licorne, do outro lado da rua. Na calçada de cá, em frente, outra “boate menor”, o Big Ben. Junto a esse, uma casa de cômodos onde os travestis estendiam suas perucas nas janelas, para secar. E ficavam por ali, os bustos nus, peludos, mas com seios! Minha sala dava para esse lado, enquanto o estúdio mirava a General Jardim. Era pitoresco, e com algum perigo. Mas era pouco: quando saíamos às vezes mais tarde, na noite, para chegar à garagem, na Major Sertório, tínhamos de ar por um bando de “travecos”. Ficavam diante do Bradesco da esquina, altos, fortes e com perucas loiras. 165
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Com suas minissaias, botas e blusas de couro preto, lembravam uma cena de “Cabaret”, ou andrógenos astros de heavy metal. Nossos almoços eram quase sempre festivos, graças à boa disposição de meu redator, Sylvio, a “Velha Serpente”. Era nosso mentor, e então íamos ao Roperto e ao Capuano, no Bixiga. Ou, ali mais perto, ao Kakuk e ao Giardino di Napoli. Mas, muitas vezes, só subíamos a General Jardim. Ali, na esquina com a Rua Martim Francisco, havia uma simpática lanchonete, que chamávamos de “Cadeirinhas na Calçada”. O nome já a descreve, e quem chegava era só puxar uma cadeira, armar e logo seria atendido pela enérgica dona do lugar, com seus pratos árabes, esfirras, beirutes e sanduíches. Alguns de meus colegas, como “A Serpente”, não dispensavam um aperitivo, como a afamada pinga de Morretes. Depois ele se escondia em baixo de sua mesa, deitado numa tábua a que chamava “o catre”, e chegava a roncar. Quando dava, eu percorria a pé as ruas da região, observando a antiga Chácara de Dona Veridiana, hoje Clube São Paulo, só para homens. A Santa Casa, o Mackenzie, a Avenida Higienópolis, as várias livrarias do pedaço. A Vila Buarque foi, durante bom tempo, o centro de minha vida amorosa e profissional. A agência, lendária por sua criação e o carisma da boa equipe, fazia com que fôssemos bem recebidos em todos os lugares que freqüentávamos, tendo praticamente cadeiras cativas no Giardino di Napoli e Piazza Colonna. Os donos e garçons todos nos conheciam, e já sabiam até o que seria pedido. Mas nem só de Piazza Colonna, Giardino e Roma vive o homem, então íamos também a lugares mais simples. As “Cadeirinhas na Calçada”, como já contei, onde a truculenta dona tratava aos berros seu amável e constrangido marido; a tradicional Confeitaria Little, na esquina da General Jardim com a Cesário Mota Jr., bem na pracinha, e que servia ótimos pratos do dia, que seriam degustados no balcão, ou, se necessário, na própria cozinha da padaria, entre fornos, chaminés e empregados se esgueirando ao redor. A Little existe até hoje, e muito bem. A Rua General Jardim, ladeira na sua parte após a Praça Rotary, teve outras duas poderosas agências de propaganda, além da MPM. Uma era a SGB, bem lá em cima. E a outra, a velha Norton, sobre a esquina da Little. Houve, ainda, uma outra, se é que é possível classificá-la como agência; o apartamento de meu então amigo Classir, num prediozinho quase chegando à Amaral Gurgel. Se não foi importante como agência, marcou minha vida por motivos bem mais emocionais: lá levava minha namorada para nossos momentos de paixão. Até que o Classir resolveu mesmo transformar o cubículo em escritório, e aí tivemos de procurar novas plagas.
Vivi essa época, e nesses mesmos lugares. Em alguns, por falta de condições financeiras, me contentava em ficar batendo papo com os porteiros e namoricando com as “meninas noturnas”. Quase sempre sobrava alguma coisa de bom no rabo da madrugada.... Miguel Chammas Meu pai freqüentava a Cantina Roperto desde que chegou de Portugal. Íamos todos os domingos comer perna de cabrito e lasanha. Ele dizia que comida portuguesa ele comia em casa, nos restaurantes sempre pedia comida italiana. Ainda hoje freqüento a Roperto e o dono, com noventa e tantos anos, ainda se lembra do papai. Simone Braga Cintra Costumava almoçar nos finais de semana nessa lanchonete da Rua Martim Francisco, a comidinha era boa. No Roperto, costumava ir com o pessoal do trabalho comer perna de cabrito com batatas coradas – delícia! Doris Day
Lembranças da morada na 25 de Março Eduardo Britto Nasci há 42 anos na Rua 25 de Março, filho de baianos chegados à cidade no começo da década de 1950. A família morava no Edifício Alice, nº 171, uma construção já antiga, talvez da década de 1930, onde viviam vários descendentes de imigrantes, principalmente árabes, ou mais exatamente, sírio-libaneses. Atualmente o prédio está decadente, mas sobrevive, e bem poderia ser tombado. Guardo uma lembrança marcante da Praça Fernando Costa, no final da Rua General Carneiro, sem nenhuma barraquinha de camelô. Ali eu ava as tardes jogando bola, e a 25 de Março nem de longe tinha o movimento que tem hoje. Vi a chegada do asfalto por volta de 1969, quando a rua ficou fechada alguns dias, aguçando minha curiosidade de criança. Logo ali, ando sob a ponte da Avenida Rangel Pestana, já na Rua Frederico Alvarenga, ficava o Grupo de Escoteiros Parecis, onde fui lobinho por um ano. O clube ainda está lá, bem como a “cabulosa” escadaria que a dentro dessa ponte, com o mesmo cheiro de urina de quarenta anos atrás. Outra coisa que não esqueço é da chegada da primavera no jardim florido do Parque Dom Pedro II, que no final da década de 1960, com a obras
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do metrô nas praças da Sé e Clóvis e a transferência do terminal de ônibus para lá, nunca mais foi o mesmo.
Na década de 1930, minha mãe morou na Vila Cecília, na Rua 25 de Março, que era residencial e seus moradores árabes ou descendentes. Geralmente, as famílias locavam quartos para reduzirem despesas, mas a família de minha mãe ocupava uma casa sozinha, o que para nós era motivo de grande orgulho. Os maridos, normalmente viajantes, tinham ajuda de suas esposas que costuravam carteiras, roupas, entre outras atividades que hoje são chamadas de artesanato. As moradoras, exímias donas de casa, cuidavam da limpeza da vila, e cada uma queria ter a porta mais limpa do que sua vizinha. À noite, se reuniam em cantoria, com uma alegria muito maior quando seus maridos voltavam. Lembrome da canalização do Rio Anhangabaú, no final da década 1940 e no início de 1950. Depois que mudamos, por muitos anos voltamos à Vila Cecília, agora comercial, para a feitura de esfirras. A carne crua, gorda e temperada, era preparada em casa, colocada numa bacia de alumínio e envolvida em um pano de prato. Saíamos da região da Vila Mariana, Campos Elíseos ou Barra Funda, tomávamos um ônibus e lá íamos ao forno da Rua 25 de Março, onde nos cobravam por unidade pela massa e também para assá-las no gigantesco forno a lenha. O mais impressionante é que fazíamos pelo menos um cento, mas éramos todos magros. Mirça Bludeni de Pinho Há 46 anos, eu morei na Rua 25 de março, 1277, num prédio que ficava quase na esquina da Paula Souza. A rua era nossa: da garotada do prédio. Depois das lições feitas, brincávamos na rua sem problemas e os simpáticos donos das lojas de tecido tomavam conta da gente, com muito carinho. Aos sábados, Mercedes, minha irmã, eu e minhas primas Sandra e Katia, íamos com algum adulto levar a carne moída temperada no forno na Rua 25 de março pra que lá fossem feitas as esfirras. O prédio onde morei está lá firme e forte e minhas primas moram lá até hoje! Márcia Ovando
O mundo do Bom Retiro Douglas Dias Quero falar do Bom Retiro; uma região que oferece muito mais do que as lojas essenciais para o consumo de roupas e artigos relacionados à costura.
Nesse bairro há muitas atrações e lugares interessantes como restaurantes, sinagogas, casas de cultura, faculdade, prédios belíssimos, um parque maravilhoso, o Museu de Arte Sacra e a Pinacoteca. Enfim, são múltiplas opções que terminam com a chegada na região da Luz, onde um espetáculo memorável aguarda o visitante – a arquitetura incrível daquela estação de trem. eando pelas ruas do Bom Retiro, com um olhar aguçado, percebemos os traços das diferentes culturas que formam o bairro e conseqüentemente a história da cidade. É uma família judia ando em frente a um grupo de coreanos, um grego que aparece na porta de seu restaurante ao lado de um árabe que está de olho em um carro chegando. Um muçulmano que estaciona com sua família para fazer compras ou comer um doce exótico na doceria que pode ser húngara, inglesa ou brasileira mesmo. Não importa. A vida multi-étnica toma conta do ambiente e você se percebe parte de um mundo dentro deste aqui: o mundo do Bom Retiro.
Mistérios e delícias do Brás José Carlos Munhoz Navarro Recordo do velho e querido Brás com seus mistérios e delícias. Quantas discussões sobre futebol eu saboreei no Castelões, beliscando também as iguarias que o gerente esparramava no balcão. Quanto provolone e garrafas de vinho, aquelas bojudinhas, enfeitadas com palhinhas penduradas nas prateleiras, quantas palavras desconhecidas, quanta saudade. E a igreja então? Missa solene com aquelas moças todas de branco, de fita azul no pescoço, missa cantada, em latim, as vozes do coro emoldurando e a raiva contida quando o padre se dirigia ao púlpito e eu sabia que a missa iria ser longa, porque ele ia falar, falar, falar... Mas tenho que ser desculpado, eu era criança e não sabia nada. Intermináveis procissões, pés se arrastando, velas bruxuleando ao vento. Que medo quando a Verônica fazia seu canto. Eu era criança e não sabia de nada. Quando não tinha futebol, tinha o Cine Glória ou então o Piratininga, o maior do Brasil, com 1700 lugares se não me engano, ou o Cine Oberdan, mas esse era mais difícil porque tinha que atravessar as porteiras, o Largo da Concórdia e aí complicava. O mais legal no Brás, depois das cantinas e da igreja, era conviver com aqueles italianos que falavam alto, gesticulavam e que traziam sempre algum queijo ou outra delícia qualquer do Mercado Municipal. E toca jogar tômbola depois do almoço. Só não gostava quando alguém trazia na sacola uma galinha viva que iria virar ensopado no dia seguinte. De engraçado só a sacola mexendo e uma cacarejante cabeça aparecendo de vez em quando sem saber o que lhe estava reservado. 167
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O Brás dos melhores pizzaiolos
Falecido Brás
Isidoro Emilio Taddeo
Zélio Andrezzo
Quem pode esquecer dos cines Universo, Roxy, Babilônia, Brás Politeama, Piratininga, Rialto, Savoy, Oberdan, Roma; do teatro Colombo, das cantinas 1060, Balila, do Lucca, da Zilda, do Brazeiro, do Marinheiro, que ainda existe, e dos restaurantes Tiradentes, Garoto, Glória, Copacabana, Santa Cruz e da Confeitaria Guarany e seus maravilhosos marzipans. Saibam os senhores que os melhores pizzaiolos de São Paulo surgiram do Brás; quem provou uma pizza do Tiradentes ou do Santa Cruz não esquece jamais. No Brás existiam as maiores e melhores lojas, empresas e indústrias, basta citar a Casas Pirani, a Exposição, a Sensação Modas, Paschoal Bianco, Cinzano, Indústrias Matarazzo e Scarpa. O cachorro-quente mais gostoso da minha vida comi nas Lojas Americanas – atravessando as porteiras do Brás em direção ao Centro. Do meu tempo de garoto no bairro, é impossível esquecer as lindas normalistas do IFEPA – Instituto Feminino de Educação Padre Anchieta – e da boa qualidade de ensino dos colégios Trinta de Outubro, Liceu Acadêmico São Paulo, Romão Puiggari, Eduardo Prado, Santos Dumont, Sarmiento e tantos outros. Nasceram ou viveram do Brás, grandes nomes da vida artística e cultural nacional, como Nelson Gonçalves, Isaura Garcia, Francisco Cuoco, Francisco Milani, os doutores Dráusio Varella e Pinotti; artistas plásticos como Salvador Rodrigues, Oscar Pereira da Silva, Vergani e muitos outros; isto sem contar Libertad Lamarque, Hugo del Carril, Francisco Alves e Orlando Silva, que se apresentaram no bairro. Sei que muita gente vai dizer que tudo isso é ado e os tempos são outros. Concordo; mas ninguém vai tirar de mim essas lembranças... que vêm acompanhadas do sabor do pedaço de pizza do Tiradentes, do picolé de limão artesanal do bar da esquina, do macarrão da vovó e do “dem dem dem” das porteiras do Brás, ao fechar para a agem do trem.
No começo do ano de 1964, tinha um irmão que morava na Avenida Celso Garcia, próximo ao meu bairro, na Vila Maria. Aos domingos, todos se encontravam em frente ao restaurante O Garoto, na esquina da Celso Garcia com a Bresser. Ali, com as calças grudadas da cintura aos joelhos, para baixo uma boca de sino, completando com uma botinha salto carrapeta, ávamos longas horas. Paqueras, encontros, tudo de uma forma muito saudável; à tarde no Cine Universo, os filmes do Elvis eram os preferidos, pela quantidade de garotas no cinema, as filas eram imensas e as tardes eram realmente festivas. À noite os bailes tinham o embalo com Twist and shout e É proibido fumar. O Brás era um bairro que tinha uma rapaziada bonita e saudável. Os encontros eram normalmente marcados em frente à Igreja São João Batista e do outro lado da rua havia uma casa de massas chamada Pastifício Aracy. Meu ônibus predileto era o Penha-Lapa, que afinal servia a todo mundo. Ali conheci um rapaz que quis comprar uma calça que eu havia trazido de Santos sem saber de sua fama: era a calça Lee. Freqüentei esse bairro por alguns anos, até que um dia tudo foi ficando sem som e sem cor, talvez pelo ofuscamento do brilho da juventude. Os rapazes sumiram, alguns cinemas fecharam e as garotas desapareceram. Porém, guardo esse período como uma página de ouro de um dos livros da vida.
Meu falecido tio, Daniel Finguerman, que foi comerciante na Rangel Pestana – O Rei das Malas – disse-me, certa vez: — Já lá se vão quase cinqüenta anos que vi a apresentação no Oberdan do grande Carlos Gardel! Nelson Coslovsky
Também vivi nessa época de ouro. Morei na Carlos Botelho, esquina da Bresser. Lembro de quando o Pastifício Aracy Lourenço & Braga colocou na vitrine que dava para a Celso Garcia uma máquina de fazer capeleti e ravióli. As pessoas formavam imensas filas para ver a máquina fazer macarrão sozinha. Heitor Felippe Aquela era a época das calças Lee, Lewis e Cone, que eram compradas na Pajé. O Pastifício Aracy sempre recheado de queijos, massas, vinhos, azeitonas e pastasera, o point para as compras da refeição de domingo. Entre os restaurantes, além do Garoto, havia o Tiradentes, Brazeiro, Santa Cruz e o Porcaro. Para o aperitivo, antes do almoço de domingo, era parada obrigatória o Fartura, Juriti e Cinco Esquinas. Pedro Nastri
O cinema mais gostoso do Brás era o Cine Glória, com suas poltronas de couro e bomboniére fantástica. Boas lembranças, e gostosas as pizzas do Castelões. Roque Vasto 168
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Meu carro vai sozinho para o Brás Isidoro Emilio Taddeo Nasci no bairro do Brás, quando as vizinhas punham as cadeiras na porta da rua para conversar, quando se levava tombos magníficos caindo dos trilhos do bonde Rubino de Oliveira; quando se jogava bola na Rua Manoel Vitorino, quando se malhava o Judas feito com roupas velhas dos tios e vovós. Colecionávamos as figurinhas das Balas Futebol, fazíamos fogueiras nas ruas para comemorar São João e São Pedro; ficávamos extasiados com as vitrines das Casas Pirani no Natal, saboreávamos um pedaço de pizza no balcão, como se fosse a mais fina iguaria. Nossa grande preocupação era ar de ano na escola; mal sabíamos das verdadeiras preocupações que viriam com o tempo. Que saudades dos cinemas Brás, Politeama, Roxy, Universo, Piratininga, Savoy, Rialto. Dos seriados do Zorro, do Fantasma, Roy Rogers, dos meus amigos da Rua Ricardo Gonçalves, enfim, meus caros paulistanos, que saudades da minha infância e juventude no bairro do Brás. Quem nasceu ou viveu lá, não consegue esquecê-lo jamais. Moro no Morumbi e levo mais de uma hora para chegar ao trabalho no Brás e ao rever meus amigos, minhas ruas, fico feliz e o sacrifício compensa. Como diz a minha esposa: o meu carro vai sozinho para o Brás.
Nasci e morei no Brás, e também lembro dos saudosos cinemas da época, como Piratininga, Glória, Oberdan, Universo e Santo Antônio. As matinês aos domingos eram uma festa. Quando saíamos do cinema às 5 horas da tarde e íamos ando pelos portões, o pessoal já estava sentado nas cadeiras ou nos degraus da entrada. Pilar Tive uma fábrica de brinquedos na Rua da Alfândega, pertinho da fábrica das Balas Futebol, do falecido Jordão Bruno Sacomanni, na Rua do Gasômetro. Cá pra nós, as balas eram horríveis, a gente comprava por causas das figurinhas. Fico triste quando volto ao Brás e vejo que tudo desapareceu sem deixar vestígios. Adolpho O Brás é também inesquecível para mim que vivi três anos seguidos no SENAI – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial. Também perambulei por esses cinemas e juntava figurinhas das Balas Futebol, fabricadas pela A Americana, da Rua do Gasômetro, local onde trocávamos as carimbadas por prêmios. Um dia minha mãe me mandou ir à casa da minha tia no bairro do Limão. Fui firme. Quando vi, o bonde estava virando a Rua Vasco da Gama, entrando na Rua do Gasômetro. Bairro
do Limão? Que nada, eu estava tão viciado em ir ao Brás que peguei o caminho inverso da Praça da Sé e quando vi, o Brás estava bem à frente. Era o vício. Ou, então, o amor pelo Brás. Mário Lopomo
Saudades do antigo bairro do Brás Domingos Ricardo Chiappetta Nasci no bairro do Brás, na Maternidade Dom Pedro II, em 1941. Lembro do jardim da infância no Liceu Vera Cruz, com a professora dona Yaya, o mesmo Liceu em que o ex-Presidente do Brasil lecionava como professor e atirava giz nas cabeças dos alunos do curso ginasial. Brás memorável, na mesma Rua Piratininga, além do Vera Cruz tinha a escola Getúlio Vargas e, posteriormente, cursei o primário no Grupo Escolar Romão Puiggari, na Avenida Rangel Pestana. No 1º ano a professora Otacília, no 2º ano dona Luly, no 3º ano dona Yolanda e dona Aurélia, no 4º ano dona Elvira Sansone. Que saudades do Romão Puiggari, até hoje está idêntico e deveria ser tombado pela beleza que ostenta. Saudades do futebol de rua, da bola de meia velha das nonnas, do pega-pega meninos contra meninas, pular corda, bicicleta, patinete, bola de gude, empinar papagaio, da Rua Professor Batista de Andrade, tranqüila, com as famílias após o jantar reunidas nas calçadas, das ruas Mello Barreto e Caetano Pinto, onde tinha jogo de futebol entre os meninos e torcida feminina. Já nessa época meus nonos eram proprietários da Adega do Braz, na Rua Jairo Góes, ao lado da Igreja Bom Jesus do Brás, que foi Cantina e Pizzaria desde l926, posteriormente de meus tios Dionizio e Vicente Forte e após, com nossa Família Chiappetta, minha mãe Lúcia, meu pai Carmine Chiappetta e eu, Domingos Ricardo, até 1982. Como era formoso e belo o bairro do Brás, colado ao bairro da Mooca. As tradicionais famílias com a miscigenação e integração representavam um só País. Hoje em dia restam duas cantinas, diversas comercializações de artigos de couro e plásticos. Permanecem as igrejas e o Grupo Escolar Romão Puiggari. Saudades igualmente do 30 de Outubro, escola técnica da Família Allegretti, onde tive a honra de lecionar e ser paraninfo em muitas formaturas. Como não lembrar do Senai Roberto Simonsen, das Indústrias Matarazzo, das Balas Futebol – a Americana, aonde ia sempre retirar prêmios ou trocar as difíceis figurinhas carimbadas para encher o álbum; ou do bafa na calçada da Rua do Gasômetro, onde também nossas mães nos levavam para aspirar fumaça e curar a bronquite. Cantinas 1060, Balilla, Castelões, La Bohème, Avenida Chic, Adega do Braz, as quitandas, os empórios com venda na caderneta para posterior pagamento e muitas outras lembranças... 169
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Querida dona Aurélia, professora do quarto ano daquele inesquecível grupo escolar. Tenho um carinho especial pela dona Aurélia, e muito dos ensinamentos e ética por ela ministrados nortearam a minha vida nestes 59 anos. Nosso Brás, cheio de muitas lembranças em cada esquina, em nada se parece com o bairro de hoje, todo descaracterizado e “desitalianado”. Roque Vasto Eu nasci no Brás, na esquina da Rua Assumpção com a Travessa Lameirão, estudei no Grupo Escolar Romão Puiggari e no 30 de Outubro, conheci a cantina na Rua Jairo Góes quase na esquina com a Rangel, onde também tivemos o inesquecível Avenida Chic, com sua fabulosa pizza-balcão. Infelizmente, do nosso Brás resta muito pouca coisa, o que é uma pena. Paulo Roberto d‘Alessio de Senna Meu sogro é o grande José João Altafini, apelidado Mazzola, que, em 1959, transferiu-se para a Itália, jogando no Milan. Mais tarde, jogou também pela seleção Italiana em 1962, fato que, acredito, arrepende-se até hoje. Pedro Nastri
Chuva de louças Roque Vasto Voltamos ao ano de 1956. Estamos no bairro do Brás, mais exatamente na Rua Assumpção. Minha família acaba de se mudar da Penha para a Cidade. Os hábitos são diferentes, a língua é diferente, com muitas palavras esquisitas que eu tive que aprender a usar – e a falar cantarolando – e apesar de minha pouca idade posso sentir as diferenças. Eu estava acostumado a andar o dia inteiro descalço, pisando na terra, subindo em árvores, respirando um ar leve e fresco, mas aqui, o cheiro é de fumaça de ônibus e caminhão, as pessoas andam todas vestidas, os meninos usam alpargatas ou sapatos de sola de pneus, as ruas estão sempre cheias de gente. Não há lugar para brincar! Pouco a pouco vou me entrosando com a turma da rua, e sinto um alvoroço ao dizerem que está chegando o Natal, e que na noite do Ano Novo todos iriam bater poste. Eu não sabia o que era aquilo, mas concordei imediatamente em acompanhar a turma. O Natal chegou, e na véspera, à meia-noite, tinha a Missa do Galo na Igreja São Vito. Ficava lotada e as turmas de todas as ruas faziam o pacto do Natal. Ninguém se hostilizava, tudo era alegria. Dia 25, logo pela manhã, todos os meninos e
meninas desfilavam na rua com seus presentes recém-ganhos, e quase sempre muitas bicicletas na calçada, carrinhos de rolimã, revólveres de espoleta e sorrisos de alegria. Após o almoço ouvia-se gritos em quase todas as casas. “Cincuina!” Cartela! Era o jogo de tombola, tão popular. Mas o objetivo era falar da chegada do Ano Novo, e chegou, pontualmente, às 23h45. A meninada já estava reunida na esquina da vila, e na mão de cada um via-se um martelo, um pedaço de cano, um objeto de ferro. Parecia que íamos para uma briga mortal. Mas não, felizmente a sirene da Gazeta tocou, anunciando a meia-noite, e a turma correu para o primeiro poste, rodearam-no e começaram a bater incessantemente. Os postes eram de ferro, e soavam como se fossem sinos, o som era alto e duradouro e dava diversas tonalidades, era quase uma sinfonia. Uma jarra de água ou zunindo sobre as nossas cabeças, e espatifou-se no meio da rua. O que se seguiu foi um festival de louças que eram atiradas de dentro das casas para a rua, e em poucos minutos o leito da rua estava forrado de cacos de louças, com os sons das travessas, xícaras, bules e pratos quebrando na rua de paralelepípedos. Eu não entendia nada. Mas uma menina me explicou: — É o dia do spaca tutto vechio... Uma outra esclareceu: — Hoje é o dia de jogar as coisas quebradas fora, para dar mais sorte no Ano Novo! Mais tarde vim saber que os povos da baixa Itália, assim como os povos da Grécia, tinham a superstição de que a cerâmica quebrada ofendia aos deuses, pois deixavam de ter beleza e perfeição. Velhos tempos de um Brás que não mais existe, de uma colônia de imigrantes com filhos nascidos no Brasil, e de uma infância maravilhosa nesta cidade de São Paulo, ou San Paolo, de todas as raças, povos, credos, costumes e deliciosas comidas.
Eu também cheguei a bater nos postes, mas depois que eles foram concretados, ficou sem graça. Além do som ser chocho, ele lascava inteiro, e nas machucaduras apareciam ferros enferrujados. Tudo o que era gostoso foi se esvaindo, ficou somente a lembrança, e a saudade. Mário Lopomo Nos meus 16 anos de idade, também gostava de bater poste. Meu avô morava na Rua 21 de Abril quase esquina com a Rua Bresser. Miguel Chammas
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Porteiras do Brás Pedro Nastri Antigos moradores do bairro ainda se lembram das porteiras do Brás, que ocasionavam graves problemas, devido ao crescimento da cidade. Em 1937 os poderes municipais se dispam a solucionar o problema através da construção de uma agem, na própria Avenida Rangel Pestana. A Companhia Construtora Nacional S/A, vencedora da concorrência se propôs a construir um viaduto em forma de “U”. Aguardava a ordem de início das obras, quando a mudança de governo veio tornar nulo o que se havia projetado. Em maio de 1946, o engenheiro César Lacerda apresentou à Comissão de Obras da Câmara Municipal, cópia do projeto que ele encaminhara em tempo hábil, à Prefeitura, projeto esse em que estudava a solução do problema. Mais um projeto que iria ser arquivado como tantos e tantos outros... Finalmente, o Governador do Estado e o Poder Municipal resolveram solucionar de vez o caso. Abriram uma concorrência pública para a execução das obras de um viaduto que, partindo da Rua do Gasômetro, subisse em rampa de 7,5% e, após transpor as linhas férreas, descesse para o Largo da Concórdia, com a largura de quinze metros. Venceu a concorrência a Companhia Construtora Nacional S/A, desta capital, entidade que vinha há muito tempo se dedicando à obras de grande vulto, como a Ponte das Bandeiras e a Ponte do Rio Pequeno, da Via Anchieta. O seu excelente corpo de engenheiros e de técnicos se colocou em campo e, finalmente, exatamente no dia 25 de dezembro, em cerca de 270 dias, pôde entregar aos Poderes Públicos a obra terminada, a obra que veio resolver o eterno problema das porteiras do Brás.
Eu era garoto quando em dia de eleição o papai ia votar no Colégio Padre Anchieta e pra ir mais rápido, me deixava com o seu Jasão, que era o operador da estrada de ferro que comandava as porteiras do Brás. Pra mim era uma alegria poder estar naquele lugar, ver o movimento dos trens, o trânsito dos automóveis. Hoje em dia existe um viaduto chamado Maestro Alberto Marino, que substituiu as porteiras – mas que no fundo não resolveu muita coisa, já que o trânsito vive permanentemente congestionado. Ângelo Colella Nasci no bairro em 1956, conheci todos os seus cinemas e posso afirmar que o maior cinema do Brasil era o Cine Piratininga, com mais ou menos 2500 lugares, situado na Avenida Rangel Pestana, ao lado do Grupo Escolar Romão Puiggari. O Cine Universo ficava na Avenida Celso Garcia, entre as Casas Pirani e a Rua Bresser. Esse cinema tinha
um teto que abria nas noites de verão para que seus freqüentadores pudessem contemplar o céu estrelado durante os intervalos de um filme a outro. Infelizmente esse cinema não existe mais. Ali foi erguido um edifício. Também na Avenida Celso Garcia, próximo ao nº 500, existia o cine Roxy, onde hoje é a sede de uma igreja evangélica. Mais à frente, cerca de uns cem metros, bem na esquina com a Rua João Boemer e defronte a Igreja São João Batista, existiu o Cine Bruni Brás, um cinema bem moderno para a época. Pedro Nastri
O Brás dos Imigrantes Neuza Guerreiro de Carvalho Conheci o Brás dos imigrantes italianos e espanhóis. Das ruas Benjamin de Oliveira, que homenageia o primeiro palhaço negro brasileiro, e Correia de Andrade. Da Rua Benjamin de Oliveira poucas lembranças, mas a imaginação, alimentada pelas muitas histórias dos pais e avós, faz entrever as casas simples, habitadas por duas ou três famílias, que se contentavam com um ou dois quartos, uma cozinha, e uma “casinha”, geralmente no fundo. Janelas e portas diretamente nas calçadas. Convívio forte entre os moradores em pequenos espaços materiais, com seus entreveros, suas “fofocas”, suas brigas, mas também com participações totais em festas, em conversas nostálgicas de uma pátria distante, em cantos saudosos. Da Rua Correia de Andrade mais lembranças fotográficas das casas, só um pouquinho melhores. A proximidade de uma grande avenida, a Rangel Pestana com a “venda” de que nos servíamos, o Empório Barsotti, a loja de móveis Paschoal Bianco e a loja de presentes e importados, as Casas Pirani. Rua da Escola 7 de Setembro com a professora Etelvina, que já tinha ensinado meu pai e que também me ensinou as primeiras letras. O Brás do meu primeiro grupo escolar, o Romão Puiggari, um belíssimo prédio de concepção de Ramos de Azevedo e que já tinha quarenta anos quando eu o conheci. Está lá até hoje, ocupando seu espaço privilegiado bem em frente à igreja do Brás. O Brás da construção de uma agem subterrânea para pedestres, ligando a calçada da igreja com a calçada do Grupo Escolar. Não existe mais, substituída pelas obras do Metrô, mas nunca foi esquecida pela movimentação, confusão e problemas trazidos pela sua construção. Na minha visão de menina era um “buracão” amedrontador que fez parte do meu cotidiano durante algum tempo. O Brás dos primeiros cinemas que conheci, do Mafalda e do Olímpia, e das matinês sabidas, mas não freqüentadas por mim. A memória auditiva que 171
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permanece do barulho das sirenes das “assistências”, quando o Cine Oberdan, no atual Largo da Concórdia, foi cenário de uma tragédia com muitos mortos e dezenas de feridos, a maioria crianças da matinê das 14 horas. O Brás do footing que eu via de longe, mas não entendia nos meus 8 anos. Dos carnavais, dos corsos da Avenida Rangel Pestana repleta de serpentinas e confetes que forravam o chão. Só até aí vai a minha lembrança do Brás. Mudei de bairro, mudei de espaço, outras lembranças, outras vivências.
Meu Brás Roque Vasto Quando fui morar no Brás, na Rua Assumpção, era o ano de 1957. A escola onde cursei o primário era o Grupo Escolar Romão Puiggari, onde tive o privilégio de conhecer uma dedicada e inesquecível professora, dona Aurélia. Naquele tempo, a travessia da Avenida Rangel Pestana só era permitida aos alunos se fosse pelo túnel, cuja entrada era junto à calçada da Rua Monteiro e a saída, em frente ao portão da escola. Outra figura sempre lembrada é a do guarda-civil que parava o trânsito para as crianças atravessarem a Rua do Gasômetro. O guarda era amigo de todas as crianças e as chamava pelo nome. Lembro bem da Papelaria Cruzeiro, do bar do Arthur, da Loja do Silvio, do futebol jogado ora na rua, com o gol no portão da fábrica Mariângela, ora na Travessa Lameirão para o desespero e ameaças do Tandu, que trabalhava no Mercadão durante boa parte da madrugada, e que tinha de dormir durante parte do dia, nos campos de terra do Parque Dom Pedro. O pessoal da Rua Assumpção brincava na calçada com os carrinhos de rolimã, para o tormento da vizinhança e desespero da dona Olívia, uma velhinha que havia sido vedete na década de 1930 e que trabalhava durante a noite em um cassino que ficava junto às Casas Pirani. Como falei em jogar futebol no parque Dom Pedro, não posso esquecer de contar que após os jogos, todos suados em bica, íamos tomar água no chafariz da Assembléia e bebíamos aquela água imunda que circulava entre o dique e voltava a ser esguichada pela boca dos leões, mas nós acreditávamos que a água vinda da boca dos leões era limpa. A maioria dos moradores era de origem italiana e freqüentava a Igreja São Vito, onde fui coroinha e onde se realizavam as memoráveis quermesses.
Rua Assumpção, me lembra da escola do Senai, que fazia esquina com a Rua Monsenhor Andrade. Em frente tinha a fábrica do Matarazzo,
acho que era a Mariângela. Não me lembro bem. Ali tinha o homem que vendia Raspadinha, groselha com bastante gelo no copo, e queijadinha. Íamos jogar bola no Parque Dom Pedro, perto da antiga sede da Assembléia Legislativa. O jogo só terminava quando vinha o guarda da assembléia ou quando a bola caía no rio Tamanduateí. Mário Lopomo Desde meu nascimento até os meus 25 anos eu morei no Brás, nas vizinhanças da Rua Bresser e da Rua João Boemer, perto de tudo que era conhecido na cidade de São Paulo. Lá nós tínhamos as Casas Pirani, que patrocinaram os primeiros programas de televisão da rede Tupi, as tais Grandes Atrações Pirani. Também vimos nascer as Lojas Eletroradiobrás e tínhamos o comércio de roupas da Rua Oriente. Tínhamos os bondes elétricos. A tal garagem dos bondes ficava no final da Avenida Rangel Pestana e início da Celso Garcia, na confluência com a Rua Rubino de Oliveira. Nunca entendi a troca de nome da avenida, pois era a mesma. Tínhamos o Porcaro, com sua adega onde comprávamos vinho a granel. Lá existiam vários tonéis de suave e seco. Na Rua Costa Valente, se não me engano, também tinha a academia de luta livre que se apresentava na Record, canal 7, todos os sábados após os Astros do Disco. Lembro do Cigano, um lutador, pois estudei com seu sobrinho. Era tido como o sujo das lutas, mas isto era só encenação. Ali perto, na Celso Garcia, tinha a confeitaria do Bauducco, que agora é uma baita empresa. Tinha também as Lojas Clipper e A Exposição onde comprávamos os terninhos de domingo. Na Rua João Boemer tínhamos o Teixeira, com seus queijos e na esquina da Bresser com a Celso Garcia tínhamos a padaria O Garoto. Tinha o Cine Roxi, que hoje é a sede da Igreja Universal e tínhamos o Cine Universo com seu teto solar. O Roberto Carlos comemorava seu aniversário nesse cinema. Tinha o Cine Teatro Oberdan e o Cine Piratininga, então o maior do Brasil. Tinha o Cine Babilônia que depois ou a ser o depósito da Loja Eletroradiobrás. Tinha o Teatro Colombo no Largo da Concórdia e a Estação Ferroviária Roosevelt. Aliás, foi ao redor dessa estação que começou o desembarque da migração nordestina. Até então a população da região era quase que exclusivamente formada de descendentes de italianos, como eu. Estudei na Escola Roca Dordal, na Rua Marajó, atrás da Pirani e depois no Colégio Sarmiento, na Rua 21 de Abril com a José Monteiro. Minha juventude, ei no largo da Paróquia de Santo Antônio do Pari, onde nos reuníamos numa padaria conhecida como A Balneária. Todos lá em volta, Belém, Brás, Pari e Mooca, eram nossos conhecidos. Era a cidade de São Paulo que nós conhecíamos na década de 1950 e 1960. A. J. Pissuto
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Leilão na Procissão Mariana Guglielmi Capobianco Na Rua Polignano a Mare, no Brás, na travessa da Avenida Mercúrio e paralela à Rua do Gasômetro tem a Igreja São Vito Mártir, protetor dos bareses, italianos descendentes de Bari, Itália, cuja data se comemora no dia 15 de junho. Antigamente, mais ou menos uns trinta anos atrás, durante a procissão do santo eram realizados leilões em cada esquina. Mas, pasmem, os leilões envolviam altas quantias para carregar o santo por um quarteirão, e a disputa era feita entre os cerealistas da região para mostrar o poder, inclusive as esposas dos mesmos usavam nessa procissão, casacos de pele e todas as jóias que tinham.
Lembro-me perfeitamente que, na década de 1950 e início dos anos 1960, os leilões eram mesmo realizados a cada quarteirão. Para mim, a parada em cada quarteirão era um alívio, pois naquela época eu era coroinha da Igreja São Vito, cujo pároco era o padre Hugo, e os leilões davam tempo para descansar os archotes que levávamos. As procissões eram um acontecimento no bairro, e as vizinhas comentavam o desfile de modas e riquezas. Roque Vasto
Nesse bairro vivi muitas alegrias Luiz Morais Nasci no bairro do Tatuapé, porém toda a minha infância e parte da juventude vivi no Brás, na Rua 21 de Abril, 634. A casa onde vivi parte da minha vida, hoje não mais existe, era uma daquelas casas bem antigas, com quartos grandes e tetos altos. Era vizinha à Vila Lameirão. Naquela época, lá moravam muitos imigrantes, dentre os quais os italianos e portugueses. No começo da década de 1970, mais precisamente no ano de 1971, a Vila Lameirão ficou eternizada no cinema. Lá foi locação, em sua maior parte, de um filme de Comédia a la Mazzaropi. O filme chamava-se O Jeca e o Bode. Na época eu era bem garoto, tinha por volta dos 10 anos de idade e até participei do filme como figurante em algumas agens. Nesse bairro vivi toda a alegria da minha infância. Lembro dos “quadrados” ou “pipas” que soltava com amigos: Dema; Marcus; Amauri e a Nilce. Foi uma época mágica, apesar da cena urbana e cinza. Lá cresci, estudei no Colégio Rocca Dordal, na Rua Marajó. Também estudei no Colégio Luigi Pirandello, onde conclui o ensino médio. A minha infância foi humilde, contudo tive muitos
momentos de felicidade. No mesmo bairro moravam os meus avós maternos, que hoje não estão entre nós. O meu primeiro emprego foi na Reiplas, isso em 1978, na Rua José de Alencar. Hoje moro no nordeste, mais precisamente em Maceió, Alagoas, isso desde o ano de 1993. Mas toda vez que vou a São Paulo não deixo de andar nas ruas onde vivi parte de minha vida; chego a ficar com os olhos marejados pela emoção e saudade.
Meu tio Felix era dono de uma marmoraria, que ficava na Rua da Alegria, quase em frente aonde havia o presídio. ávamos muitos fins de semana lá, nosso local de reunião familiar. Eu brinquei muito nessa rua, com primos e primas, mas o que mais me marcou foi o cheiro de cigarro que vinha de uma fábrica próxima, chamada Castelões. Ivette Moreira Estudei na Rua Roberto Simonsen, na escola do mesmo nome, 1954 a 1956. Em frente à escola tinha a fábrica do Matarazzo. Quantas caminhadas gostosas pela Rua do Gasômetro, onde um dia caí do bonde. Tenho saudade do Largo da Concórdia, das casas em que a soleira da porta já era na rua; do Cine Universo, Piratininga. Da Rua 21 de Abril, lembro dos velhinhos irmãos que fabricavam molas espirais para sofás e poltronas. Mário Lopomo Desde tenra idade até meus 15, 16 anos, todas as quintas-feiras para o Brás me dirigia, exatamente para uma casa na Rua 21 de Abril, quase na esquina com a Rua Bresser, onde residia meu avô paterno, senhor Salvador Sito, dentista prático e protético que ali também mantinha seu consultório. Então eu ava uma tarde semanal ali, brincando no quintal com uma ameixeira maravilhosa ou indo à quitanda próxima para comprar coco em pedaços para comer. Foi uma época muito feliz. Miguel Chammas
Pequena Estação do Brás Juan Jaime Martín Ruiz Nasci em Madrid, em 1952, mas ainda menino fui para o Brasil, e morei muitos anos no Brás, até 1964 ou 1965; depois voltei para a Espanha e nunca mais vi o meu antigo e querido bairro. Andei olhando na internet um mapa das ruas de São Paulo. Eu morava, em menino, na Rua Oiapoque, que 173
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começa na Rua do Gasômetro e acaba na Avenida Rangel Pestana; avenida na qual ficava o Grupo Escolar Romão Puiggari, onde eu estudei e aprendi a escrever o português. Relembro que adorava ver os trens ando. Quando as porteiras do Brás cortavam o o das pessoas e dos carros era para mim uma festa, pois um trem vinha aí. Também gostava de andar pela estação e ver os trens parados. E lembro que algum domingo ou sábado, íamos, meu pai e eu, até Santos, num trem muito bonito, da Estrada de Ferro Santos-Jundiaí. Quando evoco aquele tempo sinto uma saudade muito grande. Até escrevi um poema dedicado àqueles trens, àquelas porteiras do Brás e àquela pequena estação. A ESTAÇÃOZINHA Por vezes relembro aquela estaçãozinha. Eu ficava tanto tempo lá, vendo os trens arem... Uns brilhantes e rápidos, altivos e belos. Outros lentos, intermináveis. Levavam gado, levavam mercadorias. Levavam tanta coisa... Havia os que também paravam na pequena estação e lá se demoravam para que pudéssemos vê-los, e até subir neles. Às vezes, penso que as pessoas são como aqueles trens da minha infância: eles andavam pelos seus trilhos e nós andamos pelo nosso destino. Uns rápidos, outros lentos, Outros, até paravam na estação. Mas, afinal, todos avam. Mas, afinal... apenas fica a saudade daqueles que outrora amamos na nossa efêmera existência.
Também estudei no Grupo Escolar Romão Puiggari, nos idos de 1948 a1952. Fui ainda “coroinha” na Igreja São José que ficava ao lado do
grupo escolar. Nasci e cresci no Brás, na Rua Fernandes Silva, onde tinha o clube da Várzea denominado União do Brás. Havia também o São Victo F.C. Bons tempos vividos naquele pedaço do Brás. João Basso
Meus 18 anos no Bixiga Zélio Andrezzo Em julho de 1967, fui morar na Bela Vista, Rua Paim, 235, apartamento 501. Em frente, o Demoselli, ao lado, o Caraveli. Embaixo ficavam os bares, bancas de revistas, restaurantes e salão de beleza. Aquela maravilha fervia dia e noite, ali moravam alguns artistas, pois tínhamos a Frei Caneca ao lado e logo a Consolação com o Teatro Record, por onde avam Eliana Pittman e Ary Toledo, e também a turma da Excelsior – Canal 9, que na época ficava na Nestor Pestana. No início, trabalhava na Rua Formosa, 393, no Dom Bosco Escolas Reunidas, e fazia o trajeto a pé pela Avenida 9 de Julho ou pela Avanhandava, e quando enjoava, pegava a Rua Augusta. Na Augusta tinha uma padaria com uma doceria na vitrine que me deliciava os olhos, tive uma vez que esperar o dia do pagamento para saborear um doce daqueles. Foram longos dias de espera por uma grande decepção, os doces eram tão ruins que não consegui comer, nunca mais esqueci esse episódio. Depois arrumei um emprego na Rua dos Ingleses. Atravessava a Avenida 9 de Julho, subia a Rua 13 de Maio, Rui Barbosa ou a própria Rua dos Ingleses, próxima ao Teatro Ruth Escobar, ao lado da escadaria que dá para a 13 de Maio. Escadaria com uma bela arquitetura, pilares trabalhados até com um clima medieval, muito bonito, porém freqüentada pelos mendigos. Um dia, vi na página de uma revista umas fotos de propaganda de moda produzidas nessa escadaria, cujos ângulos avam a impressão de se tratar de uma parte da Europa antiga. Na subida da Rua 13 de Maio para a Rua dos Ingleses, havia uma série de casas por onde eu ava, e numa delas tinha uma menina sempre uniformizada de sapato preto, meia branca três quartos, camisa branca de manga curta e saia xadrez avermelhada com suspensórios em diagonal. Trocávamos olhares, mas eu nunca soube qual era o seu colégio. No início da Rua Paim tinha o Teatro Maria Della Costa onde estive com Elis Regina, Jair Rodrigues e uma vez, com talentosos músicos de cordas, pois a grande maioria era artista. Ali tive um amigo e ídolo, um pianista e maestro, acompanhava-o ao órgão na Igreja Imaculada Conceição, na Brigadeiro, e num dos domingos depois da missa ele levou-me à casa de um amigo, também pianista. Parecia um dia vazio, mas foi um domingo cheio de música e cantoria que me
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encheu a alma. Eu tinha 18 anos e a juventude tinha uma luz perene. Como foram bons aqueles dias de dificuldades materiais, mas de riquezas interiores, onde tudo era futuro.
Também freqüentei esse pedaço e estive junto desses e de outros artistas. Meu espaço era a TV Excelsior, Rua Nestor Pestana, 196. Era 1966, tempo de dificuldades políticas. Por ser a Excelsior um local de artistas e muitos de ideologia vermelha era um local vigiado pela polícia e pelo DOPS, Departamento de Ordem Política e Social. Mas mesmo assim se falava em política, contávamos piadas do Costa e Silva, que era outro presidente não letrado. Todas as quartas-feiras eu ia assistir a gravação do programa Ensaio Geral, comandado por Gilberto Gil. Lá estavam Caetano Veloso, Maria Bethânia, Taiguara, Toquinho, Marisa Gata Mansa, Ciro Monteiro, Cláudia e muitos outros. Ficava muito tempo conversando com Nana Caymmi, na época esposa de Gilberto Gil. Enquanto ele ficava conversando com todos, eu ficava conversando com ela, uma mulher educadíssima. Saudade do Kalil Filho, que se foi tão precocemente. Mário Lopomo Em 1967 eu já tinha três anos de carteira profissional, era office boy, conheci e vivi toda essa época de ouro do Bixiga – TV Excelsior, Canal 9. Ao meio-dia eu ia assistir ao Show do meio-dia, com Hugo Santana. Muitos amigos meus moraram ali na Rua Rocha, Paim, que saudade. Eu deixava o meu fusca, isso em 1972, na Praça 14 Bis, somente fechado, sem trancar, rodava os bares e quando voltava, lá estava o fusca intacto; um beijo, um abraço e um queijo para quem curtiu essa época. Rubens Rosa
Vida de “bixiguento” Miguel Chammas Bela Vista, nome fantasia do maior bairro de São Paulo, o Bixiga, foi meu berço de nascença. Ali eu cresci, me tornei homem e vivi lindos e nem tão lindos momentos. Nasci num local limítrofe do famoso Bixiga, na extinta Maternidade São Paulo, e vivi até os 18 anos na Rua Augusta, 291, que demarcava os bairros do Bixiga e da Consolação. Depois, fui morar mais dentro do meu Bixiga, na Rua Major Diogo, 307, bem em cima do bar mais famoso da clas-
se artística, o Nick Bar, tão cantado e decantado, e que tantas brigas gerou entre meu pai e o seu proprietário, por noites mal dormidas. Lembro do meu Cine Rex, onde obrigatoriamente eu freqüentava as sessões das noites de domingo e de segunda-feira. Aos domingos, depois de assistir o jogo pela TV, os Duques de Piu-Piu se dirigiam ao Cine Rex para assistir à sessão dupla. Depois dela, nos dirigíamos até o Bar Líder onde nos deliciávamos com fabulosos mistos-quentes. Os melhores do bairro, garanto. Então, devidamente alimentados, saíamos para a noite, porque ela era ainda uma criança. Na segunda-feira, invariavelmente, voltávamos para assistir aos dois novos filmes em cartaz. É, nessa época o cinema ainda era uma grande e poderosa diversão. O gerente do Cine Rex era o “seu Farina” que, com sua cara de avô bonachão, se fazia de distraído para que nós, moleques ainda, pudéssemos ter a “ousadia” de, numa corrida desenfreada, invadir os seus domínios e assistir aos filmes sem desembolsar os tostões que, claro, não tínhamos. O nome Rex sempre esteve presente na minha vida de “bixiguento”, e era no Bar e Bilhar Rex que eu ava bons momentos da minha juventude. Era ali o ponto de encontro dos Duques de Piu-Piu todas as noites. Dali saíamos para as baladas da época ou para as aventuras e namoros. Quando nada havia para fazermos, ali ficávamos jogando algumas partidas de bilhar ou sapeando partidas de profissionais do taco e, claro, aguardando as batidas policiais, que ocorriam todas as noites. Esse bar era ponto de vários elementos, bons e maus, bandidos e mocinhos, traficantes viciados e “limpezas”, que era nosso caso. Todos se respeitavam e ali era um local de harmonia. Sem rotulações ou indiscrições. Foi no Bixiga que presenciei um dos maiores incêndios da minha vida, ocorreu num Posto de Gasolina que ficava na esquina da Rua Manoel Dutra com a Rua Doutor João alacqua. As labaredas corriam lambendo as ruas até a Major Diogo. Só de lembrar sinto calafrios.
Meu pai era o Manoel, ou Manezinho, como era chamado por amigos. Tinha um ponto de táxi em frente ao Cine Rex e meu avô uma carvoaria na Rua Rui Barbosa. Ele era um português robusto da Ilha da Madeira, recém-chegado de Portugal. Carlos Alberto Jardim Na década de 1970 costumava freqüentar o Bixiga e seus deliciosos cafés! Em alguns, costumava ter a noite do “Choro” e eu gostava muito! Trabalhei perto desse bairro, então, meu trajeto era sempre pelo Bixiga. Boas lembranças! Doris Day
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Quantas vezes fui à Rua 13 de Maio, naqueles restaurantes italianos! A padaria da Rua São Domingos! O TBC de imorredoura lembrança! A feira de antiguidades da pracinha Dom Orione! A festa de Nossa Senhora de Achiropita! Turan Bei
A Broadway do Bixiga Mário Lopomo O bairro do Bixiga cresceu lentamente, sempre dominado pela dualidade de idiomas: o português e o italiano. Aliás, em algumas ruas o italiano era muito mais falado do que a língua-pátria. Quando não era uma das duas, era a junção de ambas, conforme o compositor Adoniran Barbosa eternizou em centenas de canções e por isso, mesmo não sendo do bairro, acabou como símbolo do mesmo. Em 1948, finalmente o Bixiga encontrou a vocação que o tornaria o mais boêmio de todos os bairros da capital. Nesse ano, Franco Zampari alugou um prédio na Rua Major Diogo e nele instalou o TBC – Teatro Brasileiro de Comédia, – que seria a grande semente de uma agitada vida cultural e o primeiro o para transformar o bairro na “Broadway Bixiga”. Depois, novas casas de espetáculos foram sendo montadas, como o Teatro Imprensa, o Sérgio Cardoso e o Ruth Escobar. Isso sem contar o Teatro Bandeirantes, na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, onde a inesquecível Elis Regina ficou mais de um ano em cartaz com o espetáculo Falso Brilhante, um marco na história dos musicais brasileiros. Em termos de futebol, este típico bairro italiano não ficou para trás; nele ficava o Clube Boca Juniors que se tornou um dos times mais famosos e respeitáveis do Bixiga, no qual o cantor Agostinho dos Santos, nascido e falecido na Rua Santo Antônio em 1973, também jogava.
Antes de cantor famoso, o Agostinho, nascido no Bixiga e que conheci pessoalmente, foi um excelente jogador de futebol e um péssimo entregador de lavanderia, pois largava a bicicleta com roupas ao lado do gol e ia bater uma pelada. Além do Agostinho, de meu bairro saiu muita gente de expressão na música como Erlon Chaves, Le Pera, o tangueiro e muitos outros. No futebol, além do Boca Juniors e do Democrata, seu “filho”, muitos foram os clubes desse bairro, inclusive aquele em que tive a honra de ser diretor social, o meu inesquecível Rubro-Negro. Ainda para cultuar este magnífico bairro temos, hoje, um gueto de resistência, um clube de “bixiguentos”, o “Saracura”.
Recordo, ainda, das tardes de segunda-feira dos carnavais do ado, quando nos reuníamos entre as Ruas 13 de Maio e Almirante Marques de Leão, para a formação do Bloco dos Esfarrapados que até hoje é tradicional do bairro. Sempre se fazia uma fantasia criticando algum fato político ou social. Uma das últimas fantasias que bolei e usei foi a de “Cruzeiro Novo”, me vesti de bebezão, coberto de cédulas de Cr$.1,00. Fui notícia em vários jornais. Por fim, ouso repetir a letra de um samba da Vai-Vai – quando ainda Cordão Carnavalesco – que fica, no meu entender, parelho ao samba do meu querido Charutinho, o Adoniran Barbosa. Eis a letra, ou poesia: Vá à Bela Vista para ver samba, batucada e amizade. Vá ao morro dos Ingleses para ver como é linda a cidade. Miguel Chammas
Do Itaim Bibi para o Bixiga Hélcias Bernardo de Pádua Pois é, cada dia me sinto mais orgulhoso da minha origem negra, do local onde nasci, a Vila Itororó, e do bairro onde moro, Itaim Bibi, já há mais de 58 anos. Nasci na Rua Martiniano de Carvalho, na Vila Itororó, hoje Patrimônio Histórico. Isso mesmo, eu nasci num dos cômodos do palacete da Vila Itororó e fui registrado no Cartório da Bela Vista, que foi por sinal onde também me casei, muitos anos depois. A Vila Itororó por estar construída numa encosta, uma parte de um morro, o chamado Vale do Itororó, tem a sua entrada principal no alto, ou seja, pela Martiniano de Carvalho. Depois seguem inúmeras casas e cômodos de aluguel, tudo ladeando uma enorme escadaria. Isso mesmo, ladeira abaixo. Terminava ou termina numa nascente d’água onde sabiamente o português, na época o dono do prédio, construiu uma piscina para uso particular dos seus inquilinos e convidados. Talvez tenha sido na cidade de São Paulo o primeiro sistema de condomínio, com área de lazer. Homem de visão. A minha família só veio para a Chácara do Itahym, no final do ano de 1947, portanto quando eu já tinha quase 2 anos. Sou de 28 de fevereiro de 1946. O meu pai, senhor Orestes Bernardo de Pádua, conheceu a minha mãe, dona Benedita Ferreira de Pádua, na Rua Direita. Na época, era o local onde toda a comunidade negra ia ear nas tardes e início da noite. Todos elegantemente vestidos. Na verdade, quem morava na Rua Martiniano de Carvalho era a minha mãe e a minha avó, dona Francisca Ferreira, cozinheira de forno e fogão nas famílias nobres da Avenida Paulista. Eles, os meus pais, se casaram na Igreja da Nossa Senhora do Carmo em 1943. Moraram na Vila Itororó, na casa ou cômodos alugados pela minha avó até se mudarem para o Itahym, cerca de quatro anos depois.
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A família do meu pai morava do outro lado da Paulista e mais próximo da Chácara do Itahym. Numa travessa da Avenida Brigadeiro Luís Antônio, na Vila dos Operários da Fábrica de Tecidos Calfat. Mas ele freqüentava o Bixiga, ia ao Cordão do Lavapés e era sócio do Elite, um clube formado só por negros, todos de fino trato, desde operários a intelectuais. Alguém perguntará: a Vila Itororó está na Liberdade ou na Bela Vista? E que tudo isso tem a ver com o Itaim Bibi? A Rua Martiniano de Carvalho está do outro lado da Avenida Brigadeiro Luís Antônio. Eu, Hélcias, sempre afirmei que nasci no Bixiga, portanto sou Bixiguense. Hoje, tive a confirmação dessa minha tese de origem e de nascimento. Descobri que a Rua Martiniano de Carvalho, historicamente, pertence ao chamado Bixiga Estendido, ultraando o limite distrital do bairro da Bela Vista. Sou do Bixiga, portanto tenho status. E o Itaim, como entra nisso? O nosso bairro, antes Chácara do Itahym – Sítio do Itaí, recebeu desde o início do século XX, inúmeras famílias de imigrantes italianos, de portugueses e de alguns negros, oriundos também do Bixiga, nas décadas de 1920, 1930 e 1940, que foram expulsas ou nem puderam se estabelecer em outro local, pelo processo de encarecimento dos aluguéis dos cômodos e casas na região da Bela Vista e de São Paulo, escolhendo entre outros locais, as regiões de várzea como a do Itahym. Lembro que meu pai, dizia: — ... aí então muito da negrada do Saracura se mudou para outros cômodos, lá na Barra Funda. Outros compraram terrenos na Freguesia do Ó, na Penha. Eu não... vim para o Itahym. Essa comunidade negra que ele sabiamente se refere, era e é provavelmente resíduo de um quilombo formado como refúgio de um mercado de escravos existente na época, onde hoje estaria em um lado da Praça das Bandeiras, no sentido Bixiga. Pois bem, meu pai veio para o Itahym, comprou uma casinha baixa, com muro, portão e corredor lateral, na Travessa do Porto, atual Luís Dias. Retornou-se à convivência harmônica, a troca de coisas pelos muros vizinhos, as mesas e cadeiras nas calçadas, as conversas no final das tardes e festas nas ruas, ainda de terra. Mas isso durou até o início da década de 1970, quando a região do Itaim Bibi ou a ter grandes avenidas, cobrindo córregos e sendo invadida por uma agressiva verticalização. Isso pode ser chamado de progresso?
Seu Luiz da Farmácia e o Bixiga Rosemary Keiko Ishihara Calil Nasci no Bixiga, meu bairro querido, há 58 anos. Meu pai, o seu Luiz da Farmácia, tinha o seu estabelecimento na esquina da Rua Dr. Luiz Barreto
com a Santo Antônio. Minha mãe conta que eu ficava num caixotinho lá na farmácia mesmo, para que ela pudesse ajudar meu pai. A nossa casa – uma casinha amarela – era na esquina da Rua Santo Antônio com a Samuel das Neves, antigamente também chamada de Paim. Depois, quando a farmácia mudou para a Rua 13 de maio, eu já tinha 8 anos e fui fazendo amizade pela rua. Morávamos num prédio quase em cima da Basilicata. Lembro de um balcão muito alto para mim, onde ia buscar o “filão” de pão todos os dias para a minha mãe. E foi assim que fui crescendo e tendo como amigos o Miguel, a Rosana, a Arlete, seu irmão Ângelo, o Albérico, Gilberto, a Rosmari e a Márcia, que inclusive estudaram no mesmo colégio que eu. Meu pai gostava muito de nos levar às cantinas nos domingos. Lembro-me de uma em particular: a Cantina do Sansone. Foram domingos inesquecíveis. Quando eu estava com mais ou menos 13 anos, mudamos para a Rua Conselheiro Carrão, quase esquina com a Conselheiro Ramalho, mas a farmácia continuava lá, firme e forte! Meu pai foi muito severo, mas eu e minha irmã tivemos uma educação muito boa. Estudamos no Colégio São José, onde aprendi piano, inglês e brinquei muito de guerra de farinha com os meus amigos da Padaria Paladino, de pega-pega, brinquei muito na rua! Para vocês verem, apesar de o meu pai ser severo, ele não se importava que brincássemos na rua, porque não havia nada de mal!
Lembro-me da farmácia e do seu Luiz, eu também tenho orgulho de ser “oriundi” do Bixiga. Tinha um amigo, quase irmão, que morava no prédio da Rua Santo Antônio com a Manoel Dutra, em frente à Casa Cacique. Uma das lojas desse prédio, na calçada da Rua Manoel Dutra, era e ainda é uma relojoaria e joalheria de outro amigo meu, o Miltom, Minimi para os íntimos. Miguel Chammas
Ginástica no Minhocão Solange Zillio O Minhocão sempre foi fechado após às 22 horas para que os moradores pudessem ter um sono um pouco mais tranqüilo. Como moradora da Santa Cecília, minha academia e pista de cooper era lá, no Minhocão. Lugar pouco freqüentado, pelo menos na época. E lá ia eu com roupas confortáveis fazer minha ginástica em cima do Minhocão. Não havia ninguém, vez ou outra ava um night biker, mas eu não tinha companhia. Era ótimo porque não precisava dispor de uma mensalidade, nem havia comparações de corpos. Havia sim, olhos furtivos por entre as janelas... Mas era tão bom 177
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porque eu podia olhar para o céu, irar as estrelas, a lua... O barulho dos carros parecia tão distante... O Minhocão foi meu companheiro de tantos anos, sempre ao meu dispor, sempre de braços abertos! Nunca houve um assalto, uma palavra desconfortável de nenhum transeunte. Sempre me senti muito à vontade. Quando tinha oportunidade, levava meus amigos para desfrutarem do visual da cidade em cima do Minhocão. Eu me diverti muito! Tenho muitas saudades de lá... Se eu contar essa história, dá pra acreditar? Suas caminhadas no Minhocão não eram tão solitárias assim... Não sei se você se lembra, mas um dia me apresentou este lugar à noite, e foi assim que comecei a me apaixonar por São Paulo e aprendi a enxergar a beleza sutil e agressiva desta grande metrópole. Carolina Zillio
Se esta rua fosse minha Luiz Saidenberg Existiu em São Paulo a minha primeira rua, simpática e inesquecível. Isso foi no ano de 1946, quando meu pai foi chamado a trabalhar no Instituto Biológico. Assim, por um ano desfrutamos da então agradável cidade, que antes fora somente ponto de visita aos parentes daqui. Rua Vitorino Carmilo. Estreita e aprazível, situa-se na Barra Funda, sendo paralela à movimentada rua do mesmo nome. Ali nos instalamos numa pensão familiar, pequeno sobrado com jardim, que lá está até hoje, formando um conjunto com seus vizinhos semelhantes. Coisa de rua inglesa, difícil de ainda existir na São Paulo. Nossa janela dava para frente, e todas as manhãs a ruazinha modesta e arborizada era acordada por um pastor de cabras e seu rebanho, tilintando seus chocalhos. Não me lembro de ter provado tal leite, mas devia ter uma freguesia certa. Quase em frente, o Grupo Escolar Antônio Prado, onde tive meu primeiro contato com as tradicionais carteiras escolares da época. Mas eu já sabia ler quando lá entrei, e a ingênua professora pensava que eu decorava as leituras. Teria que ter, para isso, uma memória prodigiosa. Mal sabia ela que há um bom tempo tinha contato com os livros de Lobato, e nessa mesma pensão estava lendo A Chave do Tamanho, livro um tanto pesado e trágico, para uma criança pequena. Na cidade quase desconhecida, amigos e brincadeiras limitavam-se ao pátio da escola, ou com meus primos na casa de minha tia Zilda, que morava no 272 da Rua Albuquerque Lins, defronte ao Cine São Pedro. Ali era o ponto central da grande família de minha mãe. Mas lembro-me que meu pai nos deu, a meu irmão e a mim, aeromodelos comprados na Casa Aerobrás, que ficava na 7 de Abril, atrás do Mappin. Nós éramos como meninos da Segunda Guerra,
fanáticos por aviação. Creio que meu avião era um AT–6, famoso aparelho de treinamento. Não voava, mas era muito bonito e colorido, com as estrelas verdeamarelas da Força Aérea Brasileira – FAB. Já o de meu irmão era mais simples, e leve, e voava movido a elástico. Íamos brincar de pilotos na ruazinha deserta. O de Ivan acabou espatifando nas árvores da Chácara Prado, atrás da pensão. O meu também acabou estragando, sem nunca ter alçado vôo. Nossa grande diversão era ir ao belo Centro, limpo e tranqüilo. E, para nós, as grandes atrações eram suas lojas e as leiterias, num tempo muito distante de nossos fast foods. A pensão era um refúgio provisório, mas sobre a visão de uma criança era como se fosse um lar, conforme aquele javali do filme Rei Leão, “Lar é o lugar onde descansamos o bumbum”... Era muito comum a estampa do anjo da guarda na ponte amparando as duas crianças, e também era comum que em algumas dessas gravuras estivesse escrito a oração do Anjo do Senhor. Para quem não lembra: Santo Anjo do Senhor meu zeloso guardador, se a ti me confiou a piedade divina, sempre me rege, me guarde e ilumine. Boa noite papai do céu! Roque Vasto
Uma parte da vida na Barra Funda e outra em Itaquera Paulo Roberto Bertolozzi Tenho ótimas lembranças, fui um privilegiado, não lembro de tristezas. Parte da vida ei no bairro da Barra Funda, na Rua Anhangüera e, alguns anos em outro extremo da cidade, em Itaquera. Na década de 1950, as ruas da Barra Funda eram calçadas e também dotadas de iluminação pública, Itaquera só mais tarde recebeu essas melhorias. Meu avô Carlos, acredito, era o único carvoeiro do bairro e as entregas eram feitas por carroças. Na Avenida Rudge, principal rua do bairro, trafegava o maior número de veículos, bondes e ônibus. Por ela ava o bonde nº 55, Casa Verde, e o saudoso ônibus nº 74, entre outras linhas. Minha diversão era ar o dia inteiro em companhia dos amigos Toné, Rubinho, William e Veia a contar o vaivém de ônibus e bondes na avenida. Na Barra Funda, lembro muito dos carnavais do Clube Anhangüera; nas esquinas das ruas do Bosque e Anhangüera, onde recordo das cadeiras nas portas das residências para bate-papo entre vizinhos. Gostosas eram as quermesses de rua e as procissões da Igreja de Santo Antônio. Dos meus 8 anos de idade até os 12, freqüentei o Parque Infantil Mário de Andrade, “era uma delícia”.
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Lembro também dos clubes de várzea: o Grajaú, o XV, o campo do Faísca e o pouco mais elitizado São Jorge, na Rua do Bosque. O que dá saudade era a calma e tranqüilidade das ruas, sentia-me seguro. As brincadeiras de infância, sem problema algum, iam até altas horas da noite. Nunca levei bronca por isso. Itaquera era o lugar para meus eios e da família nos fins de semana. Tudo era uma grande aventura, tomar o trem no Brás ou o ônibus que saía do Parque Dom Pedro II. Em Itaquera, moravam a vovó Luiza, a tia Ione, as primas e o tio Alcides. Puro mato, muito verde, grandes espaços vazios e o trem maria-fumaça. Em Itaquera tudo era lindo. Morei dois anos na Rua Pereira Barreto, atual Tomazzo Ferrara. Fui vizinho do Nicolino Mastrocola, da Chácara da dona Marcília, do Clube do Falcão. Lembro também do senhor Gabriel que em 1956 possuía dois ônibus amarelinhos que faziam as linhas Colônia e Cidade Líder; ambos partiam da Estação de Itaquera. Recordo também da farmácia do senhor Barreiro, de sua esposa dona Amélia, da Papelaria Santim e do primeiro banco Bradesco, inaugurado em 1952. Na década de 1950, o único asfalto existente era o da Estrada de Itaquera, por onde trafegavam os ônibus. As demais ruas foram asfaltadas por volta de 1970. Em frente ao Cine Itaquera saía um ônibus, tipo jardineira, com destino a São Miguel Paulista que trafegava pela paisagem rural da Avenida Pires do Rio, ainda de terra. A Empresa Auto Ônibus Mogi das Cruzes Ltda., de 1950 a 1955, fazia a linha Ferraz de Vasconcelos ao Parque Dom Pedro II, ando por Itaquera. Em primeiro de agosto de 1955, a CMTC colocou seus lindos ônibus na linha denominada 210-Itaquera – Parque Dom Pedro II. No ano de 1958, surgiu a Viação Auto Ônibus Itaquera Ltda., com cerca de oito carros, ampliando sua frota mais tarde e falindo por volta de 1970. Para os saudosistas: a cidade teve o bonde 60-Penha – Lapa, os ônibus 1-Circular, 5 e 6-Estações, demoravam muito, mas chegavam ao seu destino. As ruas dos bairros eram muito bonitas; Alfredo Pujol, Clélia, Silva Bueno, Turiassu, Lins de Vasconcelos, Avenida Pompéia, nossa! Como era linda. Até a Avenida Celso Garcia tinha a sua beleza. Bonito também era o Largo da Concórdia, com seu famoso Teatro Colombo.
Bem próximo ao viaduto que leva à Avenida Rio Branco, no tempo em que era um viaduto só, ficava o “inspetor” de bondes, senhor França, muito amigo da minha família. O senhor França era pai do ator Edson França, também já falecido. Graças a ele, eu andava de bonde de graça. Eu ia muito à Rua Santa Ifigênia comprar material eletrônico para o serviço do meu pai. Minha família era dona de uma pequena loja/oficina de aparelhos domésticos chamada Eletro Rádio Condor que ficava na Avenida Rudge, bem ao lado do antigo Liceu Marechal Deodoro. Uma
vez, um caminhão descendo o viaduto perdeu a direção e entrou na loja da minha família. Um enorme prejuízo. Engraçado é que havia espaço de sobra para o caminhão, do lado esquerdo, onde ficava o pátio do Liceu Marechal Deodoro, ou do lado direito, onde ficava a papelaria do Giordano que contava com um amplo local para estacionamento. O caminhão acertou bem no meio da Eletro Rádio Condor. Moramos na Rua Javaés, na Rua Jaraguá e finalmente em uma vila na Rua dos Americanos, do lado do campo de futebol do Carlos Gomes. Estudei no Canuto do Val, na Baronesa de Porto Carreiro, freqüentei a Igreja de Santo Antônio e atravessei muitas vezes a porteira da Rua Anhangüera quando fui estudar no Macedo Soares. Lembro de um maravilhoso sapateiro italiano na Rua Lusitânia. Ele chamava-se Gaetano e costumava ler a Divina Comédia, de Dante Alighieri, em italiano. E, é claro, lembro de Sueli, a primeira namorada... Não moro mais em São Paulo, mas sempre que estou na cidade visito a Barra Funda, sozinho, só pra reviver meus momentos de infância e adolescência. Miguel Aranega
Pipas no céu do Pacaembu Ricardo Azevedo Nasci em 1949, no bairro do Pacaembu, na Rua Ferdinando Laboriau nº 93. ei minha infância andando de bicicleta e jogando bola nas ruas do bairro que, naquela época, eram desertas, algumas ainda de terra. Quem desce e descia minha rua e subia a Zequinha de Abreu, ia dar na Rua Cardoso de Almeida que, seguindo reto à direita, terminava lá embaixo, no Largo Padre Péricles. Nesse tempo, dava para descer a Cardoso de bonde. Se não me engano, ele seguia depois rumo ao centro da cidade pela Avenida General Olímpio da Silveira, que logo adiante virava Avenida São João. Nesse tempo, todas as ruas à esquerda da Cardoso de Almeida, como a João Arruda, que ficava a uns quatro quarteirões da minha casa, e as ruas Vanderlei, Caiubi, Bartira, João Ramalho entre outras, iam dar num baita terreno desocupado no fundo do vale. No meio do matagal, ficava a favela do Buraco Quente. Na parte mais baixa do terreno, havia um córrego. Atualmente, por ali, a a Avenida Sumaré. Minha irmã pertencia a um grupo de jovens católicos, o Graal, com sede na Cardoso de Almeida. Esse pessoal, junto com os padres dominicanos – a Igreja São Domingos ficava pertinho, na Rua Caiubi – costumava ajudar os favelados. Assisti minha irmã e seus colegas, junto com os moradores da favela, construírem com as próprias mãos uma capela de madeira na beira de um barranco, na Rua João Arruda antes da descida. Brinquei muitas vezes na favela Buraco Quente e fiz amizade com 179
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alguns moleques que moravam lá. Descobri que os caras sabiam fazer pipas muito melhor do que eu. Fizemos um trato. Eu fornecia o material, papel, linha, cola e varetas e eles, em contrapartida, ajudavam a fazer meus papagaios. Até hoje, quando o pela Avenida Sumaré, lembro de meus amigos e eu sentados no alto de um tremendo barranco, mais ou menos onde hoje é a Rua Ministro Gastão Mesquita, soltando pipa e espiando o sol se pôr.
esticando o pescoço numa direção. Já sabiam onde parar, conheciam as casas onde deixariam o leite de cabra tão recomendado como fortificante às crianças. Quando enchia o copo, era um líquido espumante e morno, em contraste com a manhã gelada. Depois se punham em marcha novamente, não antes de expelir um punhado de dejetos fisiológicos, em forma de bolinhas, todas tão perfeitas, tão redondinhas. Que tal uma partida de gude?! Assim foi o bairro de Higienópolis em 1926.
Pacaembuzinho Luiz Antonio Duff Azevedo Meu pai terminou a construção de nossa casa no Vale do Pacaembu em 1945, e para lá mudamos em julho daquele ano. O lugar era conhecido como Pacaembuzinho e ficava para a direita de quem olha o Estádio do Pacaembu, que havia sido inaugurado em 1940. A nossa casa foi a segunda construída no Vale Pacaembuzinho e ficava na Rua Ferdinando Laboriau, uma das poucas ruas que já tinham nome, pois a maioria era conhecida apenas por números. A primeira casa ficava atrás da nossa, na Rua Almirante Pereira Guimarães e era só! Como o asfalto terminava junto com o ponto final do Ônibus 107, na praça do Estádio do Pacaembu, para chegar em casa o jeito era andar a pé. Quando chovia era um terrível mar de lama vermelha e chegavase em casa enlameado. Para nós garotos, porém, era tudo uma grande festa, pois vivia-se numa fazenda! Havia uma pequena cachoeira um pouco abaixo do antigo Asilo Sampaio Viana, que mais tarde abrigou uma unidade da Febem, desativada em 1997, cujo terreno atualmente pertence à Fundação Faculdade de Medicina. Os cavalos dos verdureiros e padeiros pastavam nos matagais, e nós, entre banhos na cachoeira, andávamos em pêlo nos velhos cavalos brincando de Zorro! O bairro cresceu muito depressa e fomos perdendo partes da nossa “fazenda” que ficou reduzida a alguns pontos de matagal atrás do Cemitério do Araçá. Chegou o asfalto e as aulas tomaram todo o nosso tempo, ficou então uma grande saudade do nosso velho Pacaembuzinho.
Cabras com guizos pelas ruas de Higienópolis Maria José Uchoa de Lima Guizos? De longe já se ouvia! Tangidas pelo dono, lá vinham elas, trotando pelo meio-fio de uma rua, no bairro de Higienópolis, cada uma
Ao acordarmos cedinho, ouvíamos os guizos das cabras, que traziam o leite quentinho, nos ajudando a despertar... Era uma enorme fila de crianças carregando cada uma sua canequinha de ágate para receber o delicioso “café da manhã”... Essa época de Santa Cecília foi maravilhosa mesmo... Vários de nós, eu inclusive, fomos batizados na Igreja de Santa Cecília, ao lado da famosíssima loja Clipper, da Rua das Palmeiras... Nosso vizinho era um fabricante de guarda-chuvas. E nosso telefone, de parede, é claro, era 5-3901, depois ou a ser 51-3901, durante anos e anos a fio... Anônimo
Evolução (Poesia sobre Higienópolis) Cleidiner Ventura Ainda encontro perdida entre os suntuosos edifícios de Higienópolis, remanescentes senhorinhas do café... Cabelos azuis, xale nos ombros e o camafeu na gargantilha. Caminham sem pressa, cabisbaixas, s o l i t á r i a s. As mais sofisticadas carregam seus cães nas coleiras, últimos companheiros... Lembranças dos quintais enormes e do latido forte nas noites de lua. Conservam em seus sobrados sublocados um mísero pé de café;
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e logo acima, na janela colonial, lê-se nitidamente: “Eletricista/Encanador”. Elas am por entre as árvores (testemunhas vivas de uma época) e param, e só quando param é que direcionam o olhar mais além. — O que elas pensam? — O que pensam delas os que am assoberbados como eu, cansados da vida? — O que pensamos nós, seres tão indiferentes, àquela senhorinha que ali caminha tão s o l i t á r i a. Aquelas velhas árvores que envergam com o tempo, seu tempo, outrora foram esconderijos de suas brincadeiras de criança e hoje lhes dão sombra; E hoje incomodam muita gente, esbarram nos fios elétricos interferem nos cabos de ligações telefônicas, sujam os jardins tão bem cuidados dos edifícios luxuosos. Meu olhar se vai... E uma delas caminha à minha frente. e aquela senhorinha parece cada vez mais ter saído de um álbum antigo (daquele que tinha minha avó). Anda preocupada como se ali adiante na Piauí com a Angélica fosse encontrar a carruagem de seu noivo que a levaria ao eio matutino nos jardins dos Campos Elíseos. Ouço o relógio do Cemitério da Consolação soar às nove horas e sinto o cheiro forte do café vindo da “Charmosa” padaria de Higienópolis.
Caminho rápido, o por ela e percebo seu olhar agora mais próximo e real. E a ouço pedir ao balconista: — Um pacote de chá, por favor. E assim eu o e fica o eco de sua voz em meus ouvidos.
Há exatos quarenta anos fazia o cursinho para vestibular na Albuquerque Lins quase na esquina com a Veiga Filho. Era comum tomar café com a Marília Medalha e outros artistas boêmios em Higienópolis. Numa das últimas vezes que estive por ali, encontrei o Plínio Marcos, acredite, tomando café e vendendo seus livros para sobreviver; conheci algumas dessas senhorinhas, inclusive no sentido bíblico, elas eram bem mais novas, lindas, etéreas e charmosas. Antonio Souto
Leite de cabra na porta de casa Paulo Antonio Ferraz Simardi Quanta coisa mudou no bairro de Pinheiros, onde nasci. A rua se chamava Borba Gato, hoje se chama Virgílio de Carvalho Pinto. Era de terra e, na década de 1950, acreditem, se tomava leite de cabra na porta de casa; era uma festa quando ouvíamos as sinetas do rebanho e saíamos à rua para ver ar. O pastor tirava o leite na hora! O lixo era retirado com carroças puxadas por burros e era na rua que brincávamos, jogávamos futebol e fazíamos fogueira em junho. Foi ali que comemorei a vitória do Brasil contra a Suécia, se sagrando Campeão Mundial pela primeira vez em 1958; escutei pelo rádio, é lógico, a TV estava apenas começando e em satélite só se ouvia dizer na aula de geografia. Assaltos? Existiam os “batedores de carteira”, que uma vez presenciei em ação num ônibus lotado; era o n° 54-Jardim Paulistano. Andava-se de bicicleta por toda parte, sem medo de ser atropelado. Na Avenida Rebouças existia um canteiro central muito grande e ali fazíamos os rachas de futebol. Usava o bonde diariamente para ir ao Mackenzie; era um transporte muito usado e barulhento. Em alguns finais de semana íamos até o Aeroporto de Congonhas e ficávamos nos terraços vendo os DC-3 e Scandia da Vasp e os Convair da Real que eram a última novidade. Eram bimotores que faziam todo o interior de São Paulo, e como havia poucas rodovias, o transporte aéreo era fundamental. 181
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Os colégios estaduais eram de 1ª linha; estudar no Caetano de Campos, Escola de Aplicação e outros era um objetivo a ser perseguido!
Recordações de Pinheiros Caio Rodolpho Reis Foi em Pinheiros que eu ei grande parte da minha infância. Morava na Rua Cônego Eugênio Leite, 1065, e a casa na qual vivi ainda está lá. Estou falando da década de 1940, quando São Paulo era uma cidade totalmente diferente daquilo que é hoje. Durante a Segunda Guerra Mundial, havia exercícios para prevenir bombardeios em São Paulo chamados blackout. Todas as luzes da cidade eram apagadas numa determinada hora da noite e aviões cruzavam os céus simulando um ataque aéreo. Para nós, garotos, era uma farra, pois saíamos para a rua e éramos repreendidos pelos guardas da defesa iva que usavam uma tarja branca no braço. Quanta recordação da Casa Maia, da floricultura do seu Alexandre, da Casa Del Debbio, da Casa Prati e de muitas outras que o tempo não traz mais. Pela manhã, como havia racionamento de trigo nós íamos para a fila do pão na padaria da Rua João Moura. O pão era pesado e escuro, e só era permitido levar dois por pessoa. Depois da fila do pão, íamos para a escola onde estudávamos, o Externato Pedro Voss, que ficava na Rua Capote Valente. Grupo Escolar só havia o Godofredo Furtado, que atualmente é um dos colégios estaduais mais tradicionais de São Paulo, ainda estabelecido na Rua João Moura. Cinema, gostávamos do Cine Pinheiros, onde não perdíamos as matinês do domingo para assistir a continuação do seriado do Flash Gordon. As nossas brincadeiras preferidas eram: descer de carrinho de rolimã pela Rua Oscar Freire, entrar pela Avenida Rebouças e só parar lá pela Rua Pinheiros, isso quando não ficávamos todos esfolados pelo meio do caminho. Também adorávamos pegar a rabeira dos carroções de lixo tocados a burros que subiam a Rua Cardeal Arcoverde em direção ao local de queimar o lixo. As brincadeiras dentro do Cemitério São Paulo são inesquecíveis, à noite, assustar pessoas distraídas, pegar balão na época de São João... Como é bom recordar!
Tive o prazer de estudar no Godofredo Furtado, como também ir aos domingos no Cine Pinheiros. Um pouco mais tarde, bem próximo desse, tínhamos o Cine Brasil, já bem mais moderno, ando todos os do-
mingos seriados antes dos filmes. Quanto a floricultura citada, o senhor Alexandre foi meu sogro. Também participava das brincadeiras de carrinhos de rolimã. Para se ter uma idéia, descia-se do Hospital das Clínicas até a Rua Oscar Freire, onde terminava o asfalto. Já adulto, quando conheci meu sogro, ajudei-o por diversas vezes na floricultura, inclusive auxiliando nos enfeites do cemitério em épocas de Finados. Valter Basile Morava na Oscar Freire. A molecada jogava futebol no trecho plano entre a Rua Arthur de Azevedo e a Avenida Rebouças. A cada cinco minutos ou mais, um aviso: — Olha o carro! O jogo parava para o “intruso” ar e depois continuava tranqüilo. Paulo Kirschner Jr
Esta é a saudade que eu gosto de ter Ivette Moreira Acho que dizer “saudade sempre presente” é redundância, não? É que algum fato marcante pode sempre trazer de volta uma saudade guardada, adormecida, mas, sempre presente. Pois foi o que me aconteceu ao acompanhar os noticiários sobre a tragédia da Linha 4 – Amarela do Metrô. As principais ruas envolvidas nesta tragédia – Capri e Gilberto Sabino – fazem parte de um período feliz da minha vida. Recém-casada, fui morar em um pequeno prédio de três andares, na Rua Gilberto Sabino, cujo terreno comprido fazia fundos com a Rua Capri, onde ficavam as garagens e, em uma delas guardávamos nosso primeiro carro, um Fusca verde-claro. Nesse predinho nasceram meus três filhos – Pedro Eduardo, o mais velho, e as gêmeas Roberta e Luciana. Meu marido iniciava carreira docente na Universidade de São Paulo. eávamos com os carrinhos de bebê pela Rua Gilberto Sabino, indo até o final, em direção à Rua Sumidouro, nas proximidades do quartel do Corpo de Bombeiros. Na Rua Gilberto Sabino morava um jogador de futebol do Palmeiras, famoso em sua época, de nome Valdemar Carabina. Fazíamos nossas compras na Rua Teodoro Sampaio, onde, próximo ao Largo de Pinheiros, havia um Mercado Municipal bem sortido. Aos poucos, fizemos amizade com os proprietários das barracas, que nos atendiam sempre de bom humor, todos se conhecendo pelos respectivos nomes. Havia ainda, na Rua Teodoro Sampaio, boas lojas de roupas e calçados, de roupas infantis, cama, mesa e banho e lojas de tecidos, porque ainda se costurava muito em casa. Na igreja do Largo de Pinheiros batizamos nossos filhos e ela ainda está lá, marcando com sua presença forte e rija um local que parece fadado ao desaparecimento.
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Pelos fundos do prédio chegávamos à Rua Capri, de terra batida: as casas ficavam um pouco longe umas das outras e, onde hoje está a Estação de Trens, havia um terreno grande, ainda ao estilo dos quintais de interior, com horta caseira, algumas galinhas e crianças brincando. Na Rua Capri moravam o senhor Manoel, que tinha um barzinho na frente de sua casa, de onde ainda sinto o sabor dos deliciosos bolinhos de bacalhau, dona Rosa, sua esposa e o pequeno Nelito, filho do casal e que era a grande paixão de dona Rosa, a quem dirigia todos os seus mais belos sonhos. Dona Rosa lavava roupas para fora, inclusive para mim e com ela aprendi muito sobre a vida, sobre gente, sobre cuidados que ela trouxera do seu querido Portugal. Esse casal de portugueses tomou-se de muita estima por mim e por meus familiares, bem como nós por eles e procurávamos nos atender em todas as nossas necessidades, mesmo sem estarmos nos visitando a todo o momento. Muitas vezes dona Rosa tomou conta de meu filho – que brincava com o Nelito – para que eu pudesse ir trabalhar, já que meus pais moravam longe, no Alto da Mooca. No predinho tive vizinhos, que também não esqueço, como o senhor Amadeu, dona Eurídice, sua filha Maria Rosa e suas netas Eliana e Leila, que gostavam, principalmente de pajear as gêmeas, grande sensação! Imagine-se o quanto devo a essa gente boa, amiga, prestativa, desinteressada, nos cuidados com meus filhos. As transmissões da tragédia da Linha 4 fizeram-me rever o predinho da Gilberto Sabino, a Rua Capri e trouxeram à tona esta saudade adormecida desse momento de minha vida. Mas, parodiando a música de Roberto Carlos ... esta é a saudade que eu gosto de ter, só assim sinto vocês bem perto de mim outra vez.
e da Cardeal, esquina com o Cemitério São Paulo, novamente de terra, e terminava logo após a Rua Luís Murat. Isso até por volta de 1960. Depois, com a criação do loteamento do Jardim das Bandeiras, ela foi totalmente revestida, e teve sua continuidade, com rua com outros nomes até a Avenida Heitor Penteado, que era um dos caminhos para a Lapa e Sumaré. Muita gente famosa da época residiu ali. Dos vivos, cito Francisco Buarque de Holanda, Chico Buarque, que vindo do Rio de Janeiro com seus pais, residiu entre as ruas Artur de Azevedo e Teodoro Sampaio. Nesse segmento, aos 12 anos de idade, jogamos muita bola com o Chico. Depois ele mudou-se para o Pacaembu e perdemos o contato. Na esquina da Teodoro Sampaio com a Henrique Schaumann, tínhamos a padaria Primor, do senhor Arnaldo de Sousa, um bar de bilhares e o Posto Esso que era um ponto de encontro em nossa juventude. Já na esquina com a Cardeal Arcoverde, tínhamos o Cemitério São Paulo e a Igreja do Calvário agregada ao Convento dos Padres ionistas. Ali fui coroinha, Congregado Mariano, tínhamos um cineminha, no qual fui operador, e freqüentemente quermesses, nas quais eu atuava nos serviços de rádio por alto-falantes. Nesse quadrilátero do Jardim América, vivemos momentos felizes nas ruas João Moura, Lisboa, Praça Benedito Calixto, onde tinha um parque infantil da Prefeitura, Francisco Leitão, Cônego Eugênio Leite, Joaquim Antunes, Borba Gato, atual Virgilio de Carvalho Pinto, Fradique Coutinho, onde residia Zica Bergami, autora da música Lampião de Gás, e outras ruas mais.
Lapa, por adoção e de coração Neuza Guerreiro de Carvalho
O quadrilátero da zona oeste Paulo Theodoro da Silva Fortes Mário Eu, minha irmã e, posteriormente, minhas filhas, nascemos num conhecido quadrilátero da zona oeste, formado pelas avenidas Rebouças e Heitor Penteado com as ruas João Moura e Fradique Coutinho. Em 1928, meu pai trabalhava como assistente do então famoso Dr. Clemente Ferreira, especialista em tuberculose, cujo consultório ficava na Rua Henrique Schaumann, a qual, quando da sua abertura, foi batizada Avenida Brasil, depois, Rua Esmeraldina e, finalmente, Henrique Schaumann, em homenagem ao farmacêutico fundador da Botica Ao Veado D´Ouro. Essa rua, estreita na época, era revestida de paralelepípedos, da Avenida Rebouças até a Rua Artur de Azevedo, dali até a Teodoro Sampaio, de terra, da Teodoro até a Cardeal Arcoverde novamente revestida
Quase 50 anos de Lapa dão o direito de me dizer lapeana. Novamente moro em um bairro que se iniciou como saída de São Paulo, agora para o interior do Estado. Entre rios se iniciou o bairro como uma fortaleza, no ângulo formado pelos rios Tietê e Pinheiros. Chega logo uma capela, a ermida de Nossa Senhora da Lapa e ao redor vão se agrupando casas e propriedades de jesuítas. De cinco casas e 31 habitantes em 1765, Emboaçava, ou a fazendinha da Lapa, como já era conhecida, ou a atrair gente pela qualidade do barro e aparecem olarias, embriões de cerâmicas maiores e indústrias iniciantes. E a Lapa de Baixo se configura. Logo se estende para além dos trilhos da Estrada de Ferro São Paulo Railway, alavanca do progresso do bairro. Cheguei à Lapa quando ela já era “grande”, mas ainda periferia. A igreja da Lapa ainda está aí e por pouco eu não testemunho a difícil colocação de seus sinos nas torres, o que aconteceu em 1948. E eu cheguei em 183
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1954. Ainda conheci o bonde da linha Penha-Lapa que desapareceu em 1965 e a linha Vila Mariana-Lapa que durou apenas um ano, de 1962 a 1963. A linha mais “idosa” foi a Lapa-Praça do Correio, que viveu exatos 57 anos, “morrendo” em 1966. Era o 35 e só tinha “camarões”. Foi um deles que, na Avenida Francisco Matarazzo entrou na traseira do nosso Citroën 1951. Convivi com o bonde Lapa-Vila Anastácio, o bonde “família”, que esperava pelos retardatários e que, depoimento de uma moradora, me fez ciente de que o motorneiro até parava para tomar café em uma das casas da Rua Barão de Jundiaí. Conheci a Lapa do Cine Tropical, na Rua Roma, do Cine Nacional, na Rua Clélia, onde hoje está o Olympia. Meu primeiro espaço lapeano foi a Rua Faustolo, por onde avam todos os ônibus que iam para o interior, e vez por outra algum perdia o freio e voltava ladeira abaixo. Acordei uma vez com um deles dentro do quarto. Conheci a Lapa do Colégio Campos Salles com um prédio só, na central Rua 12 de Outubro, e com a “fazendinha”, como era chamada a parte que fazia frente com a Rua Nossa Senhora da Lapa. Fui acompanhando o que surgia: Ceasa, em 1966, Mercado da Lapa, em 1954... Escolas aumentando e engrandecendo o bairro. Biblioteca tendo seu prédio próprio em 1966. Aprendi a conhecer “lendas” de lugares, como o cemitério que é chamado Cemitério da Goiabeira porque foi construído num local onde havia um manancial de goiabeiras. Foi na Lapa que meus filhos nasceram, cresceram, se tornaram cidadãos, se casaram e tiveram seus filhos. Foi o bairro do nosso tempo produtivo, do “fazer” de nossa vida, do “viver” a vida em sua plenitude. Continuo na Lapa, sem o alguém precioso que me trouxe para cá, mas me identificando com o bairro e não o trocando por nenhum outro.
Recordando os detalhes do bairro, me veio à mente o antigo e belíssimo Cine Carlos Gomes, que ficava ali na Rua 12 de Outubro, no qual assisti quando criança ao meu primeiro filme O Ébrio; os velhos desfiles de Carnaval, também na 12 de Outubro; os times de futebol de várzea, Caramuru e Cruzeiro, cujos campos ficavam localizados no atual “Pelezão”, onde ei minha infância; e muitas outras recordações, como a represa da Santa Marina, a inauguração do Shopping Center Lapa, a Biblioteca Infantil da Vila Romana e, ainda, as matinês dos Cines Tropical e Nacional. Cláudio Lucas
Adolescência na Guaicurus José Carlos Munhoz Navarro Durante a adolescência, morei na Rua Guaicurus, na Lapa, quando minha diversão era jogar bola no paralelepípedo ou colocar uma pedra no trilho do bonde só pra ver o motorneiro descer e ter o trabalho de recompor a linha. As ruas Vespasiano, Caio Graco, Tito, Faustolo, Duílio me faziam imperador nas brincadeiras diárias. Brincadeiras, vírgula, pois eu só ia jogar bola depois de encher a geladeira de bebidas e de lavar o estrado. E que voltasse depois das quatro da tarde que eu ia ver. A Lapa me levou às matinês do Cine Nacional – pobre Olímpia – e a querer imitar na rua o que o Rocky Lane ou o Hopalong Cassidy faziam na tela.
O trenzinho ava no coração de Santana Maria Antonieta Melchior Tenho as mais lindas e saudosas recordações desse pedaço de São Paulo, onde vivi o término de minha infância e pré-adolescência. Iniciei meus estudos no Grupo Escolar Buenos Aires, que eu achava a escola mais linda do mundo. Já o ginásio, foi no Colégio Salete, onde o diretor ainda era o professor Élvio Bugano, pessoa maravilhosa e amigo de seus alunos. Mas, o lugar que não consigo tirar de minhas lembranças é a Rua Aviador Gil Guilherme, nº 169, onde vivi com minha tia e avó. Que dias felizes; hoje essa rua, assim como a casa, não existe mais. Tudo foi demolido em nome do progresso viário e lá está uma linda avenida que desafogou o tráfego da Rua Voluntários da Pátria. Como era gostoso ir toda tarde na Padaria Comércio ou Polar comprar pão, para mim era como se fosse um grande eio. Outra alegria era pegar o bonde do motorneiro “Bailarino”, o dia já começava com ele trazendo carinho e alegria para todos os ageiros. Mas o que eu achava interessante mesmo, era o trenzinho da Cantareira ando pelo meio da Rua Alfredo Pujol, bem no coração do bairro de Santana. Os anos aram e fui morar no Alto de Santana, lugar muito bonito próximo da Rua Pedro Doll, lembro que mamãe dava aula no então Grupo Escolar Frontino Guimarães e também no Externato Pedro Doll.
Como faz bem recordar o velho bairro de Santana! Lá residi dezesseis anos. Morei oito anos na Rua da Aviação nº 106, onde tenho queridas amizades, com as famílias Paradella, Scandura e Quitto. As casas foram demolidas para a abertura da Avenida Santos Dumont. Também freqüentava a Padaria Polar, onde o simpático senhor Benjamin nos aten-
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dia muito bem. Quanta saudade! O bonde do Walter, o “Bailarino”, que sabia ser cortês e bom com as pessoas mais idosas, pois parava fora do ponto para ajudar a subir. Morei também na Rua Duarte de Azevedo, nº 133. Lembro-me da inauguração do Cine Hollywood, quando existia só o Cine Voluntários, depois Colon e em seguida Vogue. E o cine pequeno Orion do senhor Lacerda? Também guardo lembranças da família Bartolo que nos dava entradas grátis para a matinê; Alfaiataria Robilotta, Recreio Andreone, Leiteria Leco, família Flosi, família Biancamana. Quantas lembranças boas! Aeroclube, os bailinhos de domingo; do tempo em que o já aposentado Brigadeiro Newton Braga o freqüentava; da única aviadora Ada Leda Rogato. Tempo bom, que conheci a famosa pianista Guiomar Novaes. Logo... choro!!! Hoje estou com 81 anos. Honores schini
Adolescência santanense Flávio Rocha ei a minha adolescência no bairro de Santana, onde morei na década de 1940, na Rua Duarte de Azevedo, nº 93, cuja casa ainda está lá, e na década de 1950, na Rua Olavo Egídio, nº 754. Tempos do trenzinho da Cantareira, que ao ar jogava suas brasas da caldeira nos quintais das casas e queimava as roupas dependuradas nos varais... Dos cinemas: Hollywood, construído em 1941 pela família Bôrtolo, do Colon, mais tarde rebatizado Vogue, do Orion, o chamado “poeira” porque quando ava os “seriados” – a molecada batia os pés em seu assoalho e a poeira subia, pois era muito difícil ser varrido... Todos na Rua Voluntários da Pátria, por onde avam os bondes 42-Olavo Egídio e o 43-Santana, rua também onde havia os footings nos sábados à noite, onde moças e rapazes se flertavam, com os mais diversos pensamentos... Dos Bares do Léo, Delícia, Bar-Bilhar do Zé, das Padarias Polar e Comércio, do Restaurante Recreio, bem em frente à Igreja Matriz de Santana, das Casas Pernambucanas, que tinha bem em frente um cocho para matar a sede dos cavalos que puxavam as carroças... Dos carnavais, de rua e de salão, carnavais ainda ingênuos, com os seus lançasperfume Rhodo, tubos metálicos dourados de fabricação da Rhodia, ainda liberados, pois poucas pessoas “cheiravam”... Do Grupo Escolar Buenos Aires, com seu diretor, senhor Peter, onde fiz o meu primário, mais acima, Rua Conselheiro Moreira de Barros, o Grupo Escolar Frontino Guimarães, todos públicos... Do Externato Santana, do emérito professor Valério Giuli, onde fiz meu curso de Datilografia e de Contabilidade nos fins dos anos 1940. Dos ginásios Prudente de Morais e Salete, esse construído em 1947, também
pela família Bôrtolo, que tinha como diretor o senhor Elvo Bugano, e onde fiz meu secundário no curso noturno. Nós, alunos, deixávamos bilhetinhos no tinteiro da carteira para as meninas do curso matutino e esperávamos a resposta à noite no mesmo local... Quase nunca ficávamos conhecendo uns aos outros... Do Colégio Santana, de freiras, que ficava na ladeira da Rua Voluntários da Pátria, colégio esse que era freqüentado apenas pelas “meninas da chamada elite santanense”. Da Padaria Tropical, onde, na época da Segunda Guerra Mundial, formava-se fila para comprar pão a partir das 22 horas, para ser atendido somente a partir das 5 horas... Quantas vezes dormi nessa fila... eu e meus irmãos. Da Leiteria Leco, onde se comprava leite, ainda em frascos de vidro de 1 litro, porém tinha-se que levar o litro ou um recipiente para ser colocado o leite. Dos empórios: Afacos, do senhor Dutra, do senhor Correia, do Tatuiano, do senhor Coutinho, um português, sendo que todos nos forneciam os mantimentos com a “caderneta mensal”. Das figuras folclóricas, como a do Walter, o Bailarino, motorneiro do bonde 42 – assim chamado porque cantava e dançava enquanto dirigia ... do Cabo Lupércio, da Aeronáutica, que tomou vários tiros durante um comício político em frente à Matriz e não morreu... Infringiu todas as leis, foi preso, foi solto e sumiu... Do Vingador, que tinha a sua banca de Jornais e Revistas, do Caúca, que tinha “sua turma” de arruaças e acabou sendo assassinado em um Bar-Bilhar no bairro da Ponte Pequena, na década de 1950. Dos “times de futebol” Emissoras e River Plate, esse, com camisa branca, com faixa diagonal vermelha, igual a dos nossos “hermanos argentinos”. O bairro de Santana forneceu alguns craques para o profissionalismo, como os irmãos Furlan: o Didi foi ala no São Paulo F.C. e seu irmão Furlan foi goleiro do Nacional e do Palmeiras. O Clélio, que foi zagueiro, o Arlindo, que foi ala, ambos do São Paulo F.C.; o Salvador, que foi zagueiro do Palmeiras e Tile, o Gentile, que jogou até na França, seus pais eram os proprietários da Padaria do Comércio. Quanta saudade...
Santana, meu bairro Antonio Carlos Corrêa Netto Nasci na Rua Doutor Zuquim nos idos de 37, onde nenhuma rua, com exceção da Voluntários da Pátria, era pavimentada. Perto do córrego que ava pela atual Avenida General Ataliba Leonel, depois pelo campo do Radium Futebol Clube, no fim da Rua Jovita. Ao lado da Penitenciária do Estado havia uma vila dos funcionários, cercada de jabuticabeiras por onde ava o trem que ia para o Tucuruvi! Mais tarde, já morando na Rua Ezequiel Freire, esperava toda manhã o cidadão que trazia as cabras, com a madrinha à frente e seu guizo, para tomar meu leite de cabra com açúcar e 185
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duas gotas de vinho do Porto, uma delícia, e à noite, com o medo dos treinamentos de blecautes, já que eram tempos de guerra na Europa. A Avenida Cruzeiro do Sul era apenas um caminho do trem que vinha da Cantareira, subindo e descendo e a maria-fumaça apitando, em direção ao Horto Florestal. Nesse tempo, a gente saia à rua a qualquer hora do dia e da noite sem nenhum perigo, seja para pescar embaixo da ponte onde ava o trem em cima do rio Tietê – sim, íamos ao rio Tietê para pescar lambaris e bagres! –, na Cruzeiro do Sul, para correr atrás de balões que sempre caíam na penitenciária. Escola pública era um luxo, e a Escola Estadual na Cruzeiro era disputadíssima, pelo tipo de ensino e educação. Vi a rede de esgotos ser colocada na Zuquim com nove metros de profundidade e depois pavimentada com paralelepípedos. O “Bailarino” já era motorneiro de bondes, o mais alegre e prestativo, mandando ver no bonde Olavo Egídio, o nº 42, em direção ao Largo São Bento.
O estrondo da Freguesia do Ó Elói Fonseca
Minha Freguesia Eloi Fonseca Década de 1950. As ruas que se fizeram ao redor do antigo Largo da Matriz, da Freguesia do Ó, não tinham asfalto. Ainda havia uma chácara aqui, outra acolá. Era só descer as ladeiras. E mesmo assim, numa das ladeiras, encontrávamos o cinema do Largo do Clipper, hoje Banco do Brasil. Pobre prédio rico demolido! Mais feliz o Cine Piqueri que virou fábrica de violão, depois das matinês de domingo à tarde: Férias de Amor, Spartacus, Depois do Vendaval, Aviso aos Navegantes, chanchadas da Atlântida e os seriados entre os dois filmes. Ruas sem asfalto, festas juninas, várias fogueiras e todas as ruas com bandeirolas; mas eu e outros, não todos, chegávamos sempre no fim. Malditas provas do final do primeiro semestre! Tempo que o professor conseguia dar aula.
Brasilândia, uma história de amor Waldir dos Santos
Lembro de dois grandes acontecimentos ocorridos na Freguesia do Ó, quando o bairro ainda podia ser considerado de periferia. Um deles aconteceu no dia em que a TV Tupi gravou uma cena de novela na Ponte do Piqueri, sobre o rio Tietê. A vontade de assistir às gravações causou um grande movimento no bairro: ora era a dona de casa esperando a outra terminar a tarefa começada, ora era a moça mais diligente esperando a outra caprichar no cabelo, a descida tagarela para a várzea, os olhares ansiosos e por fim a mentira, talvez, do diálogo não acontecido com o artista. Enquanto isso, os homens trabalhavam e não viam nada. Só sei que o barulho foi pra mais de uma semana. Já o outro acontecimento causou mais estrondo, pois a fábrica ou depósito de pólvora que havia na Rua Coronel Bento Bicudo pegou fogo. Foi uma loucura: vidraças estilhaçando, vigas do telhado chegando até o rio como mísseis – a Freguesia do Ó já teve seu dia de Iraque –, mulheres com máquinas de costura ou radiovitrolas na cabeça correndo como se fossem Sansão ou Maciste. Como nesse, também no outro dia, eu não estava em casa. Que sina! Então, quanto à verdade, o barulho infernal do estrondo da fábrica, contei não só com o relato da molecada como também de minha mãe.
A história de Vila Brasilândia confunde-se com a história de amor vivida pelo casal Brasílio e Tereza Simões. O território brasilandiense originou-se através de vários loteamentos. Brasilândia é o produto do desmembramento de inúmeros sítios e chácaras existentes nas primeiras décadas deste século. Em um desses sítios que deram origem ao bairro, foi o lar da dona Tereza e o senhor Brasílio Simões, cultivador de cana-de-açúcar e fabricante da Caninha do Ó, conhecida aguardente da época. A Rua Parapuã, então uma estreita trilha, iniciava-se à altura do 2200 da Avenida Itaberaba, onde hoje está a Igreja Santa Cruz de Itaberaba. Uma pequena porteira servia de entrada para as vilas que se iniciavam. Grande parte da área que ladeava a embrionária Rua Parapuã pertencia à família Siqueira. Com o desenvolvimento do País, do Estado e da Cidade, Brasilândia também sofreu modificações. Os sítios foram desmembrados em pequenas vilas e grande parte foi adquirida por diversas companhias loteadoras, entre elas a Companhia Líder, que era ligada ao Banco F. Munhoz. Recordando um pouco da história, lembramos que a questão habitacional, a pela problemática dos cortiços, que já era um grande desafio para os governantes desde 1896, quando foi elaborado o Código de Posturas do Município de São Paulo, com um capítulo intitulado: Cortiços, casas de operários e cubículos. Interessa esclarecer que, pelo fato das construções de cortiços serem vedadas nas zonas centrais ou comerciais, é justamente nas áreas mais problemáticas e recém-integradas ao perímetro urbano do município que eles se disseminaram.
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Os governos paulistanos, preocupados com a beleza e o saneamento no Centro da cidade, executaram reformas urbanas, como a do início de 1910, que, alargando as ruas e derrubando os cortiços, promoveram um verdadeiro êxodo dos proletários em direção à periferia, pois os imóveis que resistiram à demolição tiveram seus aluguéis aumentados em até 200%. E são exatamente essas famílias, fugindo dos altos aluguéis, que am a adquirir lotes residenciais na iniciante Brasilândia. Somavam-se, ainda, famílias vindas do interior, em busca de melhores condições de vida. Como essas pessoas já se conheciam anteriormente, a Brasilândia, em seu início, era como uma grande família e todos viviam em comunhão. A grande maioria das casas foi construída pelos próprios moradores, em mutirão, onde um vizinho era ajudado pelos demais e, assim, o bairro foi crescendo. Em 28 de fevereiro de 1964, Brasilândia foi elevada a 40º Subdistrito da Capital, delimitando-se com Freguesia do Ó, Pirituba e Perus, englobando as vilas que estão neste espaço. A Brasilândia é maior, em extensão e população, do que muitas cidades interioranas. No início, pequenas chácaras e pequenas vilas formavam o território brasilandiense. Entre elas: Vila Nina, Vila Áurea, Vila dos Portugueses e Vila Serralheiro. Várias famílias escreveram a história do bairro, Simões, Bonilha, Budin, Algante, Okada, Yamazaki, Ono, Rodrigues, Souza, Campos, Santos, Gomes, Cardoso, Antonio Cruz, Gatto, Caetano Pinto, Galdino, Pereira dos Santos, Fraga, Guilherme, Soares, Tille, Pita, “Chico Baiano”, Compri, Conzales, Zolezzi, Linge, Barbosa, Pavão, Brugnera, Revite, Albano, Coiro e muitas outras.
Eu moro na Brasilândia há 55 anos e lembro com muita saudade dos paus-de-arara, caminhões que transportavam trabalhadores, depois vieram os ônibus papa-filas, eram “cavalos mecânicos”, como as carretas de hoje. Quantas saudades daqueles tempos. Até hoje moro na Rua da Moeda, a mais famosa de Vila Brasilândia por suas festividades o ano inteiro. Rua de lazer, onde há muitas brincadeiras, crianças, jovens, adolescentes. Temos também o Point da Moeda, Churrasquinho Jorge, Bar Alemão, Mercadinho Zizi e muitas crianças, viva a Rua da Moeda, rua de amigos. Oswaldo de Brito Tenho hoje 53 anos, nasci na Brasilândia em 1954, próximo ao Morro Grande. Morei na Rua Guariroba, travessa da Parapuã. Lembro do primeiro cinema na Vila, perto da Igreja. Luiz Costa Victor
Um Jaçanã de 1960 Lúcio Kume O trotar de cavalos a puxar carroças estalando nos paralelepípedos; o badalar dos sinos de todos os dias; o apito inconfundível da maria-fumaça; as músicas celestiais e fúnebres que ouvíamos vindas do seminário em feriados da Paixão e Finados; o majestoso corredor de árvores – o campo do Guapira à esquerda, logo no início – que formava o caminho de entrada do hoje centenário Hospital São Luís Gonzaga; o aroma adocicado que ficava no ar da pequena fábrica de balas da Rua Filadelfo Gouveia Neto, e as balas bananinhas que nunca mais revi; a algazarra dos pardais, no lusco-fusco, antes da noite cair no taquaral; o som de água corrente de riachos e córregos e a luz suave dos vaga-lumes; as lembranças tantas das ruas estreitas e distantes da minha infância sem dúvida se dissipam cada vez mais em névoa, tal qual a fina garoa tão comum daqueles dias. Desde fins da década de 1970, mantinha uma curiosidade acerca da localização dos estúdios da Companhia Cinematográfica Maristela. Apesar de ter sido morador do bairro, desconhecia qualquer informação sobre a sua existência. Uma exposição de fotos sobre a Maristela no Museu da Imagem e do Som (MIS) foi o meu primeiro contato. Depois, navegando por sítios de busca na internet, acabei topando com o ótimo Moro em Jaçanã, de José Eduardo Soares de Castro. Além de trazer a exata localização dos estúdios da Maristela, trouxe-me uma outra grata surpresa: a menção da Aremina, um nome adormecido em algum ponto da minha memória e que me provocou, ou melhor, destampou por contigüidade – como se diz em psicologia – o resgate de lembranças outras desse tempo e lugar e, por tabela, estimulou a redação deste relato. A propósito, próximo à fábrica Aremina havia uma pequena lagoa cujas águas de coloração verde-escura, musgosa, contrastavam com a argila bem branca das suas margens. Ela ficava numa rua paralela à fábrica, a Dr. Nicolino Morena. Hoje, presumo que a lagoa se formara com a ação das chuvas num terreno onde se extraía argila e deveria ser de propriedade da empresa. Vivi no bairro por três anos, de 1959 a 1961. Foram os anos do Grupo Escolar Júlio Pestana onde estudei desde o 2º (turma da professora Mari) ao 4º ano primário. Morava na mesma rua onde ficava o Seminário Camiliano, então atrás da Paróquia Santa Terezinha, a Roque de Paula Monteiro. Em frente ao seminário havia um grande campo de futebol e recordo que foi aí, chão batido de terra marrom, onde aprendi a andar de bicicleta. Mais tarde, em 1964, no local foi construído o Ginásio Estadual Professor Eurico Figueiredo. Lembro bem que ainda havia muitos terrenos baldios e as casas, em geral, eram pequenas e tinham quintais; algumas com grandes quintais. As ruas eram de terra batida e somente algumas pavimentadas. O piso do 187
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calçamento da Avenida Jaçanã era de paralelepípedo, material empregado também no grande largo que ficava em frente à estação de trem. O largo em arco articulava espacialmente a estação a uma pequena praça arborizada, a Comendador Alberto de Sousa, onde ficava o ponto inicial do ônibus. Na lateral da estação, havia um chafariz e um grande cocho que servia de bebedouro aos cavalos, tendo também ao lado, um ponto de parada e descanso de charretes. Na época, não havia muitos carros e o uso de charretes e carroças ainda era uma prática comum. O Tancão do Piqueri: algumas vezes, fizemos eios e piqueniques numa região erma e tranqüila que ficava atrás do Hospital São Luís Gonzaga. Lá havia uma lagoa que era chamada de Tancão. Íamos pela atual Avenida Paulo Lincoln do Valle Pontin que saía lateralmente da Praça Comendador Alberto de Souza. Era uma rua de terra com poucas casas e muito mato pelas beiradas; tinha o cheiro de capim característico dando a nítida impressão que adentrávamos a um mundo de feição rural. ávamos por uma ponte e no canteiro, à esquerda, havia uma bica d’água providencial para matarmos a sede. Um adendo: será que ainda estará de pé uma grande árvore que beirava essa rua? Em volta do tronco maior saíam vários outros troncos menores formando um grande tronco que exigia vários homens para abraçá-lo. Uma fotografia, tirada em junho de 1961, testemunha a nossa presença – estavam a minha avó, tios, primos, meus pais e irmãos, junto a essa imponente árvore. Ao final da Paulo Lincoln do Valle, chegávamos à Rua Maria Amália Lopes de Azevedo, na época, uma estreita rua de chão batido com poucas casas e suas chácaras com plantações de hortaliças. Era o caminho para o Cemitério do Tremembé e ava por trás do morro da Vila Mazzei. O Tancão ficava próximo à confluência dessas duas ruas. Na margem direita da lagoa havia uma rua que terminava mais adiante onde havia uma única casa. Na margem oposta, uma grande árvore tombava sobre as águas e servia de trampolim aos banhistas mais ousados. Era muito perigoso nadar nessas águas, diziam. Atrás dessa grande árvore iniciava um enorme morro de mata fechada. Tinha trilhas, armadilhas para caça de animais e algumas vezes, víamos caçadores armados. Os limites do bairro terminavam ao sopé da mata da Serra da Cantareira. Atualmente, a lagoa está soterrada e toda a região transformada e irreconhecível; tornou-se um vasto bairro densamente ocupado. O Tramway da Cantareira e o Trem das Onze: o trem ava a uma quadra e meia da minha casa. Ouvir o seu apito, de uma maria-fumaça ou de uma locomotiva diesel, tanto fazia, era parte de nosso dia-a-dia. O trem corria em seu próprio leito, ao contrário de alguns locais onde dividia a agem em meio a carros e pessoas. Em Santana, lembro dele correndo pela Rua Alfredo Pujol e pela Avenida Cruzeiro do Sul. Entre as estações Vila Mazzei e Jaçanã, duas estreitas ruas de terra que tornaram-se a atual Rua Benjamim Pereira, margeavam os trilhos e havia um trecho, paralelo à
Avenida Jaçanã, que ficava num patamar superior formando um barranco em relação aos trilhos e à rua oposta. Muitas vezes, com os colegas do Júlio Pestana, voltávamos caminhando pelos dormentes dos trilhos. Pois bem, as minhas memórias afetivas do Jaçanã da minha infância ficam por aqui. Em 1965, morando no vizinho bairro do Tucuruvi, vi acontecer o sucesso do Trem das Onze. Coincidentemente, no mesmo ano ocorreu a desativação do trenzinho da Cantareira. A bela canção que havia vencido o carnaval do Rio de Janeiro no ano em que a cidade comemorava o seu IV centenário, do genial Adoniran Barbosa e seu estrondoso sucesso – gravado pelos Demônios da Garoa – brilhou fugaz como uma estrela cadente e tornou o bairro conhecido nacionalmente. Lançar um olhar ao ado de cada um de nós dando voz ao vivido não é uma tarefa fácil. Os chamados das lembranças teimam vir à tona na linguagem dos sentimentos. Silenciosamente, à revelia, sem qualquer garantia de alegria ou tristeza; nossos sonhos se alimentam dessas ausências. Nasci no Edu Chaves, praticamente uma vila do Jaçanã; vivi a magnitude de “ter infância”. Era um tempo diferente, mais colorido e rico de imagens e pessoas. As rotinas de aguardar os finais de semana para ir ao Cine Coliseu, na sua matinê, deixava a gurizada eletrizada. Era uma mistura de rural com cidade. Havia vacas, cavalos, animais silvestres, pássaros e muita felicidade. Nosso trem, que saudade! Vi por algumas vezes, na região do Cine Coliseu, na Avenida Luiz Stamatis, o saudoso Procópio Ferreira e sua filha Bibi Ferreira. Nossos vizinhos diziam que eles tinham várias propriedades naquele trecho e que ambos foram sócios dos estúdios Maristela. Roberto Santos Vaz A Zona Norte está em minha vida há muito anos: Ataliba Leonel, Álvaro Duarte, Tanque Velho, Dom Meinolfo Voss, Piatá e Rua das Vetentes. Nesses lugares pudemos conhecer pessoas inesquecíveis. Personagens que mostram que São Paulo não é fria e sim acolhedora,são lugares onde vizinhos se aproximam e criam vínculos que não se dissolvem com o tempo. São lugares que mostram o verdadeiro coração que existe nesta cidade, onde acabamos conhecendo tantas pessoas como o senhor Manoel da padaria, a dona Suzukida da banca de legumes, da feira de domingo, a tia da banca do pastel, o Joaquim do açougue, vizinhos com seus “bons-dias” e sorrisos que nunca esquecemos. Consolata Panhozzi ei toda minha adolescência na zona norte, mais precisamente no bairro de Santana e, no meu tempo, a Avenida Cruzeiro do Sul ainda estava sem calçamento e com seus eucaliptos, cujo avanço do bairro
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levou a partir da década de 1940, porém, ainda nesta avenida, está o prédio do antigo Grupo Escolar Buenos Aires, onde fiz meu curso primário, sob a direção do professor senhor Peter. Flavio Rocha
Moro em Jaçanã... José Eduardo Soares de Castro Mudei para o Jaçanã em 1961. Era tudo muito diferente. A Avenida Guapira era bem estreita e a maioria dos imóveis eram residenciais. A Guapira e praticamente o bairro terminavam na esquina com a Luiz Stamatis, naquele tempo Avenida Edu Chaves, no imenso portão do Asilo dos Inválidos Dom Pedro II. Atrás do Asilo ficava o Ginásio Julio Pestana e mais além, depois da linha do trem e do antigo campo do Guapira, atual Avenida Antonio César Neto, ficava o Hospital São Luís Gonzaga, antigo Hospital dos Leprosos. Íamos muito ao Cine Coliseu então na Avenida Edu Chaves e ao Cine Aparecida, na Avenida Jaçanã. Em 1964, foi inaugurado o GEPEF, Ginásio Estadual Professor Eurico Figueiredo, que abrigou os alunos do ginásio. O Julio Pestana ficou só com o primário, juntamente com o Grupo Escolar de Santa Terezinha. Do lado direito de quem desce a Guapira, entrava-se pela Rua Francisco Rodrigues, onde havia duas chácaras e um imenso terreno de onde se tirava argila para a Aremina – indústria de tijolos refratários. No final dessa rua ficava a Cinematográfica Maristela que, com tantos filmes bons, alegrou gerações. Nessa época já estava abandonada. A rivalidade dos alunos do GEPEF, Santa Rita e Aparecida era grande no futsal. Quando jogavam, os colégios ficavam repletos de alunos das duas partes porque geralmente o pau quebrava. Isso sem contar com o Colégio Albino Cesar e o Colégio Estadual Doutor Octávio Mendes, CEDOM. O GEPEF tinha uma seleção de Futsal que jogava aos sábados à tarde. Quem chegava tarde não conseguia entrar, tamanha multidão. Em dois anos só perdeu um jogo, para o Centro de Preparação de Oficiais da Reserva OR. Era um time maravilhoso que até hoje permanece na memória de quem viu. Para terminar não posso deixar de falar do famoso trem do Jaçanã, que virou o trem do Adoniran só por causa da rima, pois ele nunca morou lá. Lembro da última viagem, quando o trem ou por onde hoje é a Avenida Abílio Pedro Ramos, por volta das 18 horas tocando insistentemente seu apito. Era a maria-fumaça dando seu adeus.
Vila Maria Baixa Luiz Ramos Na década de 1970, a Vila Maria Baixa era meu lugar preferido em São Paulo. Aquela velha Avenida Guilherme Cotching, arborizada, bonita; a Praça Santo Eduardo e, lá no fim da rua, a Igreja da Candelária me transmitiam uma sensação de segurança. Aparentemente, nada mudou tanto assim, porém, quando observamos atentamente velhas fotografias, percebemos que mudou sim e muito. Tudo muda e isso é o natural da vida, claro; o importante é que não caia no esquecimento. Esta Vila Maria de que falo, com a Praça Santo Eduardo ao centro, era a artéria principal, o cartão de visita pós-Tietê, para quem se dirigia à Vila Conceição, Jaçanã, Parque Novo Mundo etc. É claro que havia muitos outros caminhos, mas era o mais gostoso, embora, talvez, não fosse o mais prático, como não é hoje. Se eu fosse fazer um mapa dos pontos que me trazem saudade em São Paulo, traçaria esse mapa a partir da Rua Catumbi, cruzaria a Ponte da Vila Maria – que apesar de ter sido rebatizada Jânio Quadros, continua conhecida pelo nome original, pois é o que está no coração do povo – seguiria a Avenida Guilherme Cotching até a Igreja da Candelária. À esquerda, a Sociedade Paulista de Trote; à direita, aquelas ruas todas que desembocam na Dutra. Avenida Conceição; das Cerejeiras; Cosmorama; Praça da Alegria; Roland Garros; Luiz Stamat. Aí, alguém me diria, mas este mapa existe; estas ruas estão lá. Porque não as visita? E eu responderia: estão, mas não estão; são, mas não são, ou eu que já não sou?
Nasci na Vila Maria na Rua Horácio de Castilho. Ficou na lembrança os bondes 34-Vila Maria Baixa e 67-Vila Maria Alta, meu pai foi motorneiro desses bondes abertos e camarão desde 1941 até 1965. O número do seu chapéu era 774. Sinto saudades dos cinemas Singapura, Candelária e Centenário, da infância e da juventude e dos tempos em que ainda existiam peixes no rio Tietê. Julio Fernandes de Gouveia Morei na Vila Maria desde que nasci. Estudei no Colégio Estadual Senador Paulo Egydio de 1972 a 1974. Tenho muitas lembranças das ruas, dos colegas de escola, da Igreja Santa Zita e do padre Antônio, dos professores: dona Diva, de matemática; Nazário, de química e Ercília, de inglês. Minha mãe casou-se na Candelária. Fui batizada na Candelária. Minha avó ia à missa aos domingos; e às onze horas havia a missa dos jovens. A Ponte da Vila Maria foi rebatizada Jânio Quadros, porque ali era um local onde Jânio reunia-se com o povo. Aos 5 anos o ouvi e 189
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ainda guardo a frase: — Povo de Vila Maria. Jânio costumava comer sanduíches sobre uma cadeira em um boteco da Praça Maria Montessori. Continuo freqüentando a Vila Maria e, em setembro, flores azuis ainda florescem das árvores que rodeiam a biblioteca. Ai que saudade daquela época! Rosa Simões Andei muito na antiga Vila Maria, em 1950 a Guilherme Cotching já tinha o traçado de hoje, porém, havia a linha de bonde bem ao centro da avenida, as duas vias carroçáveis, esquerda e direita da linha do bonde, ainda eram de terra batida, era um sufoco, por causa da poeira. Na época das chuvas, a inundação era inevitável, lembro que até a Praça Santo Eduardo enchia de água! Turan Bei
Mooca encantadora! Emerson Deienno São Paulo de tantos defeitos e falhas, mas ao mesmo tempo, cheia de encantos, entretenimentos, diria até de poesias, afinal, mesmo em meio ao caos e à violência, sempre nos deparamos com detalhes, imagens ou um ponto que nos traz lembranças antigas, as quais adoraríamos que fossem eternas, ou que nunca tivéssemos saído daquele momento. Pra mim, cada cantinho, rua, esquina ou pracinha da Mooca tem um momento desses. Quem viveu, ou ao menos freqüentou aqui por um tempo, sabe o quanto esse bairro é encantador. Tudo bem, muitos dizem que é um bairro de velho, que não possui atrativos para os jovens e tal. Até é verdade! Mas é isso que faz da Mooca um bairro atraente. Sou descendente de italianos e meus familiares, ao virem do interior, queriam viver num bairro tipicamente italiano. Existia o Brás, que na época era o mais famoso dos bairros italianos, mas, devido à proximidade das fábricas que predominavam na Mooca, escolheram morar nela, pois a residência perto do trabalho diminuía os custos com transporte. Hoje temos 1/3 de toda a família Deienno morando na Mooca e adjacências. Alguns podem até se distanciar para bairros vizinhos como o Tatuapé, Vila Formosa ou Vila Prudente, mas nunca se afastam demais, o cordão umbilical nunca é cortado e jamais será. Hoje tenho 33 anos, nascido e criado nesse bairro espetacular. E como todo cidadão mooquense, sou fiel a ele! Fiz o ginásio na Escola Estadual Doutor Antônio de Queiroz Telles, o colegial no Plínio Barreto, e a faculdade na Universidade São Judas Tadeu; quando criança fui várias vezes atendido no Hospital Infantil Cândido Fontoura e, depois de adulto, no João XXIII;
as baladas com meus amigos eram na Over Nigth e em algumas esporádicas danceterias que abriam na Avenida Paes de Barros, onde saciávamos nossa fome com o delicioso pastel do Salambô, umas das primeiras pastelarias do bairro. Quando saíamos do Clube Atlético Juventus, devorávamos os salgados e doces da deliciosa Di Cunto, apreciando aquele cheirinho de café sendo torrado que vinha da fábrica da União dos Refinadores. Com meus pais ou avô, andava pela Rua da Mooca para fazer compras, sempre com uma paradinha na Martinelli, para comprar um tênis pra mim. O catecismo, fiz na Igreja Nossa Senhora de Lourdes, pois a de Nossa Senhora do Bom Conselho era tão concorrida que nunca tinha vaga. Também não deixava de comer uma fogazza na Festa de San Genaro, todo mês de agosto. Nada melhor do que um bom e velho saudosismo pra reavivar nossa energia vital e lembrar daquilo que nos tornou a pessoa que somos. Ainda hoje, a Mooca possui seus atrativos antigos, romantismo e encanto, e ainda se renova, com lugares excelentes para se reunir com a família e amigos, como o excelente Bar Mooca, na Rua Doutor João Batista de Lacerda; ótima comida, ambiente, bom atendimento, música ao vivo e decoração com tema de Mooca antiga... Uma digna representante do bom e velho encanto mooquense...
Qualquer coisa que fale da Mooca me emociona, imagine que meus pais mudaram de Presidente Prudente para São Paulo em 1945, eu estava com 8 anos de idade. Ficamos dois anos na Vila Pompéia e depois mudamos para a Mooca. Hoje, com 69 anos, ainda me lembro das coisas boas que vivi neste bairro encantador, de onde saiu nosso governador, meu amigo de juventude. Hoje moro em Araraquara, mas jamais esqueço a Mooca, que marca ainda mais porque foi lá que conheci a minha primeira namorada: a linda Ivani. Carlos Roberto Teixeira Trindade
A Mooca dos carroções de lixo puxados a burro Cláudio dos Santos Coimbra Lembro-me da vendinha do senhor Manuel, na Rua Itaqueri. O Carroção de Doces Confiança, no formato de uma diligência, daquelas do velho oeste, parava para descarregar e eu ficava sempre à espera para ganhar um doce. Lembro-me dos bebedouros de água para os cavalos, de ferro maciço e redondo, em formato de chafariz; dos carroções do lixo puxados a burro, aliás, a garagem dos burros ficava ao lado do Cemitério da Quarta Parada, localizado na atual Avenida Salim Farah Maluf.
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Lembro que pegávamos o bonde no Centro e íamos até Santo Amaro para ficar apreciando a Represa de Guarapiranga. É, só viu quem viveu essa época. Lembro-me do velho e bom Colégio Brasilux, dos cines Roma e Ouro Verde. Da turma da Rua Ana Clara e da Rua Itaqueri. As tardes de violão e guitarra, ensaios embalados pelos Beatles, no auge na década de 1960. Por incrível que pareça, brincava e nadava onde atualmente está a Avenida Salim Farah Maluf, outrora antigo Córrego Tatuapé, onde havia uma água cristalina e pequenos peixes coloridos que levava para o meu aquário.
Bons tempos aqueles quando soltávamos pipa em cima do muro do Cemitério da Quarta Parada. Um dos portões do cemitério ficava bem em frente à Rua Itaqueri, e eu, na década de 1960, brinquei muito por ali. Minha avó morou por muitos anos no nº 95, ao lado de uma pequena metalúrgica, do senhor Tomasek. Ah! Isso mesmo, bem em frente à Rua arola, da quadra de futebol de salão do Leão do Norte, onde dei meus primeiros toques na bola pesada. Bem cedinho ava um senhor com uma carroça entregando pão e leite nas casas. Parece que foi ontem. Lembro-me do curral dos burros e dos carroções que eram cinza. Para acrescentar havia vários campos da várzea, como o Lestinho, Caveira de Prata o Brasão e por aí afora. Na Avenida Álvaro Ramos, perto da Regente Feijó, havia o Cine Vitória, recordista de muitas matinês do Zé Trindade e Mazzaropi. Minha mãe, minhas irmãs e eu vínhamos a pé da Água Rasa até a memorável Rua Itaqueri, onde morava vovó. Arakem Arcari Mendes
Meu Tatuapé Silvia Malta Mandarino Nasci no Tatuapé, nele fui criada e vivo até hoje. Minha casa ficava pertinho do rio Tietê, onde meu pai retirava areia. Minha mãe contava que, em época de enchentes, quando ela era pequena e ia visitar os parentes que moravam na Vila Maria, havia um senhor português que dizia que o “iri i biri” custava quinhentos réis; o que significava: ir e vir, ou atravessar o rio e retornar, ao Tatuapé. Também recordo que na ponta da Rua Ulisses Cruz, havia um cidadão famoso que tinha o apelido de Capiau e que era fã ardoroso do Nelson Gonçalves. Ficou conhecido porque colocou um alto-falante num poste no último volume e, aos sábados, todos ouvíamos as românticas músicas selecionadas por ele. Bom demais. Pena que é ado.
O Tatuapé Renato de Castro Ferro Morei no Tatuapé, mais precisamente na Rua Maria Eugênia, entre os anos de 1963 e 1986, durante os quais estudei no Colégio Fernão Dias, no Educandário Espírito Santo, na Escola Erasmo Braga, no Colégio Estadual Osvaldo Catalano e na Escola de Ensino Supletivo Santa Inês. Fui sócio do Corinthians durante todos esses anos com muita honra e, como torcedor, tive o prazer de ver o Timão ser campeão em 1977 e, depois de muito sofrer, fui comemorar na Avenida Paulista. Naquela época, a Avenida Celso Garcia possuía um comércio forte, com mercados de frutas, cinemas, farmácias, lojas de calçados, padarias e bares, além dos prédios residenciais, tudo muito bem cuidado. O movimento dos ônibus que vinham da zona leste e vice-versa era tão intenso que os engarrafamentos eram constantes, obrigando os ageiros a seguirem a pé a viagem para não chegar atrasado ao trabalho, como várias vezes aconteceu comigo, pois trabalhava no bairro do Belém, próximo à Rua Gonçalves Dias, e dependia do transporte coletivo. Não sei se é verdade, mas ouvi dizer que o movimento de ônibus na Avenida Celso Garcia era o maior do mundo naquela época. Com o ar do tempo e atingindo a maioridade, comecei a dirigir e a freqüentar a Praça Silvio Romero, que havia se tornado o point da juventude da zona leste. Também freqüentei o carnaval do Sport Club Corinthians, um dos melhores de São Paulo, que era apreciado por grande número dos moradores das redondezas do clube. Os blocos de carnaval formados pelas turmas de rua disputavam prêmios que eram entregues pessoalmente pelo presidente do clube e sua esposa, senhor Vicente Matheus e senhora Marlene Matheus, que também eram “patrimônios” do bairro, visto que moravam na Rua Maria Eleonora, travessa da Rua Maria Eugênia.
Ruas de baixo, de cima e do meio José Camargo Beira Nasci e me criei no bairro do Tatuapé, no tempo em que as crianças nasciam em casa. No meu registro consta que nasci no número 60 da Rua Felipe Camarão. Quando ainda era pequeno, meus pais mudaram para a parte de cima do bairro, onde ficavam as linhas do trem da então Central do Brasil, para a Rua Visconde de Itaboraí, e lá ei os melhores anos da minha vida. Tinha três turminhas que formavam times de futebol, e jogávamos uns contra os outros, o pessoal da Rua Tijuco Preto era da turma de cima, os 191
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da Rua Platina da rua de baixo, e nós, da Rua do Ouro, atual Padre Estevão Pernet, éramos da turma do meio. Quantos torneios disputamos e quantas brigas de moleques também! Quando esse pessoal cresceu, as amizades cresceram junto, então surgiu o Cruzeiro do Sul F.C., que depois se tornou o famoso Cruzeirinho do Tatuapé. Os bailes de então eram memoráveis, as moças todas perfumadas de laquê e os rapazes de terno e gravata, dançando ao ar livre. Quem é desse tempo deve lembrar. Outro dia, ei por esses locais e vi, com saudade, a sede do querido Cruzeirinho, que tanta alegria me deu. Saudades do Rebeca, do Calu, do Careca, do Pinduca, do Gino, do Bolinha, dos irmãos Jameli, do meu primo Heitor, dos bares do português seu Zé, do Risadinha e do Jardim, das risadas estridentes do Ratera, dos amigos.
Saudades da Penha Rubens Rosa Sou paulistano, tenho 58 anos, economista, nasci e vivi no bairro da Penha. Penha das saudades, saudades da minha infância andando descalço, saudade do meu primeiro trabalho na RCN–Radiadores, quando eu andava a pé, pois o dinheiro não dava para o ônibus; saudades dos cinemas Júpiter, Penha Príncipe, Penha Palace, Cine Paz, saudades do Clube Esportivo da Penha, saudades de andar de bonde camarão pelas portas dos fundos para não pagar agem, saudades de correr pelos trilhos dos trens da Central do Brasil, saudades de jogar bombinha nas casas, saudades de correr atrás dos balões, saudades da missa de domingo com calça curta azul-marinho, saudades dos bailinhos com o conjunto Dimensão 5, saudades de nadar e beber a água do rio Tietê, saudades de jogar bola na rua, saudades das igrejas de Santo Antônio e Santo Afonso; saudades do curso de issão, saudades de ver a nota para ir para o primeiro ano do ginásio, saudades das brigas com a molecada da rua, saudades das feiras de domingo, saudades de vender verduras da chácara do meu pai, saudades da primeira calça jeans que eu comprei, saudades de pular a fogueira, saudades de pagar no bar para ver televisão em branco e preto, saudades das matinês de domingo, saudades do Capitão 7. Saudades de ir ao Mercado Central às 4h da manhã para ajudar a montar a barraca da feira, saudades de ear com a minha mãe pelas lojas da Penha; saudades da procissão da Sexta-Feira Santa e da missa da Páscoa, saudades do fogão a lenha da minha mãe, saudades do banheiro da minha casa que era no quintal, saudades das minhas alpargatas, saudades de pular o quintal das casas para catar amoras, saudades de tocar a campainha das casas, saudades da saída da escola que eu esperava o senhor Paschoal Thomeu ar de carro para
pedir carona, saudades das quermesses nas igrejas da Penha, saudades do primeiro show do Roberto Carlos, no Clube Esportivo da Penha, saudades das matinês de carnaval, saudades de ver a minha mãe esperando por mim no portão às 10h da noite quando da volta dos bailinhos, toda essa saudade foi no bairro da Penha.
Tenho 57, nasci e cresci na Vila Ré e ir à Penha, quando criança, era como visitar a Cidade. Comer pastel na pastelaria chinesa, doces sírios na ladeira, ver o pontilhão do trem da “variante”. Hoje moro em Poá, mas a família ainda mora na Vila Ré. Lembro também dos cartazes do Dimensão 5, nos muros, – dos Fanáticos; não freqüentei muitos bailes, era “durango” na época e só ia aos bailinhos “pró-formatura” do ginásio. A minha foi no Esportivo da Penha, chique. Eu ficava ao lado do palco vendo a banda porque, na época, já iniciava a carreira de músico, motivado pelo meu pai e muito pelos Beatles. Depois, com o casamento, tomei outros rumos, trabalhei 23 anos na Caixa Econômica Federal, onde minha primeira agência foi a Penha, na Rua Dr. João Ribeiro, quase em frente ao Cine Júpiter. Mas nunca deixei a música. Em 1979 eu fiz uma poesia sobre o bairro onde crescemos: Se nos ventos eu voltasse aos ventos que já ventaram, aos os que eu caminhei prá descalço poder correr nas descalçadas ruas da vila, que prá mim, pequeno, era o mundo. Que saudade do campinho, da grama de manhãzinha, do canto alegre nos galhos, das rodas dos trens na linha. Do cheiro do mato verde molhado pelo sereno; da terra, do chão molhado. Das brincadeiras, das brigas, dos quintais, das bananeiras, dos furtos e das corridas, dos tombos, da choradeira, dos sustos da minha vida. Wilson Jorge Com as saudades me vem na lembrança o mercadinho da dona Aurora, o armazém dos irmãos Barros, e eu, aos 12 anos, inventava mil coisas a comprar só pra ir ver e conversar com o Maneco Barros, por quem eu era “apaixonada”, que saudades! Quando ele ficou doente e logo após faleceu, fiz calos nos pés, com aquelas terríveis alpargatas, indo todos os dias ao cemitério da Penha, no túmulo do Maneco. Quantas saudades dos tempos que não voltam mais! Lá se vão mais de meio-século de saudades... Ana Laura Gentile Sou nascido e criado na Penha onde vivo até hoje, portanto, há 33 anos. Meu pai era um penhense de nascença e de coração, me contou diver-
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sas histórias da época dele, inclusive, sobre o show do Roberto Carlos no Clube Esportivo da Penha. Meu avô era vendedor e comprou o terreno ali na Penha quando tudo era chácara; minha avó veio de Ribeirão Preto para São Paulo, vivia no bairro do Brás, mas veio à Penha fugindo, na Revolução Constitucionalista de 1932. Nossa casa era na Rua Coronel Meireles e data de 1938. Meu amado pai sempre teve paixão por São Paulo e em especial pela Penha. Ronaldo
Recantos da Penha Rita Angelotti Mudei para a Penha com meus pais quando tinha 5 anos. Vivíamos próximo ao Córrego Tiquatira, ladeado por chácaras de verduras e flores. Brincávamos nas ruas de terra, sem nos importar com os buracos. Descíamos na beira do córrego, ali havia “prainhas” de areia e os peixinhos corriam pelas inúmeras minas que brotavam pelo bairro, onde tomávamos água sem nos preocupar com doenças e que abasteciam os poços, por meio da bomba que era ligada todos os dias. Na Rua Amador Bueno da Veiga, atravessávamos sempre em cima da ponte para ir à Escola Municipal de Primeiro Grau Luís Washington Vita, maravilhoso “templo do saber” guiado pela dona Lívia. Só faltávamos à escola quando chovia, porque a água levava as pontes de madeira do Córrego Tiquatira.
Minha Penha, minha São Paulo Bernadete Pedroso Nasci na Penha em 1945, onde morei até 1977, quando meu marido foi transferido para o Rio de Janeiro. Tenho muitas saudades do tempo que lá vivi. Saudades dos familiares, amigos e lugares. Então quero deixar registrado aqui as saudades de lugares da minha infância e adolescência que não existem mais, ou estão muito modificados. Tenho saudades da minha Rua Antonio Lobo, dos colégios Santos Dumont, Ateneu Rui Barbosa, São Vicente e do Santo Afonso, onde meu pai lecionou. Tenho saudades dos concursos de fanfarras, onde meus irmãos tocavam, do doutor Pires da Farmácia Marden, da Capelinha Nossa Senhora de Fátima, onde me casei; das ruas Santo Antero, Rosa Pavone, Padre João, Major Ângelo Zanchi; das padarias, Iara e Marquesa; do restaurante São Luís e das lojas Buri, onde trabalhei. Também tenho sauda-
de do Esportivo da Penha, onde éramos sócios e onde pulei muito carnaval; do Júpiter, meu cinema favorito, do Penha Príncipe e São Geraldo; do Largo do Rosário com suas quermesses, onde paquerei tomando muita raspadinha; das procissões e da missa das 10, na Igreja de Nossa Senhora da Penha. E ver São Paulo com todas as suas luzes do alto da ladeira, em frente à antiga Igreja da Penha, era maravilhoso. Agora moro no Rio, mas quando chega o aniversário da minha cidade coloco uma bandeira na janela para comemorar.
Estudei no Colégio São Vicente de Paula, onde a irmã Suzana era a diretora, e lembro que em frente ao portão do colégio tinha uma lanchonete que vendia um sorvete de groselha. Roque Vasto A lanchonete que ficava na frente do Colégio São Vicente era pequena, apenas com duas ou três mesinhas, mas servia um delicioso sorvete com groselha. Que saudade que sinto dos bailes, das matinês no Penha Palace e do Esportivo da Penha, em cujo salão havia uma corda que em época de carnaval, separava os foliões por faixa etária. Às vezes, os mais ousados ultraavam essa corda e iam brincar ao lado dos mais velhos. Isso para nós, os menores, era motivo de muita bravata na quarta-feira de Cinzas. Era divertido. Bernadete Pedroso A grande Penha que nos deu um dos maiores seres do futebol brasileiro. Esportista honesto, educado, que dividiu a Penha com a Mooca, jogando no Juventus. Depois foi parar na Portuguesa, de lá para a Itália e sempre com o coração voltado à Penha, onde aplicou todo seu dinheiro em muitas propriedades, e um campo de futebol para o seu time. Da Itália para o grande Palmeiras onde teve o respeito de todos. Naquele maio de 1959, quando os cariocas o vaiaram, o moço da Penha se mostrou forte, e em pleno Maracanã, inverteu as vaias em aplausos: “Eu sou o ponta Julinho tão bom quanto o Garrincha. Eu sou Julio Botelho”. Mário Lopomo
O sol nasce no Leste Mylene Cyrino Basso Fui a típica garota da classe média da zona sul. Morei no Planalto Paulista, Moema e Jardim Aeroporto. Estudei na Vila Mariana, no Paraíso e me formei na USP. 193
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Nas décadas de 1970 e 1980, a São Paulo pós-moderna começava a se delinear. Casas apertadas, tristes, pequenos quintais cimentados. Apartamento “caixa de fósforo”, vista a se perder de prédios. O sufoco só diminuía nas longas voltas com o cachorro, no Parque Ibirapuera. Ou então, mais tarde, nos dias inteiros ados na Cidade Universitária, mais por gosto que por precisão; mais pelo verde que pelos livros; mais pela turma que pelas aulas. Liberdade também é cultura. A vida segue em frente, como tem que ser. Conheci meu marido, o longo namoro, o pedido de casamento e uma condição: filho único, ele não poderia abandonar os pais idosos que moravam na Penha, no outro lado da cidade, na “famigerada”... zona leste, pesadelo e desterro das “patricinhas e mauricinhos”. Fui conhecer a casa dos pais, o terreno de 500 m² que viria a abrigar também a minha casa. Amor à primeira vista: quintal enorme, cheio de árvores! Pitanga, jambo, romã, caqui, ameixa, carambola, manga, amora. Tudo à disposição permanente, dezenas de sabiás, maritacas, bem-te-vis. Fora o menu de flores, especialíssimo para os colibris, abelhas e borboletas coloridas. Horta. Terra. Pés no chão. Casei, mudei, nem lembranças deixei. Construí minha casa, tive dois filhos; possuo quatro cachorros, galinhas, tartaruga, naquele bairro antigo e maravilhoso. Cheio de casinhas pequenas e quintais enormes. Árvores, árvores e árvores. Os vizinhos se conhecem e conversam. Bom-dia, boa-tarde, boa-noite, aos conhecidos e desconhecidos. Em junho, as fogueiras iluminam os quintais, cheios de bandeirinhas, inclusive o meu. As velhinhas fazem quitutes em casa e ainda ensinam as netas. Os comerciantes dão balas às crianças dos fregueses e sabem o nome de todos. Calor humano, respeito, horizontes. Da varanda da casa de minha sogra, avisto ao longe o compacto dos prédios que acompanham o metrô. E o pisca-pisca das torres, sinalizando o distante espigão da Avenida Paulista. Fui uma típica garota classe média da zona sul. Hoje sou penhense, de adoção e coração. O sol – lindo de se ver do meu quintal – nasce no Leste.
Quem conhece a Vila Ré? Douglas Dias Para os amantes de São Paulo, mais um cantinho a ser descortinado. Saindo do centro da Penha, continuando pela Avenida Amador Bueno da Veiga, encontramos uma placa de o à ela: Vila Ré. Lugar com visual da década de 1970, com a Rua Itinguçu como principal via, este bairro da zona leste, tranqüilo e cheio de saudosismo, retrata uma cidade que precisa descansar.
Suas ruas de nomes indígenas entrecortam um comércio em expansão e a rotina pacata dos moradores. Com poucas opções de lazer e cultura, seus principais destaques são o Circo-Escola, colado à Estação Patriarca do Metrô, e a sede dos motoqueiros conhecidos como “Abutres”. Jô Soares já engrossou o time dos roqueiros motorizados. Aos finais de semana, ao lado do Viaduto Itinguçu, é possível se deparar com motos Harley-Davidson e triciclos no melhor estilo Mad Max. Uma mistura de cultura grunge com punk, em que se reconhece facilmente o legítimo estilo rock’n roll. Ponto alto da rotina paulistana é a feira livre, às terças-feiras. As pessoas que circulam por ali têm ares de nossa infância. Senhores que facilmente nos cumprimentam, mulheres escolhendo o que há de melhor nas barracas e uma confusão colorida entre as promoções dos tomates e bananas. Momentos especiais, para os bons observadores, para se apreciar ao sabor do caldo-de-cana e do pastel – tradicionalíssimos. Próximo também da Avenida Governador Carvalho Pinto, com uma respeitável infraestrutura de bares e restaurantes, este recanto da cidade é convidativo num sábado à noite. Para os mais religiosos, logo na entrada da Rua Itinguçu pelo viaduto, vê-se a Igreja de Santo Antônio, que conta com uma pequena, mas tradicional quermesse no mês de junho. A Vila Ré é mais do que um bairro para se conhecer. É um lugar para morar e sentir-se bem.
Eu tive o prazer de conhecer a Vila Ré da década de 1960 e aproveitei cada cantinho dela para me divertir durante minha infância e adolescência. Agora existem os “Abutres”, mas a Vila Ré já teve seus lambretistas dos anos 1960. Aos sábados e domingos, a Rua Itinguçu ficava com muitos deles fazendo seus barulhos e paquerando os brotos. O parque de diversão era o ponto de encontro, e ficava em frente ao cinema e ao lado do baile, onde todos iam para dançar. E como dançamos naquele tempo! E a quermesse já acontecia ali na Igreja de Santo Antônio. Marilene Paranhos Lá ei minha infância, minha festa de 15 anos, minha adolescência... Me lembro da Fábrica HiKari que era pertinho de casa e da Fábrica Seven Boys, que exalava um cheiro gostoso de bolacha que eu sentia quando ia para a escola. Solange Vivi parte de minha infância na Vila Ré. Lá nasceram quatro de meus sete irmãos. Somos descendentes de imigrantes espanhóis. Moramos na Rua Balbina Ré, lembro-me da Igreja de Santo Antônio, onde três de nós
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fomos batizados. Depois, mudei para o Jardim Lisboa, próximo da Vila Ré. Lembranças lindas, puras e eternas trago comigo. Quando mudamos daquela região na década de 1960, eu tinha 7 anos e chorei muito, jamais esquecerei. Maraci Conheci muito bem a Vila Ré e apaixonei-me pela mesma em 1996. Sou uma pernambucana, sertaneja de verdade e fui morar em Sampa aos 10 anos. A situação no nordeste complicou e tivemos – eu, meus pais e meu irmão – que nos mudar. Lembro-me de cada detalhe, de cada árvore desse bairro abençoado. Laiane Torres
Minha Sapopemba
O principal atrativo cultural do bairro é a escola de samba Combinados de Sapopemba, fundada em 12 de dezembro de 1984, que desfila pelo grupo de o do carnaval paulistano. Homenageando Inezita Barroso, integrante da ala de compositores desde então, a Combinados foi campeã pela primeira vez em 1992. De lá pra cá, muitos artistas aram por seus desfiles como Jair Rodrigues, Maurício de Sousa, Tonico e Tinoco. O o ao bairro é facílimo: o começo da grande e famosa avenida se dá na Salim Farah Maluf, um braço de o à marginal do rio Tietê. Vale a pena esticar e conhecer a cara dessa periferia que tem muita história pra contar.
Sinto saudades das festas que aconteciam no bairro quando eu era criança, do cinema e do ponto final do ônibus Sapopemba que ficava em frente à Padaria Líder, esquina da Avenida Vila Ema com a Rua Tolstói de Carvalho. Dmiro Santos
Douglas Dias Poucas pessoas conhecem as coisas boas presentes nos bairros de periferia. A maioria das vezes que ele ocupa o noticiário da TV ou outros espaços da mídia, os temas não variam muito: violência, pobreza e falta de infra-estrutura. Mas quem é morador há mais de vinte anos percebe o quanto a qualidade de vida no local evoluiu. Basta chegar na altura do número 8500, da Avenida Sapopemba, a terceira maior do mundo em extensão, para descobrir que isso é realidade. Para os vizinhos da zona leste de São Paulo, ela é conhecida como uma região excelente para compras e visitação religiosa. O local, povoado em sua maioria por imigrantes italianos e portugueses, tem na Igreja Matriz uma homenagem à Nossa Senhora do Rosário, muito aclamada em Portugal. Possui uma imagem da Santa do Rosário, padroeira de nossos descobridores, vinda para cá em 1921. Sua arquitetura tem vitrais belíssimos e a nave azul da igreja pode ser vista a longa distância na zona leste. Seu ossário, ambiente de paz e calma durante todo o dia, possui uma capela pequena e aconchegante. É um refúgio ao corre-corre da avenida central. A tradicional Festa de Nossa Senhora do Rosário, completou seus 77 anos em 2006 e acontece durante todos os finais de semana de maio. A comunidade local prestigia o evento, que já foi maior, mas que ainda é motivo de mobilização de todo o bairro. Não há quem não traga na memória boas recordações da festividade das décadas de 1970, 1980 e 1990, quando as caravanas marcavam presença na comemoração. O Mercado Municipal Antônio Gomes fica próximo à paróquia. É uma construção recente, de 1992. Oferece o típico pastel de feira e outros produtos alimentícios.
Vila Prudente, o melhor lugar para se viver Maria Fátima Gonçalves Nasci e fui criada na Vila Prudente. Estudei no Círculo dos Trabalhadores da Vila Prudente, hoje Colégio João XXIII quando a irmã Casemira era a diretora. Tempos bons aqueles! Depois fui para o ginásio, no República do Paraguay e lá conheci os mais incríveis professores que tive na vida. Dentre todos, o professor Edson, de português, uma pessoa humana, maravilhosa, foi o que mais marcou minha vida naqueles tempos. Adorava as peças de teatro que montávamos nas aulas de português e de inglês. Inesquecível foi a nossa montagem de Dom Quixote, em inglês. Eu, a mais alta da turma era o próprio, a Cristina, minha tão querida e chegada amiga, a bela Dulcinéia e a Elisa, a mais fofinha da turma, encarnou Sancho Pança, mesmo sendo nissei! E a nossa adaptação de Clarissa? Revirávamos os baús das avós e tias em busca de roupas de tempos ados para dar mais realismo ao trabalho. Como eram bons também, os campeonatos de handball, quando vinham escolas de toda região para o República, que tinha a melhor quadra. Isso tudo vivendo na Rua Cananéia, mas tendo toda a redondeza como lar, porque todos se conheciam e todos cuidavam das crianças da rua. A casa da dona Ana era uma extensão da minha, assim como a minha era extensão da casa das outras crianças. Eram sempre todos bem-vindos uns nas casas dos outros. Eu, minhas primas e primos, vizinhos e amigos armávamos guerra de mamona no campinho da Marquês de Praia Grande. Vivia de joelho ralado por causa do handball e das descidas desenfreadas ladeira abaixo com o 195
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carrinho de rolimã do meu irmão! Como nos divertíamos sem televisão, sem videogame, sem cinema, sem parque temático, sem aulas disto e daquilo! Éramos corados, saudáveis e absurdamente felizes! Tivemos a melhor infância que poderíamos desejar. Adorávamos bolo Pullman e Ki-Suco depois da aula, os doces da vendinha do seu Salvador, os caquis do quintal da dona Isolina... E quando nos feríamos, corríamos pra casa do seu Chicão, massagista de mão cheia. Protegíamos os gatos vadios da rua que roubavam os peixinhos da fonte do jardim do seu Antônio. Anos depois, estudei no Pantoja e ali fiz o colegial. Tínhamos lá nosso grupo de teatro também, e como éramos entusiasmados! Depois de adulta mudei para a Vila Zelina e agora, novamente, vivo na Cananéia e tenho meu coração cativo nesta região. Não há, no mundo, cidade como esta e, nesta cidade, para mim, não há outro lugar melhor pra se viver do que este lugar, onde ei os mais lindos dias da minha vida e que, ainda hoje, está impregnado das lembranças daqueles dias!
Eu morei oito anos na Vila Prudente, dos 6 aos 14 anos de idade. Esse bairro e as pessoas tinham o mesmo espírito; não existiam crianças de rua porque todos cuidavam delas. Quando estudei no República, havia campeonatos de músicos e era muito legal, já os de handebol eram realizados num clube do Ipiranga. Morei na Rua Cervantes e a “guerrinha” era com a turma da Chamantá... só tenho boas lembranças desse tempo. Bete
É da Vila Prudente que eu sou... João Carlos Muller Quando eu deixo o burburinho da cidade, é pra Vila Prudente que eu vou. Bem ou mal não vou falar em qualidade, é da Vila Prudente que eu sou. Eu vivo na Vila há tantos anos, desde que o velho bonde não ava da estação, desde quando aquelas ruas pequeninas, eram simples e descalças como eu de pés no chão.
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“Atravessar a São João nem sempre era tarefa fácil, principalmente quando a travessia era feita alguns metros abaixo, nas trincheiras que cortaram a São João durante a Revolução de 1924.”
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A única oração que eu conheço Silas Correa Leite É como testemunha que me cabe aqui relatar sobre a única oração que eu aprendi, preso, em estado desesperador. Detido no DOPS, via chegar e sair os suspeitos de sempre, via entrar e sair um torturado vencido pelo horror, via um bando de vaquinhas de presépio levando cadáveres para desovas em cemitérios clandestinos fomentados por um político do estilo rouba e diz que faz, eminência parda à sombra dos três podres poderes. Era o regime de exceção. Era o arbítrio. Eu mesmo senti na pele a dor crucial dessa época. Uma determinação legal da ONU dizia que um povo podia se voltar armado até contra uma ditadura, mas nós estávamos desarticulados e ali nos restávamos aguardando a morte, o exílio, ou as seqüelas que hoje eu sinto que são para sempre. Pendurado num pau-de-arara, sem água, sem luz e sem pão, eu não podia dizer muito, primeiro porque era pela não-violência, segundo porque nunca tinha atentado contra ninguém, minha única arma era a palavra escrita e falada, porque eu era bom de dialética e sabia ocupar meu espaço, denunciando, reclamando, pedindo por eleições diretas e o fim das insanidades palacianas. Se eu soubesse muita coisa, de qualquer maneira, confesso que jamais contaria, eu não era um alcagüete e sabia ar pressões. Mas apanhei muito. Várias vezes. Quase morri. As sombras por testemunhas. Lembro-me, no entanto, que por aqueles labirintos amorais e desumanos, perambulava sempre como um peregrino cândido e terno que, ali nos vinha dar sua palavra de conforto, seu apoio moral, seu largo ombro amigo, na sua tez de seda alva como a neve. Esse anjo em forma de gente era o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns. Volta e meia nós o víamos saindo de uma cela, tentando cobrar autoridades do arco da velha, entre paisanos e militares babaquaras, e muitas vezes ele esteve comigo em meu solitário catre sujo de sangue seco, suor, lágrimas e desespero. Nunca gostei de orações, não acredito nelas. O homem e as circunstâncias são o que valem. Nunca gostei do Pai-Nosso hebraico, muito menos da oração inventada pela Igreja das trevas em tempos profanos de cruzadas que matava pessoas inteligentes e geniais, por temer as reformas de Martinho Lutero e da invenção da imprensa, que promovia cada vez mais a leitura da Bíblia sob diversas óticas e menos conduzidas por cabrestos abismais do Vaticano. Quantas vezes ali, depois de apanhar bastante, machucado, sangrando, a pão e água, eu acordava sofrendo e, entre gemidos, via ao meu lado o Cardeal de São Paulo. Ele me ajudava como podia no rigor do momento, no apurado do trauma, com sua voz fina e meiga dizia, sempre; com a sua branquela mão direita no meu ombro esquerdo:
— Seja forte, meu filho. Procure ar, meu irmão. Sê firme, amigo. E eu o olhava ali, enorme, grandioso, sem nada que pudesse nos ligar, um padre e um comunista, a borboleta e o escorpião, e o ouvia me dar forças, me encorajar para que eu fosse forte, quando eu queria mesmo era morrer logo, pegar de minha cinta e me dependurar num cano alto, morrer enforcado e acabar com aquilo tudo. Para muitos ele foi um bálsamo. Para mim também. Para muitos ele foi a salvação, a âncora entre o inferno e o sonho. Para tantos ele foi o aporte da agonia para a esperança. Um Ser Humano e tanto. Insubstituível. Nunca haverá outro como ele. É na dor, na tragédia, no desespero, no medo e na fome que se conhece o caráter e o referencial de um homem. Confesso que nunca aprendi a rezar, sinceramente não acredito muito nisso. No entanto, cresci, fiquei forte, escapei, virei escritor, fui sovado pela dura lida, e, claro, como ser humano tenho medo, muito medo; tenho presságios, uma angústia-vívere, um ou outro surto psicótico, neuras, e o espírito às vezes atribulado, mais o risco do desemprego, o salário baixo, a falência da educação pública, e assim desenvolvi um medo do escuro, uma intuição de lobo acuado, um instinto tribal. No entanto, nessas horas, vem-me à mente a imagem daquele homem santo ajoelhado ao meu lado, um ateu sonhando com utopias, e ele, Dom Paulo Evaristo Arns, a oração em pessoa. O sentido de uma prece na sua mais altaneira definição. Então alguma coisa em mim, meu espírito aventureiro, talvez, uma certa resiliência psicológica até, talvez uma porta para a luz, fala de mim para mim mesmo, a única oração que eu conheço, que eu aprendi na dor: Seja forte, Seja firme. E eu sinto um calor descomunal me ar pela espinha. Como uma pilha-luz ligada no aparelho da memória recorrente, um arquivo neural que se assoma e me reconforta, me estimula, me incendeia. Um elo de fé? E, confesso, não há melhor oração do que a imagem e semelhança de um homem digno, puro.
Reivindicações salariais Mário Lopomo Nos conturbados dias dos anos de 1960, quando os militares assumiram o poder, dava medo até de andar pelas ruas da cidade. Eu, que era andarilho, tinha dias que voltava para casa às pressas por conta das turbulências, com viaturas policiais correndo para todo canto da cidade, notadamente no Centro. Era uma barulheira de sirenes de todo tipo. Umas parecidas com as do Corpo de Bombeiros e outras da própria polícia. Tinha dia que a coisa estava tão nebulosa, literalmente, pois era uma fumaceira de bombas de gás lacrimogêneo, que a gente ficava com os olhos vermelhos e lacrimejantes. 199
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Tudo isso começou no ano de 1967, logo depois de Castelo Branco sair e dar lugar a Arthur da Costa e Silva. O ano estava chegando ao fim e as reivindicações salariais começavam a pipocar devido à chegada das datas-bases de muitas categorias. O governo por meio do Ministro do Trabalho, Jarbas arinho, decidiu que os aumentos dos metalúrgicos e dos marceneiros, minha categoria, seriam na base da inflação, que segundo eles era de 30% (só por que eles queriam). Nós fomos dentro desse patamar porque a comissão de salário da qual eu fazia parte achava que mandava quem podia e obedecia quem tinha juízo. Já os metalúrgicos queriam 64% de aumento e estavam radicalizando esse pedido. O Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo era a referência para aumentos salariais e o governo sabia disso. Então eles eram os mais vigiados e estavam sempre no olho do furacão. Outra determinação estabelecia que quem desobedecesse seria castigado com um aumento de 21,75%. Nós, do Sindicato dos Marceneiros, estávamos na mesa de negociação do TRT (Tribunal Regional do Trabalho), na Rua Martins Fontes, e depois de três reuniões conseguimos um acordo de 32%, um aumentão diante do período severo de autoritarismo, mas ainda precisávamos do sim da assembléia dos trabalhadores. Como a briga era mais política que qualquer outra coisa, a proposta feita pelo sindicato dos trabalhadores, aceita pelo sindicato patronal, foi aprovada por pequena margem de votos, coisa manjada para não dar muita força à situação, favorita nas eleições marcadas para maio do ano seguinte. Coisas da politicagem. Mas tivemos que discutir muito com a categoria que queria exigir um aumento maior. Eu, ainda um jovem de 26 anos e diante de pessoas bem mais velhas, tive que gritar até de uma forma deseducada e dizer com todas as letras que enquanto nós estávamos numa luta titânica com o sindicato patronal, eles eram velhos rabugentos que só sabiam chegar bem cedo e ficar esperando sentados o que tínhamos resolvido na mesa de negociação. E disse mais: — Ou aceitamos os 32% que está acima do que o governo oferece ou vamos ficar com o castigo de 21,75%. Vocês escolhem. Antes da votação houve uma tremenda troca de insultos e naquele tempo eu falava palavrões em demasia, cheguei a exagerar. Foi quando o presidente do Sindicato Antonio di Chiachio, cochichou ao meu ouvido que tinha federal no pedaço, que era para eu maneirar. Enfim, por uma margem não muito grande o acordo foi aprovado. Naquele mesmo dia estava para ser iniciada a reunião final do Sindicato dos Metalúrgicos na sua sede à Rua do Carmo. Eu e o companheiro Joel fomos nomeados pelo nosso presidente para representar o Sindicato dos Marceneiros. Quando chegamos lá, sentimos um ar carregado, havia muita confusão, o auditório e por extensão o refeitório estavam repletos de sindicalistas gritando palavras de ordem: Joaquinzão, filho disto, filho daquela, pelego, traidor da categoria e outras mais pesadas. Joaquinzão tinha sido
nomeado pelo governo militar. Era, portanto, chamado de presidente “biônico”. Quando a reunião começou, cada orador tinha sua voz sufocada pelo barulho ensurdecedor da platéia, as ofensas foram piorando e a pancadaria se generalizou, foi paulada, cadeirada, bolinhas de gude jogadas para tudo quanto era lado. Nunca senti tanto medo na vida como naquele dia que, escondido atrás da cortina do palco, vi uma cadeira ar bem perto da minha cabeça. Diante de todo aquele quebra-quebra, a reunião foi encerrada sem uma definição. Conclusão: 21,75% foi o reajuste para os metalúrgicos. Pela primeira vez no sindicalismo paulista, um sindicato tinha superado os metalúrgicos, até então referência para todas as categorias. E essa tarefa coube ao Sindicato dos Marceneiros.
Diz a lenda que em determinado ano, duas categorias, uma muito forte e a outra muito fraca, teriam seus dissídios em datas próximas, sendo que a fraca era a primeira. Quando esta apresentou suas reivindicações o Golberi mandou dar tudo, a forte se sentiu estimulada e exagerou nos pedidos e ele mandou que não atendesse a nada, a forte me parece que eram os metalúrgicos. O Ministro do Trabalho, na época, ponderou que assim “quebrariam a espinha” do movimento sindical, ao que ele teria respondido: — A idéia é essa! Antonio Souto
Entre nós estão os teus filhos Hélcias Bernardo de Pádua Ontem completei 61 anos. Estive na reunião da comissão organizadora dos 50 Anos do Costa Manso, escola pública fundada em janeiro de 1957 e que a princípio, funcionava no prédio da agora E.E. Aristides de Castro, Rua Leopoldo Couto de Magalhães Júnior, esquina com a Rua Urussui. Atendia somente a alunos do Ginásio, como era chamado Ensino Fundamental II (de 5ª a 8ª série). Em 1962 foi criado o Colegial, hoje conhecido como Ensino Médio. Depois, em 1964 o Costa Manso foi para a Rua João Cachoeira, 960, prédio novíssimo e construído ainda no governo do Carvalho Pinto, porém inaugurado pelo Governador Adhemar de Barros. Nesse ano, vindo do Ginásio Meninópolis, Brooklin, iniciei o chamado Científico, compondo a primeira turma do novo prédio da Rua João Cachoeira, em frente ao depósito do Mappin, onde hoje temos o Hipermercado Extra-Itaim. Agitados, belos e dourados anos aqueles que se sucederam. Íamos gritar contra o poder lá na Praça da República, na Praça Roosevelt e na Rua Maria Antônia, correndo na frente dos cavalariços da Força Pública,
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soltando bolas de gude. Era um misto de farra juvenil, posicionamento político e necessidade de estar com outros jovens e revolucionários professores universitários. Mesmo assim, nos sentíamos livres. Entoávamos canções e berrávamos palavras contra a ditadura recém-instalada, contra a direita reacionária e provocávamos os coitados da Guarda Civil, até então acostumada a educadamente manter a ordem pública. A Guarda Civil tinha um uniforme garboso, todo azul-marinho e ultra bem-ado. Usavam botinas engraxadas, sempre brilhantes. Os quepes eram azuis, às vezes brancos, e portavam polainas, punhos e capacete (que me pareciam ser de papelão ou couro reforçado) todos brancos, um cinto largo e uma travessa peitoral de couro lustrado. Em dias ou locais de gala, portavam uma espada prateada, com punho dourado e bainha azul e dourada. Quando os estudantes encontravam a Guarda Civil, gritavam: — Entre nós estão os teus filhos. Cuidado, vão feri-los. Era um constrangimento seguido de imediata ordem do superior: dispersar todos.
O censor de plantão do Teatro de Alumínio Miguel Chammas
normalmente existe no pano de boca dos teatros, para se certificar que o “amigo censor” já havia chegado. Esse gesto era feito diversas vezes a cada noite antes de o pano se abrir, pois a presença ou não do censor é que iria medir o grau das bobagens e críticas que seriam juntadas como “cacos” na seqüência da revista. Lembro de uma noite em que depois do terceiro sinal, Costinha olhou pelo furo e, não vendo a cadeira ocupada, colocou de imediato a cabeça para fora das cortinas e deu uma abertura diferente ao espetáculo. Falou para a platéia se preparar, para quem tivesse bexiga solta colocar fraldas, para quem fosse recatado sair e trocar o bilhete por um dia mais tranqüilo, para quem fosse deficiente da audição se aproximar mais, para as solteironas buscarem assentos mais distanciados que evitassem constrangimentos maiores, tudo isso por que o “filho da p...... do censor tinha ido dar o c... e não estava presente para levá-lo em cana”. Eu que tinha resolvido assistir ao espetáculo das coxias naquela noite tive mesmo de trançar as pernas para não me molhar todo. Hoje, o Teatro de Alumínio está vivo apenas na memória de alguns mais idosos. Uma pena!
Na Rua Ouvidor Peleja Sílvio de Lima
Década de 1960, os bondes já não têm ponto na Praça das Bandeiras, e já não sobem a Rua Santo Antônio. No final dessa rua, onde hoje está localizado um enorme estacionamento subterrâneo da prefeitura, havia um teatro, chamado Teatro de Alumínio, que foi construído como se fosse um galpão de estrutura metálica, tão comum nos dias atuais. De forma abobadada, cobertura em folhas de alumínio, tinha uma figura externa bastante simplória, mas, por dentro, era um teatro com todas as dependências necessárias e com boa acústica. Assisti a muitos dos espetáculos que foram ali encenados. Como fato marcante na minha memória, está uma temporada que foi realizada pela companhia do comediante Costinha. O espetáculo, como a maioria encenada pelo comediante, de quem eu era fã, era uma revista com números musicais e esquetes. Os números musicais eram defendidos por um grande e inesquecível amigo chamado Paulo Domingues, que muito cedo ou para o andar de cima. Por ser fã de Costinha e ter o Mingo no elenco, eu ia a quase todas as sessões. Eram tempos negros, a censura atuava com veemência infatigável, o espetáculo do Costinha era bastante visado pelos “guardiões da moral e da família” e ele sabia disso. Na platéia, na primeira fila, a primeira cadeira da esquerda tinha cor diferente das demais, era vermelha, e ficava reservada para acomodar o traseiro de um censor de plantão. Costinha, antes do início do espetáculo, olhava por um furo que
A história que vou contar não é daquelas marcadas por atos heróicos. É uma história simples que tem como cenário principal a Rua Ouvidor Peleja, na Vila Mariana. Eu tinha uns 8 anos, isso em 1972 ou 73, eram tempos de ditadura e com essa idade eu não sabia o significado disso, mas os vizinhos costumavam dizer que era a força do governo em busca de comunistas. Assim como ditadura, comunista era outra coisa que desconhecia e, segundo o que falavam, eram pessoas perigosas, que roubavam bancos, subversivos. Com apenas 8 anos, três palavras já me ocupavam a mente: ditadura, comunista e subversivo. Lembro que um dia fui perguntar ao senhor Carlino, já falecido, o que era comunista e ele tampou minha boca dizendo que aquela não era palavra para estar na boca de uma criança. Perguntei o motivo e a resposta foi que se a falasse novamente, iria contar ao meu pai e “certamente vais tomar um tapa na boca”. Confesso que por muito tempo evitei pronunciar quaisquer daquelas palavras, mas confesso também que quanto mais as evitava, mais me sentia atraído. Era um tempo de muita tensão, porque via freqüentemente carros da polícia andando devagarzinho, olhando os rapazes nas calçadas, alguns bem cabeludos e barbudos. Esses eram quase sempre levados pela polícia, mas reapareciam e tudo voltava ao normal. Uma vez, um desses rapazes, 201
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que morava na minha rua, sumiu e todos ficaram pensando o que poderia ter acontecido com ele. Muitos anos depois, quando eu já tinha uns 25 anos e morava noutro bairro, fui visitar um amigo da Vila Mariana e encontrei com esse rapaz, que durante muito tempo achei que tinha morrido; estava com o cabelo curto e grisalho e com dois filhos adolescentes. A Rua Ouvidor Peleja fez parte da minha infância, lembro das peladas, das pipas caindo, dos piões pipocando sobre o asfalto, e, principalmente, dos fatos aos quais resolvi prestar atenção e que de alguma maneira tornaram-me o que sou hoje: um homem que acredita que se noutros tempos as liberdades eram cassadas e as pessoas encarceradas, hoje não devemos abrir mão de termos os nossos direitos garantidos. Lembro, ainda, de dois vizinhos que também moravam na Rua Ouvidor Peleja e que me chamavam a atenção. Vou nomeá-los de Pedro e João. Eram dois rapazes de 22 a 25 anos que sempre saíam à noite. Tinham cabelos compridos até a cintura, eram barbudos e, se não me falha a memória, às vezes estavam armados. Vivíamos um período de grande agitação política; falava-se muito: “aquele é comunista, é subversivo” só porque era pessoa que não concordava com o governo. Bem, esses meus vizinhos, como disse, tinham o hábito de sair à noite e suas saídas sempre se davam de um modo muito particular, porque eles desciam o corredor da vila de casas, que eram de seu avô, seu Carlino, e seguiam direto para dentro de um carro que ficava de portas abertas. Na minha “inocência” isso tinha dois significados: de um lado, achava espetacular vê-los correndo em direção ao carro parado como nos filmes policiais, de outro, embora não soubesse do que se tratava, imaginava que era algo relacionado com o que estava acontecendo na vida política brasileira e achava que eles eram uns daqueles comunistas, tão falados e odiados, que saíam para bolar coisas contra o governo. Eu os tinha como heróis, porque sem saber verbalizar exatamente o que era, sentia que de alguma maneira faziam coisas para o bem. A vila de casas começava na Rua Ouvidor Peleja e estendia-se até a Rua Padre Machado, onde morava o seu Carlino. Era uma casa grande com um porão. Minhas ingênuas desconfianças surgiram naquele dia, quando decidi saber o que tinha no tal porão que ficava sempre fechado. Na porta havia um buraco e de lá dava para escutar um barulho de máquinas. Eu sabia que seu Carlino não tinha máquinas e o fato de a porta estar fechada e de dentro vir esse barulho, me deixava curioso, como toda criança o é por natureza. Então, fui espiar pelo buraco e a cena que vi não me surpreendeu: Pedro, sem camisa, de bermuda, tirando papéis da máquina. Fiquei de olho para ver se naquele dia, ou melhor, naquela noite, haveria a espetacular escapada. E houve. O dois irmãos desceram correndo a rua, nervosos e mais depressa que o normal, com pacotes nas mãos e nem perceberam que um
dos papéis caiu no chão. Peguei e li algo como: “Fim à ditadura. Precisamos lutar...”, depois o piquei e joguei no terreno ao lado. Os dois irmãos só vieram dar as caras após três dias. Mais ou menos quinze dias depois, seus pais, que tinham uma mercearia, a única da rua, sofreram um assalto. Após a fuga dos bandidos, a vítima quis chamar a polícia e foi convencida pelos filhos a não fazê-lo sob o argumento de que era desnecessário, pois o mais importante era que ninguém tinha morrido. Conselho dado, conselho aceito. Muitos anos depois fui visitar um amigo e resolvi ir ver um dos irmãos. Após algumas lembranças de Pedro sobre quando eu era garoto, perguntei se ele e o irmão não fizeram parte da resistência. Inicialmente, fez cara de que não se lembrava de nada, mas depois de ter ouvido sobre as saídas noturnas, as máquinas no porão, o papel que achei, o assalto sofrido pelo seu pai e do seu receio em chamar a polícia, Pedro olhou da varanda da sua casa para a rua, ficou um tempo pensativo e, voltando-se para mim, deu uma daquelas gargalhadas, que todos reconheciam quando descia o quintal, e bateu no meu joelho dizendo: — Para um menino de apenas 8 anos você era muito observador. Essa foi nossa última conversa, nunca mais fui à Rua Ouvidor Peleja. Espero um dia visitá-lo, dar-lhe um forte abraço e dizer muito obrigado (estendido a todos os outros que participaram) pelo país que temos hoje, com problemas a serem superados no dia-a-dia, mas, pelo menos, com a liberdade de escolher seus representantes.
A caminho da Liberdade Mário Lopomo Dizia o texto de uma música, feita de sopapo (na última hora) e tocada na entrega do Prêmio Roquete Pinto, que para se chegar ao bairro da Liberdade era preciso ar pelas Ruas Paraguai, Argentina, Rússia, Cuba, Espanha e Avenida Portugal. Ruas com nomes de países ditatoriais, numa cidade que também pertencia a um país militarizado. Para nós, pobres mortais brasileiros, chegarmos à liberdade tínhamos de tropeçar em muitos fios eletrificados pelo caminho. Na Praça da Sé, em primeiro de maio de 1967, houve um comício programado pelos sindicatos, aquelas teimosas reivindicações que não davam em nada, a não ser dar crédito a presidentes de sindicatos, meros pelegos, que eram uma espécie de gilete, cortando dos dois lados. Quando o palavrório estava esquentando, já antevíamos que a coisa ia ficar preta. No pouco tempo que os potentes alto-falantes projetavam a voz de um membro de sindicato, veio um gaiato e cortou o fio do microfone com um alicate. A
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Praça da Sé ficou muda por segundos, retomando o burburinho pelas vaias. Logo em seguida, uma pedra foi atirada e por pontaria certeira, foi direto na testa do Governador Abreu Sodré. Por incrível que pareça, um fotógrafo do Diário da Noite registrou a trajetória da pedra. Pronto, a “festa” estava feita. Correria para todo lado, gente correndo sem saber o porquê. Foi uma das muitas vezes que neguinho corria sem ser camelô, fugindo da istração Regional da Sé. Anos depois, já em 1984, quando os milicos já estavam mancos e caolhos, fui ao Sindicato dos Marceneiros, onde era filiado, para acertar minha situação de mensalista. Gente, eu pagava mensalidade. Quando ia saindo, um diretor me deu um convite para a festa que os sindicatos promoveriam em 25 de janeiro de 1984, aniversário dos 430 anos da cidade de São Paulo, na Praça da Sé. Junto com o convite veio um decalque retangular de vinte centímetros por cinco, daqueles de colocar no vidro traseiro do carro, dizendo: Eu quero votar para Presidente. Foi uma festa digna da grandeza da cidade de São Paulo e foi ali que o povo brasileiro pediu pela primeira vez para eleger o Presidente da República. Onde tem aglomeração de pessoas tem político no meio, e eles perceberam que lá poderiam fazer algo para chamar a atenção dos militares para o Brasil sair da escuridão política. Já tínhamos algo a nosso favor: o Presidente da República era filho do grande General Euclides de Figueiredo, um dos baluartes da Revolução Constitucionalista de 1932, embora fosse carioca. O Presidente João Baptista Figueiredo, que se dizia órfão de pai vivo devido àquela epopéia, jurava que ia fazer do Brasil um país democrático. Levou muitas bombas na cara, encarou firme sua obstinação e assim ele afrouxou a corda para levar avante uma concentração em prol da liberdade democrática e consolidar a Assembléia Nacional Constituinte. Aquela nossa festa, sem muito propósito, realmente foi a semente que deu início aos comícios das Diretas Já. Saibam disso. O “dono do Brasil” na época, Ulisses Guimarães, veio com tudo para a esteira da nossa modesta festa. Ele não recorreu aos sindicalistas, mas sim à mídia. Chamou Osmar Santos, que estava no auge da fama como locutor esportivo, para ser o mestre de cerimônia. Doutor Ulisses ia todos os dias às 5 horas da manhã tirar Osmar da cama para encaminhá-lo a diversos lugares a fim de agitar a coisa. E a festa estava sendo cada vez maior. Em cada praça milhões de pessoas se espremiam pedindo o voto direto. Os políticos da oposição estavam em alta. Muitos da situação também aderiram. Os ônibus da CMTC trafegavam de graça para o povo pobre poder ir até o centro da cidade. As emissoras de rádio e televisão entravam na onda transmitindo tudo que acontecia. Exceto a TV Globo, que pertencia ao regime. Mas quando Fernanda Montenegro, contratada da Globo, chamou seus patrões a aderirem ao movimento, eles, timidamente começaram a participar da festa.
E a cada festa, eu me enchia de orgulho por ter sido um dos anônimos que ajudou a começar aquilo que os políticos mascararam. E na hora de votar as diretas, os votos a favor não eram suficientes para dar ao povo as urnas tão requisitadas. Numa manobra escusa, faltaram poucos votos e a eleição direta foi rejeitada na maior vergonha que o Brasil viveu em sua história. Depois de tudo consumado, e por linhas tortas (eleição indireta), o Brasil veio a ser democrático. Osmar Santos, no programa Balancê da Rádio Excelsior, de sua iniciativa, se lamentava anos mais tarde de que, ada toda aquela “festa”, doutor Ulisses não havia lhe dado um telefonema sequer. Nós, seres normais, não devemos nos meter com políticos. Principalmente “raposas”.
Praça da Sé, uma parte da minha vida Silvio de Lima Como tantos outros paulistanos, se me perguntarem o que mais me agrada em São Paulo, dentre tantas respostas possíveis, direi que é a lembrança das Diretas Já e uma outra que mudou minha vida. Era, por assim dizer, a agonia de um regime iniciado com o golpe de 1964. Por mais de vinte anos fomos alijados do processo decisório, não escolhíamos nossos representantes e os que se opam a esse quadro estavam, em grande parte, retornando do exílio após a lei da anistia, promulgada em 1979. Acho que foi o retorno dessas pessoas que deu o real impulso para que a vontade de interferir na vida política brasileira, pouco a pouco tomasse corpo. E foi assim que de pequenas eatas pedindo eleições diretas, logo o movimento adquiriu características gigantescas. Lembro-me do famoso comício da Praça da Sé, que por ser o marco zero da cidade foi escolhida para sediar tal evento. A Sé, como é carinhosamente chamada por nós, já fora palco de outros eventos históricos: lá se rezou a missa em homenagem a Vlir Herzog, mais conhecido como Vlado. Lá, também, fora palco de muitas greves, entre outras coisas. Não seria surpresa tê-la mais uma vez como símbolo de um movimento que desejava pôr fim a um período triste da nossa história. O comício da Sé reuniu artistas, músicos, intelectuais e ex-exilados. Era de fazer correr lágrimas ver o povo em uníssono pedindo eleições diretas; de mãos dadas todos cantávamos o Hino Nacional (foi nesse comício que me apaixonei pela música Menestrel das Alagoas, cantada pela Fafá de Belém, letra do brilhante Milton Nascimento). As diretas não vieram naquele momento, a emenda Dante de Oliveira não ou no Congresso. Ficou o grito abafado pela escolha de Tancredo Neves, pri203
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meiro civil eleito indiretamente Presidente do Brasil, após mais de duas décadas de regime militar. Já era uma mudança concretizada, de fato, em 1989, com a eleição de um presidente eleito diretamente pelo povo. Cada habitante tem uma relação pessoal com a cidade. Eu tenho duas ligações marcantes com São Paulo: a primeira já expus, foi esse evento histórico para a política brasileira; a segunda, se refere a um sentimento amoroso, porque foi na Sé que conheci a mãe dos meus filhos, e com a qual convivo há dezoito anos. Nos conhecemos no dia 13 de maio de 1988, quando foram comemorados os 100 anos de abolição da escravatura, numa eata que se iniciou na Sé e percorreu todo o Centro Novo e Velho de São Paulo. Posso dizer que a Sé faz parte da minha vida, pois foi nela que iniciei minha vida profissional (como boy) e permaneço até hoje trabalhando noutra carreira, mas, ainda, na Sé.
Tenho também uma relação pessoal com a Praça da Sé. Vejo-a como um marco na história do país e na minha vida. Minha avó contava que ela havia acompanhado a construção da Igreja da Sé, pois morava ali perto num hotel que era do irmão dela. No período de sua construção havia muito requinte e elegância no Centro Velho de São Paulo. Ela gostava de narrar muito detalhadamente as roupas, hábitos e lugares e eu adorava ouvi-la. Era como se eu me reportasse para aquela época. Anos depois, eu freqüentei o prédio da Unesp que fica ali ao lado da igreja. Já eram outros tempos, mas ainda havia a imponência dos prédios antigos e da igreja, em meio às árvores, e às palmeiras imperiais, que vejo como observadoras atentas das mudanças que ocorreram ao longo dos anos que se aram. A estátua em homenagem ao Padre Anchieta, o Marco Zero e as escadarias do Metrô são como partes que se integram em equilíbrio. O corre-corre, os engraxates trabalhando indiferentes, as bancas de revistas, os policiais, os meninos da rua e os camelôs gritando para vender seus produtos deram um outro charme ao local. Hoje, sempre o por ali apressadamente, mas dá para observar as pequenas mudanças e irar todo aquele espaço que explode de energia. Consolata Panhozzi
Caminhos paulistanos, caminhos paulistas, caminhos Luiz Ramos Andava meio sem rumo em meados da década de 1970. Acho que o mundo todo andava assim, como eu. Otto Lara Rezende dizia: “Tenho para
mim que sei, como todos os brasileiros, os três primeiros minutos de qualquer assunto”. Acho que era assim que me sentia. Queria aprofundar-me, ávido de conhecimento, mas todas as portas estavam meio fechadas. Tudo se perdia na nebulosidade do pensamento então vigente no país. Eu não pertencia a essa época, ou não me sentia “enquadrado”. Queria mais. Não tinha, claro, intenções faustianas; minha sede se aplacaria com bem menos, com um preço infinitamente menor. Então, no torvelinho de São Paulo, buscava o que a cultura estabelecida me negava. Aí, ei a caminhar com rumo; sabia o que buscava. Criei regras e comecei a andar pela cidade em busca de coisas novas e surpreendentes. Masp, Mam, Pinacoteca, Biblioteca Mário de Andrade. E, num tempo de ditadura, de censura, de televisão massificante, busquei as coisas que precisava. Construí meu interior. Lembro que um dia – 30 de setembro de 1975, em plena primavera brasileira – embarquei em um sonho. Após prestar concurso público, assumi uma vaga no Vale do Paraíba. Deixei minha querida cidade, miscelânea maior da cultura brasileira, e fui beber na cultura regionalista do Vale. Andei pelas ruas que Lobato viu, pelas cidadezinhas que eternizou – não sem uma pitada de maldade – subi a feira da breganha aos pés do Cristo. No rio, naveguei. E, descobri então – na verdade acho que sempre soube isso – que não importa onde ou como a vida aconteça, ela tem de ser plena e, para atingir essa plenitude, só há um caminho: a liberdade, liberdade que só se adquire através do conhecimento que não é um fim em si mesmo, mas a eterna procura.
Olhando com o rabo do olho Mário Lopomo Era 1967, a notícia da morte de Castelo Branco, que havia deixado o poder meses antes, estava repercutindo desde a hora do almoço. Seu avião, um teco-teco, tinha sido abalroado por um supersônico dirigido por um cadete da aeronáutica. Discutia-se se o choque do supersônico tinha sido ou não de propósito. Naquela bronca que estávamos com tudo censurado, gente desaparecida, morta, eu ainda jovem querendo desabafar, estava no bar do Luiz, na esquina da Rua Tabapuã com Bandeira Paulista no Itaim Bibi. Falava um monte de besteira, como, por exemplo, “morreu? Dane-se.” Ou “antes ele, do que eu”. Sem contar palavras de baixo calão num total desrespeito a um ex-presidente da República. Só sei que naquela inflamação, entrou no bar um cidadão para comprar cigarros que ficou de ouvido antenado no que eu dizia. Olhou-me de cima até embaixo, e eu, com o rabo do olho, vi aquela figura
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interessadíssima na minha conversa. Quando ele saiu do bar, já na calçada, olhou para o número do prédio e entrou logo numa casa bem próxima do bar. Pensei: esse na certa é do DOPS. Falei um boa noite bem às pressas sem dizer nada a ninguém, dei uma tremenda corrida de três quarteirões, cheguei à Rua Joaquim Floriano e peguei o primeiro ônibus que ava. O que veio ia para o Rio Pequeno. Não quis nem saber quem era a mãe do guarda. Subi no ônibus e desci na Rua Iguatemi. De lá, fui para o meu território: a Vila Olímpia. Meu local seguro, onde até os cachorros me davam guarida. Acho que se tivesse sido preso naquele dia não estaria hoje contando essas histórias.
Por estes dias, revi um amigo de quarenta anos atrás. Conheci-o na primeira grande agência de propaganda em que trabalhei, na Rua 7 de Abril, no prédio dos Diários Associados. A firma tinha, e ainda tem, grandes contas internacionais, mas poucas emergências, e sobrava tempo para brincadeiras e gozações, em pleno expediente. Um dia, uma bandinha estacionou defronte ao prédio, tocando mal e porcamente. Meu amigo reuniu a turma do estúdio, que, com os potes de água, usados para lavar pincéis, deu um banho na “Furiosa”, literalmente. Apesar do nosso bom humor, nem tudo eram flores na 7 de Abril. Aconteceu o golpe de 1° de Abril, e logo a rua foi inundada por marchas militares, rufar de tambores, clarins e pregações bombásticas. Hinos e orações, em tons cada vez mais histéricos. E, dessa vez, nem dava para jogar água neles. Logo ali foi instalado o comitê do “Dê ouro para o bem do Brasil”, e vi muita gente posuda da agência, entregando seu anel, num verdadeiro “beija-mão” aos militares. Como nos tempos dos imperadores. A diferença é que o anel era o do povo, que o deu de mão beijada, e nunca mais teve notícia desse bem, levado pelos ladrões de plantão. Quanto ao dito “Bem do Brasil”, todo mundo viu no que deu.
Promovíamos bailes a fantasia, festivais de poesia, peças teatrais, feiras artesanais, confecção de fanzines e tínhamos uma grande simpatia pelos partidos de esquerda, principalmente pelo Partido Comunista e pelo Partido dos Trabalhadores. Certa noite, por volta das 21 horas, uma moça, simpatizante do Partido Comunista, desconhecida de nosso grupo e que também não estudava no Hiroshima, entrou na escola e começou a distribuir o jornal Voz da Unidade. Quando a diretora ficou sabendo quase teve um “piripaque”, pois estávamos no regime militar, época da censura, e qualquer tipo de panfleto contra o Governo ou Sistema era proibido. A moça que devia ter seus 18 anos foi expulsa da escola pelo inspetor, com ajuda de vários professores. Minutos após ter pulado o muro, lá estava ela de volta nos corredores do colégio distribuindo o jornal. Desesperada, a diretora não quis nem saber de conversa e ligou para a polícia, que logo chegou numa viatura, um fusquinha, mais conhecido como baratinha, com dois policiais. Eles foram até a diretoria, onde a jovem estava detida sob a vigilância do inspetor e outros professores que nem podiam ouvir falar a palavra comunismo e levaram a moça para a viatura. Alguns colegas perceberam a arbitrariedade que estava ocorrendo e começaram a ar em todas as classes convidando todo mundo para descer e impedir aquela prisão. Todos desceram para o pátio e a baratinha da PM foi cercada. Assustados, os policiais pediram socorro pelo rádio e em poucos minutos o colégio estava cercado de viaturas e policiais armados com metralhadoras. Vários colegas haviam sido detidos, só porque estavam sendo solidários com a “perigosíssima” moça comunista. Um estudante que já estava no camburão me entregou um papelzinho com um número de telefone e pediu para que eu ligasse para sua mãe. Corri até o orelhão, que ficava logo na esquina, porém não cheguei a ligar. Na metade do caminho, mais baratinhas e camburões. “Mãos pra cabeça, entra aqui... vocês estão presos.” – disse um policial armado. Juntamente com um amigo fomos empurrados para dentro da baratinha e conduzidos ao 32º Distrito Policial de Itaquera, mas não chegamos a ser fichados, pois milhares de alunos se negavam a sair do colégio enquanto os estudantes que haviam sido presos não retornassem para a escola. A pressão dos colegas sobre a direção e professores foi tanta que os policiais receberam ordens para soltar todos os estudantes.
Uma comunista na escola
Os três patetas
Antonio Vasconcelos
Mário Lopomo
Em 1983 eu estudava na Escola Estadual Cidade de Hiroshima, em Itaquera, no período noturno. Nessa época, eu fazia parte de uma turma que agitava cultural e politicamente a escola e a comunidade local. Nossa turma era composta por roqueiros, poetas, escritores, artesãos e grupos de teatro.
Foi dia 31 de agosto de 1969. Era um domingo, dia em que o selecionado brasileiro ia jogar sua cartada final contra o Paraguai para ver quem ia para a Copa do Mundo de 1970. Era um domingo que começava com um bonito sol. Logo pela manhã, havia a expectativa nervosa pelo jogo e pelo estado de
Rua 7 de Abril, como nos tempos dos imperadores Luiz Saidenberg
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saúde de Cacilda Becker, que estava entre a vida e a morte. A grande dama do teatro brasileiro tinha sofrido um aneurisma durante o ensaio de uma peça no Teatro Bandeirantes, na Avenida Brigadeiro Luís Antônio. Resolvi naquele domingo ir até a Rádio Jovem Pan fazer uma visita a meu amigo Kalil Filho, que apresentava o programa Show da manhã. Ao entrar no estúdio da rádio na Avenida Miruna, o programa estava nos comerciais, Kalil veio ao meu encontro com a cara de quem comeu sapo pensando que era rã e foi dizendo: Mário, sabe quem morreu? O Presidente. Como ele era corinthiano, já fui logo dizendo: Sei. Foi o presidente do Corinthians! Mário, não é brincadeira. Foi o Presidente da República Arthur da Costa e Silva. Fiquei assim meio macambúzio. Mas me soltei. Porra, Kalil, vim de casa até aqui e não ouvi nada nem no rádio ou na televisão. Morre um Presidente, a repercussão é enorme. — Mário, a diretora da Agência Nacional emitiu uma circular dizendo que a notícia não podia ser veiculada até segunda ordem. O programa continuou e eu me encarreguei de ficar ao telefone ajudando na captação de respostas que os ouvintes davam tentando acertar as perguntas feitas pelo programa. O estúdio ia ficando cada vez mais cheio, não só de ouvintes que vinham para bater um papo, já que no domingo tinha boca livre, mas também de gente da própria rádio e da TV Record que já estava sabendo da notícia da “morte” do Presidente Costa e Silva como, Randal Juliano e sua esposa Darci Carlota, Paulo Machado de Carvalho, Hélio Ribeiro, Narciso Vernizzi e Estevam Bourroul Sangirardi, locutor comercial e produtor do programa. Era uma tremenda angústia. Todos querendo saber notícias a respeito, e Brasília naquela mudez. Estando ao lado do Dr. Paulo Machado de Carvalho perguntei: — Doutor Paulo, será que é por causa do jogo do Brasil que estão segurando a notícia? Ele meneou a cabeça afirmativamente, mas fez uma ressalva: pode ser também que estejam tentando achar um bom motivo para dar alguma desculpa – uma vez que as notícias vazadas diziam que o Presidente tinha sido vítima de uma embolia. Isso porque o Presidente vinha abrindo o caminho para uma possível democracia. O programa acabou no seu horário do meio-dia e saímos todos, imagine, de dentro de uma emissora de rádio, sem saber de nada. A única coisa que sabíamos era que depois do jogo tudo viria à tona. E não deu outra. Logo que terminou o jogo, as emissoras de rádio e televisão entraram em rede e vieram os três Ministros Militares (Exército, Marinha e Aeronáutica) dizer que o Presidente da República tinha tido um derrame, e que seria substituído pelos três. Os chamados três patetas da época. Mesmo com os apelos da imprensa querendo saber como e onde estava o Presidente, nada vinha à tona. De repente, uma foto dele meio de lado mostrada por todos os jornais e revistas. A notícia de sua morte foi dada no dia 15 de outubro daquele fatídico ano de 1969. Até hoje não se sabe se Costa e Silva morreu dia 31 de agosto ou 15 de outubro.
Dr. Jivago, a Febem e eu Zélio Andrezzo Em 1966, o filme Dr. Jivago ficou em cartaz no Cine Metro, na Avenida São João, por aproximadamente dois anos. Não tenho constrangimento de dizer que o assisti por 86 vezes. Foi uma experiência e tanto; eu era um garoto e Lara foi a figura feminina que mais me impressionou na época. Depois seu noivo, Pasha, representado magistralmente por Tom Courtenay, pela sua personalidade e caráter forte. O filme Dr. Jivago foi uma obra-prima do diretor David Lean, adaptando o romance de Boris Pasternak, que colocava em pauta um triângulo amoroso, ou melhor, uma paixão que estava acima de qualquer coisa, tendo como pano de fundo a Revolução Russa e a Primeira Guerra Mundial. Romance que fez Boris Pasternak, formado em Filosofia na Alemanha e filho de um professor de pintura e de uma pianista, receber o Prêmio Nobel, na Suíça e não na Rússia, pelo fato do comportamento da figura central, Dr. Jivago, ir na contramão do sistema implantado na União Soviética. Trabalhava na Rua Formosa e toda noite ia assistir Dr. Jivago. Acabei por decorar o script do filme. Cenas fantásticas, fotografias incomparáveis, atuações memoráveis. Foi no cronograma da minha existência, até hoje, a maior obra do cinema. Quem lembra da cena em que Komarovsky leva Lara de trenó, deixando Dr. Jivago sozinho num casarão no meio da neve, já no final do filme? Eu morava quase em frente ao Cine Metro e minha vida nessa época era na Rua Formosa, São João, Largo do Paissandu, quando almoçava no Giratório. E tinha o Ponto Chic, onde tomei café algumas vezes. Era um período de ditadura, e lembro que uma noite ao sair do Cine Metro fui pego sem documentos, pelo exército, na Avenida Ipiranga. Não podia provar quem era e sem ter como convencê-los de que era menor, acabei sendo levado para uma delegacia em Campos Elíseos. Quando o delegado me perguntou quem eu era, sabia que não adiantava dizer a verdade por estar sem documentos, então disse que era um príncipe. Ele olhou para o investigador ao lado, e voltando-se para mim disse: Garoto, diga-me onde é teu reinado que quero ir embora com você e largar toda essa m... aqui! Foi uma risada só. Expliquei que tinha 16 anos e havia deixado os documentos no trabalho. Mesmo assim, fui levado para a Febem na Celso Garcia onde permaneci um dia e uma noite. O almoço era servido num prato plástico azul bem sujo, com as bordas encardidas: arroz, feijão e uma coisa a mais, que até hoje não sei o que era, e mais uma banana de sobremesa. Um garoto servia o almoço, e outro, maior e forte, controlava a turma sozinho e era respeitado. Lembro quando fui olhar através da cortina de uma porta e ele me impediu com a autoridade de uma madrasta de contos infantis. No dia seguinte fomos levados ao centro da cidade para um lugar que ficava numa rua íngreme perto da Praça das Bandeiras. Lá, fomos colocados
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em fila para prestar depoimento. Na minha ficha ficou: “constado falta de documentos”, e fui liberado em seguida. Durante o militarismo era permitido tomar um sorvete na Praça da República à meia-noite sem perigo, desde que documentado. Mesmo depois desse episódio, já no dia seguinte, fui assistir a Dr. Jivago novamente. Tinha as minhas cenas prediletas e os diálogos favoritos, uma das mais inesquecíveis era a de um bolchevique que no trem, acorrentado, dizia: — Sou o único homem livre neste trem, e não há nada que possam fazer contra esta liberdade! Eu, nos meus 16 anos, senti essa frase me atravessar o peito e aprendi que a liberdade está dentro de cada um de nós. Mesmo em tempos de regime totalitário, vivia a liberdade da embriaguez sem vinho da juventude.
Fui pego dezenas de vezes sem documentos e nunca fui parar no xilindró. O filme Dr. Jivago foi um dos melhores que já vi. Eu assisti só duas vezes, com minha namorada, que está comigo até hoje. Mário Lopomo
A aventura de uma escultura Felipe Andery O monumento em homenagem ao poeta Garcia Lorca de autoria de Flávio de Carvalho que está instalado na Praça das Guianas foi alvo de um atentado do CCC (Comando de Caça aos Comunistas). No final da década de 1960, amarraram dinamites no monumento e o explodiram, mas como ele é basicamente uma estrutura tubular não ficou muito danificado. O governo ditatorial da época aproveitou a oportunidade e deu sumiço no tal monumento enfiando-o em algum depósito da prefeitura. Pois bem, em 1979 ou 1980, eu era um estudante da FAU-USP e acompanhei o seguinte episódio. Um grupo de alunos da Faculdade fez um calhamaço de papéis com timbres, selos e carimbos e, num sábado à tarde, dirigindo um caminhão, foi ao depósito onde estava o monumento. Apresentando a papelada, os estudantes deram uma prensa burocrática no único vigia que estava no local, colocaram a escultura no caminhão e levaram-na à FAU. Essa escultura ficou lá na entrada da escola enquanto era restaurada pelos próprios alunos, até que ficou pronta, e de novo, num sábado de madrugada, ela foi levada e colocada no vão livre do MASP. No dia seguinte, lá estava a escultura em todos os jornais com o Pietro Maria Bardi esbravejando que lá não era o lugar daquela escultura. Fato consumado, a escultura foi reconduzida ao seu lugar.
O roubo da pedra fundamental da Velha Academia de Direito Caio Luiz de Carvalho São Paulo, outubro de 1973. O Governador do Estado era Laudo Natel e Manoel Gonçalves Ferreira Filho, nosso grande catedrático da cadeira de Direito Constitucional da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Tínhamos como diretor o saudoso Professor José Pinto Antunes e Drynadir Coelho como sua fiel escudeira. Não se sabe bem de quem foi a idéia e a decisão, à época, de transferir as Arcadas com seu ado de tantas tradições e glórias para a Cidade Universitária. Mas na certa, quem foi não sabia que não se pode mexer impunemente com o Chão Sagrado da Velha Academia de Direito, pois sempre se vem à mente de todos que por lá aram a velha trova: — “Quando se sente bater; No peito heróica pancada; Deixa-se a folha dobrada; Enquanto se vai morrer”. Cursava o terceiro ano e, junto com tantos outros, nos unimos e lutamos para que isso não se transformasse em realidade. Grupos se formavam pensando no que fazer para derrotar a absurda possibilidade. Tínhamos o nosso com Luis Eduardo Gotilla, José Renato Teixeira, Fernando Assumpção Galvão, Walter Lapietra e eu. E contávamos com nosso articulador, o amigo querido Caio Pompeu de Toledo, que de sua já boemia romântica traçava as estratégias nas madrugadas do antigo Carreta, na esquina da Rua Pamplona com a José Maria Lisboa. Lembram-se da Pizza na Pedra? Do Luís? Do lugar que Toquinho freqüentava na década de 1970? Dia 30 de outubro de 1973. Era o fatídico dia da traição. As vozes dos estudantes não bastaram para reverter a decisão que matava histórias, lendas e personagens. Cerimônia marcada às 10 horas da manhã na Cidade Universitária, com palanque de autoridades, imprensa e tudo o mais. Dentro de uma caixa de latão preparada para a data era colocado um pergaminho com muitas nobres e inconscientes s, com um texto com dizeres que terminavam com a frase: “... para que continue no campus da USP a exercer sua função imorredoura de inteligência e civismo.” E às 11horas daquele dia, a “pedra fundamental” foi enterrada no terreno insalubre a ela desgraçadamente reservado. Mas tínhamos tudo planejado para que à noite roubássemos a “pedra” e a devolvêssemos ao Chão Sagrado das Arcadas, junto à Tribuna Livre. Sabíamos que muitos outros grupos estavam planejando o mesmo, e silenciar era preciso. Ficou acertado que o Gotilla e o José Renato iriam assistir à cerimônia para identificar o exato local onde fora cimentada. Eu tinha médico marcado, pois havia fraturado uma costela em minhas aventuras de professor de karatê metido. Estava tudo certo para a madrugada. Pedreiros contratados, etc. Assim que a recuperássemos, só bastava acionar o esquema para avisar a imprensa com rapidez, pois na manhã do dia seguinte a “pedra” reapareceria de onde nunca deveria ter saído. Mas eis que terminada a cerimônia ficaram os dois a conversar sobre o que fazer, 207
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até que despertaram para o fato de que não tinha mais ninguém por perto, o local era deserto, o cimento fresco... Por que não ali? E foi assim. Não mais do que uma hora após a pomposa cerimônia, a “pedra” já fora arrancada e levada. Fomos avisados por eles para que nos encontrássemos no escritório do Lapietra – se não me falha a memória – para comemorar o feito, tirarmos fotos da prova do roubo e encomendarmos uma placa de mármore que receberia os dizeres: — “Quantas pedras colocadas, tantas arrancaremos” de autoria do Caio Pompeu de Toledo. E fomos até uma daquelas lojas em frente ao Cemitério São Paulo retirar a placa, em mármore cinza claro, que na manhã do dia seguinte surgiria como o grande assunto da imprensa e da cidade. E como vencedores em busca de seus ideais curtimos vaidosos como ninguém aquele feito, que hoje já é lenda.
O furto da pedra fundamental e a cavalgada de 1976 Antonio Claret 1973. Ditadura a todo vapor, sob o comando do General Garrastazu Médici. Reitor da USP Miguel Reale, diretor da Faculdade de Direito Professor José Pinto Antunes, secretariado pela senhora Drynadir Coelho. A inteligência, infiltrada no movimento estudantil, verificou que uma das maneiras de neutralizar a influência dos acadêmicos de Direito era confiná-los no campus da Cidade Universitária, onde seria, com certeza, mais fácil manter todos sob controle. Daí a decisão de transferir a Faculdade de Direito do Largo São Francisco para a Cidade Universitária, situada na zona oeste da capital, bairro do Butantã, marcando-se a data de 30 de outubro para o festivo lançamento da pedra fundamental do prédio. No Largo, a notícia soou rapidamente. Luiz Antonio Alves de Souza, presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto, eleito pelo Movimento 23 de Junho, que, aliás, compareceu à solenidade de lançamento da pedra, mais preocupado com as festividades do 70° aniversário da entidade, limitou-se a conduzir pesquisa entre os alunos sobre a decisão, não tendo tomado qualquer atitude que pudesse manifestar o descontentamento reinante nas Arcadas. Coube à oposição, representada por integrantes do PRA (Partido de Representação Acadêmica), mais precisamente a Caio Luiz de Carvalho, Luiz Eduardo Gotilla, José Renato Teixeira, Fernando Assumpção Galvão e Walter Lapietra, sob a coordenação do Caio Pompeu de Toledo, antigo aluno, a iniciativa da implementação do furto da pedra fundamental. Inicialmente, designado para horas mortas da noite, o furto se concretizou, no início da tarde de 30 de outubro, num local ermo da Cidade Universitária, após findas as festividades do enterramento de uma caixa de
cobre, contendo no seu interior pergaminho assinado pelos presentes, moedas da época e jornais do dia. O apressamento da operação foi decidido por Gotilla e Zé Renato que foram ao local para traçar o plano do resgate noturno e, diante da total ausência de vigilância, sentiram-se atraídos para completar o apossamento naquele exato momento, sem perda de tempo, aproveitando ainda o estado de novo do cimento que cobria a caixa. Com valoroso troféu nas mãos os acadêmicos se apressaram em enterrá-lo bem ao lado da Tribuna Livre, debaixo de uma lápide com a inscrição ditada por Caio Pompeu “Quantas forem lançadas, tantas serão arrancadas 30- X-1973”. A imprensa se fez presente no Largo e difundiu o fato por mais de uma semana, culminando, inclusive, com festividades do sétimo dia, estas a cargo dos demais grupos que não lograram chegar antes da turma da PRA. O assunto da transferência da Faculdade prorrogou-se até 1976, quando no dia 11 de agosto, na noite em que tinham início os festejos do sesquicentenário da fundação dos cursos jurídicos, grupo de antigos alunos, sob a liderança de Paulo Afonso Lucas e do autor destas linhas, adentrou o Pátio das Arcadas em cavalgada para marcar definitivamente o que se chamou de “Dia do Fico”. Conseguimos três cavalos de raça, um deles branco, sobre o qual me encontrava vestido de Pedro I. Após a entrada do Governador Paulo Egydio Martins, sob os acordes da marcha batida por parte da Banda da Polícia Militar, o cortejo adentrou o prédio da Faculdade em direção ao pátio, onde li manifesto contrário à mudança para o campus da USP, terminando com grito de “ficamos!” que foi repetido pelos presentes por mais de dez minutos, interrompendo a cerimônia que se realizava no salão nobre.
O depoimento do velho companheiro das Arcadas Antonio Claret é estupendo e me fez voltar no tempo. Ele só deixou de falar que nossa turma o chamava de O Tribuno, tantas vezes ele ocupava a Tribuna Livre do Largo São Francisco, com discursos magistrais. Caio Luiz de Carvalho
A espera Zélio Andrezzo Em 1942 meu irmão mais velho saiu de Florianópolis e foi morar em São Paulo. Primeiramente na Vila Olímpia, depois num espaço pequeno chamado de “Vila Maria Zélia” que ficava entre a Rua Celso Garcia e a Marginal do
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Tietê na altura da Vila Maria. Ali havia um condomínio de sobrados com muitos imigrantes italianos, circundado com um alto muro, com uma entrada de portão de ferro. Eram pessoas simples, o lugar era arborizado, bucólico. Uma das famílias tinha quatro filhos que haviam ido para a guerra. Meu irmão contava que quando a guerra acabou começou a expectativa da família, pois com as dificuldades de comunicação da época só era possível saber da existência da pessoa com seu retorno.O clima contagiou toda a vila que ou a viver o drama da espera junto com a família. Depois de um longo tempo, a vila festejava a chegada do primeiro filho, porém ainda faltavam três. Um certo dia chegou o segundo filho que foi motivo de grande alegria para todos. Mas o tempo foi ando, sem notícias dos outros dois. O clima era quase de perda, quando apareceu o terceiro filho. Foi mais uma grande festa e já com a certeza de uma quarta. Foram dias sofridos para a família e para os que compartilharam dos sentimentos vividos naquele pequeno lugar, retrato ampliado de um paraíso para quem retornava do inferno. O tempo ou e a tristeza foi moldando o rosto da mãe de desesperança. Só lhe restava aguardar o último filho. Seu nome era procurado em todos os noticiários e jornais. Todos estavam voltando, exceto seu filho mais novo. A tristeza da casa foi tomando espaço, se expandindo, e após algum tempo, toda a vila mergulhava no mais completo luto, quando um dia, naquele portão de ferro, surgiu a silhueta esguia e maltratada do último filho já dado como perdido. Naquele dia teve a maior festa para o filho que acabava de renascer. Quando a guerra acabou eu tinha 6 anos de idade. Lembro da tristeza de quem estava por aqui ao saber que muitos filhos não voltariam. No Itaim Bibi foi comemorada com uma grande festa a chegada dos itayenses que formavam o batalhão da FEB (Força Expedicionária Brasileira). A festa e o desfile foram no Largo da Maná, na Praça Dom Gastão Liberal Pinto. A emoção foi muito grande. Mário Lopomo
era muito importante. Durante a Segunda Guerra Mundial, o Brasil, apesar de ter participado com o envio de tropas, nunca sofreu bombardeios bélicos. Mas, nós aqui em São Paulo sofremos bastante com a falta de gasolina, de trigo e de muitos produtos que, na sua fabricação, prescindiam de aditivos importados. Garoto, eu trabalhava na Gráfica Imperial, de um tio meu, sócio com seu cunhado. Na mesma gráfica trabalhava também meu irmão, Vicente, mais velho, eu com 11 e ele com 16 anos. Ele era impressor minervista e eu intercalador. Em casa éramos nove filhos, eu era o sétimo e, com exceção das duas menores, todos trabalhavam. Meu pai era negociante de cereais e minha mãe ficava em casa, sem empregada e usando fogão a lenha. Lembro que íamos ao fundo do quintal para fazer pão uma vez por semana, aos sábados. Meus pais começavam a fazer os pães de manhã bem cedinho, fogassas, piccicatellas scabeche (salgadas) e pi lu zucchero (adocicadas), scartelettes (massa enrolada embebida em mel). Todos eles feitos com amor, carinho e muito trabalho. Às 4 da matina meu pai acendia o forno, de formato iglu, e depois de duas horas, com o forno bem quente e fechado, começavam a introduzir os pães e as demais guloseimas sobre uma camada de cinza, exalando um perfume que alcançava toda a vizinhança. Que tempo maravilhoso, quanta alegria, com nove filhos comendo, bebendo, vestindo, calçando e, o melhor, todos saudáveis. Como a farinha de trigo estava racionada, começamos a ouvir o noticiário pra saber que bairro e em que padaria teria pão naquele dia. A cota era de um filão – espécie de baguete, um pouco mais gordinha – por pessoa. Aí é que começava a farra (pra nós, não para meus pais...): a família, quase completa, ia de bonde do Brás para Penha, Vila Mariana, Belém, Cambuci etc, e cada membro do clã trazia um filão. Durante o trajeto de volta, a gente ia tirando uma casquinha do pão – chegávamos em casa quase sem nada! O velho Bartholomeu, meu pai, um dia teve uma boa idéia. Espertamente, comprava grande quantidade de macarrão, colocava de molho em água fria e, quando a massa se desfazia do formato original (espaguete, parafuso, talharim), tinha nas mãos uma massa cor creme com o que fazia um pão delicioso.
Um paulistano
As vacas amarelas do Tiro de Guerra 71
Modesto Laruccia
Nelson de Moura
Sob o ângulo de visão de um garoto tudo parece ser bem maior do que realmente é: ruas, casas, bairros, áreas públicas, fatos ocorridos e mesmo os próprios adultos – a gente tem receio de lhes falar e, quando cresce, descobre que o cara é simpático e com um porte físico nada assustador. Às vezes ocorre o contrário, não se dá muita importância a determinados acontecimentos e, com o ar de décadas e décadas, a gente percebe que aquilo
O Serviço Militar sempre foi obrigatório no Brasil. Atualmente, os jovens se alistam aos 18 anos e aguardam um sorteio para servir o Exército. Na década de 1940, não havia sorteios nem mutretas. O rapaz completava a maioridade e ia servir em algum quartel. Podia, isto sim, escolher a Arma, profissão especializada: Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia e Intendência.Tinha de prestar serviços durante dois anos. Se quisesse poderia 209
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seguir carreira militar, curso para cabo, sargento ou escolher a Academia Militar das Agulhas Negras. Não tinha escapatória. Nenhum jovem fugia do trabalho militar, se o fizesse, seria considerado desertor e cumpriria o tempo preso nas cadeias dos quartéis. Ainda naquele ano de 1943, quando o Brasil acabava de declarar guerra ao Eixo, Alemanha, Itália e Japão, e se colocado ao lado dos Aliados, havia uma grande preocupação com a convocação dos rapazes para a guerra. Entretanto, como tudo na vida tem uma saída, bastava o moço que não desejava servir a Pátria fazer um curso de preparação militar chamado Tiro de Guerra. Ainda hoje me pergunto: por que Tiro de Guerra? Título curioso. Mas era isso mesmo. Bastava ter mais de 16 anos que em um ano recebia o Certificado de Serviço Militar e ficava isento de servir o Exército. Como Maneco não queria nada com fardas, aos 17 anos, imberbe ainda, se inscreveu no Tiro de Guerra 71 de Infantaria, com sede instalada embaixo das arquibancadas do Sport Club Corinthians Paulista, no fim da Rua São Jorge. Ali os rapazes aprendiam as aulas práticas sobre armas de fogo, combates e biografias dos nossos heróis militares. Conheciam os postos da hierarquia, de soldado raso até marechal. A ordem unida, exercícios de os militares com cadências e evoluções em desfiles e cerimônias. Formação de grupos de combates, pelotões, companhias, batalhões, divisões e tudo mais. Manobras, marchas de média e longa distância. As marchas com fanfarras ou bandas eram feitas nas ruas do bairro e acompanhadas pelo povão com grande emoção. Vivíamos em tempo de guerra e havia um grande espírito nacionalista e orgulho patriótico. Aos domingos, faziam treinamento de tiro e guerrilhas simuladas no lado de lá do rio Tietê. O chamado Parque Novo Mundo não existia. Era o local entre o rio e uma grande rodovia que estava sendo construída. Diziam que iria se chamar Via Dutra. Diziam. Era um matagal com apenas algumas picadas de lenhadores e carvoeiros. Viviam ali porcos do mato, macacos, e algumas pessoas já tinham visto até onças que vinham da Serra da Cantareira. Os jovens eram obrigados a usar farda, um uniforme completo. Quepe amarelo com o brasão das Armas da República, com pala envolvendo toda a volta da cabeça e aba de plástico preto. Uma jaqueta ou dólmã com mangas compridas, culotes, perneiras e botinas de couro preto. Na gola, um cordão acompanhando o colarinho e em suas pontas, algarismos em latão dourado. O número 71. Um cinturão de couro, com uma grande fivela de metal dourado e uma tira transversal no peito chamada talabarte. A farda era de brim grosso, amarelo cáqui. Brim Coringa. Cor de hepatite. Isso para ser diferenciada da farda usada pelos recrutas do Exército, que era verde-oliva. Por isso esses soldadinhos eram chamados de Vacas Amarelas! Andavam em manadas. Odiados pelos soldados do Exército e Aeronáutica. Filhinhos de papai. Três vezes por semana participavam de exercícios militares. Quando havia treinamentos na cidade de São Paulo, para a defesa de eventuais bom-
bardeios aéreos, eles patrulhavam a rua em plena escuridão. Eram manobras chamadas Blackout, mais farra do que guerra. Depois de terminados os exercícios de rua ou as aulas teóricas, todos atiradores, como eram chamados, reuniam-se no campo de futebol do Corinthians (imaginem isso hoje) e cantavam o Hino Nacional. Sabiam na ponta da língua o Hino à Bandeira, o da Independência, e ensaiavam o mais novo dos hinos: o do Soldado Expedicionário Brasileiro. A Força Expedicionária Brasileira (FEB) já lutava na Itália. Meninos inocentes aqueles Vacas Amarelas. Depois de toda essa cantoria, vinha o tenente Juracy Pocu de Aguiar, diziam que ele era neto de índios, filho de cacique, e dava a última ordem da noite: — Companhia, sentido! Dispensar! Todos, cerca de mil soldadinhos, saiam do clube para suas casas. Iam pelas ruas do Parque São Jorge cantando entusiasmados. Em bandos, rebanhos de Vacas Amarelas. Saiam a pé e seguiam pela rua até chegarem à Avenida Celso Garcia para tomarem suas conduções. Muitos eram da região. Moravam por ali mesmo. Alegres, festivos, moleques, faziam sempre suas travessuras, contudo respeitavam os transeuntes e os moradores.
Tempos de racionamento Miguel Chammas Meus caros, eu nasci no curso da Segunda Grande Guerra Mundial (1939-1945). Se dissesse que sofri com a guerra seria um grande mentiroso, pois desse maldito episódio eu me lembro pouco mais que nada. Minhas memórias me fazem lembrar dos anos pós-guerra. Anos sofridos, aliás, muito mais sofridos do que se pode imaginar. Como dizia um amigo meu: “anos de fartura: fartava carne, fartava pão, fartava quasi qui tudo”. Minha família, como só acontece nas antigas, era grande. Eram três famílias em uma, ou seja, na nossa casa de quatro quartos, lá na Rua Augusta, moravam dez pessoas: meu avô José, minha avó Laura, minha tia Neide com os dois filhos (Sonia e Roberto), meu pai, minha mãe, eu, meu irmão e minha tia Zaíra (Zazá para os íntimos). Imaginem alimentar todo esse batalhão com a falta e o racionamento de alimentos que vigia na época. As filas do pão (feito com uma mistura de farinha de trigo, farinha doce de linhaça e farinha de mandioca) eram enormes, comprava-se no máximo dois filões por pessoa. Para conseguir um pouco mais usava-se o subterfúgio de entrar duas ou mais pessoas na fila, mantendo-se alguma distância entre elas, a fim de não haver denúncias e, conseqüentemente, a impossibilidade de levar o mantimento para casa. Esse ato de levar o alimento para casa tinha de ser muito rápido, pois o produto dessa miscelânea de farináceos, ao sair da padaria, começava a endurecer e endurecia tanto que podia tornar-se uma arma nas mãos de algum facínora.
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Outro mantimento escasso naquela época era a carne. Nossa família tinha conseguido um cartão que autorizava a compra “limitada” do produto na Subsistência do Exército que ficava na Rua General Jardim esquina com a Rua Araújo, e para essa compra, às 11 horas da manhã, saía o Miguelzinho da Rua Augusta 291, devidamente equipado com seu único pé de patim de aço inox com presilhas adaptáveis à sola dos calçados. Isso mesmo, eu disse pé de patim, pois era só um mesmo, e eu ia todo faceiro levando em uma das mãos uma banqueta de madeira para ficar sentado enquanto a fila não andava, e na outra um caderno e um livro para ficar estudando, dentro do qual ia também um bilhetinho com as quantidades e os tipos de carne que deveriam ser comprados, não eram muitos quilos, no máximo três de carne de segunda e, no pé, o já comentado patim. Descia a Rua Augusta, entrava na Rua Caio Prado, quebrava a Gravataí, entrava na Praça Franklin Roosevelt, descia a Rua Bento Freitas e chegava ao fim da fila, quase sempre na esquina das Ruas General Jardim e Bento Freitas, e ali estacionava aguardando a chegada ao balcão do açougueiro. A espera era dividida entre estudos e preces para que ainda tivesse o que comprar quando chegasse a minha vez. Muitas vezes voltei de mãos abanando, mas o patim sempre rodando. Como era arriscada a minha tão simplória vida no pós-guerra, mesmo assim tenho uma saudade mórbida daquele tempo.
Eu não vivi essa época, felizmente, mas meus irmãos contavam o sufoco que era. Pão só com fubá e adoçavam tudo com rapadura. Doris Day Eu também sou contemporâneo da Segunda Guerra, eu e minha irmã Teresa ficávamos na fila do pão da padaria do seu Delfim, na Rua João Cachoeira, perto da Joaquim Floriano. Ia às 4 de lá matina. Era só um filão para cada um. Mas eu e minha irmã ficávamos juntos e ninguém chiava. Mário Lopomo
Lembro das granadas da Revolução de 1924 Eudóxia Navarro Guerreiro (in memoriam) Eu morava na Rua Santa Rosa num sobradinho de madeira e o Palácio das Indústrias era pertinho. E eles lutavam, não me lembro bem, do lado da Penha para o Palácio das Indústrias. A gente sentia as balas assobiarem por cima. À noite tínhamos de ficar em baixo de uma escada de cimento, muito fria, porque em cima era perigoso. Nós fugimos porque caiam granadas no Brás.
Teve gente que saiu de casa pra ir num cinema que chamava Cinema Olympia e naquele dia caiu uma granada que matou um monte de gente. Gente que deixou as casas por medo e foi morrer lá. Eu ficava na escada, de noite, naquele frio, sentada. Meus irmãos dormiam embaixo da cama. Um dia saímos de casa e quando voltamos tinha uma bala em cima da cama deles. Eu trabalhava na Rua 25 de Março. Veio lá o gerente e falou: — Guardem as máquinas, guardem tudo e vão para casa que está tendo uma Revolução. Nas ruas eles abriam trincheiras. Era tudo de paralelepípedo. Então eles levantavam os paralelepípedos e faziam trincheiras no meio da rua. Tinha gente que levava comida pra eles porque lá estavam os que fizeram a Revolução. O Isidoro era o chefe da Revolução. Os soldados pegavam as mocinhas! Minha mãe não deixava nem eu sair. Eu morava numa vila. Sair na porta era ruim. Não tinha pão, não tinha nada. Havia saques em muitos lugares, no Mercado. Meu pai um dia chegou com meio-porco tirado de lá. Foi triste essa Revolução... Lutavam na Mooca, jogavam granadas. Eu via as granadas arem por cima da cabeça. Pareciam garrafas de cerveja, assim grandes, assobiavam. Até que um dia caiu uma atrás de minha casa, fez um buraco enorme, matou uma moça que estava na janela. Quando foi no dia seguinte, começaram a cair no Palácio das Indústrias. Caiu uma fora e não explodiu. Depois de muito tempo um dos moços de lá da Vila desenterrou a granada e desarmou num tanque de água pra ver o que tinha dentro. Eram bolinhas de aço dentro da granada, por isso que quando explodia fazia um estrago danado. Aquela que caiu perto de casa matou uma moça e gente que ia ando na rua, porque levantou os paralelepípedos e jogou pra todo lado. Faziam um estrago essas granadas. Tinha a fábrica do Crespi lá na Mooca, depois da Revolução nós amos por lá e não tinha um vidro; tudo arrebentado de tanta granada e bala que pegou na fábrica. Foi triste aquela Revolução... Tinham os revoltosos. Eles perderam. Depois de muitos dias, não sei quantos dias durou. Eu sei que nós ficamos em casa, presos. Foi triste aquela Revolução... Nós fugimos. Meu pai queria que nós fôssemos e ele queria ficar e minha mãe disse: — Ou vamos todos ou ficamos todos. Aí fomos todos, mas meu pai depois voltou pra casa. Fomos para a Lapa. De lá do Brás, da Rua Santa Rosa, fomos a pé, pegamos a Avenida São João. No caminho a gente via aqueles caminhões cheios de cadáveres que eles carregavam. É que caiam granadas, matava gente pra chuchu. Eram caminhões de gente que nós víamos pelo caminho. E fomos até a Lapa. Nesse tempo era eu, meu irmão menor e meu irmão mais velho. Dois irmãos. Viemos para a Lapa onde tinha um Grupo Escolar e ficamos lá, todo mundo. Estava cheio de gente que fugia do Brás pra lá. Ficamos lá, tudo dormindo no chão. Aí tinha o meu irmão mais novo que estava com febre, acho que de susto de tanta coisa. Eles deram um colchãozinho pra ele, e então minha 211
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mãe pôs o colchãozinho atravessado e dormíamos todos. As pernas ficavam fora, mas o corpo ficava no colchãozinho. Já melhorou. Deixamos tudo em casa. Fechamos a casa. Lembro que minha mãe estava com um fogareiro fora, cozinhando feijão. Ficou lá o caldeirão e tudo. Fugimos. Todo mundo saiu porque estavam caindo granadas lá pertinho. Caiu uma que não explodiu, mas nós vimos quando caiu. A outra fez aquele estrago. Então, nós fugimos e ficamos na Lapa até acabar a Revolução. Nem sei quantos dias foi. Na minha idéia parece que foram 23 dias. Não tenho bem lembrança. Tinha um padre que era quem tomava conta. Ele saía e angariava mantimentos, trazia e cozinhava. Lá a gente ajudava: uma lavava louça, outra arrumava a mesa... Depois voltamos pra casa. Estava em ordem, do jeito que deixamos. Não tinha acontecido nada. Só essa bala em cima da cama. Nós estávamos dormindo e ouvimos um estrondo. E eu falei: — Que será que está acontecendo? Os revoltosos estavam fugindo e explodiram uma ponte na Lapa. Explodiram que era pra ninguém ar e ir atrás deles. Daquele dia em diante acabou a Revolução. Nós voltamos e depois eu mudei de casa, fui morar numa travessa da Rua Piratininga. Meus irmãos tinham um amigo que durante a Revolução deu pra eles uma bacia com um jarro de prata (como se usava). Achando que tinha sido roubada de alguma casa, meu irmão nem levou pra casa e jogou embaixo de uma ponte do rio, lá perto. Esse amigo também deu cinqüenta mil réis para minha mãe guardar. Ela guardou atrás de uma fotografia que tinha moldura. Muito mais tarde, depois que a Revolução já tinha acabado, o amigo chegou na nossa casa com dois conhecidos que depois voltaram dizendo que eram da polícia e pediram o dinheiro. Minha mãe desmontou o quadro, entregou e disse: — Guardei porque não me pertencia e queria dar para ele quando ele voltasse. Era dinheiro de roubo. Meu irmão teve que ir com a polícia e então contou o caso da bacia e do jarro. Foram lá e encontraram. Era sim pegado de saques em casas abandonadas.
Que maravilha alguém se lembrar dessa revolução, que hoje tem o nome de “A Revolução Esquecida”. Quando os revolucionários fugiram para o interior eles estiveram aqui em Botucatu, interior de São Paulo. Foi em nossa “Cuesta”, que novamente eles se debateram com as tropas governamentais, e depois daqui, fugiram para formarem a célebre Coluna Prestes, nas barrancas do Paraná. Sou guia turístico aqui em Botucatu onde visitamos o lugar em que estiveram acantonadas as tropas comandadas por Isidoro Dias Lopes e o Tenente Cabanas. Antonio Fernando Pereira
Vítimas da arrogância Modesto Laruccia Manhã de 16 de julho de 1924: — Devemos ficar atentos, pois as bombas estão caindo no Cambuci, no Belém e aqui bem próximo, na Rangel Pestana, no Cine Olympia – fala Bartholomeu a seus familiares. — E a Carmela, onde está? — Foi à missa. – Responde Felícia, sua esposa. — Hoje é seu aniversário, dia de Nossa Senhora do Carmo, ela está muito feliz e seu noivo, meu irmão Francisco, virá à noitinha trazer um mimo pra ela. Ele me segredou, não quer que a Carmela saiba, vai fazer surpresa. — Que união bonita que vai ser – interveio Vito, pai de Bartholomeu, que a tudo ouvia. 29 de junho de 1901: Apoiado na amurada do navio, Vito, 43 anos, vê o porto de Santos se aproximar, depois de 25 dias de viagem, desde o porto de Gênova até aqui. Cercado de seus filhos: Santo, 15 anos, Giovani Batista, 13, Bartholomeu, 11, Francisco, 9, Maria, 7, e a esposa Ana Maria, 40 anos, desembarcaram em Santos, no dia de São Pedro. — Paiê, olha lá – diz Giovani Batista, no carregado dialeto polinhanês, falado pelos nascidos em Polignano a Mare, província de Bari, região da Puglia, sul da Itália – aquele homem, como ele é escuro, negro mesmo... – Giovani aponta pra um carregador. Primeira vez que vê um negro, assim como seus irmãos e seus pais que só tinham visto em gravuras de histórias. As crianças, bem próximas dos estivadores, mostram um pouco de receio e Vito tranqüiliza a todos, com o pouco conhecimento que tem do Brasil. — Esses homens são ex-escravos libertados há poucos anos atrás, são por demais gentis, amáveis, principalmente com crianças, não tenham receio algum. Agrupados no setor de Imigração do porto, Santo e Giovani cuidam dos menores enquanto Vito fala com Ana. — Pois é, Mamê, vamos ter que nos adaptar às exigências da imigração, não podemos fixar residência na região urbana, como Rio de Janeiro, São Paulo ou outra capital, somos imigrantes e viemos com agens pagas pelo governo brasileiro pra trabalhar na lavoura, que carece de mão-de-obra... — Ma, Vutu – lamenta Ana, no dialeto choroso – nossos amigos, parentes, conhecidos estão todos em São Paulo, eles fizeram até a igreja de São Vito. Longe da minha Polignano tinha pelo menos a esperança de viver com meus conterrâneos. E agora... Pra onde vamos? — Calma – interveio Vito – não é nenhuma tragédia, por favor, optei por um lugar onde tem bastante italiano também, vamos nos adaptar.
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— Ma, Vutu, não são polinhaneses, devem ser todos da alta Itália e você sabe como esses milaneses, vênitos, nos tratam, esses magna-pulenta (come polenta) de nariz empinado... — Bem, concordo com você – diz Vito –, mas na impossibilidade de ir pra São Paulo ou Rio de Janeiro optei por Petrópolis, cidade serrana do Rio. Tenho informações de amigos de que o ar de lá é muito bom e por ser cidade muito importante na época da monarquia tem um bom centro urbano, uma grande fábrica de macarrão, que por coincidência os donos são italianos, uma cervejaria e muitas famílias abastadas construindo suas casas na região. 1958: Bartholomeu descansa sobre a mesa o livro que lê e começa a lembrar, como faz todos os anos no aniversário dela. Olhos vermelhos e umedecidos, entra nos detalhes, como se fora a primeira vez, maldizendo as ocorrências daquele dia que nunca mais vai esquecer. — Por que, meu Deus, por que ela tinha que ir à janela? Amargo aquele dia, aquele gesto, aquela sangrenta necessidade de bombardear São Paulo, aquele maldito homem que não satisfeito em ass centenas de pessoas inocentes, num governo decrépito e claudicante, se arvorou, mais tarde, como principal defensor da exploração do petróleo no Brasil. Não sei se ignorando os bombardeios e as mortes ou por simples pouco caso, por se tratar de São Paulo, pam o nome do facínora na refinaria de Cubatão, aqui dentro do Estado de São Paulo quando nós tínhamos o nome de Monteiro Lobato, grande e legítimo batalhador pela nossa independência petrolífera. Pergunto a meu pai, Bartholomeu, porque essa revolução é pouco comentada e a que mais se fala é a de 1932, Constitucionalista. Chego até a pensar que ela só existiu na cabeça dele. — Pois é, Testy, uma revolução aparentemente sem nenhuma expressão, em que um grupo de militares descontentes com as mazelas do governo, se organiza em torno de Isidoro Dias Lopes que arregimenta forças civis e militares em São Paulo, Paraná e todo o sul, desperta preocupações no Governo Federal e se transforma na célula mater da famosa Coluna Prestes. Essa foi a última vez que Bartholomeu lembra a morte da irmã. Meses depois morre aos 68 anos. 1996: Estou em minha sala, lendo o jornal do dia e no caderno de literatura tomo conhecimento do lançamento, naquele mês, do livro As noites das grandes fogueiras – uma história da Coluna Prestes do jornalista Domingos Meirelles. Nas páginas 126 e 167 leio um trecho que me causa uma emoção indescritível; no capítulo “A Estratégia do Terror”, onde Meirelles relata: “Nesta manhã de terça-feira, a artilharia do Exército parece empenhada em aumentar ainda mais o sofrimento, a morte e o luto entre as famílias pobres
do Brás. Desde as primeiras horas do dia, o bairro está sendo impiedosamente castigado por uma chuva de fogo e aço. As granadas de tempo, percussão e de retardo reduzem prédios inteiros à montanha de escombros”. ados quase quarenta anos, posso avaliar melhor o sofrimento e a revolta de meu pai. Voltando ao desembarque: Estabelecidos já em Petrópolis, Vito e Ana resolvem homenagear a pátria que os acolheu com uma linda menina, a sexta filha e única brasileira da família. Santo e Giovani Batista trabalham na fábrica de macarrão e na cervejaria e estudam à noite; Bartholomeu e Francisco só estudam, são pequenos. Carmela dá seus primeiros os sob o olhar vigilante da Maria e a felicidade mora na residência dos Laruccia. Esse clima de felicidade e alegria dura até quando Ana Maria começa a sentir dores. — Vutu, não estou bem. Vito sabe que Ana não se queixa à toa, se sente dores e se queixa, é porque a dor é muito forte. O médico examina Ana sem estabelecer de pronto um diagnóstico definitivo, suspeita de coisa séria mas prefere pedir mais alguns exames. O recém-aparelho inventado de Raio-x deve trazer um pouco de luz para a dúvida. Ana submete-se e esse exame, que traz uma resposta nada confortável: Ana está com câncer. Vito, ao saber, chora. — Senhor Vito – diz o doutor – estamos em plena era de progressos e já existem tratamentos bem adiantados. Com o término da Grande Guerra surgem novos medicamentos e centros de tratamento. No momento, o melhor é o Hospital Santa Catarina, em São Paulo. Vito não espera, quer levar Ana pra São Paulo. — Ana, vamos pra São Paulo e você vai ficar boa, não se preocupe. A Maria e a Carmela cuidam da casa e os marmanjos trabalham e protegem a casa até nossa volta. Eles são bem ajuizados e não tenhas nenhum receio que vai dar tudo certo. Dito e feito, apenas com um diferencial: enquanto o tratamento de Ana persiste, Vito não perde tempo, arruma, com certa facilidade, trabalho e o melhor: o ganho pelo mesmo serviço é bem maior. Corre ao hospital para contar a Ana. — Mamê, como você se sente? Bem? Ótimo. São Paulo tem mais construção do que qualquer cidade do Brasil inteiro, pagam muito bem e tem serviço que não acaba mais! Estou pensando em trazer todos pra cá... O que você acha? — Vutu, você é que sabe, fico contente em ter meus filhos de volta, isto é, junto comigo, mas precisa ver se eles querem... — Querem, sim, apenas o Giovani que arrumou uma namorada pode não querer vir. Mando um telegrama explicando e vai dar tudo certo. A colônia dos bareses é muito grande no Brás, e isso vai ser forte argumento 213
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pra convencer os garotos. Ana, quero que você fique curada e pra isso não estou olhando despesas. Ana olha nos olhos de Vito, marejados ambos, suspira longamente... — Vutu, só Deus sabe se vou ficar boa e quando... Estou sendo bem atendida aqui, não tenho queixa. Quero só que você me prometa uma coisa... Se eu não melhorar, quero morrer em casa, ao lado dos meus filhos... — Ma quê? Pára de falar nestas coisas, você vai ficar boa e... — Senhor Vito Laruccia, capa tosta (cabeça dura), eu sei o que estou falando, quero que você me prometa! Ana faz o tratamento, resiste três anos e, em 1922, morre rodeada pelos filhos, em sua casa na Rua Assumpção, 115, no Brás. Com seus filhos já emancipados e todos os homens casados, Vito, Maria e Carmela moram juntos. Bartholomeu, casado com Felícia Monaco, tem dois filhos e um armazém de secos e molhados. Agora com a Carmela, o pai Vito e a Maria morando juntos na casa dos fundos do empório. As janelas dão para a Rua Assumpção, e o empório localizado na esquina da Travessa do Gasômetro, viela sem saída, existe até hoje. Felícia e as cunhadas estão reunidas na sala, conversando alegremente com o sogro, Vito, que externa sua alegria e prazer em ter o Francisco, irmão de Felícia, noivo de Carmela, como futuro genro, na eminência do casamento. Francisco vai vir à noite para trazer um presente no aniversário de Carmela. — Felí, como estou contente. A Carmela também, não cabe em si de tanta felicidade. Olha que ela gosta mesmo dele, heim? Hoje, 16 de julho de 1924, dia de Nossa Senhora do Carmo, o nome e aniversário da Carmela. Pode haver tanta felicidade assim em que lugar do mundo, Felí? Me diga, me diga onde. Carmela chega contente da missa rezada na Igreja São Vito Mártir, paróquia construída e mantida pelos italianos de Polignano a Mare, Bari, residentes no Brás. O dia está frio e ela se prepara pra fazer chocolatada pra todos. Veste o avental, novo. Carmela brinca com Dom Vito: hoje eu faço vinte e dois anos, o que vou ganhar de presente do querido paizinho?... — Você foi à missa que mandei rezar em sua homenagem. – Responde Vito em trágica e involuntária profecia. Ouvem-se silvos de bombas lançadas, não se sabe de onde e nem pra onde, com explosões próximas e distantes, trazendo temor e inquietação às mulheres na sala. Repentinamente, Carmela grita: — Meu Deus, esqueci de fechar a janela do meu quarto, esperem um pouco que vou fechá-la! O silêncio da tarde fria, aconchegante com o chocolate da Carmela, é rasgado com violenta explosão, seguida de pavoroso e angustiante grito, vindo do quarto da Carmela. Todos correm, entram no aposento e se deparam com um quadro que jamais esquecerão, pelo resto de suas vidas: Carmela,
estendida no meio dos escombros, no lugar do lindo rosto uma massa ensangüentada, arrebentada pelos paralelepípedos arremessados pela bomba de potência inimaginável. Bartholomeu, com a irmã nos ombros, sai pela rua gritando, desesperadamente: — O que vocês fizeram com minha irmã, seus assassinos?! Carmela ficou nove meses enterrada como indigente, no cemitério do Araçá, pois a identificação só foi possível graças ao avental que ela vestia pra fazer o chocolate, e com o qual está sepultada até hoje, no cemitério da Quarta Parada.
Trincheiras na Avenida São João Turan Bei Quem conta encanta, ensina e estimula os sentidos da memória, e nisso minha mãe não poupava o seu tempo. O bairro de Santa Cecília foi o seu território enquanto fez o primário no Colégio Maria José, morava na Rua Ana Cintra. Era só atravessar a Avenida São João e ali, a poucos metros, estava a Alameda Glete. Mas atravessar a São João nem sempre era tarefa fácil para uma criança, principalmente quando a travessia era feita alguns metros abaixo, em trincheiras que cortaram a São João durante a Revolução de 1924. Já havia bondes elétricos. Os soldados encorajavam os escolares a seguirem em frente rumo à escola. A minha avó ficava em casa, na sua oficina de costura, com as demais senhoras voluntárias, preparando um pacote de emergência para os primeiros socorros dos combatentes feridos. O tempo ou, ela fez o Normal no Caetano de Campos, casou-se na Igreja de Santa Cecília, mas não viu alguns dos seus filhos se casarem na mesma igreja, os batizados dos netos, e o acompanhamento das netas que trilharam o mesmo caminho rumo ao Maria José. Mas em vida se orgulhou muito quando, anos depois, voltou ao Caetano de Campos para assistir à cerimônia de premiação de um concurso literário, sendo sua filha mais velha contemplada com o primeiro lugar.
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“Muitos motoristas, que não conhecem o Forró, se irritam quando se deparam com sua charrete e o cavalo marrom-avermelhado pelo caminho. Mas ele segue imperturbável, a vender seu peixe, resistindo ao tempo.”
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Gino Turan Bei Concetta foi o seu grande amor. Por ela arriscou a própria vida durante anos a fio. Ela dele sabia pouco, pois pouco ele contava sobre sua vida pessoal. Mas sabia sobre os presentes recebidos e sentia que era um homem rico e generoso e que lhe dedicava um carinho todo especial. Não eram casados, embora juntos desfrutassem de um convívio harmonioso, o que propiciou o nascimento de dois filhos homens. Com a família aumentada, aumentou também o seu amor à mulher e aos filhos, a dedicação era exemplar, cercava-os de conforto em todos os sentidos. Mas Concetta, muitas vezes, sentia haver algo de errado nas ausências constantes do companheiro, que não seguia um padrão normal de horários, principalmente durante a noite. Ausentava-se por dias seguidos, e alta hora da noite entrava em casa. Aos poucos ela foi descobrindo outros endereços, uns suspeitos, pois não sabia quem eram os moradores, como o da Rua da Abolição, no Bixiga, outros ela de sobejo sabia serem de parentes dela e dele, caso da Rua dos Gusmões, onde moravam sua tia e prima. Sabia por amigos e parentes que ele era visto por horas seguidas num cassino da cidade. Seria daí a fortuna do companheiro? Ela conjeturava. As jóias, adornos, relógios e objetos de esmerada confecção entulhavam as gavetas e armários até a chegada de um baú onde sua grande fortuna foi acondicionada. Não restavam dúvidas. Gino era um homem incomum. Concetta agora tinha certeza. Foi de forma imprevisível que Concetta viu a sua casa ser invadida pela polícia e esta lhe dar voz de prisão. O mundo desabou sobre sua cabeça. Pensou logo nos filhos, que ficariam ignorados, e no seu Gino que, como sempre, estava ausente. Na 4ª Delegacia, onde ficara presa, ficou conhecendo em pormenores a vida do seu amásio. Era um italiano como ela, deportado que fora da França, chegou ao Brasil pelo porto de Santos. Esteve em São Paulo antes de fazer um giro pelo Uruguai, Argentina, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, para finalmente se fixar em São Paulo. A Interpol – International Criminal Police Organization – já havia ado para a Polícia de São Paulo sua ficha criminosa onde se lia: Trata-se de um elemento perigoso, condenado por vários crimes. Concetta suplicou pela vida dos filhos que sozinhos ficaram na casa e pediu aos policiais que os levassem à casa de sua tia na Rua dos Gusmões. Foi atendida. Mas por segundas intenções. A polícia sabia que o Gino iria ter aos filhos. E montou um grande aparato policial para prendê-lo. Entre policiais à paisana e fardados, 65 ficaram em pontos estratégicos nas imediações da Rua dos Gusmões. Na madrugada, o pai chegou para ver os filhos. Estando a porta fechada, arrombou-a e foi ter aos filhos que dormiam em um sofá. Não chegou a acordá-los. Um policial ao seu encalço deu-lhe voz de prisão. A reação veio de imediato, como um animal acuado, sacou da arma e com vários
disparos feriu mortalmente seu perseguidor. Por dez horas a polícia cercou toda a região e intenso tiroteio acordou os moradores que presenciaram um homem saltando nos telhados das casas tentando a fuga. Muitos apontavam gritando: — É o homem gato. Gino Amleto Meneghetti sobreviveu à sua amada Concetta. Depois da prisão viveu na senda do crime por mais cinqüenta anos.
O tio do sorvete Kemie Carolina Makiyama Guerra Quem tem por volta de 35 anos e morou entre a zona sul e a zona oeste, como eu, não me deixa mentir. Há uns trinta anos pelo menos, tinha um tiozinho que cruzava vários bairros, dessas duas regiões, vendendo sorvete numa carrocinha puxada a cavalo. Ele parava na porta da minha escola, que era a EEPG Ludovina Credídio Peixoto, no horário estratégico da saída, e, com cara de poucos amigos, ficava só esperando a criançada correr, batendo ponto pra comprar sorvete. Custava coisa de centavos. Lembro-me só de dois sabores, acho que era limão e chocolate. Podia ser algo como: limão para os meninos e chocolate para as meninas. O sorvete vinha na casquinha e era em formato espiral, tipo italiano de máquina. Fiquei espantada no dia em que vi, muitos anos depois, o tiozinho com a carroça perto do Largo da Batata, no tal horário estratégico. A pessoa que estava comigo de carro notou a figura, e compartilhamos a memória da presença do tiozinho na porta de nossas duas escolas, que eram em bairros diferentes. Perguntei-me como será que ele conseguia estar nos dois lugares, ao mesmo tempo, e olha que o tiozinho não era simpático nem nada. A carroça era simples, sem decoração, não tinha nome, mal tinha cor e o sorvete nem era tão bom assim. Acho que o importante na história era o gesto – quase que de liberdade; a freqüência – quase que diária; e, principalmente, a extemporaneidade do cavalo e da carroça. Que já naquela época, era uma excentricidade...
Morava na Vila Olímpia, quando ainda não existiam as danceterias e tinha aquele rio onde hoje é a continuação da Avenida Faria Lima. Faz tempo... e o tio do sorvete também ia para a porta do D’Alkimin, na Casa do Ator. Nos fins de semana, às vezes, ele ava na porta de casa, na Silva Correia, eu lembro que ficava em pé em cima da roda da carroça para ver as massas dos sorvetes... de limão, e meu pai falou que realmente o outro era de chocolate, mas na minha memória, algumas vezes, vinha de abacaxi! Fábio Daniel Romanello Vasques 217
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Bem antes de sua época, nos anos 1959 e 1960, o tiozinho com jeito de alemão ou húngaro, de cabelo loiro e magro já vendia seus sorvetes na porta do Colégio Oswaldo Cruz, na Rua Princesa Isabel, Vila Buarque, onde eu fazia o ginásio. Seu carrinho de madeira pintado de bege e vermelho e puxado a burro realmente ficou na lembrança de todos nós. Roberto Motta de Sillos Pois bem, o senhor que vendia sorvete na carrocinha se chamava Santo Santini e morava na Rua Francisco Leitão, em Pinheiros, na casa pegada à minha. Ele vendeu sorvete também na porta do Mackenzie e outras escolas. Todo dia à tarde ele chegava, desatrelava a carrocinha e levava o cavalo para pastar em terrenos baldios na Vila Madalena e, durante o dia, enquanto ele vendia, sua mulher e as filhas ficavam em casa fabricando o sorvete. Felipe Andery
Dita Parteira, a mãe de Santo Amaro Roberto Pavanelli Óia eu aqui de novo! Desta vez para homenagear uma senhora negra que fez parte importante da história recente de Santo Amaro. Em 1900, nascia na cidade de Bofete, neste Estado, uma pequena menininha negra, resultado da união de Silvano Martins e Mariana Martins. Deram-lhe o nome de Benedita e, como exemplo da tradução de seu próprio nome, bendita foi ela entre as mulheres santamarenses. Enfermeira, ao tempo em que os profissionais em obstetrícia eram raros e, quando não raros, os parcos recursos do povo humilde desse rincão impediam as pessoas de se valerem dos seus serviços. Assim, tornou-se Benedita a parteira mais conhecida de toda nossa região. Esse reconhecimento não era apenas pelas suas habilidades como parteira, mas, sobretudo, pelo seu apurado sentimento de solidariedade, já que era portadora de um coração maior que seu próprio corpo. Nas suas caminhadas pelos sítios da periferia em socorro das parturientes, não só socorria os rebentos que vinham ao mundo pelas suas sagradas mãos, mas assistia também aos demais pequenos filhos da família, deixando-os todos, ao final de seu trabalho, banhados e alimentados ao sair da residência visitada. Para os partos que fazia nos pequenos casebres rurais do ado, chegava a improvisar biombo com seu próprio avental para garantir um mínimo de privacidade durante os trabalhos dos nascimentos dos novos santamarenses que chegavam. Essa foi Benedita Martins, a Dita Parteira, que até o final de sua vida espalhou bondade e solidariedade em nossa terra. Sua morte, em 5 de julho de 1978, causou verdadeira comoção entre as muitas pessoas que
a iravam. Sua carreira teve início na Santa Casa de Santo Amaro, onde ajudava nos partos, nas anestesias e nos assuntos istrativos. Depois, ou a enfermeira chefe nessa mesma Casa de Saúde. Dedicou muito de sua vida à Santa Casa e trabalhou ali até 1939. Após, ou a fazer atendimento domiciliar a todos que a procuravam. Quando faleceu, residia na Rua Tenente Coronel Carlos da Silva Araújo, próximo à Praça Floriano Peixoto. Seu sepultamento se deu no Cemitério de Santo Amaro. Com saudades, seu povo agora tentará homenageá-la, denominando um dos nossos logradouros de Benedita Martins – Dita Parteira, para que a mãe dos Santamarenses jamais caia no esquecimento.
O Bêbado Gabriel Torres Filho Dava pena de ver. Aquela figura em trajes esfarrapados, olhar triste, as pernas cambaleantes mal podendo se sustentar em pé. Como diziam os moradores lá da Vila Nhocuné, zona leste de São Paulo, era o próprio retrato da miséria humana. Havia tantos anos que ele ali chegara que acabou se tornando uma figura característica na região. Seu nome? Ninguém sabia ao certo. Chamavam de Zé Padeiro. O porquê, não sabiam explicar. Talvez tivesse sido, na juventude, um mestre na arte da panificação, ou a explicação fosse o fato de ter as feições que lembrassem uma broa de milho. A verdade é que não tinha moradia, nem amigos ou família. Não se sabia nada sobre seu ado. Alguns arriscavam palpites e criou-se a lenda de que Zé havia sido abandonado pela mulher. A dor do desamparo o fizera largar tudo ando a morar nas ruas. Mas isso ninguém confirmava. Só encontrava alguma ajuda na igreja local. No mais vivia de pedir auxílio nas ruas, mendigar uns trocados e tocar a vida. Não era mal de coração, mas sua aparência assustava as pessoas. Roupas maltrapilhas, cabelo seboso, barbas enormes e andar oscilante. Quando as mulheres o percebiam, tratavam de atravessar a rua, pois achavam aquele homem abjeto e não entendiam como o deixavam perambular pelas vias. As mais intransigentes realizavam visitas regulares à delegacia exigindo a prisão do pobre ser. Mas o delegado, por seu lado, dizia que Zé Padeiro nunca fizera nada de errado e, portanto, não havia motivos para prendê-lo. As crianças zombavam dele, faziam chacotas e lhe puxavam as barbas quase a ponto de arrancá-las. Pobre Zé. Tentava escapar dos pirralhos, mas sua voz soava quase incompreensível. Uma verdadeira algaravia. Os galhofeiros diziam que ele falava um idioma estrangeiro, caindo na gargalhada. Pernoitava sempre em lugares diferentes. Uma noite dormia num banco de praça e na seguinte se alojava em algum sobrado abandonado. Nos dias de chuva buscava qualquer abrigo,
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mas, invariavelmente, não encontrava nenhum. Seu único vício era a “mardita cachaça”. Tornara-se alcoólatra na expectativa de que com a bebida encontraria algum refúgio. Peregrinando de bar em bar e sem dinheiro para alimentar aquele costume nocivo contava com a piedade dos comerciantes para conseguir algumas doses. Muitas vezes era escorraçado aos pontapés, tratado como lixo e deixado no chão como cão sem dono. Era dura a vida do Zé Padeiro. Andar pelas ruas sem companhia ou compreensão, sobrevivendo na adversidade. Aquele dia amanheceu cinzento. Provavelmente iria chover. O Zé tinha dormido numa esquina em que de um lado havia uma farmácia e do outro, o boteco do Alemão que, às vezes, lhe dava umas biritas. Lá por volta das 9 da manhã, o movimento começava e ele, já desperto, se preparava para mais um dia de privações. À sua frente um garoto de mais ou menos 10 anos brincava com uma bola de futebol. Distraído, não se dava conta do carro que vinha em sua direção com velocidade acima do normal. O Zé entorpecido pela cachaça tentava avisar o incauto garoto que não percebia o perigo que se avizinhava. A cada momento o carro se aproximava, o Zé tentava chamar a atenção do guri, mas as palavras não lhe saiam. No instante fatal, coragem e dignidade invadiram o Zé que, se atirando contra o rapazote, o empurrou para a calçada. A freada brusca e um baque surdo revelaram um corpo estendido na rua. O ferimento na cabeça e o sangue viscoso escorrendo para a sarjeta. Uma garoa fria e cortante chegou e com ela o fim do Zé Padeiro.
bons funcionários que eram, de uma empresa inglesa, eles eram sérios, soberbos e orgulhosos da pompa que ostentavam. Eu não vesti essa farda! Uma frustração e tanto que carreguei.
Esse é o mensageiro que sempre víamos nos antigos filmes! Luiz Saidenberg Já fui também um menino fardado. Mas foi na escola que antecedeu ao Ginásio Anhangüera na Lapa. Como minha memória anda fraca não sei se era o Liceu Tiradentes. Seu diretor, professor Getúlio, tinha umas idéias militaristas, isso foi na época da Segunda Guerra Mundial. A farda era cáqui com cinturão e botões pretos. Tinha para completar um “bibi” do mesmo tecido, que usávamos meio enviesado na cabeça. Por causa desse fardamento tivemos muitas brigas com os alunos do Colégio Campos Salles da Rua 12 de Outubro. Eles nos chamavam de “vaca amarela”. Adelmo
Seu Domingos e as ostras frescas de Cananéia Roque Vasto
O menino fardado Urbano Coaraci Quem não usou algo parecido, não pôde ter a imensa emoção de sentir na pele um traje tão chique e bem elaborado como a farda do mensageiro da Western Telegraph. Eles estavam em todos os cantos da cidade, pois essa era a sua atividade: entregar telegramas. Como chamar aquele boné que eles usavam? Eram redondos, impecavelmente redondos. De formato igual só vi na cabeça daquele oficial francês da legião estrangeira! Ou então, de um “comi” de hotel! E o casaquinho?! De gola careca, igual aos chineses, botões dourados, enfileirados na vertical, em ambos os lados. Acinturados que eram, tinham dois bolsinhos, mas acho que só como enfeites, pois, presa à cinta, havia uma reluzente carteira de couro, onde eram levados bem protegidos os telegramas. A calça tinha a bainha virada para dentro, fato que desafiava a elegância italiana, mas tinha aquela tira que descia pelas laterais. O par de sapatos, da marca Clark, tinha um solado de borracha tão eficiente que vencia os anos. O couro que antes ava por uma calandra dava uma aparência granulada, inconfundível! Enfim, eles eram impecáveis! E como
Na década de 1950, na esquina da Rua Monsenhor Andrade com Gasômetro, havia um bar, e na calçada, diariamente, ficava um senhor sentado em um banquinho de madeira tendo ao lado uma mesinha que servia de e a uma cesta de vime, repleta de ostras e pedaços de limão. Era o seu Domingos, um napolitano que trazia as ostras do Mercadão para vender naquela esquina, onde ficava das 10 até as 15 horas, quando liquidava o seu estoque da mercadoria. Muitas vezes, além das ostras, ele trazia para vender algumas fieiras de caranguejos ou siris, e quando isso acontecia era uma festa, pois os bichos estavam vivos, e a molecada da rua comprava os bichinhos para brincar com eles, como se fossem cachorros amarrados por pedaços de barbantes. As meninas fugiam em disparada, com medo da aproximação dos pobres bichos. No cesto havia a inscrição: ostras frescas de Cananéia, e em cima da mesinha, sempre, uma pequena tabuleta onde estava escrito: “acá nissuno é fesso” – aqui ninguém é trouxa, no dialeto napolitano.
Esse ditado é famoso entre os napolitanos. No restaurante Giardino di Napoli, há a placa: Siamo tutti buona gente, ma qui nessun é fesso! Luiz Saidenberg 219
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Bento do Portão Roberto Pavanelli Salve Bento do Portão! No dia 29 de junho de 1917, data em que os católicos festivamente comemoravam o dia de São Pedro, faleceu em Santo Amaro um baiano de nome Antônio Bento. Esse homem se tornou parte importante na crença religiosa do santamarense, a ponto de, hoje, seu túmulo receber verdadeiras romarias, onde o povo roga por sua clemência e por graças das mais variadas. Pedidos de curas e de todo tipo de ajuda são lançados em seu mausoléu na busca de soluções, atenção que as pessoas garantem receber. Bento do Portão, como se tornou conhecido, viveu em nosso bairro como um mendigo, fazendo pequenos serviços para as pessoas de quem recebia comida e outros auxílios. Há quem diga que seu apelido vem do fato de que boa parte de seu tempo ele ficava sentado em frente ao portão do cemitério. Há outras versões que dizem que o portão onde ava horas sentado era a porta de uma residência da Alameda Santo Amaro. Bento nasceu em 20 de janeiro de 1875. Depois de morto, ao ser exumado, dizem que seu corpo foi encontrado intacto, causando grande comoção naqueles que acompanharam sua exumação. Todo ano, na semana de sua morte, seu túmulo, muito freqüentado, ganha um ar festivo com a presença de muita gente de todos os cantos e dos mais tradicionais santamarenses. Salve Bento do Portão, que para muitos é um santo, e para nós o santo santamarense.
Homenagem a Têtêtê! Helena Vaz Jardim América das décadas de 1950 e 1960. Todos os dias ava em minha rua, aliás, Alameda Lorena, um cidadão que sempre me intrigou. Era um mendigo muito carismático. Perambulava com um maço de jornais embaixo do braço e exclamava a altos brados: — Tê tê tê, Getulio Vargas vai perder! Ele era robusto, atarracado e tinha uma grande cicatriz na fronte, seqüela de uma pancadaria ou de um acidente que provocou um delírio permanente e obsessivo! Quando ouvia “tê tê tê” lá estava eu no jardim de frente para observar o personagem, a quem minha mãe dava sempre um prato de comida. Era costume das famílias católicas e generosas do bairro praticar a caridade cristã. Seria ele demente? E por quê? Esse personagem ressoa ainda na minha memória porque, com o tempo, compreendi por que meu pai tinha uma grande pena dele. Ele bem sabia, lá consigo mesmo, porque era médico e havia trabalhado num pronto-socorro do Rio de Janeiro, que o nosso Têtêtê era uma vítima da tortura que a polícia de Getúlio praticava aos que se opunham à ditadura do Estado Novo. Têtêtê não era louco, fizeram-lhe perder
o juízo. E ele sem cessar não deixou de denunciar, sozinho, abandonado e maltrapilho, as grandes injustiças e a grande repressão que se praticava nesse nosso País. No bairro do Jardim América, as crianças todas brincavam na rua, faziam cabanas com os galhos das árvores, desciam a Rua da Consolação com os carrinhos de rolimã, iam ao cinema Paulista sozinhas, queimavam o Judas no Sábado de Aleluia amarrado a um poste, soltavam balões. No quintal do meu avô, que morava ao lado, eu tinha até um cabrito de estimação e trepava nas jabuticabeiras para comer os frutos no pé, o que me dava sempre uma grande indigestão! O que sobrou daqueles tempos quando ainda havia garoa e um friozinho úmido que penetrava nos ossos? Nosso Têtêtê. Dedico essas simples palavras à sua memória para que nunca mais o Brasil produza testemunhas da ditadura e os tratem como loucos!
O gigante Zélio Andrezzo Em 1964, na Praça da República, na continuação da Avenida Ipiranga, tinha a Joalheria Casa Castro, em frente a um ponto de ônibus onde eu sempre esperava o ônibus da Empresa Auto Ônibus Alto do Pari Ltda. Era hora de ir almoçar na Vila Maria, e esse ônibus ia para o Zoológico da Vila Maria que eu sempre ouvi falar, porém nunca vi. Certa vez, entrou no ônibus comigo uma figura que chamava atenção de todos. Um homem bem alto, bem forte, parecia um gigante, muito moreno, cabelos cacheados e compridos – confesso que senti um pouco de medo, pois tinha uma expressão austera e uma postura que intimidava. Sentei-me na janelinha como sempre, e para aumentar o meu medo, ele veio e sentou-se ao meu lado. Quando colocou sua mão sobre seu joelho, que mal cabia entre o banco e o encosto da frente, tremi! Era uma mão de um tamanho que nunca havia visto antes. O ônibus saiu e ali fui eu naquela viagem, em simpósio com todos os meus botões, descendo a Avenida Ipiranga, que na época descia. Por que do medo? Tinha vontade de trocar de lugar, mas ia chamar sua atenção. Durante o percurso, sem mover a cabeça, revirava os olhos para o lado atento à figura que permanecia ereta e com a expressão de quem ia executar alguém. Meu terror aumentava quando pensava em levantar-me, pois teria aquela figura que levantar-se também e bater com a cabeça no teto para eu sair. A sensação de claustrofobia foi tomando conta de mim e por momentos sentia-me um condenado a caminho da execução. Naquela época, esse ônibus tinha o itinerário pela Vila Guilherme, e ava exatamente no meio do lixão, onde eram depositados os lixos recolhidos na cidade. Nessa agem o cheiro era inável e, para
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meu desespero, senti e vi aquele enorme volume de homem vindo para cima de mim; quando ia começar a pedir socorro, ele olhou-me com um olhar terno e muito delicadamente pediu-me licença para abrir a janela. Quando olhei seu rosto, desfez-se todo o pavor que eu criara dentro de mim. Reconheci-o, era Milton Ribeiro, o cruel “Capitão Galdino Ferreira”, do filme O Cangaceiro, ganhador do Festival de Cannes. Sem que eu lembrasse, sua presença trouxe-me todo terror do personagem que sangrava suas vítimas penduradas pelos pés. Graças a Deus meu ponto chegou e eu desci aliviado como se tivesse despertado de um pesadelo.
A resistência do Forró
residencial. Hoje, na verdade, é lugar de agem, uma das ligações com o litoral e o ABCD. Muitos motoristas, que naturalmente não conhecem o Forró, se irritam quando se deparam com sua charrete e o cavalo marromavermelhado pelo caminho. Muitos xingam, cantando pneu ao arrancar. Mas o Forró segue imperturbável, a vender seu peixe, indiferente aos gases que saem dos escapamentos, aos apartamentos que se erguem, ao barulho dos aviões que seguem rumo ao aeroporto de Congonhas, poucos quilômetros adiante. Ele sequer nota as torres de celular – a propósito, ele não tem celular! Forró resiste ao tempo e aos modismos. Resiste aos grandes magazines, Pão de Açúcar, Wal-Mart, brevemente Carrefour. Nos fins de tarde, pode-se vê-lo conduzindo seu cavalo para comer generosos tufos de capim que crescem ao lado da Rodovia dos Imigrantes...
Joel Emídio da Silva Há mais de trinta anos conheço o Forró. E ele mantém, quase intactas, as características com as quais o vi pela primeira vez, logo que cheguei aqui no Jabaquara. O mesmo cabelo preto oleoso e encaracolado, a mesma barbicha preta, os dentes sempre estragados, o mesmo jeito soturno de ser, a mesma charrete, só o cavalo que de tempos em tempos muda de cor... É verdade que houve um tempo em que ele tentou substituir a charrete por uma velha caminhonete, mas, aparentemente, o malogro foi completo. Esse bairro é repleto de subidas e descidas, algumas muito íngremes, e a velha caminhonete, com freios, embreagens e motor em estado lamentável, tornava inviáveis as subidas e perigosíssimas as descidas, pois o freio de mão igualmente deixava a desejar. Assim, o jeito foi voltar ao uso da velha, mas eficiente, charrete, puxada pelo cavalo manso e resistente. O atual é um cavalo marrom-avermelhado, ferrado, cuja garbosidade, se não faz frente ao valente Murzelo Alazão de minha propriedade, pelo menos não faz feio. Forró é o peixeiro do bairro. Duas ou três vezes por semana podemos vê-lo circulando por entre carros e ônibus, com sua singela buzina de plástico e metal, com a qual anuncia sua agem oferecendo sardinhas frescas, às vezes tainhas, bagres, traíras. Tudo é simples e prático. Dentro de uma caixa de isopor, vão os peixes, entre pedras de gelo. À porta das casas, ante a solicitação da dona-de-casa, Forró pára, trava a charrete, pega sua velha balança de ferro, forra o prato com uma folha de jornal e ali são atirados os peixes de preferência da cliente. A aferição do peso é geralmente visual, mas o Forró é generoso e ninguém jamais se queixou de ter pagado valor acima do combinado por conta de diferença no peso... Feito o cálculo de peso e preço, o peixe é embrulhado no próprio jornal e entregue à feliz cliente que entra para preparar o peixe para o almoço ou jantar. Como o bairro cresceu e a Avenida Engenheiro Armando de Arruda foi alargada, em muito perdeu a característica de bairro
Bailando pelas ruas Ricardo Azevedo No começo da década de 1970, trabalhei na Companhia Editora Nacional, que ficava na Rua dos Gusmões. Na hora do almoço, costumava ir a pé ao centro da cidade, Rua Barão de Itapetininga e entorno, para fazer alguma compra e, principalmente, dar uma fuçada na inesquecível Livraria Brasiliense, assim como na Teixeira e numa outra, não lembro agora o nome, que ficava na 24 de Maio em frente à loja de discos Breno Rossi que, aliás, eu também costumava freqüentar. Nessas andanças tive oportunidade de ver, por duas ou três vezes, uma figura inacreditável. Um sujeito que andava dançando pelas ruas do Centro. Sem dúvida era bailarino, pois tinha um grande domínio do corpo. O cara ia pelas ruas dando saltos, rodopios, fazendo poses de balé e andando na ponta dos pés. Se por acaso o sinal fechava, ele ficava parado na calçada numa posição de dança, por exemplo, na ponta dos pés, braços abertos e mãos congeladas num gesto dançarino. Assim que o sinal ficava verde para pedestres, lá ia ele saltitando e rodopiando pelas ruas afora. Na época, alguém me disse que era um bailarino do Corpo de Dança do Teatro Municipal e que costumava ir dançando do teatro até uma escola de dança que ficava na Avenida Duque da Caxias, esquina com a Barão de Limeira. Não sei se isso é verdade. Sei que esse cara existiu e que sua performance alegre, insólita e libertária dava uma vida especial às ruas cinzentas do centro da nossa cidade.
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Orlando de Alvarenga Gaudio, o Velho Professor
A prostituta
Roberto Pavanelli
Mário Lopomo
Foi nos conturbados anos negros do final da década de 1960 que o conheci, quando cursava o então curso Clássico no Instituto de Educação Professor Alberto Conte, em Santo Amaro. Nos tempos em que o ensino público prevalecia em qualidade em relação ao ensino particular, era o Alberto Conte uma das escolas mais concorridas de São Paulo. Tive o privilégio de estudar lá. Também tive o privilégio de conhecer um velho idealista do ensino que, já em idade avançada, não havia perdido o vigor e o entusiasmo pelo magistério, profissão que iniciou em 1931 com 24 anos de idade e que só encerrou com sua morte. Foi idealizador da Festa dos Estados, evento anual que ajudou ainda mais a tornar o velho Alberto Conte conhecido na cidade de São Paulo. No negro ano de 1968, aquele das grandes revoltas estudantis, o velho Professor assumiu a direção do Colégio Alberto Conte, em substituição ao professor Valter Vandic, ocasião em que conseguiu acalmar os acirrados ânimos que agitavam o interior e as imediações da escola. Inovador no ensino de História e Geografia, em janeiro de 1964, aproveitando o apoio de seu ex-colega Carlos Lacerda, então Governador do Rio de Janeiro, levou seus alunos para uma viagem quando pôde mostrar-nos os locais históricos de Petrópolis e da capital carioca. Amante do teatro, exigia de seus alunos que acompanhassem as principais peças em cartaz na cidade, sempre com o intuito de fazer com que tomassem gosto pela cultura. Muitos e muitos Santamarenses de meia-idade devem a ele parte do que sabem, e são esses que, como eu, não se esquecem do Velho Professor.
Bonita, elegante, loira, de cabelo na altura do ombro, 30 a 35 anos. Seu nome, Irene. Andava sempre na moda, e na metade da década de 1960, a moda era minissaia. Mas ela usava a saia quatro dedos acima do joelho. Perna roliça de fazer inveja a muita gente. Usava blusa decotada tanto em “v”, como retangular, deixava transparecer parte de seus seios e era visível que não usava sutiã. Chamava a atenção de todos. Os homens ficavam maravilhados. As mulheres iradas. O comentário sobre ela era de que não ava de uma grande prostituta. Recebia gracejos de toda ordem, não estava nem aí. Às mulheres pouco faltava para agredi-la física ou verbalmente. Seus maridos eram bastante vigiados. Mas o fato era que Irene não dava bola para ninguém, nunca tinha conversado com nenhuma delas e, muito menos, com os homens do bairro. Mas ficava sempre aquela ponta de dúvida para as mulheres que não faziam nada, além de ficar no muro bisbilhotando a vida dos outros. Irene andava de cabeça erguida, sorriso espontâneo, sabia de sua fama e não dava ouvido a ninguém, afinal, não devia. Tinha uma personalidade forte. Morava numa rua do bairro do Brooklin e ia todo o dia a pé até a Avenida Santo Amaro pegar o ônibus para a cidade. Havia muita curiosidade por parte das pessoas, em saber para onde ela ia; um dia, uma delas resolveu segui-la e tomou o mesmo ônibus. Ela desceu no Anhangabaú, atravessou o Vale e sua seguidora foi atrás. Depois, subiu as escadarias que levam ao prédio da Light, atravessou a Rua Xavier de Toledo, foi cumprimentada, respeitosamente, pelo guarda Luizinho, e entrou no Mappin. Não muito tempo depois, essa mulher que a seguiu foi ao Mappin com o marido comprar malas para viagem. No setor de vendas bateram de frente com a Irene, sem suas roupas extravagantes, mas com o uniforme do Mappin: saia e blusa branca, com detalhes em verde e o broche retangular de metal com o nome da loja. A mulher ficou sem saber o que fazer ao ver o marido conversando com Irene, sobre preços e outras coisas a respeito da compra, com os olhos brilhando em ver o rosto da vendedora loira de olhos verdes. Tanto ela, Irene, quanto ele, marido da fofoqueira, sabiam que eram vizinhos. Depois desse dia, ficou positivado que de prostituta Irene não tinha nada.
Ler sobre o Colégio Alberto Conte traz ao coração belas lembranças! Estudei no Colégio Alberto Levy e no bom sentido e em plena paz vivíamos sempre em disputa: nos jogos, nas festas, no quadro de professores, nos desfiles de 7 de setembro e, também, nos alunos que mais se destacavam! Enfim, era tudo muito saudável! Algumas amigas namoravam alunos do Alberto Conte, praticamente, em segredo! O melhor de tudo: ótimos colégios, assim como outros da mesma época! Estudo grátis, corpo de professores nota 10, ensino nota 1000! Márcia Ovando
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A didática Dona Linda Vera Lúcia de Angelis Dona Linda é o apelido de minha mãe, batizada por Deolinda. Nascida em Sertãozinho, interior de São Paulo, perto de Ribeirão Preto, veio mocinha viver na capital, o que adorou, pois era muito dura a vida na roça. Aqui encontrou o irmão do marido de sua tia, com quem viveu a primeira vez em que veio para São Paulo sem sua família. Treze anos mais velho, e apaixonado, o irmão do tio vivia importunando-a com brincadeiras de dizer que um dia ia se casar com ela. Ele também nasceu na mesma região, mas já não trabalhou na roça, veio para São Paulo bem antes. Tempos depois, quando ela já vivia com a família na cidade grande, acabou cedendo e os dois se casaram, em 1951, na antiga e famosa Matriz da Freguesia do Ó, bairro que rendeu uma música do Gil sobre o punk da periferia. Mesmo nascida no interior, minha mãe sempre teve e tem adoração por esta cidade. Vivia olhando as cidades nas placas dos carros com saudades de sua terra natal, mas até hoje preza por viver na capital. Foi com o mesmo amor que sempre fez questão de nos ensinar as ruas principais, prevenindo a nossa futura necessidade de ter que ir ao Centro para trabalhar. Lembro que não gostava de prestar atenção, pois adorava grudar o nariz na janela e ficar cantando, além do que, não via importância naquelas aulas que minha mãe nos dava. Meu pai me mostrava o bicho preguiça no Parque da Luz, me levava para andar de escada rolante, comprava doces na Kopenhagen, chocolate Seresta, num mercadinho do Bom Retiro e eu ia cochilando no ônibus. Já minha mãe, com o seu lado prático e didático, procurava atualizar-nos dos roteiros da grande cidade, que foram tão úteis: para minha irmã mais velha que fez cursinho na Avenida São João, para mim quando fui procurar meu primeiro emprego, entre outras ocasiões. Mesmo que os filhos não levem muito a sério os conselhos e as instruções dos pais, com o ar do tempo e com a nossa experiência, os pontos vão se ligando e as lições, de um jeito ou de outro, vão fazendo efeito. Por isso e por tantas outras coisas agradeço a minha mãe.
Eu tinha 6 anos quando aconteceu esse casamento. Não me recordo da cerimônia, mas freqüentei muito a casa deles de 1955 em diante. Lembro-me perfeitamente do lar que esse casal construiu. Eles moravam na minha rua e sempre que eu podia ia até lá para curtir aquela casinha bem arrumada, com cheiro de nova. Adorava conversar com ela sobre um amor platônico que eu tinha pelo Mazzola Altafine, jogador do Palmeiras. Ela me ajudava a recortar tudo que saía sobre ele nos jornais e revistas. Adorava também um bolo de chocolate que ela fazia e todos os
quitutes que preparava para meu tio. Tive a oportunidade de conviver com minhas primas Roseli e Vera Lúcia. Minha mãe chamava-se Linda, minha tia Deolinda. Para mim são as duas Lindas, as mulheres mais importantes de minha vida. Bernadete Pedroso
Antônio Cantarilho Willians Ribeiro Em frente à Igreja São Francisco, no centro da cidade, podemos encontrar um personagem ilustre que faz das suas serenatas o fundo musical da Rua Benjamin Constant. Seu nome é Antônio Conceição da Costa, 63, mais um de tantos que usam a nossa cidade como o palco para celebrar a música de raiz que aquece os gelados corações paulistanos. Desde os 6 anos, o “cantarilho” Antônio usa uma viola como instrumento musical para colocar em suas músicas todas as suas emoções e sentimentos. No Centro, está há dezessete anos fazendo serenatas para aqueles fiéis que saem da igreja. Quem a com pressa na Rua Benjamin Constant, geralmente, uma rotina do cidadão dessa cidade, não percebe o Seu Antônio, assim como é chamado, com sua viola e seus dois CDs, mas ele continua seu espetáculo público.
Silk, o faquir Carlos Alberto Gomes Na década de 1950, provavelmente entre os anos de 1955 e 1960, fui com meu pai, já falecido, à galeria do Vale do Anhangabaú ver o Silk, que estava há vários dias sem comer, tentando bater o recorde mundial de abstinência. Lá estava ele, num canto do corredor, enjaulado entre cobras, com a expressão de quem parou de viver para vencer seu desafio. Na ocasião eu tinha menos de 10 anos e aquilo tudo me fascinou e me intriga até hoje. Jamais ouvi qualquer comentário posterior a respeito de tal evento e, às vezes, chego a duvidar que tenha realmente existido.
Lembro-me muito bem desse faquir Silk. No fim de noite, eu e meus amigos, comíamos no Jeca – uma casa de lanches famosa na Avenida São João com a Ipiranga. Finda a refeição, íamos sempre ver o Silk, que estava em exibição em um local próximo ao Jeca. Em uma dessas noites, um amigo, o Papa, como era conhecido, decidiu que veríamos o Silk, 223
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comendo os nossos sanduíches. Sim, esta foi a ultima vez que o vimos, fomos sumariamente expulsos do local. Francisco Barroso
me lembro de quanto tempo resistiu em cada uma das duas vezes, mas não era pouco. Ele foi um herói curioso. Vicente Portaro
Sou filho de faquir. Meu pai foi o faquir Zokan, aquele que ficou mais tempo sem comer, ou seja, 132 dias, no Rio de Janeiro, em 1970, batendo o recorde mundial; que até a presente data não foi alcançado por ser humano algum. Os faquires Silk e Zokan foram criados juntos em Porto Alegre, eram gaúchos. Paulo Ricardo
Lembro-me perfeitamente dele no Largo do Paissandu, mas não o vi por falta de dinheiro. Acho que tinha menos de 14 anos, quando pedi para minha mãe e ela respondeu que era dinheiro jogado fora. A vontade foi imensa. Eloi Fonseca
Silk. Era esse seu nome. Meu falecido pai tinha visto esse faquir no Largo do Paissandu e um dia ei pelo largo e lá estava o único faquir que conheci. Entrei e vi Silk sossegado, entre as cobras ou serpentes, dentro de uma grande caixa de vidro. Sempre me lembro de sua expressão e ficava imaginando que durante a noite ele sairia daquele local e poderia ir até o Ponto Chic, bastando para isso dar alguns os... Lembro-me de que meu saudoso pai, um dia, entrou em meu quarto e eu estava fazendo um tipo de meditação ou relaxamento, usando uma vela acesa... Ele ficou olhando pela porta semi-aberta por um tempo, e ouvi-o depois comentar com minha mãe: O Carlos está estudando para faquir... Por incrível que pareça, se eu pudesse escolher livremente uma profissão, escolheria a de faquir tal como Silk escolheu, lembrando que a palavra faquir leva em seu bojo a conotação de Santo. Não digo que Silk era um santo, mas ele merece uma homenagem, devido ao seu desprendimento e anonimato. Carlos Sampaio Quando trabalhava em São Paulo, pois sou nascido nessa cidade, mas atualmente moro em Curitiba, nos idos anos de 1980, cheguei a presenciar as apresentações e permanências desse homem, que duravam dias e talvez meses, sobre uma cama de pregos e outras peripécias que apresentava. Na época, eu era contínuo, trabalhava na Barra Funda e sempre ava no centro da cidade e me deparava com aquele homem já velho e de barbas. Rogério Cordeiro Sobral Eu vi o Silk pelo menos em duas temporadas diferentes, pela cidade de São Paulo. A última, em que mais me detive, foi no Largo do Paissandu, em frente à igrejinha. Ele estava num caixão de vidro fechado sobre uma mesa, com suas cobras, deitado sobre uma cama de pregos. Havia alguns avisos escritos por fora, indicando o tempo que estava resistindo. Havia arrecadação de dinheiro, mas não lembro como coletavam. Não
Em 1969, participei da estréia do faquir Silk, na Avenida São João. Ele já estava dentro daquele caixão deitado em cima de pregos grandes, com cobras por cima. Eram 23h30. Antes de chegar meia-noite ele conversava normalmente como se estivesse em cima de um confortável colchão. Mário Lopomo
O Zé da Lambreta e do Cavaquinho Mário Lopomo Esse era meu irmão. Um cara que nasceu para mexer com engenhocas. Gostava de um barulho. Tudo começou quando eu e ele queríamos comprar uma bicicleta. Então combinamos de guardar as moedas que ganhávamos de gorjeta das vizinhas quando elas mandavam a gente ir à venda. A cada vez que isso acontecia, elas davam o troco como gorjeta. Eram dez tostões daqui, duzentos réis de lá. Às vezes, trezentos réis de outra. Tinha até “quinhentão” que às vezes espirrava para nosso bolso, mas o que mais gostávamos de ganhar era a pataca de quatrocentos réis (o famoso quatrocentão). A gente não pensava em andar na fatiota nem para ir à missa, só para economizar aquele dinheirinho. Por isso, quando minha mãe falava em comprar uma roupa ou sapato, a gente preferia ficar com o que tinha e andar de tamanco ou alpargatas em vez de sapato. Eu e meu irmão já tínhamos quase todo o dinheiro para comprar a bicicleta, e minha mãe completou o que faltava. No dia seguinte fui à escola pela manhã e não via a hora de chegar em casa para dar uma volta nela. Quando cheguei, vi a bicicleta toda desmontada, porcas e parafusos e um monte de peças jogadas ao chão, a roda traseira sem a catraca, a corrente jogada num canto do quintal, o guidão desmontado, o garfo já todo raspado para uma nova pintura. Não demorou muito a bicicleta estava novamente montada, com nova pintura, pneus novos e faixa branca. Até hoje, ados 56 anos, não consigo entender como ele decorou tudo direito para a reposição de todas aquelas peças.
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Um dia, meu irmão trocou a mania de bicicleta pela motocicleta, e uma “coisa horrorosa” foi adquirida por ele. De repente, como havia feito com a bicicleta, a moto também estava desmanchada. O guidão já não era o original, ele colocou um guidão curtinho. Pára-lama também curto e uma placa oval em sentido vertical, com o número oito. Uma autêntica moto de corrida. Ele já estava se preparando para alguns rachas. Só restava saber se ela iria andar. Não demorou muito ele era o único cara do Brooklin Novo com uma motocicleta de escapamento aberto fazendo um barulhão pelas ruas Cação, Texas, Kansas, Marquês de Cascais e Arandu. Quando o ano de 1958 chegou, a Itália exportou lambretas para o Brasil. Era uma febre de lambretas por toda a cidade. Aí meu irmão foi ser mecânico de lambretas. A primeira oficina de lambretas que ele trabalhou foi a da Avenida Brigadeiro Luís Antônio, quase esquina com a Rua Guarará. Não demorou muito já tinha sua oficina e, durante anos, arrumou a lambreta de muita gente. Seu nome ou a ser o Zé da Lambreta. Fora os habitués proprietários de lambreta, os portugueses, padeiros que entregavam pão, também eram fregueses do Zé. Quando chegou o ano de 1970 e as lambretas começaram a diminuir no gosto do povo, ele partiu para a mecânica de automóveis. Seu primeiro emprego foi com seu Otávio, sogro do seu cunhado. A oficina era na Rua Carlos Sampaio. Seu Otávio sabia tudo de mecânica de carros, portanto, era um ótimo professor. Então, em pouco tempo o Zé da Lambreta não ficou nada a dever a seu Otávio, que um dia me disse que meu irmão parecia que tinha nascido para mexer com a mecânica, tamanha a facilidade que tinha. Em 1974, José já tinha sua própria oficina de mecânica. Não demorou muito para ter uma enorme freguesia. Quem levava o carro para ele nunca mais levaria em outro mecânico, tamanha a confiança que tinham nele. Quando começou a computação para regulagem de motores, ele continuou a fazer regulagem na base do ouvido. E que ouvido ele tinha! Como regulava bem os motores. Poucos mecânicos conseguiam regular motor de fusca como ele. Na verdade, ele sabia fazer tudo o que um carro precisava e, além do motor, fazia eletricidade, pintava. Era eclético no ramo. Mais tarde, ele resolveu fazer aquilo que gostava de fazer desde criança: tocar cavaquinho. Foi amigo de Evandro, que era o chefe do conjunto dos Chorões e participava com ele do Clube dos Chorões de Pinheiros, na Praça Benedito Calixto. Gostava de tocar as músicas de Waldir Azevedo e Brasileirinho era o seu hino musical. Na loja de instrumentos musicais, da Avenida Duque de Caxias, onde ele comprava cordas, sempre dava uma “palhinha”, e recebeu o apelido de Zé do Cavaquinho. Quando alguém não sabia quem era o Zé Mecânico, era só dizer que era o Zé do Cavaquinho, que todos já sabiam de quem se tratava. Aos 50 anos começou a se sentir doente e foi ao médico que diagnosticou a doença de Chagas.
Parece que o mundo desabou para Zé Mecânico, da Lambreta, ou melhor, para Zé do Cavaquinho, que aos poucos foi definhando. Continuava fumando. Não se tratou direito. Tinha a mania de dizer que os médicos não sabiam nada. Ele sempre foi forte. Mas quando não conseguia mais erguer a porta de sua oficina, ficou em casa “coçando o saco”, como gostava de dizer. E os fregueses aborrecidos, porque o médico de seus carros estava doente. Num dia de maio, quando Ayrton Senna morreu, meu irmão disse que ele também não tardaria em ir. Estava “jogando a toalha”. Parece que se cansou da vida. Olhou bem para mim e disse: — Mário, eu não vou ver a Copa do Mundo deste ano. E no dia 2 de junho de 1994, uma quinta-feira de Corpus Christi, ao meio-dia, José Lopomo morreu aos 53 anos de idade, no Hospital Dante Pazzanese.
Meu querido vô Manoel Maria Fátima Gonçalves Depois de enviuvar, meu avô materno foi morar no Itaim Bibi com a filha mais velha, minha saudosa tia Elvira. E lá ia eu toda semana visitá-lo, porque depois de ser criada na casa vizinha à dele, não conseguia ficar longe por muito tempo. Meu avô tinha uma memória prodigiosa! Nascido em Itapira, ou a maior parte de sua longa vida em São Paulo, mais precisamente na Vila Prudente. Mas ele era aquilo que se costuma chamar “cidadão do mundo”, e eu diria, cidadão deste “mundo” chamado São Paulo. Minha alegria era ir para o quarto dele e deixar que me mostrasse seus “tesouros”, que carregava consigo onde quer que fosse, através dos anos, das mudanças, e de todos os sofrimentos que enfrentou nos seus 90 anos. Tesouro esse que cabia numa velha caixa de sapatos... Um desses tesouros era sua “habilitação” de charreteiro, porque lá pelo início do século XX era esse o principal meio de transporte em “Sampa”. Depois, com a chegada do automóvel em escala, exibia ele, orgulhoso, sua habilitação como “chofer de praça”. Dirigia um belo Ford Bigode, preto e reluzente. Trabalhou também como motorista particular para famílias ricas e tradicionais, inclusive para o famoso ator Pagano Sobrinho. E havia as fotos — que herdei. É incrível como uma única foto pode nos contar muito sobre uma época, um lugar e sobre as pessoas! Ele foi também caixeiro-viajante e cortou todo o interior do Estado viajando de trem. Nunca mais encontrei alguém que conhecesse nossa terra tão bem quanto ele. Não havia rua da cidade que ele não conhecesse... era um verdadeiro guia de ruas ambulante! Tenho saudade do meu querido vô Manoel e das histórias que ele me contava tendo sempre como pano de fundo a São Paulo que ele amava e 225
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conhecia tão bem. Em parte por sua influência, aprendi a olhar para nossa cidade e encontrar nela as belezas que ele me descrevia naquelas adoráveis tardes que ávamos juntos. Mergulhada no seu “tesouro”, que me remetia ao ado ao mesmo tempo difícil e “glamouroso” desta cidade, aprendi que ela é única em todo mundo.
Meu amigo Caçulinha Paulo Theodoro da Silva Fortes Poucos conhecem em São Paulo a história desse músico que, escondidinho lá no programa do Faustão, tem em sua bagagem artística uma história de vida. Seu nome, Rubens Antonio da Silva, nome artístico, Caçulinha. Sinto-me feliz em ser seu amigo pessoal, e curti muito, em minha juventude, sua companhia. Até hoje nos falamos de vez em quando, pois me afastei de São Paulo por onze anos, quando fui morar em Itanhaém. Hoje, graças a Deus, estou de volta à minha terra natal. Caçulinha é filho de Mariano Silva, que na década de 1930 fazia dupla caipira com seu irmão Caçula. Daí o nome de Caçulinha, em homenagem a seu tio. A dupla Mariano e Caçula foi a primeira a cantar em rádio naquela época. Eram de Piracicaba e ficaram famosos cantando Saudades de Piracicaba. Depois que a dupla se desfez, senhor Mariano veio para São Paulo para trabalhar. Casou-se com dona Maria e teve dois filhos: Rubens, Caçulinha e Wanda, casada com Wilson. Senhor Mariano trabalhou muitos anos para educar os filhos, tendo Caçulinha se dedicado ao acordeom. Estudou inclusive no Conservatório Nacional de Música, o mesmo de Cecília Meirelles. Na época, eles formaram o Conjunto Bandeirantes, com Caçulinha no acordeom, senhor Mariano no violão, que tocava muito bem, e Wanda na percussão. Saíram cantando pela vida afora, inclusive em circos, e, mais tarde, desmancharam o conjunto por motivos de estudo. Aí surge Caçulinha no conjunto que acompanhava Luiz Gonzaga na TV, com todos vestidos de cangaceiros. Depois que terminou o programa, Caçulinha aproveitou os músicos Xixa, no bandolim, e Catamilho, o rei da zabumba, e formou o Regional do Caçulinha, acompanhando os programas Fino da Bossa e Bossaudade, com Elizete Cardoso. Com o tempo, criou também o conjunto de bailes do Caçulinha, onde tocava ora seu acordeom elétrico, ora teclado ou piano. Foi um sucesso. Desde então, teve contrato firmado com a TV Globo. Gravou inúmeros LPs, os quais guardo com muito carinho, contendo seus autógrafos a mim dirigidos. Esse grande artista paulista já faz parte de nossa história musical.
Vovô Gidi, o mascate Miguel Chammas Desde que vim ao mundo morei debaixo do mesmo teto que meus avós paternos, o senhor José e a dona Laura que, na minha ignorância infantil, eram chamados redundantemente de Vovô Gidi e Vovó Siti. Meu avô era um imigrante sírio-libanês que nestas terras de São Paulo exercia a honrosa e milenar profissão de “mascate” ou, como se dizia na época, “braço fixo”, em confronto com uma grande loja denominada Preço Fixo. Lembro-me da sua figura altaneira, sempre vestido de preto, já meio curvado pelos anos, que, antes de sair para buscar o pão de cada dia, me chamava e perguntava: — Miguelzinho, “haram”, que bicho vai dar hoje? Eu nunca deixei de responder e, ao final de cada dia, quando o via entrar em casa carregando além da sua pasta um cacho de bananas ou um saco de laranjas, já sabia que meu palpite tinha ganho e o presente era para mim. Sempre me orgulhei daquele homem, muito mais quando soube que exercia sua profissão junto a um mercado comprador de grande rejeição perante a sociedade e o comércio varejista. Meu avô vendia lingeries para as moças trabalhadoras na antiga zona de meretrício paulistana que ficava ali pelas ruas Itaboca, Aimorés e adjacências. E mais, vendia-lhes a prazo, sem cobrança de juros e controlando seus débitos apenas numa caderneta de capa preta, igual à caderneta em que anotava diariamente o resultado do jogo do bicho. Quando Gidi adoeceu era eu quem lhe fazia companhia, lia as notícias do jornal e enrolava o seu cigarro de palha da maneira que ele sempre gostou. Um belo dia vi todo mundo chorando lá em casa e fiquei sabendo que vovô Gidi partira. Tinha ido se encontrar com a vovó Siti. Chorei muito também. Nos dias seguintes, ouvia meu tio Elias e meu pai conversando sobre as dívidas que as moçoilas tinham com vovô e que como não tinham documentação hábil para cobrá-las, o prejuízo era fatal. ados alguns dias, comecei a perceber que toda vez que a campainha da casa tocava, eu era proibido de atender a porta e a tarefa era feita por minha tia Neide ou por minha mãe. Essas ocorrências se repetiram por diversas vezes nos meses que se seguiram. Só muito tempo depois, questionando meu pai, foi que fiquei sabendo da “honestidade” das prostitutas clientes do vovô, que quitaram suas dívidas sem nenhuma falha ou inadimplência e, principalmente, sem serem instadas a isso por ninguém da família. Pagaram por livre e espontânea vontade, indo até nossa porta para fazer tais pagamentos. Histórias de um neto de imigrantes.
Antigamente a palavra era “coisa” séria para todos! De uma ou de outra forma cada um cumpria os seus pagamentos. Como meu pai dizia: honrava-se os compromissos! Tudo mudou! E para pior! Márcia Ovando
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Lembrei-me das “meninas” da Rua Itaboca (20 cruzeiros), e da Rua Aimorés (30 cruzeiros), além das “velhas meninas” da Rua Carmo Cintra (preço de liquidação: 5 cruzeiros). Saindo de lá, você tinha de ir direto para o consultório preventivo do pai do Jânio, o doutor Gabriel Quadros, que cobrava barato, de acordo com a cara do freguês. Expedito Marques Pereira Também tive dois gidos, um dos quais chamávamos de Gidão. Lembrome do Gidão marcando com giz o corte das “calças de carregação” e, para que não escorregassem os tecidos superpostos, já que eram cortadas muitas de uma só vez, apoiava um pedaço de uns 50 cm de um pesado trilho de trem, que só o Gidão podia carregar com facilidade na nossa loja da 25 de Março. O outro se estabeleceu em Nova Aliança, cidade hoje colada em São José do Rio Preto, com um armazém de secos e molhados. Também vendia na caderneta, mas não teve a mesma sorte do seu avô. Normalmente se praticava o escambo. Mirça Bludeni de Pinho
O desenho do Didi Paulo Chedid O Wady Cury chegou em São Paulo na década de 1940, logo depois da Segunda Guerra Mundial. Didi, como era conhecido na 25 de Março, bom de prosa e de lápis, foi morar em uma pensão da Rua Santo Amaro. Sobrevivia como vendedor pracista de roupa de cama, mesa e banho. Logo cedo era possível vê-lo nas imediações da Rua São Caetano, ou na José Paulino, visitando a freguesia. O almoço era na 25, com muita conversa, muitos “causos” da França do Imperador. De tardinha, quase sempre só, encostava-se no balcão da Salada Paulista, pedia um Guaraná, um croquete que cobria com mostarda escura e desenhava a lápis, no mármore branco do balcão, lindas mulheres. Pagava simplesmente a conta, já que não tinha para a caixinha. Mas, ao sair, alguém que gostava dos desenhos, balançava um guardanapo, gritava: “caixinha!” e a turma respondia: “obrigado!” Fim do dia, lá ia o Didi a pé até a Rua Santo Amaro, com pressa, para não perder o jantar.
Maria Fumaça, uma mulher da rua Mário Lopomo Maria de tal, mais conhecida como Maria Fumaça, era uma negra que zanzava pela rua, dia e noite, até os primeiros anos da década de 1950. Andava à procura do nada. Era uma mulher da vida. Não. Não era uma prostituta, como essa frase possa sugerir. Era uma mulher que queria ser livre. A rua era a sua felicidade. Gostava de andar. Viveu bons anos assim. Era pedinte. Muitas pessoas davam-lhe dinheiro. Outras preferiam dar o que comer, ou beber. Negava-se a tomar café ou leite. A pinga era sua bebida preferida, e para tal, marcava sempre o ponto em bares onde somente cachaceiros estavam. Era um enigma. Ninguém sabia nada a seu respeito. Mas todos gostavam dela. Não era mal-educada, nem desbocada. Chamava os mais velhos de senhor. Tinha uma coisa que impressionava as pessoas. Um sorriso crônico, com seus dentes, embora sem escovar, sempre alvos. Os comentários das rodinhas de bate-papo nos bares era: — Como pode uma pessoa como essa sorrir o dia inteiro? Sorri de que, essa infeliz? Tinha preferência pela zona oeste, estava sempre por perto do Hospital das Clínicas. Brincava que se preciso fosse, ela estaria bem perto do nosocômio. Mas não deu tempo nem sequer de pensar em levá-la. Num dia em que a temperatura estava bem baixa, Maria Fumaça apareceu morta, na calçada do Cemitério do Araçá. Meu pai que era marmorista e trabalhava ali na Avenida Doutor Arnaldo foi vê-la no necrotério. — Estava bonita – disse ele.
Lembrei-me da Berinjela, uma mulher de rua. Mulata, cor de berinjela como diziam, vivia ali pelas Ruas Gilberto Sabino, Capri, Amaro Cavalheiro, Sumidouro e chegava até o Largo de Pinheiros. Quando chovia, tomava seu banho na enxurrada e não se fazia de rogada, tirava as roupas, lavava as partes íntimas, tudo à vista de quem quisesse olhar. As más línguas diziam que era só pagar-lhe uma pinga e ela fazia a iniciação dos moleques. Também era educada e vivia da caridade alheia. Não sei como foi seu fim porque quando mudei para o Brooklin ela ainda estava por lá. Ivette Moreira No meu bairro também tinha uma dessas “Marias”. Era a Maria Louca. Quando ela aparecia os comerciantes ficavam atordoados, pois ela sempre arrumava um jeito de pegar uma fruta da quitanda, uma blusa de alguma loja. Nós, crianças, tínhamos medo dela, mas ela nunca nos fez nenhum mal. Bernadete Pedroso 227
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Professor Sérgio Sonnino Nelson Coslovsky Tive o privilégio de ter sido aluno de um notável e personalíssimo judeu italiano. Jamais esquecerei sua figura marcante, sentado entre os alunos, cachimbo à boca, acompanhando o estudante a quem encarregara de resolver no quadro-negro algum problema – ele lecionava Complementos de Matemática na Escola de Engenharia da Universidade Mackenzie; quando notava que o jovem entrava por um caminho errado, ouvia-se em “ítaloportuguês”: — Figlio, non seja burro... Professor Sonnino era muito rigoroso; deixava muita gente em dependência, porém “afrouxava as rédeas” para os ditos dependentes. Questionado sobre sua atitude de dois pesos e duas medidas, respondia: — Dependente mora no meu coração... Era voz corrente que ele “protegia” os alunos judeus, notadamente quando da prova oral. No meu caso, judeu como ele, por via das dúvidas, no dia do exame oral lá fui eu com um enorme Magen David (Estrela de David) pendurado no pescoço. Que descanse em paz.
de rosas e também ajudei a despetalar as rosas para a referida chuva. A chuva, ao que me recordo, foi um sucesso, e as reeleições do senhor Pedro foram garantidas por mais alguns anos.
Lembro-me muito das festividades dos 400 anos de nossa querida cidade. Hoje ela faz mais um ano, e estamos aqui comemorando. Lembro-me bem de Pedro Geraldo Costa na época, divertido com suas palhaçadas na TV, fazendo sua propaganda política com uma galinha embaixo do braço. Paulo Theodoro da Silva Fortes Se não me falha a memória, e ela costuma falhar, o Pedro Geraldo Costa era o Cronista do Coração. Lembro bem de suas campanhas apelativas. Valeu recordar. Roque Vasto
O seu Roque da Farmácia O político da chuva de pétalas Miguel Chammas Meados da década de 1950, os paulistanos ainda estavam curtindo a ressaca das magníficas festividades do IV Centenário de sua cidade. Parada de Bandas Escolares Americanas de fazer babar qualquer um que as assistisse. Festival de cinema com a presença de astros e atrizes de renome. Chuva de Prata. No Parque do Ibirapuera, totalmente remodelado para ser transformado no centro das festividades, tendo fincado em sua entrada o seu símbolo, elas se multiplicavam. As exposições eram dignas de todo respeito, em seu lago podia-se assistir, todas as noites ao show das Águas Dançantes, que era assistido por uma multidão de pessoas bestificadas pelo majestoso espetáculo que se lhes apresentava. Foi realmente uma festa digna de 400 anos de vida. Pois bem, depois dessas festas todas, e quem sabe aproveitando o impacto que a Chuva de Prata havia causado na população, um político, pensando nas eleições vindouras, resolveu aproveitar a imagem de Nossa Senhora de Fátima que iria visitar a cidade e se propôs a promover uma chuva de pétalas de rosas sobre a paulicéia. O nome desse político nem interessaria para as minhas memórias, mas eu conto, era o senhor Pedro Geraldo Costa, que tinha seu comitê sede num sobrado na Rua da Consolação, quase na esquina com a Caio Prado. Bem em frente à Ladeira Doutor Cesário Mota Júnior. Eu, na época com meus 14 ou 15 anos, ajudei a coletar donativos para compra
João Bosco Petroni Filho de imigrantes italianos, Rocco Petroni e Serafina Bianchi, Roque Petroni Júnior, nasceu em 23 de novembro de 1908, em Bragança Paulista. Iniciou seus estudos no Grupo Escolar Jorge Tibiriçá. Depois, foi enviado pelo pai para São Paulo, onde se matriculou no internato do Colégio Dante Alighieri e, a seguir, ingressou na Faculdade de Farmácia e Odontologia, por onde se graduou farmacêutico. Cursou o Centro de Preparação de Oficiais da Reserva, OR e, na condição de primeiro-tenente, combateu na Revolução Constitucionalista de 1932, servindo numa fábrica de pólvora em Piquete, no Vale do Paraíba. Ao casar-se em 1933, com Maria Rita da Costa Aguiar, adquiriu uma minúscula farmácia, que vivia às moscas, em um modesto prédio alugado na Rua Joaquim Nabuco. Começou contando tostões. Mas, em 1938, construiu um sobrado no número 54 da mesma rua, composto de um amplo salão no térreo e residência nos altos. No térreo, realizou um antigo e acalentado sonho: instalou uma moderna e organizada farmácia – Pharmácia Nossa Senhora Aparecida do Brooklin Paulista – que durante longos anos faria história no bairro e região. Dos oito filhos que teve com Maria Rita, hoje remanescem sete. Amava sua profissão e a sua dedicação aos enfermos locais tornou-se rotina. Não media esforços no atendimento a ricos e pobres, fosse de dia ou à noite, varando sábados, domingos e feriados. Transformou-se, assim, num autêntico “médico de roça”, nos tempos de um velho Brooklin, carente dos mais elementares recursos. Sempre solicita-
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do pela comunidade local, envolveu-se em vários movimentos filantrópicos e religiosos, participando, entre outros, da comissão pró-construção do novo prédio da Paróquia Sagrado Coração de Jesus, inaugurado em 1959. Foi membro da Liga Eleitoral Católica, na época da redemocratização do País, após a Segunda Guerra Mundial. Foi agraciado, em 1964, com o título de “O Comerciante do Ano”, pela Associação Comercial de São Paulo, Distrital de Santo Amaro. Pertenceu ao Conselho Fiscal da empresa Fundição Tupy, de Santa Catarina, ao Conselho Regional de Farmácia e foi membro do Sindicato dos Proprietários de Farmácia do Estado de São Paulo. Converteuse, enfim, em um homem público, não só no bairro como em toda a zona sul da capital, irado e respeitado por seu notório talento profissional, simplicidade, ética e transparência. Avesso a colunas sociais e militâncias políticas, viveu em função de sua farmácia, seus incontáveis clientes e amigos, mas, sobretudo, da educação e bem-estar de seus familiares. Com a sua morte prematura, ocorrida em 15 de agosto de 1968, a farmácia continuou pelas mãos de sua esposa e do filho mais velho até 1997. Recentemente, em 13 de agosto, Maria Rita faleceu aos 94 anos, deixando também uma legião de iradores, além de uma penca de filhos, netos e bisnetos. Em 1969, a Avenida do Córrego do Cordeiro, entre a Avenida Santo Amaro e a Marginal Pinheiros, aria a denominar-se Avenida Roque Petroni Júnior. Foi a derradeira de dezenas de homenagens que bem fez por merecer, fruto da extrema dedicação que sempre demonstrou a todos quantos tiveram o privilégio de conhecê-lo mais de perto. O seu Roque da Farmácia, como era conhecido, amou o Brooklin Paulista e a sua comunidade enquanto viveu.
Roque Petroni Júnior era muito carismático, e quem tinha uma iração especial por ele era meu tio Bié, doutor Gabriel Azevedo Junqueira, cuja porta do consultório ficava entre a Padaria Danúbio Azul e a farmácia do seu pai. Muitas vezes eu ficava em dúvida sobre quem tinha mais fama, se Roque Petroni Júnior ou meu tio, e olha que meu tio era muito bom. Tenho na minha mente a figura de seu irmão José Cláudio, de jaleco branco tomando conta do balcão, e hoje fico feliz quando o encontro como alto executivo da Siemens nos congressos médicos e matamos a saudade daqueles bons anos 1960. Gabriel Junqueira Leite Conhecemos seu Roque e, muitas vezes, fomos atendidos por ele. Trabalhei com dona Rita na Paróquia do Sagrado Coração de Jesus, como legionária e catequista. irável a família Petroni! Louvável e justa, João, sua homenagem. Lidia Walder
O Zé da Farmácia, José de Oliveira Almeida Diniz, como Roque Petroni, também tinha como hábito a filantropia, não hesitava em dar remédios a quem precisasse. Não fazia isso por interesse político. Ambos tinham também o mesmo ideal, estar sempre ao lado das pessoas necessitadas. Roque Petrella se integrou aos dois, formando um trio da filantropia que, aos domingos, ia de casa em casa, ver como estavam aqueles moradores que tanto consumiam seus produtos. Se minha memória não falha, Roque Petrella era médico. Era um tempo que se tinha o hábito de fazer amizades e cumpri-las, visitando os amigos. Assim como Roque Petroni Júnior, Roque Petrella também virou nome de rua, inclusive, bem próxima daquela. Já Zé da farmácia dá nome à Avenida Vereador José Diniz, que é continuação da Avenida Ibirapuera, terminando na Rua Adolfo Pinheiro, em Santo Amaro. Zé da Farmácia faleceu em sua própria farmácia, em Santo Amaro, de infarto, na tarde de 5 de janeiro de 1973, um mês antes de tomar posse como novo vereador da cidade de São Paulo. São nomes que estão sempre na boca do povo que ainda vive, e não os esquece. Mário Lopomo José Diniz e Roque Petroni Júnior mantiveram um respeitável e constante relacionamento profissional, mas nunca foram amigos íntimos. Naquela época, as distâncias contavam. Roque Petrella, quando ainda jovem, estagiou na farmácia do xará. Depois, dedicou-se à produção e comércio de tijolos. Sua olaria ficava no Morumbi, no lugar conhecido por Poço Fundo, próxima ao atual Colégio Pio XII. João Bosco Petroni.
Lagartixa Mário Lopomo Malandro nunca fui, mas que andei no meio da malandragem, isto é verdade. Não quero dizer que era santinho. Mas malandro mesmo era aquele que se aliviava sem prejudicar alguém fisicamente. Malandro tinha como escopo não trabalhar e ter algum dinheiro no bolso. Para isso geralmente o bom malandro era um viciado em todo tipo de jogo. Bilhar, dado, porrinha, baralho, apostar nos cavalos, e até aposta em cuspe a distância ou adivinhar quantos palitos tinha numa caixa de fósforos, valendo uma grana, é lógico. Mas sempre tinha alguma roubalheira, o que facilitava um dinheirinho rápido no bolso. O roubo também fazia parte do bom malandro. O bom punguista tirava uma grana do bolso alheio, sem que a vítima percebesse. Roberto, um taxista que tinha “olhos por toda parte do corpo”, certa vez, no bar que ficava debaixo do Cine Cairo, na Rua Formosa, ao 229
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pagar a conta, percebeu que tinha gente de olho na sua carteira. Sabendo que ia ser roubado, colocou a carteira no bolso da jaqueta e deixou uns caraminguás no bolso da calça. Já na rua colocou a mão no bolso e percebeu que ele estava todo para fora, sem os trocados que lá tinha deixado. Assim era Lagartixa, um pilantra que fazia ponto no início da Avenida São João, na esquina com o Anhangabaú, bem em frente à pastelaria do Chinês. À noite, ele vendia as jóias que tinha surrupiado durante o dia. Com ele era possível encontrar muitas mercadorias a preços módicos. Um dia, o Jura, um amigo meu, queria comprar uma corrente, porque mulher faz o que seu namorado quer quando presenteada, então o levei até o Lagartixa. Não deu outra, o pilantra tinha justamente aquela que ele, ou melhor, ela queria. A parada não foi muito cara, saiu por menos do que ele imaginava. Corrente no bolso, grana na mão do malandro, sugeri ao Jura que desse uma corrida até a frente do Cine Dom Pedro II, de onde saía o ônibus 152 – Vila Olímpia. Estando dentro do coletivo estávamos a salvo. Mas o forte da pilantragem do Lagartixa era punguear nos jardins. Seu local preferido era a Rua Augusta, o chiquê dos anos 1960. Ali, ele era especialista em abrir pipocas – bolsas de vime – das madames que tomavam o ônibus elétrico que trafegava pela rua mais charmosa daquela época. As “pipocas” tinham quando muito 35 x 18cm. Era só dar uma viradinha naquele fecho de metal e pronto. Ali estava a carteira de couro de crocodilo recheada de notas. Depois que a carteira mudava de dono, era só puxar a cordinha da campainha do ônibus e dar o fora. Quando a madame dava por falta da carteira, Lagartixa já estava em outro ponto, esperando mais um trólebus, com mais madames distraídas. Certa vez, quando uma madame se deu conta de que sua bolsa estava aberta e mais leve, Lagartixa estava no degrau para descer. A sorte dele é que quem alertou a mulher ficou com medo de apontá-lo. Aí deu tempo de ele descer, se livrando de ser pego e de tomar uma surra, o que acontecia com quem era flagrado. Mas um dia ele foi pego na Galeria Prestes Maia. Ele estava na escada rolante, em direção à Praça do Patriarca, quando viu uma moça com sua bolsa a tiracolo. Lagartixa cortou com sua navalha as tiras da bolsa da moça, mas ficou impossibilitado de sair devido ao número de pessoas que bloqueavam a agem. Quem estava por trás dele viu e, com ajuda de outros, o segurou sem lhe dar a chance de escapar. Lagartixa pegou mais de um ano de cadeia na penitenciária do Estado. Saindo de lá, jurou a meu pai – ele era meu primo – que iria se recuperar. Um dia foi lá em casa com uma charrete de vender peixe, para mostrar que era uma pessoa que trabalhava. Mas a malandragem estava no seu sangue. Parou de roubar. Aliou-se a uma prostituta que ele adorava, que também estava deixando o bas-fonds, por estar com seu pé-de-meia quase cheio. Apartamento ela já tinha. Morava em cima do Cine Regina, na Avenida São João, onde Lagartixa se refugiava, para desabafar. Seu nome, Estella, a quem ele também jurou que não ia mais roubar. Ela já tinha seu salão
de Cabeleireira, na Rua Aurora, e Lagartixa, que não tinha profissão fixa, foi ser cambista do jogo do bicho na banca do Alfredo Parisi, o banqueiro mais forte da cidade de São Paulo daquele tempo. À noite, ele trabalhava de Bookmaker, na Rua Tabapuã, esquina com a então Rua da Ponte, atual Clodomiro Amazonas, no Itaim, onde eram feitas apostas clandestinas de corridas de cavalos do Jockey Club de São Vicente e das corridas de trote da Vila Guilherme. Foi ali que ele conheceu Nestor, um dos maiores viradores do Jockey Club. Ninguém conhecia mais as cocheiras de Vila Hípica do que Nestor. Lagartixa não se cansava de pagar pinga, sanduíches e cervejas para Nestor. Estava cevando o seu bom informante de barbadas. Até então, elas vinham com poules baixas. Mas eram barbadas que não falhavam, vinham na cabeça. Nem placê era preciso arriscar. “Joga no duro que é grana na certa”, dizia Nestor. Até então, Lagartixa nunca tinha ido ao Prado. Mas, a convite de Nestor, ele foi. Ficou abismado com a beleza da estrutura do Jockey Club. Fez uma aposta, mais no intuito de se amoldar a um lugar onde nunca tinha ido. Viu que a nata da sociedade ia do lado das sociais, “gente mais ou menos”, na arquibancada do meio e a ralé viciada, na última arquibancada. Um dia, encontrou Nestor esfuziante: — Lagartixa, estou com uma barbada no sétimo páreo. Não é favorito. Mas vai largar e acabar. Falei com o entrenner – treinador – e ele me disse para jogar tudo em Nazareno, nº 5, no sétimo páreo. Meu, despreza o placê. Joga no duro. Como até então Nestor não tinha falhado, Lagartixa foi com tudo. Até se esqueceu de que tinha ido com a grana gorda para comprar coisas para revender. Quando chegou a hora do páreo, Nestor e Lagartixa foram ver o canter – apresentação dos animais. Nazareno deu um pique de 200 metros numa velocidade impecável. Nestor deu uma cutucada em Lagartixa: — Viu? O bicho está tinindo. É guichê na certa. Fica frio. Falei com o J.O. ele me disse que deu aquela injeção de cavalo louco. O entrenner do favorito deu água demais ao seu cavalo que, pesado, não vai incomodar, é vitória na certa. O esquema está armado, todo mundo vai ganhar. Quando foi dada a partida para os 2.400 metros, grama seca, estalando, Nazareno estava no bloco intermediário, mas quando entrou na reta oposta, foi para a ponta e se despediu da parceirada. Entrando na reta final Nazareno estava com cinco corpos de vantagem, o que assustou Lagartixa. — Nestor, está dando muito na vista. Será que não vai dar zebra? — Que nada, meu. Quando eles forem fazer o exame antidoping, você já estará com a grana no bolso. Nazareno será desclassificado para último lugar. Seu proprietário não levará o prêmio. O treinador será suspenso de seis meses a um ano. Mas também ele estará com os bolsos cheios. Quando faltavam 50 metros para o disco, Nazareno estava com a vitória certa. Mas, não resistindo ao esforço, caiu fulminado por um colapso cardíaco, sendo ultraado
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pelo que vinha em segundo lugar. Uma tremenda decepção. Lagartixa perdeu tudo o que teria que investir comprando mercadorias que lhe daria um final de ano bastante abonado.
Anjo da guarda Luizinho
Atualmente, Luizinho é comerciante, tem um bar e um restaurante em São Paulo, onde seus antigos fãs param para cumprimentá-lo.
Que saudades, que ótima lembrança, não foi só uma vez que ele me fez voltar para a calçada, apitando para mim. Adoraria revê-lo. Mara
Ivan Castelo Branco Nascido Luiz Gonzaga Leite, em Transmarte, Paraíba, o guarda Luizinho se tornou uma das personalidades mais queridas de São Paulo nas décadas de 1970 e 80 por usar métodos inusitados para conscientizar as pessoas dos perigos do trânsito nas ruas da capital. Luizinho marcou época naquela que era uma das esquinas mais movimentadas do centro de São Paulo. A esquina entre a Avenida Coronel Xavier de Toledo e a Barão de Itapetininga, na frente do Mappin – atual Casas Bahia – e do prédio da Light, que hoje abriga o Shopping Light, próximo ao Viaduto do Chá. É o próprio Luizinho quem diz: — Eu não gostava de dar multa, acreditava mais na educação do que na punição para conscientizar o povo da importância de obedecer aos sinais e às leis de trânsito. E aquela esquina era um dos locais mais perigosos da cidade, pois um milhão de pessoas ava por ali diariamente. Acabavam acontecendo muitos atropelamentos. Suas brincadeiras consistiam em orientar o povo para que atravessasse a faixa corretamente, não permitindo que condutores de veículos parassem em cima dela. Quando isso acontecia, ele abria as portas dos veículos e solicitava que os transeuntes assem por dentro do carro. Quando um pedestre desavisado ou descuidado tentava atravessar com o sinal vermelho era barrado por Luizinho que, após uma aula de educação no trânsito, o presenteava com uma caveirinha ou uma miniatura de caixão. Uma vez, um amigo meu foi protagonista dessa cena hilária, para deleite dos demais transeuntes. Mas toda essa popularidade não agradava aos seus superiores. Como era época do regime militar, a integração entre a população e os policiais não era bem-vista pela corporação. — Todos os dias eu recebia uma advertência – lembra Luizinho –, várias vezes eles me transferiram de posto, mas o pessoal fazia abaixoassinado com quarenta, sessenta mil s e eu acabava voltando para a esquina do Mappin. O tempo mostrou que a conscientização foi o melhor caminho para o sucesso do seu trabalho. — Em todos os anos em que trabalhei lá houve apenas um atropelamento e a vítima fui eu. Machucado, tive que cuidar para que as pessoas não linchassem o motoqueiro que me atropelou.
O guarda Luizinho marcou época na cidade de São Paulo, não somente pelo seu exemplo de grande profissional, mas também como um exemplo de cidadania e de um ser humano que usava sua profissão para ajudar ao próximo de uma maneira divertida. Podemos usar o seu exemplo e sermos, cada um, um “Guarda Luizinho” nas nossas profissões. Consolata Grande guarda Luizinho! Foram justas suas condecorações, e merecia muito mais! Luiz Saidenberg
Geada & Geraldo, saltimbancos e mambembes Turan Bei A ocupação principal do Geada era trabalhar em circos, os mambembes, como eram chamados na periferia, em geral pequenos no tamanho, mas muito aclamados e bem recebidos. Geada, em muitos números que apresentava, contava com o parceiro Geraldo, um imitador do Carlitos. Geraldo tinha como ocupação principal a pintura de letreiros em placas ou em paredes e muros da cidade. Os dois se davam bem, mas eram bem diferentes no físico. Geraldo era de estatura baixa e, andando, imitava com perfeição Carlitos. Uma única vez fui vê-los trabalhar num mambembe, bem longe do centro, lonas encardidas, poleiros em volta do picadeiro, lá estavam o Geada e o Geraldo, travestidos de grávidas apresentando um esquete que agradou em cheio a platéia. Mas foi no Largo do Paissandu, quando ele exibia o “enterrado-vivo”, que eu o conheci de perto: alto, magro, faces encovadas, o corpo inclinado para frente, queixo proeminente, nariz adunco, levei um choque, somando tudo, ele era feio. O seu nome verdadeiro não consigo lembrar, mas o nome artístico, Geada, jamais esquecerei. Quando a urna desceu na cova aberta, bem em frente ao Cine Art Palácio, uma multidão se fez, a curiosidade instigada pela placa que dizia que o Geada ficaria enterrado vivo por 24 horas, suscitou muitas dúvidas e perguntas. No dia seguinte, quando completou o 231
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prazo combinado, desenterraram o Geada, meio confuso com a luz do dia, aos poucos foi recobrando o equilíbrio, e quando se sentiu seguro, pediume um cigarro. Muitos aplausos, e as pessoas fizeram uma chuva de notas e moedas sobre um pano estendido no chão. Os mais apressados deixaram o local, e, com uns poucos curiosos por perto, Geada recolheu a dinheirama, fez uma trouxa com o pano, e com a féria não contada se dirigiu a um bar próximo. A seu convite, acompanhei-o. No bar houve uma pequena manifestação dos presentes, quase todos seus conhecidos, ou melhor, colegas de profissão, pois o local era ponto de encontro de artistas de circo. Certa vez, o Geada me chamou para um bar para fazer-me um convite. Depois do “enterrado-vivo”, ele faria um número num circo e precisaria de um assistente; não vacilei, aceitei, e no domingo próximo, à noite, lá estava eu assistindo o Geada em um número próprio de faquir que ele fazia, e dos bons. Consistia em desmontar as varetas dos aros da bicicleta, colocá-las enfileiradas sobre duas cadeiras, eu as desinfetava com álcool e o Geada ia espetando seu corpo com as varetas pontiagudas previamente preparadas. O Geada era só pele e osso. Puxar uma porção de pele e se espetar era um ato que ele fazia com precisão cirúrgica. Começou pelo pescoço, antebraços, braços, costas das mãos, costas, tronco, barriga, coxas, pernas; no final ele estava parecendo um enorme paliteiro, e era assim que ficou conhecido: “Homem Paliteiro”. Muito aplaudido, ainda apresentou o número de engolir fogo. O cachê foi pago a vista.
Um cego de visão
seus produtos de limpeza e vinham prestar-lhe contas. Ele começara nas ruas, vendendo vassouras e produtos, amparado por um ajudante. Ainda hoje existem cegos que trabalham assim. Entre sua equipe havia dois irmãos encanadores, Antenor e Dagmar. Baixinhos, mas com bíceps de Mike Tyson, eram também muito diferentes. Antenor era trabalhador e correto, e Dagmar um malandrão, que cafetinava sua mulher, segundo ele, meretriz de muita beleza e competência. Coisas do Velho Martinelli! Ito conhecia todo mundo, inclusive intimamente, todas as mulheres do pedaço. Dava conselhos a mim e a Shimamoto, colega de estúdio, ambos muito jovens e inexperientes: – Com aquela ali, não! Aquilo não vale nada! Às vezes, o acompanhávamos até seu ponto de ônibus, na Cásper Líbero, defronte à Gazeta. Ali, no Bar e Lanches Conceição, muitas vezes ele comia e tomava suas cervejinhas. Às vezes, ava da conta, e os donos, simpáticos portugueses, colocavam-no no ônibus, onde o motorista, também seu conhecido, o deixava em casa, na zona norte. Quando a cizânia instalou-se em nosso estúdio, e Shimamoto e eu fomos expulsos, o bom Ito nos acolheu, com pranchetas e armários. Logo a seguir, ousadamente, candidatou-se a deputado! Isso ocorreu em 1962, enquanto eu estava em Porto Alegre. Não foi eleito, e isto deve ter sido um grande baque. Enquanto tomávamos outros rumos, Ito desapareceu. Não ouvi falar mais dele, até dois anos atrás. Então, eis que ele me telefona! Pelo expediente duma revista tinha descoberto o Shimamoto, que lhe deu meu número. Casado e tranqüilo, vive num condomínio em Cotia, aplicando acupuntura e a massagem Ama, tradicionalmente executada por cegos no Japão, onde fora fazer o curso. Dizem que o pior cego é o que não quer ver. Tanta gente com boa visão e enxerga como uma toupeira, diante do fabuloso Ito.
Luiz Saidenberg Quando trabalhei no Martinelli, por volta de 1960, tinha um vizinho muito curioso. Isto não seria novidade, o prédio todo era uma galeria de tipos excêntricos. Seu problema era ser cego. O nome, Shoji Ito, ma era conhecido por “seu Jorge” pelos freqüentadores do prédio. Mesmo cego, agia com desenvoltura, nas profundezas de seu labirinto de escuridão. Sondando o caminho com sua bengala branca, nunca se perdia, com seus sentidos restantes aguçadíssimos. Inclusive para a percepção da personalidade dos outros. Ninguém o enganava. Meus amigos e eu ficávamos boquiabertos ao vê-lo tirar o dinheiro, sempre exato, da carteira. — Ô, Ito, você não é cego coisa nenhuma, disse-lhe uma vez. Ele se limitava a rir, parecia sempre de bom humor. Mas tinha seus momentos de revolta, contra a injustiça que a vida lhe infligira. Não nascera assim, a cegueira iniciara-se lá por volta dos 8 anos. Então sabia o que estava perdendo, um mundo rico e colorido. Procurara consolo, inutilmente, em várias religiões. De sua mesa, comandava um pelotão de agregados, que vendiam
Ângela Boneca Mário Lopomo Era uma das mais belas mulheres do bas-fond paulistano. Loira, alta, com sorriso permanente e muito educada. Com seus trinta e poucos anos, mas aparentando ter bem menos, ela encantava a todos por sua beleza. Porém, causava certo desencanto ao saber tratar-se de uma mulher de vida fácil, como se dizia ainda em 1962. Ninguém poderia imaginar tratar-se de uma prostituta, a não ser os freqüentadores do chamado “quadrilátero do pecado”, ou seu cliente preferencial. Ângela ia sempre ao restaurante dançante Atlântico, onde além de fazer suas refeições, também dançava, como muitas outras mulheres, com seus maridos ou namorados. Mesmo estando sozinha ela era abordada como uma mulher que estava simplesmente desacompanhada. Mal começava a dançar, recebia a famosa canta-
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da. Quando declarava sua atividade causava espanto, tal era sua meiguice, educação e maneira de tratar quem a procurava. Ângela Boneca era uma prostituta que não tinha protetor, o chamado cafetão, que cobrava uma taxa com a desculpa de proteção a inoportunos que viessem explorá-la. Ângela sempre foi autônoma, preservava sua individualidade e essa autonomia lhe dava liberdade para ter um amigo como confidente e momentos de relax longe do trabalho diário, onde tinha que agüentar seres de diferentes personalidades e temperamentos. Quem teve a felicidade de ser esse amigo e confidente dela foi o Barbosa, um escriturário boa-pinta sempre bem-vestido que deve tê-la conhecido no restaurante Atlântico, porque ele não era dado a michês, com todo potencial fisionômico, não necessitava desse expediente. Teve início então uma longa amizade. Ambos de fino trato e com educação similar levavam uma vida que causava inveja a muita gente, notadamente aos homens. O fato de ela ser uma prostituta nada teve a ver com o relacionamento deles. Barbosa pouco se importava com isso. Mas Ângela era categórica: — Vou largar essa vida maldita assim que fizer o meu pé de meia. Estava empolgada com Barbosa por ele ser compreensivo e não ter o menor constrangimento em estar com ela em qualquer lugar, mesmo sendo um homem casado, morador do Itaim Bibi, e ser filho de um dos homens mais influentes do bairro, cujo nome preservo. Um dos muitos clientes de Ângela foi o Marcos. Um jovem sem muita experiência sexual que se empolgou e achou que tinha encontrado a mulher de sua vida. Ficou apaixonado e a pediu em casamento. Ela recusou, e tentou de todas as formas demovê-lo dessa idéia. Fez ver a diferença entre ambos. Era mais velha, tinha uma história que jamais poderia esconder. Sem contar a diferença social. Ele, filho de uma família milionária de fazendeiros de Araraquara, e ela, uma simples prostituta. Um dia fatalmente a verdade viria à tona. Sem contar que ela tinha um amante de quem gostava muito. Barbosa veio a saber do interesse do rapaz, mas não se meteu no caso. Sabia que ela tirava de letra. Quantos já não tinham feito tal pedido, pensava ele. Um dia Marcos apareceu para seu tradicional programa sexual. Naquele dia Barbosa também foi lá. Quando Barbosa adentrava o prédio, cruzou com Marcos no corredor, que na agem disse: — Vai lá em cima, acabei de matar o seu amor. Barbosa correu ao apartamento e ainda a viu com vida. Ela nos braços do seu companheiro teve apenas um sorriso triste e dolorido antes de morrer.
Não fui íntimo, mas conheci a Ângela. Na época, meu encanto era por uma outra, a Angelita. E o Atlântico, em cima da sede social do São Paulo FC, foi um dos meus pontos queridos. Miguel Chammas
O especial morador da Rua Doutor Tomás de Lima Turan Bei Era freqüentador dessa rua e arredores, que nessa época já apresentava sinais de decadência, não de costumes, mas física, pois, como na Liberdade toda, os imóveis bem antigos não eram mais merecedores nem de reformas, e o descuido era visível. Mas um morador dessa rua merecia uma atenção especial e seu jeito era condizente com o lugar. De aparência descuidada, cabelos desgrenhados, barba cerrada sempre por fazer, olhos tortos que não combinavam em olhar na mesma direção e vestes que pareciam pertencer a uma pessoa obesa. Você o encontrava sempre apressado, com um jornal debaixo do braço. Diziam que o professor estudava até altas horas da noite, e bem cedo saía para as suas aulas de português. Ele morava num daqueles sobrados geminados, espremidos, que eram para dar lugar para mais um, porta e janelas rentes à calçada, de face sul, uma casa tão sombria quanto o dono que pagava aluguel. Era casado, se tinha filhos ninguém os via, sua mulher era conhecida como uma pessoa de boa índole e afável. Era só. Mas sem ele querer ou esperar foi chamado para ser vereador, suplente que era, foi guindado ao cargo por força dos votos que recebera dos pais dos seus alunos, e foi aí que tudo mudou na sua vida de professor e advogado, de Vereador para Prefeito, depois para Deputado Estadual, Governador, Deputado Federal e Presidente da República: lhes falo de Jânio da Silva Quadros, um homem raro em tudo, até no sobrenome.
Hélio Ribeiro, talento paulistano Raquel Cristi Carbone Magnoli No ano de 1935, nascia em São Paulo José Magnoli. Filho de Lydia e Nicolau, moradores do bairro da Mooca, mais propriamente na Rua Javari, onde cresceu aquele que um dia se tornaria a voz mais irada das rádios de São Paulo. Hélio Ribeiro. Quem não se lembra do poder da sua mensagem em 1968 e da sua estratégia de empolgar os espectadores dizendo que o seu programa era ouvido pela “moça do Karmann Ghia vermelho”. Na hora do almoço, músicas de Johnny Mathis e outras traduzidas por ele. Ficávamos nós, donas de casa, imaginando como seria aquele que nos agraciava com sua voz todos os dias. Seu programa era ouvido e comentado pelos amigos e parentes. Dono de tantas qualidades e talento não poderia ar por nós sem deixar sua marca. Hoje, na Mooca existe um centro educacional que leva o nome dele: Centro Educacional e Esportivo da Mooca Hélio Ribeiro. O homem que ajudou a construir a história da nossa cidade não poderia ficar sem ar por aqui. 233
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Na década de 1960 ouvia diariamente o Hélio, em ondas curtas, em Belo Horizonte, o que era uma proeza. Ouvia principalmente a parada O disco aponta o sucesso. Lembro-me da “moça do Karmann Ghia vermelho” e das letras traduzidas pelo Hélio. Gil Marcos Trabalhei com Hélio Ribeiro na Rádio Bandeirantes. Pena que foi por pouco tempo. Hélio foi um cara além do seu tempo, era um visionário. Em 1977, fez uma grande remodelação na programação da “Band” e um daqueles programas ainda está sendo apresentado. É o Ciranda da Cidade, atualmente com apresentação de Milton Parron. Hélio está imortalizado por meio das gravações que sempre são apresentadas por Milton Neves, também pela Bandeirantes. Mário Lopomo
Foi uma emoção tão viva e forte que eu sinto como se tivesse acontecido agora. Que grande personalidade! Acho que de todas as pessoas importantes que conheci na vida, nenhuma me impressionou tanto. Maria Cecília Alcântara e Silva Tenho em minhas melhores lembranças a imagem desse querido Arrelia e o seu Cirquinho, na Record. Ele, o Pimentinha, o filho do Arrelia, que esqueci o nome e não era palhaço, a turma toda me encantava e ainda me encanta. Tinha um antigo exemplar da revista Realidade com uma foto linda do Arrelia na capa. Luiz
Lalá, o boêmio da Liberdade Francisco Pascoal Pinto
Circo Seyssel e o Palhaço Arrelia Dayse Seyssel Piro Barreto Meus avós, europeus, radicaram-se em São Paulo, instalando aqui o Circo Seyssel, berço do palhaço Arrelia, que durante as décadas de 1930 a 1960, tornou-se um mito da criançada paulistana. As matinês do circo e, posteriormente, o Cirquinho do Arrelia, da TV Record (1955-1966) fizeram parte do cotidiano da família paulistana. Quase todas as festividades eram abrilhantadas por esse ídolo infantil que deixou como marca registrada nessa cidade o popular refrão: — Como vai, como vai, como vai?! Eu vou bem, muito bem, bem, bem!
“Você vai bem, eu vou também, e a família como é que vai? Vai muito bem, muito bem, bem, bem!” Que saudade. Muitas vezes vi o Arrelia lendo numa saleta, em sua casa, que ficava próxima à Avenida dos Eucaliptos – conhecíamos o bairro como Parque Novo Mundo – ao lado de uma estante com troféus, entre eles um grandão com cara de papagaio, era o Troféu Roquete Pinto, oferecido aos melhores da TV, rádio e música. Nunca o incomodamos. Nas décadas de 1950 e 1960, eu e os moleques da Pavão, adorávamos a “Comediazinha” que encerrava o Cirquinho do Arrelia. Velhos tempos que não voltam mais. José Eduardo Quero compartilhar o fascínio que o Arrelia teve na minha memória afetiva. Tive o privilégio de receber um aperto de mão com o famoso bordão.
Nas décadas de 80 e 90 do século ado, bairro da Liberdade, na região das ruas São Joaquim, Glória, Conselheiro Furtado e Galvão Bueno, havia um personagem, entre tantos. Perfil: moreno, setenta e poucos anos, simpático, olhos rasgados como os dos orientais do bairro. Não, não era japonês nihonjin, não era um ojisan – tio – não foram poucas as vezes que o confundiram e o cumprimentaram com o tradicional Ohayoo Gozaimasu. Eram traços da herança indígena. Laureano Cordovil Pinto vinha da Amazônia Paraense. Morria de saudades de Belém. Era um boa-praça e contador de histórias nato. Chamava a atenção com causos e anedotas que atraíam para si todas as atenções. Era, também, um boêmio inveterado, amante da bebida, da boa mesa, da noite, e um galanteador que impressionava mulheres que muitas vezes tinham idade para serem suas netas. Fazia ponto no saudoso bar Capitólio, na esquina da Rua São Joaquim com a Glória, pertencente aos irmãos portugueses da Ilha da Madeira, seu Zé, seu Agostinho e seu Cristóvão. Foi por ocasião do seu óbito, e em sua homenagem, que escrevi a seguinte crônica, intitulada Lalá: Para o boêmio, exímio pé-de-valsa e amigo fiel Laureano Cordovil Pinto (in memorian). O homem velho acendeu mais um cigarro, deu uma longa tragada, e sorriu: um sorriso triste de índio, carregado de rugas e desânimo. — Comecei faz muito tempo, sabe? – confessou – Era menino ainda. Parar, agora... sei não. O bigode grisalho, assim como os dedos médio e indicador da mão que me estendia o envelope branco com o logotipo do Hospital do Câncer, estavam amarelados de nicotina. Imaginei como deveriam estar seus pulmões. — Veja a radiografia – leu meus pensamentos.
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A grande mancha indicava o comprometimento total do pulmão esquerdo. — É, parece sério – eu disse. E era. O enfisema o mataria meses depois, sem piedade. Tivera tempo de voltar pela última vez a Belém e assistir ao Círio de Nazaré. Canto do cisne. Podia sentir a corda rebentando dentro do peito. No Val de Cães – depois da chuva da tarde, regressou a São Paulo. Para sempre. Esqueceu no embarque a bandeira do seu Tuna Luso. Depois Lalá lamentaria profundamente: — Com que cobrirão meu caixão?
O mendigo escritor
É o ratinho que anda na parede Roberto Motta de Sillos Creio que poucos irão se lembrar de um camelô que, na década de 1950, ficava na esquina da Rua Líbero Badaró com a Praça do Patriarca e que utilizava a fachada de mármore do Hotel Othon Palace para demonstrar que o seu ratinho subia mesmo naquela parede lisa. Nunca me esqueci do seu refrão: — É o ratinho que sobe na parede, qualquer criança brinca, qualquer criança se diverte. É inofensivo. Por várias vezes, ficava irando o seu trabalho, tentando entender o segredo, quando um dia finalmente consegui ver um fio de nylon de pesca que estava preso no seu bolso da calça e que, sem dúvida, era o “pulo do gato”.
Ricardo Azevedo Fiz meus estudos no Colégio Visconde de Porto Seguro, que antigamente ficava na Praça Roosevelt, então um espaço amplo, com arbustos esparsos e chão com uma parte asfaltada e outra de terra batida, que era usada como estacionamento e, nas quartas-feiras e sábados, com uma feira livre, muito movimentada. Apesar de ser uma área descuidada e indefinida, era muito melhor do que a praça de hoje, a meu ver, um “monstrengo” de concreto frio, desumano, desajeitado e artificial. Nessa praça antiga, isso na década de 1960, morava um mendigo que ficava por lá, andando para cima e para baixo, seguido por um séquito de vira-latas. Vi esse homem todo santo dia durante anos, com sua barba grisalha, seus olhos claros e uma espécie de meia enterrada na cabeça. Era uma figura estranha e bonita. Costumava sentarse numa mureta, perto da Rua Gravataí, cruzava as pernas com elegância e, puxando um papel enorme do bolso do paletó, punha-se a escrever com um toco de lápis. Às vezes, parava e, sério, mostrava o texto para os cachorros. Lembro que os animais levantavam-se e parece que liam aqueles escritos com certo interesse. Quando ficava cansado, o mendigo dobrava e guardava o papel no bolso e partia vagaroso pela praça, seguido por seus companheiros caninos, examinando as nuvens, concentrado e pensativo, com os braços cruzados nas costas.
Havia um personagem na Praça é Nossa que retratava um milionário. Mas, trajado de mendigo, e usuário de charutos cubanos, sempre com um jornal dobrado debaixo do braço, contava vantagens. Ele também usava um toco de lápis quando sublinhava algum texto no jornal. Turan Bei
Esse camelô eu não conheci, mas lembro-me de outro que vendia, no Viaduto do Chá, um relógio de plástico com mostrador de papel, e o seu bordão era: A criança anda, o relógio anda, a criança pára, o relógio pára. Thiago Queiroz Belfort
Chora-Rita e uma mulher de vida fácil Bernadete Pedroso de Souza A rua onde nasci era de terra, e quando chovia, para desespero de minha mãe, transformava-se em um “mar de lama”. Mas calma! Sou de um tempo em que “lama” era simplesmente água misturada com terra, que depois virava barro e servia para a criançada fabricar pequenos utensílios, como bonecos, vasos e inhas. Aí veio o progresso. Calçaram a rua, para alegria de minha mãe e para o sofrimento de nossas canelas e joelhos. Tenho marcas até hoje, dos tombos e raladas nos paralelepípedos. Era uma rua eclética. Tinha belos sobradinhos, cortiços, casas feias, bonitas e alguns botequins. Tenho tantos personagens na lembrança, que ainda podem render muitas histórias. Havia um bêbado maltrapilho apelidado de Chora-Rita, que sempre tocava a campainha lá de casa e cantava uma música para minha mãe. O pagamento pelo show era uma refeição servida em uma lata de goiabada, com um copo de Ki-Suco de uva. Mas nem todas as lembranças são de alegria. Havia uma senhora que os vizinhos chamavam de “mulher de vida fácil” ou “mulher falada”. Acho que era mais pela maneira como se vestia, com roupas justas e decotadas e pelas cores fortes que usava para pintar seu rosto. Usava também cabelos compridos e ondulados. Ela tinha um casal de filhos já adultos e o marido era um homem muito simples. 235
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Minha mãe era uma das poucas pessoas que mantinha contato com ela. O filho trabalhava no Edifício Joelma, e quando veio a notícia do incêndio, ela foi correndo até nossa casa para usar o telefone e tentar falar com o setor onde ele trabalhava. Enquanto ela tentava, eu, minha mãe e meus irmãos víamos pela TV aquelas cenas chocantes, e o nome do filho estava lá na lista, confirmado como “primeiras vítimas”. Foi muito triste ver o desespero daquela mãe por tamanha perda. Tempos depois uma doença incurável também levou sua filha. Por tudo isso, fiquei com a certeza de que a vida é que não foi fácil para aquela mulher, que, simplesmente, gostava de se pintar e se arrumar mais do que as outras. Lembro-me dela sempre com muito carinho.
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“O cinema era todo acarpetado em vinho e creme, tinha poltronas deliciosas colocadas em desnível para que todos tivessem boa visão da tela.”
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cines e matinês
Proibido para menores
A música de um clássico italiano
Marcos Rodrigues
Rafael Andrade Marques Prado
Tempos atrás, quando ainda em tenra idade, 13 anos, eu sonhava assistir um filme proibido para menores de 18 anos, mas tal empreita era impossível dada a rigidez da censura e a irredutibilidade dos porteiros e dos tempos, 1968, que não eram tão liberais. Disposto a realizar meu sonho, eu e o Jerson, com J mesmo, amigo da adolescência, resolvemos tentar convencer o porteiro do Cine Clímax, ali na Aclimação, de cometer o delito de deixar-nos assistir o tão sonhado filme. Após muita conversa e mentiras de todos os tamanhos, conseguimos dobrar a rigidez do porteiro. Ficou assim combinado: os fiscais do DDP, órgão que controlava as diversões públicas, iriam ar 15 minutos após o início da sessão e logo após a saída dos censores nós entraríamos. Tudo certo, tudo combinado, tomei banho, ei uma colônia Rastro e lá fomos ao cinema. A película já havia começado, mas não nos importamos, afinal queríamos ver sexo em grupo, aquele monte de mulheres peladas e tudo mais; o título do filme Momentos Eróticos, com Jean Sorel, um clone do Alain Delon, e Catherine Spaak, uma lindinha da década de 1960. O filme foi seguindo e nada de sexo, nada de gente pelada, nada, duas horas e vinte minutos de sugestões, murmúrios e sensações que davam sono. Ao final apareceu, pasmem, um peito apenas e acabou o filme, fiquei desconsertado, nunca mais assisti a filmes eróticos. Anos depois, já estudando psicologia, descobri a diferença entre erótico e explícito. Mas, naquele dia, tive raiva, muita raiva...
Andávamos lá pelo início de 1973 e como não podia deixar de ser, escolhemos uma sexta-feira pra cabular a aula e ir ao Cine Penha Príncipe assistir mais uma daquelas “jóias” do cinema italiano, um clássico chamado Quando as mulheres faziam Din-Don, uma daquelas pornochanchadas italianas “a la Lando Buzanca”. Estávamos, se não me engano, em seis cabuladores e logo na abertura do filme tocava uma musiquinha fuleira, uma mescla de rock e tarantela, cantada com um refrão que falava: farri din-don farri cosi din-don... desculpem o péssimo italiano, mas era assim que entendíamos... ficamos encantados, extasiados, enfim, adoramos a música de abertura do “clássico” filme. Conclusão, voltaríamos no dia seguinte, ou seja, no sábado, para gravá-la. Quem iria gravar? O Celso, que tinha gravador! Mas como iríamos gravar sem despertar atenção? Solução: o Celso colocou o gravador dentro de uma caixa de papelão, ajustou as pilhas nele e lá fomos nós de novo em caravana para o Penha Príncipe. A música ia ser gravada pelo microfone, e lá foi o Celso pra primeira fila, praticamente embaixo da tela. Era muito engraçado, parecia que ele ia soltar uma bomba no cinema, era o nosso comentário, ao mesmo tempo que arrebentávamos de rir, ignorantes que éramos dos riscos de que nosso inocente ato fosse confundido com algum grave atentado, como acontecia naquela época. Essa é uma história inesquecível para mim... assim como meu grande amigo Celso que ficou conosco apenas até 7 de março de 1974. Fica essa história como uma homenagem ao velho Cine Penha Príncipe e, sobretudo, ao meu inesquecível e saudoso amigo Celso Brandão Fuentes, que tão cedo foi gravar músicas picarescas e assistir a filmes lá no céu...
Ah! filmes proibidos para menores me fazem lembrar de quando falsifiquei minha caderneta da escola. Envelheci 4 anos com a ajuda de uma borracha, uma lamina Gillette e a tinta de uma caneta. Tentei entrar em um cinema que não lembro o nome agora e, para minha surpresa, não só fui barrado, como a minha caderneta foi apreendida e minha mãe teve que ir ao Juizado de Menores para retirá-la. O juiz deu um pito nela. Eu fui um menino terrível. Francisco Barroso Acredito que o simples final, ou gran finale, com um lindo par de seios a encher a tela, já deve ter dado para uma primeira satisfação. O Cine Clímax, que era o único da Aclimação, era um cinema muito gostoso, com pouca gente e filmes da Companhia Serrador, se não me engano. Eu ganhava ingressos de cortesia e costumava ir sempre ao Clímax. Atualmente no local há um supermercado, e certamente pode-se ver mais nus do que no tempo em que era cinema! Roque Vasto
O Cine Ritz Urbano Coaraci Foi por muito tempo o meu cinema preferido, mas por uma razão: eu não pagava ingresso. Como? Ganhei uma permanente de um primo, coisas que só ele sabia conseguir. Ele era um profissional do “jeitinho brasileiro”. O Ritz pertencia à elite da Cinelândia paulistana. Não era o maior nem o mais chique, era sim de bom gosto, como os demais daquela Companhia, que usava um grosso tapete com o mesmo desenho em todos. Bem conservado, asseado, com um leve toque de perfume lavanda no ar. Os sanitários impecavelmente limpos, as louças brilhantes, os metais cintilantes, um conforto só igual aos hotéis de categoria. 239
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À noite, ele chamava a atenção de todos. Postado na entrada, ficava um guarda-civil todo engalanado, como se fosse receber uma alta autoridade. A farda era cerimoniosa. Dava gosto freqüentá-lo. Lembro de um pormenor desses tempos, era sobre a educação das pessoas; difícil era ouvir engraçadinhos emitirem urros e outros sons grotescos. Um dia a minha vó me disse: — Sabe aquele guarda-civil enorme que fica lá na entrada? – com minha afirmativa, ela concluiu: — Ele é meu sobrinho, filho da minha irmã Vitalina. Bem, diante desse fato, ei a ir ao Ritz com mais prazer. Dingo, como era conhecido por todos, foi pracinha brasileiro na Segunda Guerra Mundial e esteve na Itália.
Vergonha no escuro do cinema Nuno Luis Ferreira da Silva Não, não é o que estão pensando. Era 1963, eu tinha 19 anos e era gerente do Restaurante Planalto, ao lado da Kibelândia, que por sua vez encostava com o também famoso Bar do Jeca, ou seja, na esquina mais falada de São Paulo, Avenida São João com Ipiranga. Do lado direito do restaurante, o Cine Ipiranga, que vivenciava uma época esplendorosa. Normalmente nos finais de semana, o Benedito, que era gerente da sala, no seu smoking impecável, se esforçava para atender a fila de pais que acompanhavam a criançada, e que muitas vezes se alongava pelas avenidas Ipiranga e São João até o Largo do Paissandu. Nessa época, as avant-premiéres, pré-estréias, no Cine Ipiranga, tentavam se igualar à entrega do Oscar, com tapetes vermelhos e holofotes, cujos fachos de luz iluminavam o céu; convidados especiais de trajes a rigor. Um luxo!!! Quem era vizinho do cinema, não perdia um filme. Na pré-estréia de Lampião, o Rei do Cangaço, lá estavam, ao vivo, o diretor Carlos Coimbra, Vanja Orico, a Maria Bonita, Leonardo Villar, Dionísio de Azevedo, entre outros. Outra pré de sucesso foi Seara Vermelha, de Nelson Pereira dos Santos. Nesta, como sempre, o Benedito estava ao lado do inspetor Mário, que no seu uniforme de gala da Guarda Civil do Estado de São Paulo, junto com seus comandados, prestavam as honras ao senhor doutor Adhemar de Barros, Governador do Estado de São Paulo, à dona Leonor Mendes de Barros e aos demais ilustres convidados e convidadas, então impecáveis nos seus smokings e vestidos de gala. O filme apresentava a miséria e a degradação humana – no nordeste brasileiro – em todo o seu macabro teor. Enfim, um drama. Silêncio na sala comovida e até revoltada com o decorrer da trama; eis que um AHH! de espanto prolongado e uníssono ressoou, junto com algumas gargalhadas,
para desespero das damas. Na tela, o médico bronqueado com a enfermeira, proferiu as terríveis palavras: — Vá à merda, sua vaca. Sentadas ao meu lado, duas senhoras e outras à minha frente, enfiaram o rosto nas suas belíssimas estolas de peles e durante muito tempo, não se atreveram a levantar a cabeça...
Cine Hollywood, o mais chique de Santana Roberto Marin Viestel O Cine Hollywood era o cinema mais chique do meu querido bairro de Santana, na zona norte da Capital. Minha mãe conta que em sua época – lá pelos idos de 1940 e 50 – as moças iam muito bem arrumadas ao cinema e os homens, cavalheiros do momento, se vestiam de terno e gravata para ver Victor Mature, entre outros. O cinema era muito grande, com balcão superior e atentos lanterninhas que, ao menor suspiro das moçoilas, apontavam o facho de luz para evitar maiores amassos dos namorados. Um grande tapete vermelho dava o glamour da sala de projeção, sem contar sua imensa sala de espera, com lindos sofás. Freqüentei o Hollywood em minha infância e adolescência. Vi filmes dos Trapalhões, Herbie, o Fusca, e uma infinidade de comédias. Devo confessar que testemunhei, infelizmente, a morte do cinema. O último filme a que assisti foi Orca, a Baleia Assassina. Já não era o mesmo cine da época da minha mãe, mas, certamente, continuava grande em sua eloqüência, sendo um rei até mesmo antes de morrer! Saudoso Hollywood!
O que sua mãe esqueceu de te contar é que nesse cinema se faziam apresentações de ballet clássico, patrocinadas pela Secretaria de Cultura, que na época tinha como seu secretário o Valério Giuli, que morava na Rua Amaral Gama. E esses espetáculos levavam centenas de adolescentes que podiam, assim, se tornar pessoas melhores, como sua mãe... Iara Eu morei em Santana de 1941, ano da fundação do Cine Hollywood pelo Angelo Bortolo, até 1960 e, inclusive, em 1942, morava na mesma rua do cinema, ou seja, eu morei na Rua Duarte de Azevedo, 93, quase esquina com a Avenida Cruzeiro do Sul e a minha casa dava os fundos para a estação Sant’Anna (era assim que se escrevia), do trenzinho da Cantareira. Flávio Rocha
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Saudades dos cinemas de São Paulo
O Cine Júpiter e o rato residente!
Rubens Rosa
Rafael Andrade Marques Prado
Entre os anos de 1960 e 80 ir aos cinemas de São Paulo era um compromisso social, você ia bem vestido, com um bom perfume – um Lancaster ou um Rastro –, uma calça bem alinhada e um sapato lustroso. Tudo isso traz as seguintes saudades... Saudades dos sofás do Cine Marrocos, da sessão da meia-noite do Cine Metrópole. Saudades do chique Cine Windsor, na Avenida Ipiranga, onde estreou o filme Help, dos Beatles, saudades do pequeno Cine Bijou, na Praça Roosevelt, do aconchegante Cine Coral, na Rua 7 de abril. Saudades do popular Cine Art Palácio, do requintado Marabá, do acolhedor Cine Regina, do elegante Cine Metro, Cine Espacial, todos na Avenida São João. Saudades do Cine Comodoro, em terceira dimensão. Saudades dos elevadores do Cine Paissandu, do pomposo Cine Ipiranga, de três andares, do pornográfico Cine Atlas, na Avenida Rio Branco, saudades dos filmes proibidos do Cine Dom José Gaspar. Saudades do antigo Cine Boulevard, na Rua Antônio de Godói, saudades do piano do Cine Ouro, no Largo do Paissandu. Saudades dos filmes de arte do Cine Arouche, do antigo Cine Santa Helena, na Praça da Sé, saudades do Cine Rivoli, onde estreou o filme A Noviça Rebelde, que ficou quatro meses em cartaz. Saudades do badalado Cine Oásis, na Praça Júlio Mesquita, saudades das escadarias do Cine Olido. Não tinha ar condicionado, mas nunca fez falta, as salas eram limpíssimas e perfumadas. Antes do filme, ava o Canal 100 e após a sessão, a gente encontrava com as pessoas na rua, não sabia o nome, mas um conhecia o outro. Então, íamos comer um lanche no Almanara, na Avenida Vieira de Carvalho, depois tomávamos chope no Pingão, no Largo do Arouche, ou íamos paquerar as meninas que trabalhavam no Mappin, a loja fechava à meia-noite, alguns conseguiam algo mais. Outros ficavam paquerando homens, só flertando na avenida, eram chamados de “entendidos”, hoje gays, mas sempre com respeito, nunca vimos uma briga. Quem tinha mais dinheiro terminava a noite em uma boite ou no Taxi Dancing, na Avenida Ipiranga, onde a Ângela Maria começou a cantar. Era comum cruzar com o Juca Chaves, na Avenida Vieira de Carvalho, com seu Porche, ou ver o cantor Agnaldo Timóteo, com o seu carrão na porta do Cine Marabá. É, isso é só um pouco, tudo acabou, só ficou a dor...
Segue uma história engraçada ocorrida no início da década de 1980, ada no Cine Júpiter que ficava na Rua Doutor João Ribeiro, onde hoje existe uma loja Besni. Bem... o filme era com James Bond, o famoso agente secreto, ainda interpretado por Roger Moore e seu título Somente para teus olhos, talvez de 1981 ou 1982, não lembro muito bem. Estávamos eu e minha namorada na sala de espera, ela sentada em um sofá e eu em pé esperando a próxima sessão. Nessa época o Júpiter já estava em franca decadência e o seu “pullman” desativado! Ao olhar para a escada que dava o a ele vi uma ratazana alentada e comentei com ela: — Olha só que ratazana bem alimentada. O ratão, era um ratão mesmo, desceu a escada e foi se esconder bem embaixo do sofá, onde uma namorada muito assustada logo ficou em pé, procurando fugir do campo de ação do bichão asqueroso. Na seqüência, ela disse toda indignada: — Vou reclamar com o gerente. E eu conciliador... — Ah! deixa prá lá, vamos assistir ao filme. Mas não teve jeito, fomos falar com o responsável pelo cinema! A resposta dele foi incrível e pra mim, inesquecível: — Olha moça, fica tranqüila, o rato é residente aqui do cinema... é nosso velho conhecido, mas para resolver o problema já estamos providenciando... um gato! Ela continuou indignada e eu, como fanático por cinema, não quis o dinheiro de volta. Insisti para que ficássemos assistindo ao filme com os pés levantados para evitar o desagradável residente do Cine Júpiter, enquanto não era providenciada a presença de um heróico felino para dar um jeito na situação. O Roger Moore está aposentado e o Cine Júpiter é um quadro na minha memória, mas sempre vou lembrar desse episódio ocorrido na minha velha Penha, que estará sempre viva como parte e história dessa metrópole pujante que é São Paulo.
Como diria um ex-Ministro do Trabalho: rato também é ser humano. Mário Lopomo No meu tempo, o Cine Júpiter era o melhor cinema da Penha. Lembrome de suas cortinas de veludo, do baleiro que havia na ante-sala, onde os homens fumavam. Aliás, os homens não podiam entrar sem gravata. Meu namorado sempre levava uma no bolso. Freqüentei muito o Júpiter nas tardes de domingo, com pipoca americana e drops Dulcora de tangerina. Também namorei no Júpiter e lá trocava beijinhos apaixona241
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dos, driblando o chato do lanterninha, que vigiava os casais sentados na parte de trás. Quando ou o filme O balanço das Horas, os jovens empolgados pelo rock-and-roll fizeram do cinema um grande baile. Algumas cadeiras foram danificadas e a direção do cinema ou a proibir as sessões para menores de 18 anos. Fiquei sem ver muito filme do Elvis por conta disso. Lamento a decadência e a desativação do cinema que a elite da Penha freqüentava. Boas lembranças e muita saudade daquela época. Bernadete Pedroso de Souza
O Cine Santa Cecília Luiz Saidenberg Vou falar do meu cine inesquecível. Quando minha mãe, meu irmão e eu viemos para São Paulo, em 1955, fui estudar no Colégio de Aplicação Presidente Roosevelt, na Rua Gabriel dos Santos, próxima à Avenida General Olímpio da Silveira, continuação da São João. Fiz ali o colegial em curso noturno, pois com a morte de meu pai se fazia necessário trabalhar, ganhar a vida. A dois os do colégio ficava o Cine Santa Cecília. Era pequeno, embora asse os bons filmes do circuito. Sua fachada ostentava vitrines, com os cartazes, mas era em seu interior que estava reservada a grande surpresa, por sua decoração barroca. O que evocava? A Índia, com certeza, mas também Bali, Sri Lanka, Kuala Lumpur. As paredes eram forradas, talvez, de tecidos com desenhos e relevos orientais. A mesa central e as poltronas tinham grandes pés de elefante. As cortinas e lanternas tinham algo de luxuriante, de tenda mourisca. Isso na recepção. Entremos, então, sob o som de músicas clássicas, como os Pescadores de Pérolas. A sala de projeção era guardada, pelos dois lados, por uma fileira de estátuas de guerreiros siameses, de feroz expressão. Quando, a toques suaves de um gongo, as luzes iam se apagando, a última coisa a desaparecer eram os brilhos dos olhos fosforescentes dos guardiões. Assisti a muita coisa lá. Afinal, se por mais não fosse, era o cine mais próximo de nosso apartamento, excetuando o também notável Cine São Pedro, agora teatro. Lembro-me de filmes de cowboy; do Príncipe e a Corista, com Marylin Monroe; do musical Oklahoma, com Shirley Jones; As noites brancas, com Mastroianni; da série Pane, Amore e..., de Vittorio de Sica. Toda essa pequena maravilha foi completamente destruída, para dar lugar a nada, no início dos anos de 1960. Não cheguei a ver seu final, ainda bem, pois nessa época havíamos comprado um sobradinho no Planalto Paulista, e essas regiões de Perdizes e Barra Funda aram a ser, para mim, pouco mais que pontos de eventuais agens.
O Cine Santa Cecília era realmente espetacular! O teto imitava um céu aberto cheio de estrelas, grandes e pequenas, que iam se apagando vagarosamente na hora que entrava o Jornal Nacional, chato e intragável, aprovado pelo Delegado Chediak, da censura federal. Durante a semana, nas quintas-feiras, havia uma sessão vesperal chamada “sessão das moças”, a preços módicos. Nas sextas-feiras à noite, havia outra sessão a preços baratos, denominada “sessão das famílias”, na qual as crianças menores só podiam permanecer até às 22h30. Dormia-se nos sofás da sala de espera, aguardando os pais assistirem ao filme até o fim. Também recordo da participação dos “baleiros”, que vendiam as guloseimas nos intervalos, pois todo cinema que se prezava tinha uma bomboniére na sala de espera. Enquanto o filme não começava, a tela permanecia encoberta por um de anúncios comerciais, no geral de lojas e empresas de comércio do bairro. Havia também um corpo de eficientes “lanterninhas” para guiar os retardatários, assim como oestar os namorados que estivessem exagerando. O Cine Santa Cecília era mesmo um modelo de cinema. Será que aproveitaram as estátuas das deusas indianas de quatro braços? Expedito Marques Pereira Falar em cinema é lembrar do Cine Rex que ficava entre a Rui Barbosa e a Conselheiro Carrão. Assistir aos domingos à matinê era fora de série, eu não podia deixar de ir... era minha diversão favorita, eu tenho muita saudade do que ou de bom... Elisabeth Rima
Das pornochanchadas à suntuosa inauguração do Cine Olido Gilberto Ramos Vou falar de alguns fatos curiosos e da razão maior de existirem os cinemas, ou seja, os filmes. A Turma da Carneiro adorava cinema, isso é chover no molhado, porque todo mundo gostava. No Cine Comodoro, na Avenida São João, fomos assistir a Isto é Cinerama, anunciado como “3-D sem óculos”. Era fenomenal o efeito tridimensional, bem como o som estereofônico produzido pelos falantes colocados pelas quatro paredes da sala. No Cine Arlequim, Avenida Brigadeiro Luís Antônio, assistimos a O balanço das horas – Rock around the clock – com Bill Halley & His Comets, que teve o mérito de introduzir as bandas de rock americanas no Brasil. A rapaziada ficava doida com o som e quebrava as poltronas, exigindo sempre intervenção policial... um escândalo.
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No Cine Ouro, no Largo do Paissandu, assistimos a um filme polêmico, do diretor Louis Malle e com a atriz Jeanne Moureau, que foi proibido em vários países e condenado pela Igreja Católica: era considerado pornográfico. Havia sessões especiais, na parte da tarde, para que senhoras e senhoritas mais “avançadas” pudessem assistir. Os moços ficavam na porta do cinema fazendo gracinhas para aquelas “devassas”, “galinhas”. O filme chamava-se Les Amants e foi exibido no Cine Ouro em 1959. Atualmente, qualquer novela das sete é mais pornográfica, sinal dos tempos. Um dos cinemas prediletos dos rapazes era o Cine Jussara, na Rua Dom José de Barros, especializado em filmes ses, considerados ousados na época, entre eles o famoso E Deus criou a mulher, com Brigitte Bardot. Era conhecido como o “cinema dos taradinhos”, só iam os homens, que, no final do filme, saíam rapidamente, curvados para a frente, na tentativa de esconder a “vergonha” nas cuecas... Mulheres decentes jamais iam ao Jussara. Em 5 de abril de 1954, a Turma da Carneiro foi ao Cine República, já totalmente remodelado para exibir o primeiro filme do mundo em Cinemascope, um sistema que exigia duas câmeras de projeção acopladas e uma tela enorme. Filas quilométricas se formavam e o efeito era realmente espetacular, não obstante o filme não ser dos melhores: O Manto Sagrado – The Robe – com Richard Burton, Jean Simmons e Victor Mature. Finalmente, em 17 de dezembro de 1957, a Turma da Carneiro teve o privilégio de ir ao Cine Olido, que havia sido inaugurado no dia 15, o primeiro cinema de Sampa a funcionar dentro de uma galeria, a Galeria Olido, na esquina da São João com a Dom José de Barros. Era um cinema diferenciado: os ingressos eram numerados e vendidos antecipadamente, o interior do cinema era luxuoso, com poltronas largas, em couro legítimo, as cortinas do palco eram em legítimo veludo, não lembro se vermelho ou verde. Um locutor em off anunciava: “o Cine Olido agradece sua presença e lhes deseja um ótimo espetáculo”. As luzes apagavam-se lentamente, enquanto um “gongo” soava 3 badaladas graves. Somente o palco ficava iluminado... as cortinas se abriam... e surgia uma orquestra (outras vezes um pianista) tocando lindas músicas por 30 minutos. Um espetáculo que era apreciado com alegria e muitos aplausos. Depois, a película inaugural foi Tarde demais para esquecer – A love affair to remenber, com Cary Grant e Deborah Kerr, um lindo filme com uma linda música, que hoje é considerado um clássico. No fim, os espectadores aplaudiam, tudo muito bonito mesmo. A Turma da Carneiro saiu muito feliz do cinema e fomos na Salada Paulista, na Avenida Ipiranga, comer aquele delicioso cone de batatas com uma fatia de tomate por cima, ladeada por duas salsichas ou duas lingüiças ou uma salsicha e uma lingüiça, tudo ao gosto do freguês. Quanta felicidade!
Por falar no Cine Ouro, eu, cinéfilo inveterado, ia bem cedo nesse cinema para ver um pianista tocar nos intervalos dos filmes. Era uma “cópia”
de Ernesto Nazaré, o introdutor dessa moda em tocar piano nos intervalos dos filmes. Mário Lopomo
No cinema, de paletó e gravata Roque Vasto Desde muito criança freqüentei cinemas, sendo conduzido pelo meu irmão mais velho que era um verdadeiro aficionado pela telona. No início, eu dormia em cada sessão, e acordava com as cotoveladas do mano “véio”. Sempre imaginava que na saída do cinema estaria chovendo. Não lembro bem, mas tenho certeza que após determinado horário, as crianças não podiam estar dentro da sala de projeção. Já na adolescência, freqüentava os cinemas da Penha, como o Júpiter e o Penha Palace. No Brás, ia muito ao Cine Piratininga, que era tido como o maior cinema do Brasil, com seus dois mil lugares, mas as cadeiras eram de madeira, muito desconfortáveis. O Cine Glória, na Rua do Gasômetro, era delicioso, com ante-sala, boa bomboniére e poltronas estofadas. Como o Glória era dentro da colônia italiana, geralmente avam fitas italianas, mas eu preferia as matinês do domingo, com filmes “de capa e espada”. Também era legal cabular as aulas do Colégio São João para ir ao Cine Roxy ou ao Universo, que abria o teto em noites claras e a gente se sentia em um planetário. Nesse cinema assisti ao filme que deixou grandes marcas pela sua técnica, história e preconização, antecedendo ao Spielberg, O Dia em que a Terra Parou! Lindo! “Klaatu barada nikto!” O tempo foi ando, e já mais velho, descobri os cinemas do centro da cidade. Em todos era obrigatório o uso de paletó e gravata. No Cine Rivoli tinha até pianista antes da sessão, além de ar condicionado – quase sempre aromatizado. O cinema era todo acarpetado em vinho e creme, tinha poltronas deliciosas colocadas em desnível para que todos tivessem boa visão da tela. No Cine Metro, é claro que eu não podia deixar de freqüentar, aram filmes como Zorba – o grego, Romeu e Julieta e outros que foram grandes sucessos. Também freqüentava o Cine Paissandu, que chegou a exibir todas as fitas do Mazzaropi. O elegante Cine Ouro, que logo decaiu com o avanço da TV, o Cinerama, que era uma verdadeira maravilha quando da exibição de As aventuras nos Mares do Sul, cuja telona envolvia os olhos e dava impressão de terceira dimensão. Alguns cinemas tinham a sessão da meia-noite, e era incrível, você podia sair de madrugada e andar até sua casa sem maiores preocupações que as normais. 243
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Drops Dulcora, pipoca americana, aquela caramelada, cheiro de anis, cantinhos especiais para namorar, linda fitas de romance, épicos, cowboys e heróis, tudo sem falar no Herbert Richards, com o repórter da tela. Curioso era ver a cortina do Cine Glória, cheia de cartazes de propaganda dos estabelecimentos da região. Todos os cinemas tinham uma cortina que tapava a tela e que só se abria após o som do gongo: dum, dum, dum.
hospedados no Hotel Esplanada, ali atrás do Teatro Municipal. Pois bem, a abertura do festival foi no Cine Marrocos no mesmo dia de sua inauguração. Na noite inaugural, o público postado na Rua Conselheiro Crispiniano, via o desfile dos ídolos do cinema, sobre um tapete vermelho que saía do Hotel Esplanada até a entrada do Cine Marrocos todo iluminado e engalanado. Foi uma noite memorável, ver de perto aqueles que na tela causavam tanta emoção e idolatria! Lembro bem de um casal que desfilou diante de nossos olhos: Virginia Mayo e Rock Hudson!
Meus cinemas favoritos Doris Day Sempre fui fã de carteirinha, e mesmo sem ela, de cinema. Lembro-me do meu primeiro filme O maior espetáculo da Terra. O cinema estava lotado e papai me carregou no colo, uma boa parte do filme. Eu devia ter uns 5 anos. O primeiro filme a gente nunca esquece... Mudei para São Paulo em 1967, e nessa época costumava ir aos cinemas do Centro: Olido, Marabá, Ipiranga, Metro, Marrocos, Cine Paissandu, ih, minha memória está falhando... era um que tocava piano antes da exibição do filme. Bom, anos depois, comecei a freqüentar os cines da Paulista: Top Cine, Gazeta, Gazetão e o Gazetinha, que era o meu preferido. Foi lá que assisti a um filme belíssimo Um homem e uma mulher. Adorava esse cinema pequeno, aconchegante, e enfrentava filas homéricas por ele. Depois, tinha o Astor, o Bristol e o Liberty, esses dois últimos eram luxuosos, de um conforto ímpar. Na Consolação, freqüentava o Cine Belas Artes, e na Augusta, costumava ir em dois cinemas, um numa galeria e outro que ava filmes nacionais. Não me lembro do nome deles. Na Avenida São João havia outro cinema, que também não me lembro do nome, cuja platéia era uma arena. Você podia assistir ao filme em qualquer poltrona, havia sempre uma boa visão da tela.
O desfile dos ídolos do cinema Turan Bei Ir ao cinema era o meu programa favorito, e Sampa tinha o que era de melhor. Lembro dos preparativos, o uso da gravata em alguns cinemas era obrigatório, bem, em décadas adas as pessoas de modo geral tinham o hábito de se vestir com muita elegância. O Festival Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorreu, salvo engano, em 1951, trouxe os artistas mais famosos da época, e eles ficaram
Nos tempos de Brigitte Bardot Luiz Saidenberg Sempre fui um andarilho, e mesmo hoje, minha esposa e eu não dispensamos uma boa caminhada diária. Mas, naquele tempo, eu não tinha carro e não havia mesmo muitos motivos para ir às grandes salas da Cinelândia, pois os vários cinemas do bairro eram ótimos e os filmes de primeira linha. Na minha região, os cinemas ficavam próximos à Praça Marechal Deodoro, então frondosa, e ao Largo Padre Péricles. Não havia do que se queixar: na Rua Barão de Tatuí, paralela à Angélica, o Cine Itamarati, para começar. Vi ali bons filmes, muitos deles ses. Era a época dourada de Brigitte Bardot, com sua perversa mistura de inocência e erotismo. Enlouqueceu Pablo Picasso, já em avançada idade; imagine-se então seu efeito sobre um jovem como eu, com os hormônios em ebulição. Lembro-me de muitos filmes, como o Les Tricheurs, com a pequena, mas fascinante, Pascale Petit, dos filmes italianos, da era do rock, do Orfeu do Carnaval e do belo Meu Tio, com Jacques Tati. Na Praça Marechal Deodoro, havia ainda outro cine, de alta classe, quase na esquina com a Angélica. Não lembro seu nome. Entrando pela Albuquerque Lins, chegávamos ao estiloso Cine São Pedro, com suas grandes máscaras de teatro grego dando direto para a sacada do quarto de minha avó Sebastiana, que morava com minha tia Zilda. Vi muita coisa ali, também, desde A trapaça, de Fellini, Les Amants, de Louis Malle até Jerry Lewis e Mazzaropi. Prosseguindo pela Olímpio da Silveira, ando pelo famoso Cine Santa Cecília, chegávamos ao Largo Padre Péricles e sua Igreja de São Geraldo, onde alimentei uma bela e frustrada paixão juvenil. Bem defronte, o grande Cine Esmeralda, onde vi Ulisses, com Kirk Douglas, o famoso bang-bang Shane. De vez em quando o filme queimava, e a projeção não retornava. Quem tinha de retornar éramos nós, para casa... ficava para outra vez!
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Enfim, seguindo em frente, lá estava o Cine Havaí, na Rua Turiassu, já nas Perdizes. É o que lembro desse circuito cultural Santa Cecília e Perdizes. Belos filmes, longas caminhadas pelas tranqüilas ruas da década de 1950...
O cinema Miami que ficava na Praça Marechal, na Avenida São João e a poucos quarteirões da Angélica, tinha as melhores e mais espaçosas cadeiras de todos os cinemas da Capital e nelas cabia “confortavelmente” um casal de namorados. Foi somente por isso que, certa vez, reuni coragem e me submeti a uma sessão da película Dio Come Ti Amo, filme do qual só me recordo do áudio, principalmente da música-tema. E completando, na saída, não podia faltar o sorvete de casquinha na Casa Uísque, ali mesmo na praça. Um programa de resultado infalível. Tempos depois, nos prédios adjacentes, veio se instalar a TV Globo, que “engoliu” o Cine Miami e o transformou em seu auditório, para onde foi levado o programa do Homem do Baú, entre outras pérolas. As cadeiras-sofás foram as primeiras a serem sacrificadas na reforma. E com elas, namoros inesquecíveis... Se não era Miami o nome, todo o resto era verdade. Te juro. Enéas Ferreira Com absoluta certeza, o cinema da Praça Marechal Deodoro era o Cine Plaza. Quanto ao cinema citado, da Rua Albuquerque Lins, é a atual sede do Teatro São Pedro que se situa na Rua Barra Funda esquina com Albuquerque Lins. Jeronimo Gulin Filho
A Cinelândia paulistana Luiz Bueno da Silva Na década de 1960, a Cinelândia fervilhava e a diversão era assistir a um filme no domingo, indo cada vez em um cinema diferente. Entre os melhores estavam o Marrocos, o Ipiranga, o Cinerama e o Ouro. O Marrocos atraía pela cachoeira na entrada e o Leão da Metro, urrando lá dentro. O Ipiranga tinha os balcões disputadíssimos pelos estudantes que, além do filme, ficavam paquerando do alto. O Cinerama tinha um som imaculado. Por fim, chegou o Cine Ouro, renovado: as filas para ouvir o concerto de piano, que acontecia antes da cortina se levantar, eram imensas. A viagem de Pinheiros ao Centro era outro prazer. O bonde que nos levava dava uma alternativa divina. Podia-se ir direto via Consolação, ou se o tempo permitisse e a companhia fosse mais agradável, ia-se via Angélica.
O balanço nos trilhos aumentava o romance. Porém, a única pressa mesmo era ir direto ao Ipiranga para ver Os Brutos também amam, e sair se achando o mais viril dos valentões. Assim, as tardes de domingo avam morosa e romanticamente. Não havia o rush do trânsito ou a pressa, pelo menos para os adolescentes. Havia tempo pra tudo. O dia durava muito e a gente era feliz. Os sonhos estavam nas telonas e cada um se esmerava ao máximo pra ver e ser visto. O sonho estava na fita e a felicidade em nossas mãos. A gente sorria, mesmo que por nada. Era a pura felicidade.
O cinema era outra coisa Francisco Lemmi Filho Alguns nomes de cinemas do centro de São Paulo das décadas de 1960, 70, 80 até o início de 90: Cairo, Saci, Ouro, Art Palácio, Marabá, Ipiranga, Jussara, Paissandu, Coral, Barão, Marrocos, Regina, Windsor, Oásis, Arouche, República, Comodoro, Cinerama, Olido, Metro, Rivoli. Muitos desses cinemas eram freqüentados por pessoas notoriamente públicas, mas mesmo aquelas que não eram públicas iam ao cinema preocupadas com a indumentária. O comportamento das pessoas era uma coisa que dava de dez a zero nos modismos atuais. Não me esqueço, a vida era diferente. Hoje sou feliz, bem casado e tal, mas que dá saudade, isto dá. Como curiosidade, afirmo que o grande charme dos cinemas era o Marrocos, da Rua Conselheiro Crispiniano, porém, quando o Cine Ouro foi lançado, lá no Largo do Paissandu, ele chegou a ser considerado um dos mais chiques da América do Sul. Ir ao cinema antigamente era uma coisa, ir ao cinema hoje é outra... quando tinha o Canal 100 então, com aqueles gols, que beleza!! A Cinelândia era maravilhosa e foi uma experiência mais maravilhosa ainda vivê-la plenamente. Me lembro muito bem do Cine Oásis que ficava na Praça Júlio Mesquita, pois uma vez, em 1970, eu estava assistindo a um filme, umas 2 horas da tarde, quando chegou a polícia e deu uma geral em todo mundo. O Oásis naquela época era freqüentado por muitos malandros. Nelson Arjona Lembro que na frente do Cine Art Palácio, aos domingos, ficava um guarda-civil muito elegante, com um uniforme azul com galões dourados, quepe muito bonito, luvas brancas e um espadim com cabo tam245
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bém dourado. O mesmo orientava o público que ficava na fila para comprar ingressos. A lotação era para mais de 800 pessoas. Boas lembranças. Bons tempos. Cláudio Lembro-me muito bem da inauguração do Cine Olido. Os homens eram obrigados a trajar terno e gravata, comprava-se o ingresso numerado com antecedência e antes da exibição do filme uma orquestra apresentava-se. O segundo filme nele exibido, o primeiro que lá fui assistir, chamava-se O Jardineiro Espanhol e o astro era o ator britânico Dirk Bogarde. Nelson Coslovsky
— Que legal, sabe onde fui ontem? No Cine Art Palácio, assistir a um filme de mocinho. Quer saber como foi? — Conta vai, mas não demora muito – disse Alcebíades, o amolador de facas que estava amolando as tesouras do seu Theodoro, mestre da tapeçaria da fábrica de Móveis Florença S/A. Daí para frente fui um cinéfilo bastante cuidadoso.
Eu volto um pouco mais no tempo, quando comecei a gostar de cinema vendo os seriados no velho Cine Teatro da Igreja Santa Cruz, onde eram exibidos ao ar livre os seriados do Tarzan, do Batman e do Roy Rogers. Mais tarde fiquei assíduo freqüentador do Cine Metro, que depois inaugurou as telas panorâmicas. Adalberto Amaral
O Leão e o Condor Mário Lopomo Quando o Leão da Metro, Metro Goldwin Mayer, abria a boca para urrar, e o Condor, da Condor Filmes, sobrevoava a tela parecendo que ia pousar na nossa cabeça, era certeza de que íamos assistir a um bom filme. Tinham também os filmes distribuídos pela Companhia Serrador, cuja rede era dos cinemas mais populares, inclusive os filmes nacionais detestados pelos cinéfilos mais exigentes. Na verdade, os filmes nacionais da época eram de má qualidade em foco e mixagem. O balbuciar dos lábios não correspondia ao que se ouvia. Sem contar as palavras de baixo-calão, cenas de erotismo barato e pornochanchadas de mau gosto. A partir do Cinema Novo, no início dos anos 1960, com Glauber Rocha, Arnaldo Jabor, Nelson Pereira dos Santos e Anselmo Duarte como diretores, é que o cinema nacional começou a sair do buraco. Os Cafajestes, com boa atuação de Jece Valadão e Norma Bengel, bem bonita, foi o início. Um filme sério. O primeiro filme que ousou falar das drogas. Mas, ainda assim, os cinemas se recusavam a exibi-lo. Foi preciso fazer uma lei obrigando as casas de espetáculos a exibirem uma determinada quantidade de filmes nacionais por mês. Até ao terço final da década de 1950, eu era um displicente. Não conseguia entender muito bem os enredos das fitas, como se dizia na época. Na verdade, nem sei o que ia fazer no cinema. Sabia que tinha assistido a um bom filme porque durante a exibição havia tido cenas grandiosas, com luta, beijos, gente correndo de carro, da polícia, cavalo e moto. Porém, se perguntassem para mim os meandros da história, aí fedia tudo. Mas, uma tarde que dei uma de “vagal” e fui ao cinema assistir um bang-bang, saí feliz da vida. Tinha entendido o filme todinho.
Ah! Os cines Bristol e Liberty Luiz Saidenberg Vindo mais para o presente, ou um ado menos remoto, eu adorava os cines Bristol e Liberty, do Center 3. Local que já teve um papel romântico e importante na minha vida... Não eram considerados cines de rua, nem de bairro, já que a Paulista se consagrava como um dos eixos centrais da cidade. E os dois cines eram “la créme de la créme”, em conforto e decoração de bom gosto, mas com temas bem diversos. O Bristol, tinha uma decoração sóbria, com portais Tudor, escadarias em sólida madeira escura, com uma armadura prateada, e vitrais coloridos, em contraste, como numa abadia inglesa. Mesmo os banheiros tinham placas coloridas, com vitrais de dama e cavaleiro medieval. Já o Liberty, que se refere à fase “Art Nouveau”, tinha vitrais florais com galhos artisticamente retorcidos, uma escada em tons de azul turquesa patinado e luminárias que remetiam a Lalique e Tiffany. Sem exageros, mas tudo muito agradável ao olhar. Entrar ali era como cruzar os portais de uma estação de metrô, no centro de Paris. Alie-se tudo isto a uma programação de primeira. Depois do finado Santa Cecília, o Bristol e o Liberty tornaram-se meus cines prediletos. Mas, a cidade não pára, e coisas relativamente simples e artesanais saem de moda para dar lugar a megacinemas, megateatros, megaespetáculos, megamanifestações. Qualquer coisa vira mega, perigando escapar ao controle, a qualquer instante. Logo soube que um incêndio havia destruído uma parte do Center 3, e um dos meus cinemas ficou fora de uso durante um bom tempo. Creio que depois disso, jamais voltou a ser a mesma coisa.
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cines e matinês
A história de D. Carmelo Naccarato Waldir Naccarato Meu pai, Carmelo Naccarato, nasceu em 1894 no Sul da Itália, Província de Cosenza – Comune di Scalea. Imigrou para o Brasil junto com seus pais e seu irmão Giuseppe Naccarato em 1910, então com 16 anos. Como tinha muita habilidade na arte da alfaiataria, confeccionava as vestimentas que eram usadas no teatro e no cinema em São Paulo e Rio de Janeiro. Era o figurinista mais requisitado da época. Costurava com a habilidade e rapidez que eram requisitos fundamentais para dar conta do volume de serviço em pouco tempo. Em 1920, chega ao Brasil a Escola de Artes Cinematográficas Azzurri. Meu pai conhece os diretores e se junta. Em 1928, o filme Morfina, com 96 minutos é lançado em São Paulo. A direção era de Nino Ponti e fotografia de Antonio Medeiros. Os produtores eram Carmo Naccarato, Francisco Madrigano, Nino Ponti e Antonio Medeiros. A Produtora era a UBA, União Brasileira de Artistas. O elenco era formado por Carmo Naccarato, Francisco Madrigano, Milda Rutzen e Lia Jardim. A equipe da UBA que realizou Morfina fazia parte de um grupo de artistas ligado à Escola de Artes Cinematográficas Azzurri. O escritor Menotti del Picchia era o roteirista dos filmes. Como essa, diversas iniciativas de escolas de cinema tiveram curso na década de 1920, constituindo-se num fenômeno particular, quase sempre sem o sucesso e a relativa seriedade da Scuola Azzurri, de Arturo Carrari. Essas escolas produziam filmes de segunda categoria que irritaram a sociedade local devido às constantes denúncias de que estariam desencaminhando moças. Os movimentos sociais contra aquele tipo de exibição eram orquestrados pela poderosa “Liga das Senhoras Católicas”. Não demorou para que os poucos cinemas locais ficassem proibidos de exibir os denominados “filmes ousados” em qualquer horário antes da meia-noite. Foram então criadas as “sessões exclusivamente para cavalheiros” que eram sessões destinadas aos homens, em exibições que só teriam início após a meia-noite. Meu pai me contou com pesar que o filme Morfina, que atuara como produtor e ator, estava incluído nessa categoria de filmes. O conteúdo do filme era de caráter informativo e servia de alerta a toda a população, pois expunha o perigo das drogas. Entretanto, o motivo alegado pela censura era que num momento do filme a atriz Milda Rutzen levantava a saia acima dos joelhos, mais ou menos quatro dedos, e com uma agulha hipodérmica aplicava em sua perna uma dose de morfina. Essa era a cena “pornô” da época. Meu pai conta ainda que muitos cavalheiros permaneciam sentados no final da exibição e assistiam novamente ao filme na segunda sessão para ver a cena dos joelhos, quando então se levantavam e deixavam o cinema. Assim, o filme ou a buscar em salas em que a censura era mais branda e foi exibido em vários cinemas do Rio de Janeiro,
até que a censura local também o classificaria como “filme ousado”. Chegou a ser exibido inclusive em salas de Buenos Aires. E foi nesse vai-e-vem que o filme desapareceu. Além de participar de vários outros filmes, meu pai – Carmo Naccarato – realizou diversos documentários que eram exibidos como noticiários antes do filme principal. Foi na década de 1930, quando fundou a Actualidades Movietone. Dentre outros, produziu um ótimo documentário filmado nas Sete Quedas. Certa vez, a Actualidades Movietone foi cobrir o deslizamento de terra no Morro do Monte Serrat, na cidade de Santos. Havia chovido muito no litoral e a cidade ficou submersa numa inundação sem precedentes. Meu pai e sua equipe empreenderam uma viagem até o local da catástrofe, viagem esta que foi feita de trem e durou cerca de três dias. Quando lá chegaram as águas já haviam baixado, restando muito pouco de ação para filmar. Aí surgiu a idéia brilhante de meu pai de simular uma cena de salvamento e resgate. O menino que servia de carregador dos equipamentos de filmagem foi escolhido para deitar numa maca e ser socorrido. A título de dar maior dramaticidade na cena, o resgatado virava o rosto na maca e simulava uma golfada de sangue quando estava sendo carregado dos escombros. Essa pode ter sido a primeira vez que se utilizou “efeitos especiais” no cinema brasileiro. Após concluído, o documentário foi apresentado na sala do cinema Santa Helena, na Praça da Sé. Quando surge a cena do menino resgatado, irrompem no silêncio do cinema os gritos de uma apavorada mulher: — Vocês mataram meu filho! Vocês mataram meu filho! As luzes se acendem e a sessão é interrompida para socorrer a pobre mãe. Tratava-se da mãe do menino carregador da Actualidades Movietone! O mais curioso é que a mulher havia estado com o filho minutos antes do início da sessão.
Circuitos do cinema Urbano Coaraci Fins da década de 1940 e início de 50, curti muito aquele quadrilátero compreendido entre a Praça Ramos e a Praça da República. A parada no Mappin era obrigatória. Ali os namorados marcavam encontro. E havia aquela maravilha de vitrine, repleta de coisas lindas. O circuito do cinema começava pelo Marrocos, Art Palácio, Ritz, Bandeirantes, Jussara, Ipiranga, Marabá, Metro, República, considerados a elite paulistana. Vieram depois: Olido, Coral e Barão. Alguns ficavam ligeiramente afastados desse quadrilátero: Oásis, Regina, Cinerama e o Arouche. O Metrópole, por ficar numa Galeria, marcou uma história à parte, pois ao seu lado foram se ins247
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talando aqueles bares com mesas na calçada, o Paribar foi um deles, e sem dúvida a Praça Dom José Gaspar era um recanto charmoso. E a São Luís um boulevard brilhante com aquelas agências de turismo e aviação. O que dizer então dos restaurantes, bares, casas de lanches. Apenas para lembrar alguns: Brahma, Salada Paulista, Barbazul, Confeitaria Vienense, Leiteria Americana, Paribar, O Gato Que Ri, Dom, Casa Kibe, Moraes, Ponto Chic e muitas novas lanchonetes ao estilo americano, com aqueles extensos balcões dos mais diversos formatos com seus infalíveis banquinhos. A Avenida São João era a arela obrigatória, ali você encontrava de tudo, servido na hora: frango assado, quibe, esfirra, milho verde, curau, pamonha, mate gelado, amendoim em cones de papel, sorvete italiano, chope, raspadinha de gelo, sempre na calçada da esquerda, sentido bairro.
À sua descrição perfeita, permita-me aduzir as reuniões que se faziam na esquina da Avenida São João com o Largo do Paissandu, nas imediações do Ponto Chic de hoje. Isso acontecia normalmente nas segundas-feiras, eram os donos de circos e artistas circenses à procura de trabalho. No geral eram pequenas companhias que excursionavam pelo Brasil afora. Alguns jornais noticiavam a localização temporária dos circos e assim também o faziam alguns programas de rádio como o Maxime de música caipira, depois chamada de música sertaneja. ados pouco mais de 40 anos, ora vejam só, os “cirquinhos” desapareceram lamentavelmente. Expedito Marques Pereira
A Broadway Tupiniquim Modesto Laruccia Muito se fala e se comenta a respeito dos bairros do Brás e Belém ou Belenzinho, mas um pequeno detalhe pouco mencionado e bastante significativo era o lazer que estes tradicionais bairros ofereciam aos seus habitantes. No espaço do número 1000, mais ou menos, da Avenida Rangel Pestana até a Celso Garcia, precisamente na Rua Belém, existiam, nada menos que nove cinemas, considerando o Colombo, no Largo da Concórdia e o Cine Oberdan. Vejamos: Olímpya, Piratininga, Glória, da Rua do Gasômetro, Colombo, Oberdan, Braz Politeama, Universo, que tinha um teto que se abria nas noites de verão, Róxi, Iris e até o São José, no Largo São José, do Belém. Era uma Broadway tupiniquim, oferecendo, além dos cinemas, os footings, no Largo da Concórdia, os “vai-e-vens” da Rangel Pestana; os teatros como o Colombo, que apresentava sempre o Nino Nelo, o Procópio Ferreira, o
Politeama, e os salões de dança como o do Clube Carlos Gomes. Bons restaurantes como o famoso 1060, a Adega do Braz, o Garoto, o Brazeiro e pizzarias como a do Luiz, a do Castelões, e a famosíssima Confeitaria Guarany. Era um deleite os eios e os namoros nesses locais. Como faziam todos os garotos, nas décadas de 1940 e 50, íamos às matinês do Glória ou do Piratininga, que se autodenominava “o maior cinema do Brasil”, e era mesmo, só que todos desse conjunto mencionado tinham as ditas “poltronas”, assentos de madeira duríssimos, sólidos pra ar as traquinagens que aprontávamos. Os filmes eram lançados nos cinemas do Centro, tais como Metro, Art Palácio, Ipiranga e Marabá. As sessões das matinês começavam às 14 horas e os programas contavam com dois longas e, no intervalo, um seriado, como Flash Gordon, O Sombra ou O Arqueiro Verde e, vez ou outra, um desenho animado. Nesses intervalos é que nós tentávamos imitar todos os astros de faroeste ou gangsters, na tão decantada brincadeira de mocinho e bandido. Sem nenhum constrangimento, na base do “tocs” (sorteio onde todos punham os dedos numa roda, de sete ou oito, como no par ou impar, coletivo) se escolhia quem seria o “mocinho” e o “bandido”– pré-estabelecendo que os bandidos “morreriam” e só o mocinho não. E era aquela corrida, aquela algazarra, aquela barulheira, correndo entre os assentos e os corredores, ao som onomatopéico de tiros – bang bang – e “feridos a bala”, alguns chegando a um realismo infantil, jogando-se ao chão, depois de serem “baleados”. E tudo por apenas 1.500 réis, que corresponderia atualmente a mais ou menos 1 real e 50 centavos. Numa deferência toda especial, e por ser muito grande e ter saídas (além da Rangel Pestana, havia outra pela Rua Martim Buchard, travessa da Rangel), lançaram no Cine Piratininga, simultaneamente a um cinema do Centro, o maior sucesso de bilheteria do momento: Ali-Babá e os Quarenta Ladrões, com John Hall e Maria Montez. Dessa vez, criamos uma nova travessura: todos os assentos, como disse acima, eram de madeira, montados e presos no piso com parafusos. Todas as partes dos assentos: lateral, assento, espaldar, eram montados e presos entre si com pequenos parafusos e uma “porquinha” como segurança. Ah, um prato cheio para as maquinações da molecada. Munidos de pequenas chaves de boca, durante os intervalos e as brincadeiras de “mocinho e bandido”, que eram toleradas pelos lanterninhas, cada garoto pegava um assento e tirava todas as “porquinhas”. Depois, deixavam os assentos na mesma posição, aguardando a primeira “vítima”. Todos se divertiam, inclusive as “vítimas”. Divertimento um tanto ou quanto ousado, mas não machucava ninguém, pois a freqüência em matinês era na sua grande maioria de jovens e garotos, como nós. Assim eram as mazelas da turminha, muito divertidas.
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“Nas noites de verão papai colocava o rádio na janela da sala e levava as cadeiras para fora. Aí os vizinhos apareciam para ouvir os programas...”
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O Teatro Rebolado Roberto Antonio Cêra Nos anos de 1960, ainda jovem, comecei a trabalhar no Banespa, o salário não era lá essas coisas, mas dava para ir, de vez em quando, aos teatros Natal e de Alumínio. No Teatro Natal, vi a peça Anjinho Bossa Nova com o Paulo Silvino e uma coisinha muito linda chamada Brigitte Darling. Nunca mais soube dela. Vi, também, outra peça, com o Paulo Silvino – O Cunhado do Presidente – uma gozação em cima do Brizola. No Teatro de Alumínio, os espetáculos mostravam mulheres mais bonitas e mais ousadas. O preço da entrada variava de acordo com a proximidade do palco. Aqueles que ficavam na primeira fileira, geralmente tinham o privilégio de receber o carinho de algumas das vedetes, que sentavam em suas pernas. Em uma das noites consegui um lugar na primeira fila e uma das vedetes – um monumento de mulher – sentou-se em minhas pernas, me abraçou e ficou colocando grãos de uva na minha boca, fingindo me seduzir. Foi inesquecível, mesmo recebendo gozações da platéia. Eu era bastante tímido, mas ousei enfrentar as feras. O curioso é que o meu chefe também freqüentava esse teatro, mas ficava sempre nas últimas fileiras. Nunca soube se por timidez ou sovinice...
No início dos anos 1960, conheci a chamada “Vedete do Brasil”, Virgínia Lane, que tinha um corpo escultural, embora fosse de estatura mediana, diria, “baixinha” mesmo, era uma maravilha de sensualidade. Trocamos breves palavras e aproveitei para pedir-lhe um autógrafo numa nota de cinco cruzeiros da época, a famosa “cédula do índio”, que guardei durante muito tempo como preciosa relíquia. Eu tinha uns 15 ou 16 anos. Bons tempos! Emílio Carlos Alves O Teatro de Revistas ou Teatro Rebolado apresentava lindas vedetes nas décadas de 1940 e 50, até o começo dos anos 60. Quando eu tinha meus 14 ou 15 anos e trabalhava na Light and Power, que ficava ali bem pertinho da Rua 24 de Maio, eu ia quase todos os dias ao Teatro Santana, que ficava nesta rua, ver “com os olhos e lamber com a testa” as tabuletas das fotos daquelas beldades expostas pelo diretor Walter Pinto (que, aliás, foi casado com uma delas, a Iris Bruzzi, hoje no elenco de novelas da TV). A sensação era Virgínia Lane “a baixinha” que, após 1954, nunca escondeu suas “visitas” ao nosso ex-presidente, Getúlio Dornelles Vargas, na década de 1940, o que não era segredo nem para Dona Alzira Vargas... Feliz você que em plena “fila do gargarejo” teve uma delas sentada em suas pernas...”que sortudo”... Antes do Teatro de
Alumínio e do Paramount, elas se apresentavam na Sala Azul do Cine Odeon, na Rua da Consolação e, literalmente, paravam o trânsito naquela via... Era tempo de Carmen Verônica, que mais tarde seria a Miss Campeonato da TV Paulista, da Angelita Martinez, na época amante do Baltazar, o “cabeçinha de ouro” do chamado Timão – aliás, muito corinthiano pensa que Timão é porque tem um grande time... Mas é pelo seu “escudo” que é representado por um timão de navio. No fim da década de 1950, a Angelita morava na mesma rua que eu, a Rua Jovita, no bairro de Santana e vi diversas vezes o “cabeçinha de ouro” já no ostracismo, jogando pelo “Moleque Travesso”, o Juventus, da Rua Javarí, ir lá “visitá-la”... Outras beldades eram: Nélia Paula, Dora Vivacqua, a Luz Del Fuego, assassinada em sua ilha de nudismo, no litoral, Wilza Carla, um monumento de mulher, lógico com seus cinquenta e poucos quilos na época... Lilian Fernandes que foi casada com o comediante Colé e muitas outras, todas comandadas pelo Walter Pinto. Só nunca vi a Adelaide Chiozzo em Teatro de Revistas... pois como companheira inseparável de Eliana Macedo, somente trabalhava nas chamadas “chanchadas cinematográficas” dirigidas por Carlos Manga e o tio da Eliana, Watson Macêdo. Quanto à Brigitte Darling, não a conheci. Nessa época havia uma vedete também famosa chamada Brigitte, porém de sobrenome Blair que hoje é proprietária de um teatro, que leva seu nome, em Copacabana, no Rio de Janeiro. É, “lindas mulheres”... Porém, naquela época, como disse, “era olhar com os olhos e lamber com a testa” inclusive porque me casei no meio da década de 1950... Já viu, né? Flávio Rocha
Peças que ficaram na memória Doris Day Na década de 1970, eu costumava ir ao teatro com meu irmão. Naquela época ainda era possível pagar o alto preço dos ingressos. Bons tempos! Algumas peças e teatros ficaram gravados na minha memória. A primeira foi Hair. Sonia Braga era ainda uma garota e trabalhou com Aracy Balabanian, Denis Carvalho, Wolf Maia, Armando Bogus e Ariclê Peres. Era a primeira vez que via nus no palco. Belo musical, e o filme dirigido por Milos Forman, no final da década, encantou toda a nossa geração. Foi a fama para Treat Williams, que hoje faz filmes menores e seriados. Outra peça que me deixou marcas foi O Balcão, de Jean Genet, encenada no Teatro Ruth Escobar. Não me lembro dos atores, acho que era com a Célia Helena e seu marido, na época, o inesquecível Raul Cortez. A 251
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própria Ruth Escobar também trabalhou e, se não me engano, o Sérgio Mambert. A estrutura do teatro foi uma inovação radical na concepção do espaço cênico. O teatro foi quase que totalmente destruído para a construção de uma enorme torre de metal, onde a ação dos atores com a platéia derrubou o tradicional teatro horizontal. Era um tal de sobe ator, desce ator por essa torre que eu ficava totalmente aturdida. Não deu pra esquecer! Um violinista no telhado foi, também, um belo musical sobre os judeus que imigraram para os EUA. Ficou em cartaz na Avenida Rui Barbosa, no então chamado Teatro Zácaro, onde o Faustão iniciou sua carreira. Regina Duarte fez Black-out no Teatro Aliança sa. Era ainda uma garota, mas estava estupenda no papel da cega, contracenando com Eva Wilma. Uma comédia hilariante foi Quem tem medo de Itália Fausta. Lembro do episódio. Dona Valderez, professora de inglês, e Aracy caindo na poça. Eu e minhas irmãs costumávamos ir ao Teatro Popular do SESI, quando era ainda na Rua Três Rios. Não pagávamos nada e víamos boas peças. Também vi algumas peças no Teatro Maria Della Costa e outras no Teatro Paiol, na Amaral Gurgel. No Sesc da Rua Doutor Vila Nova, havia um teatro que eu costumava freqüentar. Na saída costumávamos tomar um lanche no Jota’s, ali perto, na Major Sertório. Hoje moro no interior e sinto falta da vida cultural que essa cidade proporciona, entre outras coisas, mas... O importante é que emoções eu vivi! Como diz Roberto Carlos.
Meus caros, permitam que um “bixiguento nativo” faça reparos para esclarecimento histórico, o Teatro Rui Barbosa é o mesmo Teatro Zácaro, e esses dois nomes foram dados à casa de espetáculo que foi o cinema da minha mocidade (comparecimento obrigatório aos domingos e às segundas-feiras), ou seja, o famoso Cine Rex. Reparo efetuado. Miguel Chammas
em todos e buscava ingresso na casa da própria Hebe, que ficava na rua Petrópolis, no Sumaré; ela sempre me atendia pessoalmente. Depois do programa eu me infiltrava nos bastidores do teatro. Um dia, quando foi lançado o programa Esta Noite se Improvisa, a Hebe fez um teste que consistia em falar uma palavra e cantar a música, eu falei “osso” e nada, ninguém sabia. Nara Leão e Simonal não sabiam. Aí subi ao palco e cantei com eles. Ganhei um radinho da Joven Pan como prêmio. Quando acabava o programa, o Décio Capuano, esposo da Hebe, vinha buscá-la de Mercedes. Esta Noite se Improvisa era gravado na quinta-feira, com o Blota Júnior. Sexta, A Família Trapo, com Jô Soares, Ronald Golias, Otelo Zeloni, Nair Belo e Renata Fronzi. Sábado, o Astros do Disco, com o Randal Juliano. Então vieram os festivais, e eu estava lá quando A Banda de Chico Buarque e Disparada de Geraldo Vandré ganharam, na época do governo militar. Também estava lá quando Sérgio Ricardo jogou o violão no público. Aos domingos eu não tinha grana para assistir o programa Jovem Guarda, mas eu ia ao teatro e, por um furo na porta, assistia o Roberto Carlos e toda a sua turma; depois a gente o seguia pelas ruas, ele morava na Santa Cecília. Ainda na sexta-feira, a Elizete Cardoso e o Cyro Monteiro gravavam o Bossaudade. Eu cruzava com todos eles nos bastidores: Elis, César Camargo Mariano, Zimbo Trio, Marília Medalha, Gal Costa (Maria da Graça), Caetano, Gil, Bethânia, Elza Soares, Maria Odete e por aí afora... Todo o dia sete do mês tinha o Show do dia 7, mas os ingressos eram caros, só os ricos freqüentavam. Naquela época a Record era a melhor, mesmo sem recursos de edição, era tudo ao vivo.
Grandes momentos da música brasileira Mário Lopomo
Os programas da TV Record Rubens Rosa Na década de 1960 eu era estudante e vivia no Teatro Record, na Consolação. Vou contar um pouco: Segunda-feira era o dia da gravação do programa da Elis Regina e Jair Rodrigues – O Fino da Bossa. Terça-feira era gravado o Corte Rayol, show com Agnaldo Rayol e Renato Côrte Real. Quarta-feira era dia do programa da Hebe, nesse eu ia
No inesquecível ano de 1966, o Teatro Record abriu suas portas para um programa especial. Naquele ano o inverno foi bastante rigoroso e os cantores e compositores Roberto e Erasmo Carlos realizaram a campanha “Me aqueça neste inverno”. Era um dos programas que fazia parte do Show do dia 7, que era realizado todo mês pela TV Record, Canal 7, líder inconteste de audiência nessa década de ouro para o setor artístico. O preço do ingresso era apenas um cobertor. O teatro estava lotado, saía gente pelo ladrão. Lá fora, na Rua da Consolação, tinha dez vezes mais gente do que dentro. Quem não tinha levado cobertor de casa, comprava
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dos camelôs na porta do teatro. Eram cobertores vagabundos que, de tão ralos, precisariam três para esquentar um mendigo. No palco, vários cantores da MPB e da Jovem Guarda se revezavam nas apresentações. Na rua, outro show, para os que ficavam de fora. Vários conjuntos de rock. Um tremendo regional tocando samba, e uma cantora baixinha, negra, que parecia a Elza Soares e cantava que dava gosto de ouvir, não ficava devendo nada aos grandes nomes dos profissionais da música. Valeu a pena ficar de fora, pois além do que se assistia na rua, também podíamos ver o que se ava dentro do teatro através de dois televisores colocados na calçada. Roberto Carlos cantava “Quero que vá tudo pro Inferno”, mas, com a presença do cardeal Dom Paulo Evaristo e do Blota Júnior, Roberto modificava a letra e cantava: “Quero que vá para o inverno se aquecer com a solidariedade do povo paulistano”. Aqueles foram os anos de glória da música mundial nacional e dos festivais e quem viveu, testemunhou grandes momentos da música brasileira. Vinicius de Moraes fazia o Samba da Benção. Chico Buarque enaltecia as mulheres, com belíssimas canções, Elis Regina apresentava o Fino da Bossa, e Elizete Cardoso mostrava a Bossaudade. Que momento rico de cultura nós tivemos. Pena que nunca mais surgiram grandes movimentos musicais. Ficou apenas a saudade e muita gente em nossa memória.
As gravações da Jovem Guarda
já não consigo enxergar nada. Os flashes piscam e meu coração aos pulos! Estava suando muito e minhas mãos geladas. Puxa, tudo isso é muito claro na minha cabeça! Os acordes cessam e ouvi, então: “Eu te darei o céu meu bem e o meu amor também. Eu te darei o céu meu bem e o meu amor também. Quanto tempo eu vivi a procurar. Por você, meu bem, até lhe encontrar. Mas se você pensar em me deixar. Farei o impossível pra ficar, até...” Pois é, caro leitor, estou escrevendo sobre uma gravação do programa Jovem Guarda, nos idos de 1968 quando fui ver de perto meus ídolos Roberto Carlos, Vanderléia e outros. Essa fase da minha vida é inesquecível e ainda me pego cantando: “Eu tenho tanto pra lhe falar, mas com palavras não sei dizer, como é grande o meu amor por você!”
Eu também estive lá, com minha calça “Calhambeque xadrez”. Era caidinho pela Valdirene, a Vanderléia não me atraía muito. Nélio Nelson Gonçalves
O palácio dos sonhos da Rádio Record Miguel Chammas
Doris Day A fila estava enorme, já descia bem uns trezentos metros a Rua da Consolação abaixo. O calor era inável e a espera pela abertura dos portões me deixava cada vez mais impaciente. Depois de mais de uma hora na fila, finalmente os portões foram abertos e as meninas, com seus gritinhos ensurdecedores, começam a empurrar histericamente a todos. Entramos no teatro. Enorme, todo iluminado e o palco lá no fundo já decorado para o programa. Sentei logo no meu lugar e tivemos que esperar mais, muito mais, para o começo do programa. Já não ava tanta espera, afinal, seria a primeira vez que o veria de perto, depois daquele dia no aeroporto. Que desespero! As fãs estavam todas malucas, gritavam o seu nome, ficavam em pé, sentavam, erguiam a sua foto, cartazes... O clima era de total euforia. As jovens, mulheres na maioria, vestiam-se com minissaias ou vestidos, cabelos curtos estilo chanel, bem armadinhos no alto da cabeça, olhos pintados de preto, muito rímel e nenhum batom. Finalmente um acorde musical e a galera grita! Todos ficam em pé e
Década de 1950, lá vai um menino sonhador, depois de cumpridas as obrigações religiosas, conviver com seu grande sonho, a rádio. Sai de sua casa no começo da Rua Augusta, desce até a Rua Martins Fontes, chega na Xavier de Toledo, atravessa o Viaduto do Chá e a Praça do Patriarca, pára um instantinho para ver as vitrines, entra na Rua Direita e, pronto, já está defronte do seu palácio de sonhos, a Rádio Record de São Paulo, na Rua Quintino Bocaiúva. Na porta, cumprimenta o porteiro, sobe as escadas de mármore do prédio, já desgastadas pelo tempo, e pára diante da cortina de veludo bordô que separa o corredor de entrada do corredor que vai direto ao auditório. Entra, vai até a sala que fica ao final do corredor para receber, como acontecia quase todos os dias, um tapinha carinhoso do Comendador Siqueira, gerente da rádio, e, assim, já devidamente preparado, entra no auditório aonde minutos depois irá começar o programa matutino de todos os fins de semana, o famoso Hoje é Domingo, liderado pelo grande radialista Randal Juliano. Este era um programa de variedades, com muita música, humor e brincadeiras de auditório. Na locução comercial a lindíssima e maravilhosa Nair Belo, minha primeira grande paixão platônica. No humorismo também 253
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tínhamos lá grandes nomes, tais como: Chocolate, Adoniran Barbosa e, na parte musical, Isaurinha Garcia, Demônios da Garoa, Dupla Ouro e Prata, Cascatinha e Inhana, entre tantos outros cartazes de primeira grandeza no cenário nacional. Nas brincadeiras de auditório eram distribuídos diversos brindes, entre eles os aportes que davam direito à entrada e aos brinquedos do famoso Parque Shangai, que ficava no Parque Dom Pedro II, e que, para mim, era visita obrigatória de todos os domingos à tarde, mercê desses tais aportes. Como não poderia ser diferente, meus ídolos da época eram Randal e Nair, e quase morri de susto quando fui escolhido para gravar com eles o piloto de uma novela infantil que deveria contar a história de Peter Pan. Eu, como Peter Pan, ele como pai e a minha deusa como mãe do herói infantil. Embora aprovada, a novela nunca foi para o ar, mas meus sonhos sempre nela estiveram.
aluno escrachado, Valter Ribeiro dos Santos era o japonês. Embora de japonês não tivesse nada. Era muito engraçado quando o professor ao mandar calar a boca, dizia: — Cale-se! A resposta dele era: já vai beber Pardaro. Ele queria dizer Pardal. Eu ia sempre lá, na Rua Sebastião Pereira, 322. Minha mãe mandava eu levar roupas para a Sarita Campos distribuir aos pobres. Ela tinha um programa que entrava no ar toda tarde, depois do Manoel de Nóbrega. Aos sábados, após o almoço, eu ia assistir o programa Galera do Nelson, que era apresentado por Nelson de Oliveira. Era um musical onde apareciam muitos cantores. Agostinho dos Santos estava em início de carreira, ele começou no programa de calouros Salomão faz justiça, da Rádio América, que era apresentado por um jovem radialista que veio de Santa Rita do a Quatro, chamado Salomão Ésper. No programa Galera do Nelson, a cantora santista e calunga Joara Gonçalves, estava presente quase toda semana. Leny Everson, uma loira gordinha e que cantava divinamente, era outra que também participava de todos os programas da Rádio Nacional.
Macaco de auditório Mário Lopomo Quando eu era um garoto de 14 anos e estudava no Brás, na volta da escola, ava no centro da cidade, invés de ir para casa. Meu refúgio era a Rádio Nacional de São Paulo. O estúdio tinha mudado da Rua 24 de Maio para a Rua Sebastião Pereira, praticamente no centro da cidade. Eu ficava sentado ali vendo os grandes artistas ensaiarem como a Ângela Maria, Agostinho dos Santos, a Martha Rocha, Miss Brasil da época que, para quem não sabe, também dava uma de cantora. E a sensacional estrela de São Paulo, Hebe Camargo, que embalou muitos corações, com aquele rostinho sensual, sobrancelhas grossas e cabelo escuro até a cintura. Na Rádio Nacional a programação começava a esquentar às 11 horas da manhã com a Parada de Sucessos, apresentada por Hélio de Alencar. Depois vinha dona Rinsoleta, um papinho rápido da Raquel Martins, para as donas de casa, com os preços da feira, cuidados com certos sabões (já que era patrocinado pelo sabão Rinso). Walter Foster completava com a Conversa do meio-dia. Era o contra-ponto da Raquel. Um papo de homem para homem: pescaria, futebol, como se esconder de umas puladas de cerca, por aí. Aí vinha o que todo mundo esperava: o programa Manoel de Nóbrega, com vários quadros engraçados, como Zé da Bronca, Caçador e Águia Negra. Foi aí que surgiu o Ronald Golias. Ele fazia dupla com Carlos Alberto de Nóbrega, que nessa época estava careca, por ter entrado na faculdade. Carlos Alberto e Golias pareciam irmãos, estavam sempre juntos. O programa acabava com a Escolinha de Grupo em que Manoel de Nóbrega fazia o professor. Eram vários comediantes sensacionais. Ronald Golias fazia o
Clube dos Motoristas Roque Vasto Em 1959, os finais das tardes de domingos eram esperados com muita ansiedade. Na Rua Jairo Góes, defronte a pizzaria Castelões, no Brás, sempre às 19 horas, era realizado o show do Clube dos Motoristas. Os quadros, as apresentações musicais e danças características da Espanha e da Itália eram realizados pelos próprios motoristas, seus filhos e por moradores da redondeza. Meu irmão costumava cantar no quadro dos calouros, tendo algumas vezes vencido os concorrentes, e o prêmio para o vencedor era nada mais, nada menos, que um vale pizza da Castelões. O curioso é que um desses calouros se apresentava cantando modinhas napolitanas, com uma voz doce e sotaque bem natural. Uma vez meu irmão empatou com ele e a pizza foi resolvida no “Par ou Impar”, que no fim meu irmão perdeu. Esse calouro era um motorista de táxi já perto da faixa dos 40 anos, que alguns anos depois ficou conhecido em todo o Brasil. Era Francisco Petrônio, o rei do Baile da Saudade. Que saudade de tantos que lá se apresentaram cantando, fazendo comédia, declamando poesias, dançando... Que saudade daquele lazer cultural, daquela convivência respeitosa e sadia, muito melhor que assistir ao Faustão ou ser obrigado a mudar de canal quando anunciam o Big Brother.
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Francisco Petrônio, a voz de veludo. Meu vizinho no Brooklin. Quantas vezes ando pela Rua Guaraiúva, lá estava seu ônibus, indicando o descanso do artista que já tinha retornado de suas viagens. Ele e sua Rosa, que tanto embalou casais na Rua das Palmeiras com seu Baile da Saudade. Um título vindo do programa de Moraes Sarmento, que ele registrou em seu nome e onde ganhou muito dinheiro. Petrônio foi o cantor de seu tempo. Um tempo que, para gravar um disco, tinha que saber cantar e ter uma voz como a dele. Francisco Petrônio partiu ainda há pouco. E deixou muita saudade. Preces. Mário Lopomo
Rádio Piratininga, a hora certa Adalberto Amaral Quem se lembra da Rádio Piratininga que ficou no ar por 43 anos até fechar, em 1971? A rádio nasceu no lugar da Rádio Cruzeiro do Sul, em 1934, e naquela época São Paulo já tinha a fabulosa cifra de 1.060.000 habitantes. Teve início com os programas de calouros comandado por Raul Torres que foram ao ar com Torres e os Sertanejos, e depois com Embaixada do Torres. Nomes famosos aram por lá, como: Silvio Santos, Manuel de Nóbrega (no programa Torre de Babel), Boris Casoy, Milton Neves, Salomão Ésper, Tonico e Tinoco, o inesquecível Hélio Ribeiro, com o programa O Poder da Mensagem, que tinha como slogan: “Este programa aqui, é ouvido pela moça do Karmann Ghia Vermelho”. À tarde, a radionovela Juvêncio, o Justiceiro do Sertão era retransmitida para todo o interior de São Paulo e do Paraná, pelas emissoras repetidoras. Grandes nomes da Piratininga – Doutor Miguel Leuzzi (diretor), Reinaldo Santos, Vicente Lia, Machado Filho, Roberto Dantas, José Francisco e outros que não me lembro. Uma característica da rádio era a “hora certa” que era transmitida com a voz de Salomão Ésper, diretamente do Mosteiro de São Bento – de onde se ouviam as badaladas do sino.
Eu me lembro de um programa de tangos, que tinha um locutor de voz carregada que dizia: — Este é um programa das Casas Pirani, a gigante do Brás. Tempo bom, muito bom, aquele. Expedito Marques Pereira
Na Rádio Piratininga tinha também um bom noticiário. Era Rotativa no Ar. Quem apresentava era o jornalista Amauri Vieira, um cara muito folgado e metido a falar besteiras na hora errada. Num desses noticiários, o citado jornalista disse que Wilson Brasil e Geraldo Ti, ambos do setor esportivo da Rádio Nacional, haviam brigado na porta da rádio, Rua Sebastião Pereira, 218. No programa esportivo “Bate Bola”, que ia ao ar de segunda a sexta, às 18 horas, Wilson Brasil fez um desabafo, dizendo que o jornalista da Rádio Piratininga havia mentido. E foi mais além dizendo: — Eu não sou louco de querer brigar com Ti, veja o corpo dele e o meu, que sou baixinho, quase a metade dele. Mário Lopomo Curti demais os programas e a linda voz do Hélio Ribeiro! Ouvindo o seu programa, aprendi o significado de muitas palavras em inglês, pois ele tocava a música e ia fazendo a tradução. A moça do Karmann Ghia vermelho existe! Acabou casando com um cantor famoso e foi minha vizinha por muitos anos! Belas lembranças! Márcia Ovando
Rádio Gazeta e a disparada no esporte Mauro Lima de Souza Em 1974 o Brasil se preparava para ir à Alemanha disputar o Tetra e defender o “tri” de 1970. Estava no meu primeiro emprego, na saudosa Companhia de Acumuladores Prestolite, na Mooca, quando resolvi ir ao trabalho, desde Perdizes até a Avenida Presidente Wilson, no Opala 2500 branco do meu pai, equipado com um potente rádio AM. Era horário de almoço e decidi ligar o rádio, que não dava sinais de vida se a antena externa não fosse erguida manualmente. Sintonizei a Gazeta 890 AM. Deparei-me com a poderosa voz de Milton Peruzzi e me encantei com seu rico vocabulário; as engraçadas intervenções do “Zé Italiano”, corinthiano até na alma, apesar do sobrenome, o Rubens Pecci, Peirão de Castro, Geraldo Blota, Paulo Vitor e uma promessa do rádio: um menino chamado Carlos Eduardo Galvão Bueno. Aqueles minutos de almoço se transformaram em entretenimento e prazer. Tornei-me um fã ardoroso da equipe que tinha Barbosa Filho, João Batista, Silva Netto, Oswaldo Maciel, Henrique Guilherme, o Barba, e muitos outros, percebendo que o bom-humor é o melhor de todos os esportes.
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Sou mulher, mas gosto muito de futebol. Como uma boa Palmeirense, acompanhava todas as resenhas esportivas. Não perdia nenhum Disparada no Esporte. O Galvão Bueno era o mais novo da equipe. O Peruzzi e o “Zé Italiano”, diziam que ele usava um cabelo comprido na altura dos ombros. Certa vez, com seu sotaque carioca, confessou seu amor pelo Flamengo. Lembro-me também do Wilson Brasil. Tempos depois, acho que houve algum desentendimento entre eles. Alguns foram para a Rádio São Paulo ou Piratininga. Depois foram para a TV, num programa comandado pelo Peruzzi. Naquele tempo tínhamos também a TV Tupi, onde trabalhavam Walter Abraão e Geraldo Bretas. Bernadete Pedroso Houve um desentendimento entre eles, sim. Eu sei da história, pois estava sempre junto com muitos deles. Segundo um colega que trabalhava comigo, o Peruzzi era muito exigente, falava asperamente com todos. Na verdade, sempre foi prepotente. Mas tinha um bom coração, era um grande amigo meu. O Wilson Brasil, às vezes, era um pouco relapso, e dava pano para mangas. Gostava de jogar nos cavalos e se distraia vendo a página de turfe, o que irritava o chefe. Eu mesmo lá, um dia, observei isso. Então eles combinaram, à sombra do Peruzzi, a formação de outra equipe. Wilson Brasil, José Italiano e mais alguém que não me lembro. Senti uma mágoa muito grande quando o Peruzzi me narrava o acontecimento. Não me lembro para que rádio foram os desertores. Faltava a eles o que o Peruzzi tinha de sobra: amizades para o patrocínio do programa. Só sei que a aventura durou pouco e “Zé Italiano”, o que mais forçou a barra para sair, logo depois voltou, com ar de arrependimento, e puxando muito o saco do Peruzzi. Coisas do rádio, minha cara. Você nem imagina o ninho de cobras que era o rádio. Mário Lopomo
Reclames do rádio Mário Lopomo Nas décadas de 1940 e 50, a publicidade no rádio era chamada de reclame e se ouvia muita coisa interessante. O Brahma Chopp tinha vários jingles como: “Quando o tempo está abafado o que o tempo desabafa é o Brahma Chopp Gelado.” Ainda nos anos de 1950, tinha uma propaganda da Brahma que era assim: “Quem gosta de cerveja bate o pé e reclama. Quero Brahma, quero Brahma.”
Outro jingle que me chamou atenção foi o da marca de cigarro Veado, da década de 1930, que dizia: “Cigarros marca Veado, Pita, pita devagar. Oi, pita, pita, devagar, quem é chique ou pé-rapado. Mas que noivo camarada, que espera a namorada, duas horas sempre em pé. Se o papai vem à janela, dá veado na canela, e sai fumando um Aimoré. Hoje a minha mulherzinha foi fazer uma fézinha e o dinheiro não lhe dói. Logo mais eu vou brigar, vou as notas separar e comprar o meu Monroe. O Brasil só vai fumar cigarros marca Veado. Pita, pita devagar. Oi pita, pita devagar, quem é chique ou pé-rapado. Oi pé-rapado, pé-rapado o cigarro é Veado”. Também lembro dos reclames: Pílulas Doutor Róss: “Pílulas de vida do doutor Róss, fazem bem ao fígado de todos nós.” Creme Rugol: “As rosas desabrocham com a luz do sol, e a beleza das mulheres, com o creme Rugol. Creme Rugol.” Café Seleto: “Logo pela manhã eu levanto, escovo os dentinhos. Na hora de tomar café, é Café Seleto que a mamãe prepara, com todo carinho, Café Seleto tem sabor gostoso, e é delicioso.” Biscoito Duchen: “Duchen, duchen, duchen, duchen. É o trenzinho camarada, onde não se paga nada. Onde a gente a bem, comendo biscoitos Duchen, comendo biscoito Duchen...” Garcia: “O que começa com G e termina com A? Garcia! Garcia, o imperador da moda masculina...” Cobertores Parahyba: “Tá na hora de dormir, não espere mamãe mandar. Um bom sono pra você, e um alegre despertar...” Rhum Creosotado: Veja ilustre ageiro, o belo tipo faceiro que o senhor tem a seu lado. O aviso não basta, conheça também o Rhum Creosotado, experimente os seus efeitos benéficos e rápidos no combate a tosse, gripes e bronquites, use uma vez Rhum Creosotado e o senhor será o maior, o melhor e o mais sincero propagandista das qualidades verdadeiramente excepcionais desse remédio brasileiro. Calor, gripe constante, Rhum Creosotado corta a gripe num instante. Se a tosse e a gripe são um dilema Rhum Creosotado resolve o problema.” Xarope São João: “— Alô, quem fala! — É a tosse! — Aqui quem fala, é o Xarope São João... — Fugiu hein? — É sempre assim. Falou Xarope São João... A tosse vai embora na hora...” Casa José Silva: “As três lojas da Casa José Silva estão apresentando em seu grande departamento de aparelhos elétricos as famosas marcas de aparelhos de televisão, geladeiras, móveis estofados, máquinas de lavar. Aparelhos de porcelana e cristal, tudo a preços íveis e as mais vantajo-
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sas condições de crédito, em suaves prestações mensais, em longo prazo e muitas facilidades. Nas três lojas da Casa José Silva, que servem bem...” Casas Gebara: “Gebara, a loja econômica da cidade precisa desocupar lugar para sua formidável reformulação de estoque. Escolha o artigo que agradar e pague o preço que quiser pagar, porque Gebara é sempre a fortaleza em defesa da economia da população. Gebara – Rua Luiz de Camões, esquina com a Ouvidor. Gebara sempre Gebara...” Bombril: “Bombril facilita o trabalho da dona de casa tornando fácil a limpeza doméstica. E para o dono da casa Bombril, tem utilidades? Claro que tem, Bombril pode ser usado a seco em sapato de camurça. Se o cidadão tem um automóvel, então Bombril é indispensável, por quê? Porque Bombril a seco dá brilho e a perfeita transparência do pára-brisa, e com sabão limpa a faixa lateral do pneu, fica branca num instante. Bombril no pára-brisa do seu carro, e diga depois: — Alô pára-brisa... você é quem brilha.” Damosel: “Encantamento e felicidade, assim é Damosel o novo perfume para a mulher que ama e quer ser amada. A fragrância Damosel tem a suavidade de uma carícia. Damosel loção, colônia, brilhantina. Damosel, o convite para o sonho.” Sabão Aristolino: “O tipo ideal para a senhora ou senhorita não é o loiro ou moreno, é o cavalheiro de bom gosto que possui cabelos sedosos e brilhantes, pele fresca e acetinada. Assegura para si o tipo ideal, entregando ao sabão Aristolino a tarefa de embelezar sua pele e os seus cabelos. Sabão líquido medicinal Aristolino evita os cravos, espinhas e manchas que tanto prejudicam sua beleza, ao mesmo tempo que limpa sua cabeça dando maciez aos seus cabelos. Aristolino, sabão de beleza, sabão de saúde.” Casas Pernambucanas: “Não adianta bater, eu não deixo você entrar, as Casas Pernambucanas é que vão aquecer o meu lar. Vou comprar flanelas, lãs e cobertores eu vou comprar, nas Casas Pernambucanas e nem vou sentir o inverno ar. Casas Pernambucanas onde todos compram lãs, flanelas e cobertores.” Sabão Cristal: “Pra roupa que se suja o ano inteiro, Sabão Cristal... Sabão Cristal é sempre o primeiro... Sabão Cristal... Pra limpeza dos tecidos sem perigo de estragar... Sabão Cristal... Sabão Cristal é pra lavar... Sabão Cristal é o preferido pelas donas de casa por ser resistente. Muito resistente... E pelo seu grande poder detergente, sendo por isso o mais econômico. Fabricado com os puríssimos óleos de palma e babaçu, sabão Cristal conserva o tecido e não estraga as mãos. Sabão Cristal, o sabão sem igual. Pra lavar a roupa Sabão Cristal é sem igual.” Detefon: “Detefon pom porom. Na sua casa tem barata, não vou lá. Na sua casa tem mosquito, não vou lá. Na sua casa tem pulga, não vou lá. Peço licença pra mandar, Detefon no meu lugar. Detefon, pom porom...” Mappin: “Mappin, venha correndo, Mappin, chegou a hora, Mappin, é a liquidação... Mappin, venha correndo, Mappin, tem o carnê do Mappin,
muitos descontos, Mappin, é a liquidação. Liquidação do Mappinnnn...” Pasta dental Philips: “Triunfe contra a cárie. Com a científica proteção antiácida Philips, exclusivo da pasta dental Philips. A pasta dental Philips é a única que contém o antiácido leite de magnésia Philips. Por isso neutraliza em toda a boca, em todos os dentes, a acidez bucal que é a principal causadora da cárie. Pasta dental, Philips todo dia, bons dentes toda vida.” Kolynos: “Cada tubo de Kolynos é uma fonte de prazer e satisfação, porque Kolynos é o creme dental que assegura beleza no sorriso, garantindo a higiêne da boca. Kolynos rende mais e limpa mais. Para quem tem belos dentes, sorrir é uma satisfação. Kolynos...Ahhh!” Varig: “Seu Cabral vinha navegando, quando alguém logo foi falando: Terra à vista... Foi descoberto o Brasil. E a turma gritava: Bem-vindo seu Cabral. Mas Cabral sentiu no peito, uma saudade sem jeito. Vou voltar pra Portugal, quero ir pela Varig...Varig, Varig, Varig...” Lojas Garbo: “Você precisa de uma roupa nova, Lojas Garbo têm, a roupa que lhe fica bem. Para homens, rapazes e meninos o mais completo figurino. Você precisa de uma roupa nova, Lojas Garbo têm, a roupa que lhe fica bem. Muito bem...” Talco Ross: “a, a o talco Ross, quero rear. a, a o talco Ross para refrescar.” Cândida: “Quem ganhou as eleições? Foi Cândida! Eleita com muito sucesso, pela maioria das donas de casa. Para lavar, alvejar, desinfetar, ganhou em primeiro lugar. Cândida, Cândida, a maioral, da limpeza geral.” Credinobis: “Como é o nome dele? Credinobis! Credinobis, crédito o ano inteiro!” Canguru-Mirim: “Um cruzeiro, dois cruzeiros, papai vai dar pra mim. Vou guardar o meu dinheiro é no Canguru-Mirim. Caderneta de Poupança do Canguru-Mirim. Com a garantia da Organização Orosimbo Roxo Loureiro.”
Falando em reclames, tinha também o jingle da Gillette Azul, mais ou menos assim, quando do lançamento do aparelho de barbear automático que abria para a colocação da lâmina: “Faço a barba, com Gillette Azul, diariamente, com Gillete Mono-Tech, que alegria, faço a barba todo dia com Gillette Azul.” Grande patrocinador de programas esportivos. Ainda tinha o jingle dos postos Esso e seus produtos: “Sóóóóó ESSO dá ao seu carro o máximo, só ESSO dá ao seu caro o máximo, só ESSO dá ao seu carro o máximo, veja o que Esso faz. Qualquer que seja o seu carro, veja o que ESSO faz.” No lançamento da TV Tupi, o Pim Pam Pum, que abria a programação infantil matinal, tinha uma musiquinha mais ou menos assim: “Estrela no ar, anuncia o programa Pim Pam Pum, Pim Pam Pum, Estrela. Pim PamPum, Estrela. Sete e sete são catorze, com mais sete vinte e um, cada dia 257
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da semana, um programa Pim Pam Pum, Estrela, Pim Pam Pum, Estrela”, aí entrava o Vigilante Rodoviário, nosso primeiro seriado de TV, depois o Nacional Kid, tataravô dos atuais Power Rangers (Arghhhh). Anízio Nunes “A vaquinha Mococa está mugindo, muuuu, a vaquinha Mococa está dizendo: beba leite em pó Mococa, beba leite em pó Mococa.” Mais uma: “Dona Maria vem dançar um pouco, Agora não, vou tomar café Caboclo, Dona Maria vem dançar um coco, Agora não, eu vou tomar café Caboclo, Pega na minha mão, oh João, vem fazer a marcação, Vou tomar café Cabloco, êta cafezinho bom!” Mirça Bludeni de Pinho De biscoitos tinha ainda, Biscoitos Aymoré: “Ele é um índio camarada, amigo da garotada. Ele é o índio aimoré, no lanche, na merenda e no café. Biscoitos São Luís: É hora do lanche, que hora tão feliz, queremos biscoitos São Luís.” Luiz Antonio da Silva
Lembro-me dessas propagandas e outras que ouvia no rádio. Lembro-me bem, quando era bem criança, que pedia para meu pai abrir uma conta no Canguru-Mirim, para ganhar um cofrinho canguru em miniatura, que baixava a cabeça cada vez que se introduzia uma moeda. Meu pai, tradicionalista, só tinha conta na Caixa Econômica, não acreditava naquela instituição. Pedi tanto que ele abriu a conta, recebeu o cofrinho para me dar e em seguida foi lá e fechou, retirando o dinheiro. Meses depois veio o estouro daquela empresa que levou dinheiro de muita gente. Paulo Theodoro da Silva Fortes Eu fui uma vítima do Canguru-Mirim quando a instituição faliu. O cofrinho era um canguru com a mão aberta e ao colocar uma moeda sobre sua mão, ele a colocava dentro do seu corpo. Roque Vasto
Roda de violeiros Nélio Nelson Gonçalves
Aqui vai a minha contribuição. “Brillcreme, apenas um pouquinho, Brillcreme você irá brilhar. Brillcreme é o melhor caminho para as garotas conquistar...” Eu usei muito, quando ainda tinha um belo topete! Paulo Romanelli Jingle de campanha eleitoral: “Presidente: Getúlio, Adhemar: Senador e Lucas Nogueira Garcez para Governador. É PTB, é PSP, os dois estando juntos nós vamos vencer.” A garotada, eu também, cantava: “Getúlio no circo, Adhemar no xadrez, pimenta do reino no cu do Garcez? Gumex dura lex, sed lex, no cabelo só Gumex.” Nelson Coslovsky Me lembrei de mais uma: “Ela é linda! Ahhhh! Está Noiva! Óhhh... Usa Ponds. Hummmmm...” Mário Lopomo Jingle do Vinho Centauro (o vinho devia ser uma droga, mas nunca o esqueci): ”Vencendo o páreo da qualidade, Vinho Centauro conquista a cidade, é o favorito do meu paladar! Eiôoo, Centauro! É o puro sangue, é o puro sangue, é o puro sangue da uva! Vinho Centauro, seja onde for, vence o páreo da pureza e do sabor!” Luiz Saidenberg
Meu bode estava preso, do crime que praticou E foi condenado a morte, e este dia chegou O juiz era o leão, o macaco promotor Papagaio na defesa e o galo acusador... E a cabra veio chegando Com seus filhinhos chorando Ao saber que o velho bode, já estava terminando... O que me impressiona é ainda me lembrar de tudo isso depois de tantos anos. Talvez as minhas raízes em Piracicaba e o amor pela minha terra natal. Aos sábados à noite, íamos para a pracinha escutar a roda de violeiros; existia até um tal de Parafuso que sempre nos brindava com lindas modas de viola. Fiquei feliz ao saber que esta praça leva seu nome hoje em dia. A Rua do Porto, onde morávamos, era um lugar simples e humilde, porém o amor reinava no coração de todos que por ali conviviam. Quando mudamos para São Paulo encontrei na Rádio Bandeirantes uma extensão da terrinha, onde o Capitão Barduino nos acordava bem cedinho com aquele barulho infernal: “Acorda, minha gente, é hora de carçá o butinão prá mais um dia de trabaio. Vamo levantá, pessoar. Olá meu Brasil bravo e gigante, esta é a Rádio Bandeirantes que vos tem no coração...”
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Capitão Barduino, boa lembrança, foi meu radialista predileto das madrugadas. Ele, com aquele galo, fazia um banzé danado. Quando o São Paulo perdia ele pegava no pé do Sarmento, que também tinha um programa na madrugada, um pouco antes dele. Mas quando era o Verdão, o troco vinha na mesma moeda. Era um tempo que o rádio tinha muita sinceridade e simplicidade. Capitão Barduino tinha uma maneira sui generis de comemorar seu aniversário. Como ele não tinha filhos, ia com a esposa numa entidade que abrigava crianças e com elas almoçava. Capitão Barduino faleceu em 1967, no Hospital São Paulo. Eu estava lá, dando o último adeus a ele. Mário Lopomo
Na periferia da cidade existem muitos anônimos cantando e compondo. Pena que ninguém repara. Dos programas além do Na Beira da Tuia, que Tonico e Tinoco faziam na Rádio Bandeirantes e que muitas vezes eu, trabalhando lá, assistia às gravações, tinha outro bem antigo na Rádio Tupi, início dos anos de 1950. Festa na Roça. O Brasil inteiro ouvia, era um tempo de sertanejos de raiz e o programa era apresentado por Lulu Belencazzi e tinha o carrasco daqueles que cantavam mal. Era o Talento e Formosura, um humilde funcionário da rádio, que batia uma barra de ferro numa roda, também de ferro, e fazia um verdadeiro estrondo. Que saudade. Hoje se vê sertanejos de araque, como esses que por aí estão. Mário Lopomo
Sons do sertão Luizinho Trocate Recordo-me de um tempo em que as pessoas da roça que vinham pra São Paulo morriam de saudades do sertão. Ouviam programas de rádio com sons rurais, galos, monjolos, berros de bois e vacas, e se emocionavam até as lágrimas. Destes programas, não guardei muito bem os nomes, mas sei que tinha o Na beira da Tuia e, mais recentemente, o Estrela da Manhã , inesquecível, pois é o mais belo título que um programa caipira poderia ter. Era um nunca mais acabar de sonhar. As músicas, então, eram uma agem para outra dimensão. Agora, tudo mudou! Pessoas há – e muitas – que contribuíram e contribuem de uma maneira grandiosa para a união da roça e da cidade. Não me refiro aos caipiras famosos, como o Boldrin, Almir Sater, Inezita Barroso e outros, mas às pessoas comuns que fazem música – e boa música – e levam aos quatro cantos do País, seja nos bares, nos botequins de quinta, nas festas regionais, nas ruas, nas praças e esquinas. Normalmente no mês de junho, quando o espírito caipira mais se acentua em cada um de nós, porque, afinal, temos em comum um ado rural, é comum as grandes festanças, mas as pessoas que vivenciam esse tipo de música cotidianamente, não fazem diferenciação de época não! É festa todo dia, basta pintar uma viola. Se tiver sanfona, então, aí é que a coisa pega fogo, como diz o Paulinho, um conhecidíssimo tocador mauaense de viola e aprendiz de sanfona em estágio avançado. Neste junho de 2007, na Chácara dos Treze, na Estrada do Carneiro realizou-se mais uma festa na roça conduzida pelo Paulinho; uma festa das mais bonitas, por sinal. Terço, doces, bebidas de época, pipoca, danças, mastros de santos e música; muita música. Lá pelas tantas a neblina recobria as árvores, o frio era intenso, mas a música aquecia a alma, que é a sua função primeira.
Melodias Sandar Turan Bei Quando tive o ao primeiro rádio, eu morava na zona rural e éramos uma numerosa família. Para evitar brigas, cada um tinha o seu horário de audiência, salvo meu pai, pois as notícias da Segunda Guerra Mundial eram mais importantes! Pois bem, o meu horário era o das 18 horas, mas quase sempre eu sintonizava na Rádio Gazeta, não por preferência, mas, sim, porque o som era mais límpido, e nesse horário o programa que se iniciava era: Melodias Sandar, um programa de músicas de orquestras americanas muito em voga na época, tais como: Percy Faith, George Melachrino, David Rose, Morton Gould, André Kostelanetz e tantos outros. Alguns anos depois, mudei-me para o bairro de Pinheiros, na Capital, e qual não foi minha surpresa ao ar em frente da perfumaria Sandar, salvo engano, na esquina da Rua Teodoro Sampaio com a Fradique Coutinho, caminho que eu faria por muito tempo!
Ouvindo rádio em Sampa Mário Lopomo No início da década de 1950, ouvir rádio era uma coisa gostosa. A televisão ainda estava por vir. Só em setembro é que ela foi ao ar, mas eram poucas as pessoas que tinham o aparelho. O rádio era aquele aparelho que transmitia a voz e que nossa imaginação dava o complemento. Existiam as radionovelas que eram a preferência da Rádio São Paulo, que fazia parte das emissoras unidas do grupo de Paulo Machado de Car259
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valho. A Rádio Cultura também tinha suas novelas, em sua maioria escritas por Fernando Baleroni, marido de Laura Cardoso, que também atuava. Mas o forte da programação da Rádio Cultura era o programa de calouros Peneira Rodine, patrocinado pela Rhodia, que ia ao ar aos sábados, das 14 às 18 horas. Este programa era apresentado por Hélio Araújo. A Foto Léu também era uma das patrocinadoras e uma máquina fotográfica era sorteada ao final de cada programa. Para tanto, Hélio Araújo gritava o programa todo: — Olha a urna para a máquina fotográfica. Foi deste programa que saiu o grande cantor Francisco Egídio. Diariamente, à tarde, tinha o programa Seqüência das Seis, de onde surgiu o comediante Ronald Golias. Além desse programa, Golias fazia parte dos Aqualoucos, um grupo de nadadores que faziam misérias nas piscinas. A Rádio América também era uma emissora bastante ouvida. À noite tinha o programa Cartório de Protestos, em que o cartorário ficava embaralhado com o atrapalhado escrivão que se encantava com as viúvas que iam fazer o atestado de óbito. Assim que a mulher saía, ele gritava ao oficial maior: — Viuuuuvaaa doutor!! Esse radialista se chamava Mário Guimarães. Na Rádio Tupi, tinha ao meio-dia, A Cadeira de Barbeiro, com Manoel de Nóbrega e Aloísio Silva Araújo. Nóbrega era o freguês (doutor) e Aloísio o barbeiro (Fígaro). Havia sempre um diálogo entre os dois que era mais uma crítica ao sistema político do País na época. Ainda no início dos anos de 1950, a Rádio Tupi, lá do alto do Sumaré, também apresentava um programa sertanejo que tinha um nome bem sugestivo: Festa na Roça. Era apresentado por Lulu Belencazzi e além da participação dos profissionais, contava com os amadores, os calouros que se aventuravam. Os que não iam bem, eram gongados. E o dono do porrete que mandava na roda de ferro era chamado de Talento e Formosura. Logo depois, a gente mudava para a Rádio Nacional, que tinha um programa chamado A Felicidade bate à sua porta, no qual os locutores visitavam os bairros de São Paulo e mexiam com toda a cidade. Havia a Raquel Martins, a dona Rinsoleta, que ficava no estúdio e o Nelson de Oliveira, da Galera do Nelson, que ficava na viatura, uma caminhonete que tinha um pequeno palco na carroçaria. Um bairro tinha sido sorteado no domingo anterior. Feito o sorteio do número da casa, o proprietário que tivesse os produtos da UFE (União Fabril Exportadora), que detinha as marcas do Sabão Platino, entre outros produtos de limpeza, ganhava todos os produtos do patrocinador e mais uma quantia em dinheiro. Para encerrar o programa vinha a estrela de São Paulo, a cantora Hebe Camargo. No dia em que o programa visitou o Brooklin Novo, a rua sorteada foi a Nebraska, e a Hebe cantou a música Garota: “Garota do meu coração, você é a grande sensação”. A seguir vinha o programa de calouros Ai Vem o Pato, apresentado por Jaime Moreira Filho. Bons tempos aqueles do rádio.
A Raquel Martins faleceu em 1974, quando gravava a novela A Gata Comeu, na TV Tupi. Maria Miranda
Rádios na janela e cadeiras na calçada Jayro Eduardo Xavier Quando voltava da escola, antes do almoço, ava em frente ao ferro-velho da Estrada do Aeroporto, atual Avenida Ascendino Reis, onde é, hoje, o final da Avenida Sena Madureira, e todo dia ouvia o som de St. Louis Blues March, de Glenn Miller, que servia de tema de abertura do programa Parada de Sucessos e que o sucateiro ouvia sempre. Durante o almoço ouvíamos Cadeira de Barbeiro. O programa era uma crítica aos políticos e costumes do País. O tema musical do programa era Nola, executada por Liberace. Nas noites de verão papai colocava o rádio na janela da sala e levava cadeiras pra fora. Os vizinhos apareciam para ouvir programas como Desafio aos catedráticos, PRK-30, Zé Fidelis, Grande Jornal Falado Tupi e outros. Nos intervalos dos programas vinham os reclames de Flit, Cafiaspirina, Detefon...
Sabe quem? Sabe quem? Jose Carlos Munhoz Navarro Dezesseis anos, na flor da adolescência, ouvi uma voz grave, forte, interrompendo uma canção e indagando: — Sabe quem? Sabe quem? De imediato fez-se a química, muito mais ou exclusivamente pela voz, fundiram-se num só, o transmissor e o receptor. E então pergunto? Quem não se emocionou com Hélio Ribeiro? O poder criativo e envolvente, a magia que emanava daquela voz. A mensagem sutil das palavras entrecortando as músicas; a mensagem vigorosa dos textos emoldurando as notícias; a mensagem otimista revigorando angústias; a mensagem final perpetuando vidas. Quem não se emocionou com Hélio Ribeiro? A revolução nas rádios em que ou, os profissionais que criou, lançou, sustentou, reverenciou. O trovão daquela voz era, paradoxalmente, menor que o impacto sonoro das suas tiradas filosóficas, das suas frases espiritualizadas. Foi feita uma alquimia, e a alquimia daquele momento ficou para sempre.
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TEATRO, FESTIVAIS, RÁDIO E TV
Nos bastidores do radialismo esportivo Mário Lopomo O rádio sempre foi minha paixão. No início da década de 1950, quando a televisão ainda estava engatinhando, o rádio era a visão e ilusão de todos que interpretavam aquilo que era só ouvido. Não só nas radionovelas, como também nas transmissões do futebol, com a gente pensando ou se iludindo com aquilo que ouvia. Por volta de 1950, eu era um macaco de auditório da Rádio Nacional e sempre que podia ia assistir o programa Manoel de Nóbrega, na Rua Sebastião Pereira. Foi lá que conheci Silvio Santos, recém-chegado do Rio de Janeiro, quando ele vendia canetas e tocava músicas na barca Rio-Niterói. Foi um delegado do Rio, que era muito amigo do Nóbrega, que pediu para contratar aquele camelô que tanto enchia o saco dele. Silvio fazia a locução comercial com Hélio de Aguiar, que às onze horas apresentava a Parada de Sucesso. Nóbrega brincava muito com o Hélio. Suspendia a barra da calça até o joelho dele, virava o paletó ao contrário, penteava o cabelo dele para frente – ele não parava de ler e nem ria. Já quando Nóbrega ia começar a fazer isso no Silvio, ele pulava que nem um cabrito por sentir cócegas. Ficava vermelho. Daí surgiu o apelido de Peru. O Peru que fala. Em 1958, fiquei vidrado em ouvir a Rádio Bandeirantes, por causa da contratação do Pedro Luiz e Mário Morais, respectivamente locutor e comentarista esportivo. Tinha um amigo, o Mário Lúcio, que também adorava falar num microfone. Era só ter um parque de diversão na Vila Olímpia ou a quermesse da Igreja do Divino Salvador, que lá estava ele de microfone na mão: — Senhoras e senhores, estamos dando início aos trabalhos do serviço de alto-falante, para tocar músicas e atender aos pedidos e oferecimentos musicais. Para começar o trabalho, vamos ouvir, com Nelson Gonçalves, A Volta do Boêmio, música que a Valquíria oferece ao Anézio, como prova de muito carinho. No final da década de 1960 encontrei com Mário Lúcio no Vale do Anhangabaú que, muito sorridente, disse: — Xará, sabe onde estou trabalhando? — Não, mas pela sua felicidade deve ser no funcionalismo público. — Que nada! Estou trabalhando na Rádio Bandeirantes. — Pô, que legal, com essa voz forte e firme que você tem, deve ter sido contratado como locutor. — Que nada, trabalho na portaria. A propósito, por que você não vai trabalhar lá? — Eu, trabalhar no rádio? O que iria eu fazer lá? — Xará, você sempre lidou com futebol, foi diretor, fez até estatutos de diretoria. O esporte seria uma boa para você. Vai tomar um café comigo lá. Já era janeiro de 1970, estava de férias, aproveitei e fui fazer uma visita
para o Xará. Lá chegando, ele pediu a um colega de trabalho que ficasse na portaria, e fomos para o bar da rádio tomar um café. Mário Lúcio, para mostrar que conhecia muita gente, me apresentava a todos que apareciam. Aí me levou à sala do esporte e foi direto à mesa do diretor Dinamerico Aguiar, dizendo: — Olha esse é meu amigo, Mário Lopomo. Ele quer trabalhar na Rádio Bandeirantes. Confesso que já estava sem saber o que dizer. Que eu queria trabalhar na rádio era invenção dele. Dinamerico olhou bem para mim e mandou ele me levar até o João Zanforlin, que era o locutor de plantão e chefe também do QG dos esportes. Zanforlin olhou para mim e mandou ele me levar até o José Carlos Guerra. Pensei comigo: Já estou fazendo papel de palhaço. Naquele momento, o Guerra estava entrando na sala e o Mário Lúcio disse a ele a mesma coisa que dissera aos outros. O José Carlos Guerra, que tinha um óculos fundo de garrafa, era o tipo do cara que ficava de boca aberta e daquele jeito olhou para mim e disse: — Pode começar no domingo. Estávamos numa quarta-feira. Confesso que não entendi nada. Mário Lúcio ria de canto a canto da boca. Ao voltarmos, ele feliz da vida foi dizendo: — Não te disse xará, que te arrumava um trampo aqui na rádio? Fui para casa só pensando: O quê que vou fazer nessa rádio? Ao chegar em casa falei para minha mulher (era recém-casado): — Maria, arrumei outro emprego. Advinha onde. — Sei lá, diz logo ai vai! — Na Rádio Bandeirantes, acredita? Ela deu uma tremenda gargalhada. — Que é, vai trabalhar de faxineiro? — Sei lá, só sei que me mandaram ir já no próximo domingo. Vou às quartas-feiras, quintas, sábados, domingos e feriados. Enfim, sempre que houver uma jornada esportiva. Quando eu era somente ouvinte, eles falavam os nomes de todos que tinham trabalhado naquela transmissão. E sempre ouvia o nome da Ivone Mendonça. Dali em diante eu ia ser seu colega de trabalho. Estava ansioso por conhecê-la e pensava: Será que ela é bonita? Quando cheguei para o primeiro dia de trabalho, Mário me encaminhou até o plantão esportivo, e fui recebido pelo coordenador José Obis. Então fiquei sabendo o que ia fazer. Colocaram-me fones no ouvido, ligaram um rádio e me mandaram anotar quando saía gol e entregar ao locutor de plantão, que era o João Zanforlin. Quando terminaram os jogos e todos já estavam sem os fones, perguntei ao José Obis: — Quem é a Ivone Mendonça? Ele começou a rir e me apontou um rapaz. Foi uma decepção. Nunca tinha conhecido um cara com nome de Ivone. Na brincadeira disseram que a irmã dele se chamava Marco Antonio. Ele era oriundo de Minas Gerais. Trabalhei com grandes nomes do rádio esportivo. Fiori Gigliotti, recentemente falecido, Mauro Pinheiro, José Paulo de Andrade, Flávio Araújo, Hélio Ribeiro, Muibo Cury, Lourival Pacheco, e muitos outros. 261
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Sabores e pratos
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“Um sabor leve e delicioso fazia os pequenos estomagos repetirem por duas ou até três vezes aquela maravilha macia e saborosa.”
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sabores e pratos
Memórias gustativas Miguel Chammas Comecemos pela época de boy, adorava comer um duplo salsicha no Rei da Salsicha, ali no Largo do Café (existe até hoje e ainda é muito bom), onde você pedia o sanduíche e comia ali mesmo na rua, de tão pequeno que era o bar. Na esquina do Largo do Café com a Rua São Bento, tinha uma estufa de esfihas e ali eu também fazia uma boquinha. Outro lugar inesquecível era a Casa Califórnia, na Rua São Bento, quase esquina com a Praça do Patriarca. Seus sucos e refrescos acompanhados por um sanduba de lingüiça de Bragança Paulista ou de aliche no pão de fôrma, eram fantásticos. Um pouco antes dessa época eu gostava de, aos domingos pela manhã, ar no Bar Viaducto, na Rua Direita, onde meu tio Elias costumava freqüentar. As coxinhas eram deliciosas. No Bar Municipal, situado na Rua Barão de Itapetininga, eu ia com meu tio João, depois de uma sessão de bang-bang no Cine Art Palácio, para comer um sanduíche de Rococó (pão preto, queijo gorgonzola, aliche e azeitonas pretas), esse sanduíche hoje só pode ser degustado no Ponto Chic. Na época, eu ia a esse bar lá no Largo do Paissandu para comer o bauru tradicional, ou então, o mexido de ovos com presunto e queijo. Da Salada Paulista, muitos já falaram e eu confirmo todas essas indicações. Minha descendência árabe não me permite esquecer o Restaurante Almanara, da Rua Santo André, onde comi vários almoços completos. Lembro também do restaurante da dona Vitória, na Rua 25 de Março, hoje mais elitizado na Avenida Juscelino Kubitschek. Lembro também de uma fábrica de doces árabes, instalada na Ladeira Porto Geral, era minha predileta. Uma vez gastei quase todo o meu salário de boy comendo uma bandeja de um doce árabe de queijo, que era e é ainda, meu grande e disparado favorito. Bem, pulemos alguns anos de petiscos e comidinhas e vamos aos meus anos de boemia. No rabo da noite, eu ia juntamente com meu grande amigo Paulo Domingos, a um restaurante na Rua Conselheiro Nébias, quase esquina com a Avenida São João: o famoso Parreirinha, que depois foi atender seu público fiel na Rua General Jardim, onde terminou seus dias de glória. No Parreirinha, ponto preferido do meu amigo Adoniran Barbosa, nós comíamos sempre de entrada uma paveza (caldo de carne bem quente e um ovo dentro, cozido parcialmente nesse próprio caldo) e depois rãs (de qualquer forma ou um miolo de boi à milanesa). Quando não íamos ao Parreirinha, íamos ao Moraes, na Praça Júlio Mesquita, comer um filé com salada de rúcula ou de agrião ou na adega do Pedrinho comer a primeira feijoada da quarta-feira, ou ainda, no Gato que Ri, do Largo do Arouche, comer uma bela massa. Depois desse eio gastronômico, creio ter justificado o porquê de, aos 60 anos, eu ter me submetido a uma operação e colocado o anel redutor no estômago.
E o Dix na Rua São Bento? ei lá outro dia e, para minha tristeza, estava fechado. As coxas creme e os sanduíches vão ter que ficar somente na memória... Israel Beigler São Paulo é isso aí, além do seu inteligente roteiro, existem casas e casas que oferecem o que há de melhor para os amantes da gastronomia, enfim... Havia uma padaria que o senhor deve ter conhecido e que ficava ao lado do Cine Art Palácio, o nome dela era Ayrosa e a mesma era premiada em face da qualidade dos seus serviços. Nas ruas Conselheiro Crispiniano, São Bento, cada rua tinha e tem um bom lugar para se alimentar... Francisco Lemmi Filho
Comidas dos sitiantes de Santo Amaro Roberto Pavanelli Santo Amaro, de muitas tradições, guarda também em suas memórias as comidas que alimentavam os caipiras de nossa amada terra. A simplicidade da nossa gente não afastava de sua inteligência o improviso na hora de cozinhar. Começando pelos mais exóticos dos alimentos consumidos nestes rincões, temos a içá, ou tanajura, aquelas formigas grandes, de bumbuns avantajados. Para os antigos, uma verdadeira iguaria. Inspirado nos costumes indígenas, nossos anteados também aram a comer esses insetos (alguns comem até hoje). Com essas formigas se fazia uma deliciosa farofa. Quando não, eram torradas com água e sal, servindo de aperitivo. E com cerveja gelada, melhor ainda! O pão era feito em forno de barro à lenha, ao lado das casas de seus moradores. Quando não era pão, era o chamado bolinho de vento, feito de farinha de trigo, água e sal, às vezes com um pouco de fermento. Tudo isso misturado, a massa era frita em gordura quente, e estava aí o substituto do pão para ser saboreado com o cafezinho ado no coador de pano. O arroz com feijão estava quase sempre presente à mesa da nossa gente. Para variar, havia a sopa de feijão com macarrão, comida barata e substanciosa, normalmente servida no jantar. A carne, ou era de galinha ou de pato, criados no quintal, ou o leitãozinho, também alimentado domesticamente no fundo dos quintais. Quanto às verduras, eram todas produzidas em horta caseira, predominando a couve, alface, além de outras hortaliças, como a cambuquira, broto de abóbora cortado e refogado com tempero. Havia muita mandioca também. O milho verde era assado ou cozido. Do milho, havia o ritual de fazer pamonhas. As comadres se juntavam em torno 265
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de uma mesa, após colherem as espigas no milharal e avam a tarde toda ralando as espigas e, ao milho ralado, juntavam o açúcar. Depois, embrulhavam essa massa em palhas do próprio milho e ferviam em água, até tomar consistência, e tínhamos então as deliciosas pamonhas, feitas ao deleite de, não menos, deliciosas conversas. Destacavam-se nas festas os doces de abóbora com coco, as bananadas e o inesquecível doce de laranja. A laranja usada nesse doce era conhecida como laranja azeda, ou laranja de burro. Nos festejos juninos predominavam a pipoca, o pinhão, amendoim e a batata doce assada no tição da fogueira. Já me sinto faminto porque não vejo mais essas comidas em nossas mesas.
Pastel de feira: quem não comeu, não viveu Rubens Rosa Da zona norte à zona sul, de leste a oeste, quem não comeu um pastel de feira, não viveu. Não importa a classe social, é sempre legal um pastel de feira em São Paulo, seja de carne, queijo, pizza ou palmito, bem quentinho. Com um caldo de garapa vai bem, e muito bem, e só na cidade de São Paulo tem. Na barraca você encontra velhos amigos e põe a conversa em dia, e seu vizinho ainda fala: — Se você for à feira, me traga um pastel, mas não pode ser pastel de ‘são bento’ (pouca carne e muito vento). E com o ar do tempo, o dono da barraca já sabe qual é o sabor que você gosta, e se tiver duro, não importa, ele marca na conta e você paga na próxima. Portanto, nunca se esqueça de comer um pastel de feira.
Década de 50, Anos Dourados Carlos Salzer Leal Creio que a grande maioria dos leitores e colaboradores destes registros, como eu, são saudosos dos tempos em que nossa querida cidade de São Paulo nos proporcionava momentos tão felizes, quaisquer que fossem os bairros onde morávamos. Nossos vizinhos, nossos amigos de infância e adolescência, nossos professores/as, padarias, leite em litro, os bailinhos, os cinemas com suas salas maravilhosas esbanjando charme e bom gosto. Eu fazia grandes programas aos sábados, principalmente nos cinemas do Centro, pois eu morava muito próximo deles, no Largo São Paulo, cerca de 400 metros da Praça da Sé e como todos do meu tempo, fazia o trajeto inteiro até a “cinelândia” a pé, ou seja: Avenida São João, Avenida Ipiranga e adjacências. Após o cinema, para completar o programa, um lanche na
Salada Paulista, ao lado do Cine Ipiranga, lembram-se? A gente comia de pé, salada de batata com salsicha, bifes deliciosos e a conta era anotada a lápis no mármore do balcão. Confesso que nunca esqueci o sabor delicioso daqueles pratos; a salada tinha um preparo especialíssimo e incomparável. O bolito misto do Giovanni, na Avenida São João, perto do Cine Metro e as pizzas do Papai, na Praça da Sé. Os programas de auditório nas Rádios Tupi, América, Cruzeiro do Sul. Anos dourados! Com certeza, para mim foram os anos 1950. Década da minha adolescência. Saíamos de bonde da Liberdade até Vila Mariana, descíamos em frente ao Instituto Biológico, e de lá, íamos a pé até o lago do Ibirapuera para nadar. Esse lago não existe mais, pois ali foi construído o prédio da Assembléia Legislativa. O Monumento das Bandeiras ainda não existia. O trânsito era tranqüilo e seguro. As notícias nos jornais eram: política, esportes, cultura geral, programas de teatro e cinema. Povo nas ruas com semblantes felizes e sempre atenciosos. Gente bonita! Trauma? Stress? Psicólogo? Nunca ouvi tais palavras. Valeu, e muito, ter vivido na “Minha São Paulo” daqueles anos dourados.
Existia uma Casa Italiana que ficava perto da Santa Ifigênia, não lembro o nome da rua, sai ali do Largo do Paissandu e tinha o Cine Ouro na esquina. Era tipo uma lanchonete e eles faziam uma pizza brotinho que se comia no balcão. Dava para ver o forno de onde eram tiradas e não se comia em prato. Dava para dobrá-la no guardanapo e deliciar-se com a muzzarela farta que espichava feito chiclete. Huumm. Hoje em dia há pizzas e pizzarias maravilhosas por toda parte, mas naquela época não era comum, nem possível comer sempre. Lembro perfeitamente do aroma e do sabor. Vera Lúcia de Angelis Tal relato me transporta no tempo... Com sua licença, acrescento dois lugares na sua relação: As Lojas Americanas da Rua Direita e os programas de auditório da Rádio Record, na Rua Quintino Bocaiúva, esquina da Rua Direita, em cima da Casa Bevilácqua, que vendia instrumentos musicais. Dos programas da Record, destaco: Escola Risonha e Franca, com Adoniran Barbosa, Randal Juliano e muitos outros astros e estrelas. Os jovens de hoje não fazem idéia de como eram bons aqueles tempos. Heitor Felippe
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sabores e pratos
Hot dog, jukebox, teenagers
Nos tempos da Grapette
Mirça Bludeni de Pinho
Luiz Saidenberg
Eu estava com 14 anos, entre 1959 e 1962, quando ao lado do Colégio Piratininga foi instalada a primeira fast food que conheci. Chamava-se Bull-Dog e era na garagem de uma casa. Ficávamos embevecidos de olhar as salsichas cozendo e rodando ao mesmo tempo – comportava mais de duas dezenas de unidade, em cima de cilindros dispostos lado a lado! Era o sinal dos tempos! Quanta tecnologia! Onde iríamos parar? O hot dog vinha acomodado em uma caminha de papelão e com cinco chips de batata. Mostarda e catchup à vontade em cima do único balcão. Crush e Coca-Cola para todos, ao invés do Guaraná caçula. Mas a influência norte-americana não parou por aí. Mal conseguíamos absorver tantas novidades e não é que chega uma jukebox? Ouvíamos não só os hits do momento, como qualquer coisa. O importante era ter um ar casual como se fôssemos entendidos. Foi com tristeza que vimos a demolição das casas vizinhas e o fim do Bull-Dog para dar lugar a um novo prédio, o de Química Industrial do Colégio Oswaldo Cruz. O nosso pesar foi logo compensado com o conhecimento de muitos novos amigos. Afinal, éramos teenagers!
Os refrigerantes de nossa infância, coisa que agora compra-se em qualquer máquina automática, eram raros e preciosos. O néctar dos deuses, para qualquer criança. Creio que minha iniciação no tema foi com Guaraná. Da Antarctica. Embora o gosto fosse muito próximo, ou mesmo igual ao de hoje, o Guaraná alardeava um atributo nobre: Guaraná Champagne. Lembro-me em Campinas, aguardando com meus pais e irmão o ônibus para São Paulo. Para lanche de espera? Guaraná Champagne e o que hoje chamamos misto frio: pão de fôrma, sem casca, recheado com presunto, queijo prato e um toque de manteiga. Hummm! E as versões das garrafas? O Caçula, o Paulistinha... Aqui na capital, fui apresentado a um refrigerante que, mesmo que eu ainda não soubesse, já era o mais popular do mundo. A internacional Coca-Cola. Isso se deu na Leiteria Pereira, na Rua São Bento, creio que logo após a Segunda Guerra Mundial. Os americanos já estavam com tudo, mas, a princípio, detestei o refrigerante. E não fui o único. Meu amigo Sylvio, a “Velha Serpente”, comparou seu gosto, então, com o Sabão Aristolino! E o jingle: — Coca-Cola, Coca-Cola, oi, me faz um bem... É a força da grana que forma opiniões, e depois a gente se acostuma, ou foi o sabor da Coca é que melhorou. Hoje a bebo bem, com seu sabor sóbrio contrastando com o esfuziante Guaraná. Mas sempre na versão light, dado ao avançado da hora. Um dia, subindo a Rua Albuquerque Lins, em direção à Praça Marechal Deodoro, vi numa vitrine de bar um cartaz com uma marca estranha, impronunciável para uma simples criança: Seven Up. Como se lia aquilo? Seja como for, apesar do nome, a Seven Up não me impressionou. Outras marcas, que não me marcaram muito foram: Crush, Soda Limonada, Tônica e Fanta. Muitos anos depois, iria com a família tomar Fanta aos litros, na Itália, enfrentando um terrível Ferragosto! E a Tubaína, ou Taubaína como também se dizia, o Guaraná dos pobres? O seu gosto era duvidoso, não se definia se era Guaraná, Soda, ou o quê. Hoje ganhou mais status, mas, para mim, continua estranha. Uma de suas maiores produtoras, a Schincariol, de Itu, também produz um Guaraná, e muito bom! E a Grapette, do título? Estava esquecendo dela. Seu slogan era: quem toma Grapette, repete. Lembro-me de uma vez, em 1950, estávamos no Rio de Janeiro, na Ponte de Tábuas – em outros tempos devia ter existido a tal ponte ali, mas o que víamos eram os paralelepípedos da Rua Jardim Botânico, perto de onde seria a TV Globo – e ali, num barzinho, com meus pais e os tios cariocas, experimentamos a rara Grapette, com gosto de suco de uva. E não repetimos a experiência, mesmo por que nunca mais a encontrei aqui em São Paulo. Com ela, ou sem, brindemos. Vivam os refrigerantes da nossa infância!
Saí do Ginásio Perdizes em 1947, ei pelo Oswaldo Cruz do Professor Quirino Simões no curso noturno de 1949, ainda na Rua Bento Freitas, depois fui para o Colégio Batista Brasileiro, onde me formei em 1950, de lá saindo para o Colégio Piratininga onde fiz o curso Clássico de três anos para ingressar na faculdade. Não havia o tal Bull-Dog, quando muito um barzinho fuleiro com mesas de sinuca: Bar do Quincas, já na Praça Marechal Deodoro, onde se tomava Caracu com ovos, à guisa de anabolizante. O point da mocidade (naquele tempo, e olhe que já faz muito!), era a sorveteria Alaska, numa outra esquina. Os detestáveis termos em língua estrangeira só eram tolerados no futebol como: goal keeper, back, center forward, corner, free kick, penalty, off side. Talvez também no rádio com broadcast, speaker, sketches, dial e outros tantos. Expedito Marques Pereira O primeiro fast food de que ouvi falar era o das Lojas Americanas, na Rua Direita. Sua lanchonete, revolucionária na época, foi a lançadora de um cachorro-quente que ficou famoso. Luiz Saidenberg
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E tomar Guaraná caçula com pão com mortadela no trem? Essa é minha lembrança das minhas viagens de férias para Itu, pela Sorocabana. Só vi Grapette na propaganda, nunca consegui provar... Esther Bacick Outros dois refrigerantes também marcaram pelo sabor a minha infância; talvez muitos não se lembrem de uma “meia-garrafa” que era usada também em cervejas na época, chamava-se Cerejinha, seu gosto marcou tanto quanto o Guaraná Champagne caçulinha, mas desapareceu com o tempo. Depois, com uma garrafinha verde e muito chamativa, apareceu o refrigerante Giny, sabor parecido ao Seven Up, menos doce e mais azedinho. Esses são alguns doces sabores de minha infância. José Jacinto Andrade Se não me engano, a letra do jingle da Coca-Cola era algo assim: “Coca-Cola, Coca-Cola, oi me faz um bem, Coca-Cola, Coca-Cola, oi pra mim também. Que pureza, que sabor, Coca-Cola tem; Nós queremos Coca-Cola, Coca-Cola pra mim também”. Isto não quer dizer que sou fã da Coca-Cola. Ainda prefiro, muitos e muitos pontos acima, o nosso Guaraná Champagne. Carlos Ogasawara
Salada Paulista: Caixinha, obrigado! Marcelo Pacheco A Salada Paulista foi a pioneira do fast-food na Paulicéia e a coisa mais encantadora, além, é claro, da excelência da comida, era a forma como os atendentes contabilizavam o consumo dos clientes. Para ilustrar melhor, lembro que o ambiente era um galpão comprido com um grande pé direito. No centro, havia um grande e alto balcão em forma de “U” – não havia bancos, comia-se em pé –, que ia da entrada até os fundos do restaurante. Dentro desse “U” havia um exército de atendentes, chapeiros, cozinheiros, realizando todo o preparo dos famosos sanduíches, saladas e croquetes, à vista da clientela. Conforme o freguês consumia, o atendente anotava a lápis no mármore do balcão, o valor do item pedido. Terminada a refeição, ele realizava a soma ali mesmo, na pedra, e em seguida apagava a conta esfregando um paninho úmido. Aí, então, o desfecho de ouro: terminada a transação, pagamento e o respectivo troco, você deixava uma gorjeta e o funcionário que a recebia gritava a todo pulmão, pois o lugar era obviamente barulhento: — Caixinhaaaaa! Ao que todos os demais integrantes do “exército” respondiam em coro vigoroso: — Obrigadoooo! Saudade do
Salada! Suas imensas paredes de ladrilhos com grandes reproduções de Rugendas ou Debret e o olhar vigilante do velho casal de proprietários, retratados em grande escala, também nos ladrilhos, na parede de fundo, lá no alto, como que fiscalizando a qualidade dos serviços e conferindo se todos os seus soldados responderiam: Obrigadoooo!
A Salada Paulista, que teve seu último endereço ao lado do Cine Ipiranga, faz parte da juventude da década de 1950, quando tínhamos de comer um lanche rapidamente, no horário do almoço comercial ou antes de irmos para a escola, à noitinha. A salada de batata era única e inconfundível, desaparecendo a receita quando acabou fechando as portas. Quando era acompanhada de salsichas, o balconista gritava: — Santo Amaro no prato! E o chope era o Cristal ou Bandeirante, conforme o tamanho. Muito antes do Juca Alemão, o bife à milanesa saía fora do prato uns dois dedos, no mínimo, de cada lado. Mas o que realmente havia de original, era o hábito de escrever a lápis no mármore do balcão a conta do freguês... No fim do dia, não havia mais espaço para se escrever. Expedito Marques Pereira Freqüentei muito a Salada Paulista – comia um sanduíche de croquete de carne regado à mostarda escura que era fantástico – e posso te afirmar que foi ali instalado um sistema de caixas que não dava chances para os balconistas desviarem algum troco. Você deve se lembrar que sempre trabalhavam dois caixas dentro do balcão em U e acima deles ficava um espelho que permitia visão em 360 graus. Era por isso que a “caixinha” também era agradecida por todos, pois todos a viam. Miguel Chammas
Um salve, Salada! Luiz Carlos de Barros A Salada Paulista, da Avenida Ipiranga, que antes esteve na Rua 24 de maio, servia: duas salsichas, um cone de maionese no centro do prato e uma fatia de tomate como chapéu, pãozinho sempre na hora e a salsicha Santo Amaro, que podia vir também com croquete de carne. E que croquete! O que sei é que os herdeiros do casal que estava sempre nos olhando lá do fundo, em pintura tom sépia, não se interessaram pela continuidade. São Paulo deveria ter se organizado para uma reação pública contra o fechamento da Salada. Ele deveria ter sido tombado como patrimônio cul-
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tural, considerando como agravante, ainda, que no lugar foi instalado um McDonald´s. Há, ainda, outros locais como esse em nossa cidade e devemos ficar atentos.
Dupla croquete e um Bandeirante! Quantas vezes ouvi os atendentes gritando enquanto anotavam a despesa do cliente com seus garranchos na mesa de mármore! Como pode uma coisa tão simples e maravilhosa como essa não ter continuidade? Oh! Deus, ter saudade em São Paulo não faz muito bem à saúde não. Mauro Lima de Souza Ahhh !!! A Salada Paulista... o maior bife à milanesa de São Paulo: cobria todo o prato; bem sequinho e acompanhado da infalível salada de batatas. Matava qualquer fome. Rene Salada Paulista... consigo sentir o cheiro... eu que tinha apenas uns 3 ou 4 anos... meus pais me colocavam naquele banquinho alto, me apoiando, pois eu fazia questão de sentar igual... risos... Comia olhando para o teto, vendo aqueles ventiladores antigos girando... girando... e me encantando. Acho que é uma das primeiras lembranças que tenho da minha infância. Raquel Sonho até hoje com o croquete de carne e a salada de batata. Até hoje me recuso a entrar no McDonald´s; de tanta raiva que fiquei em perder o lugar em que me deliciava com aquele generoso e delicioso hambúrguer acebolado. André Tozello Gostaria de acrescentar alguns detalhes, referentes ao tempo em que freqüentei a Salada, na Avenida Ipiranga das décadas de 1950, 60 e 70, até o fechamento. Na década de 1950 eu era muito menino e ia sempre com meus pais, depois de uma sessão em algum dos inúmeros cinemas que existiam naquela região, então chamada de Cinelândia: Ipiranga, Marabá, República, Coral, Olido, Rivoli, Bandeirantes, depois Ouro, Paissandu, Broadway, Metro, Windsor e outros mais. As crianças, para poderem alcançar o balcão, tinham direito a um banquinho de madeira, bastante firme. Além da salada, dos croquetes e dos cachorros-quentes, havia ainda o hambúrguer ou “hamburgo” no pão, certamente o primeiro da cidade. O pão era especial, o bife gigante e
com um sabor delicioso, que nunca mais senti em nenhuma das lanchonetes que apareceram depois. Logo surgiu a variante hambúrguer com queijo. Não se dizia ainda cheeseburguer. Era demais, literalmente inigualável. O mármore dos balcões era branco e cinza. O piso, de cerâmica avermelhada. Fabio Santoro A grande Salada Paulista! Que saudades! Durante os anos 1970, sempre havia a certeza de parar e comer uma salsicha na Salada. Um dia, ei na Avenida Ipiranga e não existia mais... assim como deixou de existir a Leiteria Paulista e a casa que vendia quibes e esfihas gigantes na Avenida São João, elas simplesmente sumiram sem deixar rastros. Nunca tive tempo para uma última visita. Também tenho saudades da Casa Califórnia... Josué Como filho do Fritz, o careca que ficava no caixa, posso dizer que um dos murais do lado direito era uma foto da Praça da República, onde minha irmã aparecia e depois foi feito um mural de azulejo dessa mesma foto pela CAB (Cerâmica Artística Barbosa). Lembro que meu pai vendia hamburgo e não hambúrguer, assim como comia-se sanduíche de salsicha e não hot dog. O chope, o croquete, o prato Filé Paulistano, a mostarda escura, a salsicha, só Santo Amaro, são as grandes recordações, além de saber que era uma casa onde realmente muitos artistas das décadas antigas iam comer à noite, após seus shows. A Salada Paulista foi um ponto de encontro em São Paulo, pois era normal alguém marcar encontro em frente à Salada Paulista. Wanderley Hee Sou neto do dono da Salada Paulista, o senhor Frederico Hee, ou Fritz, como era chamado. A Salada era a vida do meu avô. Para quem se lembra, ele era careca e ficava no caixa, em frente de um grande espelho, e gritava “Caixinha”, sempre que alguém deixava uma. A foto pintada nos azulejos era da minha mãe, criança, sentada em uma fonte, no Vale do Anhangabaú. Na verdade, a Salada acabou não porque meu avô não quisesse continuar, mas porque o outro sócio fez uma tremenda besteira que nem vale a pena comentar. O que importa é que a boa imagem da Salada e do meu grande avô Fritz fique guardada para sempre na memória de todos. Quem tiver curiosidade, pode perguntar mais e boas referências da Salada e do meu avô ao senhor Luis, do “Bar do Léo”. Ele foi garçom na Salada. Klebber William Hee Lopes Fernandes
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Nessa época, eu era office boy e como ava a maior parte do tempo na rua, a Salada Paulista foi uma espécie de “salvadora” nas horas de “aperto”. Os seus sanitários absolutamente limpos e perfumados eram um convite para uma aliviada pausa, porém, havia o constrangimento de ter que ir até o fundo com aquela enorme e chamativa placa de madeira com uma pequeníssima chave, além do que, ao pedir a chave para o caixa, ele demorava para atender, com o visível exame de cima em baixo para ver se você era merecedor da cortesia. Turan Bei Para enriquecer ainda mais este assunto, lembro que havia uma mensagem enorme na parede do lado esquerdo logo na entrada da Salada Paulista, que dizia: “Não fumando neste local você se sentirá melhor”. Nunca mais li mensagem tão elegante e direta desde então. E funcionava mesmo, porque ninguém fumava. Roberto Motta de Sillos Eu freqüentava muito a Salada Paulista porque se comia bem e a preços bastante íveis. Outra coisa que chamava a atenção: era o cartaz “Favor não encostar o bico da mostarda no sanduíche já começado”. Lembram? Carlos Ogasawara Minha mãe comprou uma máquina de costura Elna, suíça, portátil e tinha aulas de costura às quartas-feiras, na Rua 24 de maio, na loja da Elna. Eu a acompanhava, pois, enquanto ela estava na aula, me dava um dinheirinho e eu ia até a Salada Paulista da Avenida Ipiranga. Lembro de um enorme de azulejos pintados com uma cena. Era a Primeira Missa? Não me recordo. Mas tenho vivo na memória o gosto do cachorro-quente, aquele pão delicioso, a mostarda e o Crush para acompanhar. Saudades. Paulo Kirschner Junior Além do croquete que era maravilhoso e que não se encontra mais em lugar nenhum, dos garçons que marcavam as despesas no mármore bem em frente onde o cliente comia, tinha a mostarda escura que era fenomenal e um pudim muito cremoso e com muita calda. Tony Belviso
Saborosas recordações Miguel Chammas Humm...era o gosto acre do molho de tomate que cobria uma deliciosa lasanha degustada muitas e muitas vezes no ado e ainda hoje, de quando em vez. Tempos atrás, os componentes dos Duques de Piu-Piu, a maioria descendente de italianos, eram amigos da mesa farta e pródiga. Então, aos sábados, antes de colocarmos nossos pesinhos nas pistas de dança, costumávamos calçar nossos esqueletos (termo usado na época para definir o verbo comer), e normalmente íamos a alguma pizzaria, entre elas: o Moraes, a Cantina Speranza, ou outra qualquer boa cantina do Bexiga. Porém, quando o Paschoal, agregado muito querido dos Duques que trabalhava como mecânico da Equipe Tubularte, vinha motorizado para casa, o programa era mais do que certo: Cantina Veneto, na Estrada de M’Boi Mirim. Essa cantina, diga-se de agem, era de propriedade de duas famílias italianas que tinham como especialidade a Lasanha montada e gratinada em cuias de barro e forno à lenha. Essas noites eram programadas com alguns dias de antecedência, e no sábado, por volta das 17 horas, nos encontrávamos todos no Bar e Bilhar Rex, devidamente vestidos, com nossos ternos de Tropical, sapatos bico fino, camisas de punho duplo e gravatas com belos nós e, no carro do Paschoal, ou melhor, da Equipe Tubularte, nos dirigíamos para a referida cantina. Lá chegávamos por volta das 18 horas, nos colocávamos à vontade, ou seja, tirávamos paletós e gravatas, arregaçávamos as mangas das camisas e, então, cada um com seu copo de limonada, íamos para os fundos da cantina onde existia a quadra de bocha, ai jogávamos e bebíamos até as 20 horas. Lembro-me que, no verão, irar o pôr-do-sol lá da cantina era sensacional. Depois de jogar e beber à vontade, o jantar era servido. A pedida era sempre a mesma, lasanha, frango com molho de salsa, simplesmente fabuloso, e polenta frita. Bebidas? No verão cerveja, muitas, no inverno, vinho. O jantar era cheio de brincadeiras e jogos, mas, por volta das 22 horas, os Duques de Piu-Piu se recompunham, lavavam os rostos, penteavam os cabelos, na época de três andares, limpavam os sapatos, colocavam as gravatas e os paletós e, então, a noite era nossa. Normalmente, nos dirigíamos para o Recreio das Carpas, cujo nome certo tinha que ser Recreio dos Duques; às vezes, parávamos na metade do caminho e entrávamos no Cassino Vila Sofia, que, apesar do nome, na verdade era um salão de baile, uma das mais tradicionais gafieiras de Sampa. Dançávamos até as 4 horas da madrugada e voltávamos para casa alegres e descontraídos para enfrentar o domingo. A Cantina Veneto foi desde os tempos de solteiro minha cantina preferida, a freqüentei com minha família antes e depois de casar, e ainda hoje, sempre que uma oportunidade aparece, é para lá que me dirijo. Os proprietários ainda são os mesmos e eu me sinto como parte integrante do lugar.
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Fui pedida em casamento pelo meu atual marido na cantina no dia 12 de outubro de 1983, entre lasanhas e polenta frita, com a minha família toda reunida, e tenho muitas lembranças sobre minha família naquele lugar... Eloisa da Colina A Turma da Carneiro era freqüentadora assídua da Pizzaria Moraes, na Brigadeiro. Simples a casa, mas com uma pizza maravilhosa. Quando a turma se reúne não pode faltar uma ida ao Moraes, que ainda continua ótima. Freqüentávamos também a Pizzaria 1012, na Avenida Liberdade, 1012, que já não existe faz tempo... Gilberto Ramos Deliciosa lembrança a da Cantina Veneto. Lá estive pela primeira vez por volta de 1957 e depois, com meus filhos, até 1977. A lasanha era a genuína, sem presunto, e o molho branco incomparável. Os almoços, enquanto aguardávamos a vez, eram precedidos de caipirinhas feitas com limão galego e tira-gostos feitos com miúdos de frango. A criançada brincava solta, sem vigilância. Jayro Eduardo Xavier
as outras maravilhas do Mercadão. Sim, mercadão! Tão grande! Corredores inteiros só de frutas, as mais deliciosas, suculentas, coloridas, diferentes! A menina só conhecia a feira, da qual gostava, mas que era tão pequena quando comparada ao Mercadão! E as bancas de frutas secas importadas?! Como podia ter tantas bancas com coisas tão saborosas? E, imagine, os donos das bancas lhe davam as guloseimas para experimentar! Isto era ótimo porque seu pai não poderia comprá-las. Só compraria castanhas – que sua mãe não perdoaria se ele não as levasse. Só um quilo, porque era muito caro, e um pouco de frutas cristalizadas picadas, para colocar no Panetone, feito em casa. De repente a menina se deu conta que havia cheiros no ar! E que cheiros! Descobriu que havia balcões de lanches – pastel, lingüiça frita, bife frito, bolinhos de bacalhau, de carne, de milho, de mandioca, empadinhas, coxinhas! E aí aconteceu o inimaginável! Seu pai disse-lhe que podia escolher uma daquelas delícias, ele compraria para ela! E a menina comeu com os olhos, com o olfato, com o ouvido, com todos os seus sentidos aquele maravilhoso sanduíche de lingüiça calabresa frita colocada dentro de um paõzinho francês quentinho e bebeu um Guaraná! A menina ou vários dias em estado de graça, recordando esse lugar mágico, maravilhoso, encantado, que nunca mais pode esquecer e que, por muitos anos, uma vez por ano ia com seu pai, sem ficar cansada, comprar o desejado cabrito de Natal.
Encantamento Ivette Moreira — Dina, amanhã cedo vou buscar o cabrito. Faltam dois dias para o Natal. — Vá e não esqueça de trazer alecrim, que o de lá é fresquinho e saboroso. Cabrito para ficar bom precisa ter alecrim. — Pai, posso ir junto? — Pode, mas é longe! É lá pelos lados da Senador Queiroz, centro da cidade! Não vai dizer que não avisei e não quero escutar que tá cansada. Foi assim que a menina saiu do Alto da Mooca, de ônibus, desceu na Praça Clóvis Bevilácqua e caminhou, com o pai, até o Mercado Municipal, só para comprar cabrito, nos idos de 1949. Para seu pai, era preciso ter cabrito assado no Natal, e tinha que ser bem macio. Então, só no Mercado Municipal. Assim, uma menina curiosa, com 9 anos de idade, adentrou aquele lugar tão distante, mas tão importante para o Natal da família, e se maravilhou! E se encantou! E nunca mais o esqueceu! A primeira coisa que viu e não conseguia despregar os olhos, foram os vitrais! Nunca tinha visto uma coisa tão linda, tão clara, tão colorida e com figuras maravilhosas, que até dava vontade de estar junto com elas. O pai a puxava pela mão porque queria chegar logo ao setor de carnes para escolher o melhor cabrito. Ela o seguiu e começou a descobrir
Pastel com caldo-de-cana Gilberto Ramos Comer pastel junto com um bom caldo-de-cana é simples e delicioso. Em Sampa existe a tradição de comer pastéis nas feiras-livres, sendo muito famosos os da feira do bairro Pacaembu. Na década de 1950, não havia muitas pastelarias em São Paulo; a mais famosa era a Pastelaria da Sé, que ficava (será que ainda existe?) ao lado da Catedral Metropolitana. Mas nós, a turminha da Carneiro, gostávamos de outra, que ficava bem mais longe. Aos sábados, às 2 da tarde, reuníamos toda a turma, meninos e meninas, na Rua Vergueiro, esquina com a Pedroso. Ali tomávamos o bonde aberto, da CMTC, que se dirigia ao Bairro Jabaquara. Uma folia e tanto... O bonde subia a Rua Vergueiro, logo à frente, à esquerda, Colégio Santo Agostinho; na esquina da Rua do Paraíso, a Cervejaria Brahma... depois a Rua Domingos de Morais, ando pelo Largo Ana Rosa, Cine Cruzeiro, depois o Colégio Salesiano... Avenida Jabaquara e, finalmente o nosso destino, a Praça da Árvore, onde o bonde contornava para retornar. Descíamos, na maior algazarra, e corríamos até a Pastelaria do Japa, bem defronte a praça. 271
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Que delícia, minha gente, pastéis quentinhos, feitos na hora, só tinha de carne, palmito ou queijo, acompanhados de caldo-de-cana, copo dos grandes, que prazer... Quanta felicidade numa coisa tão simples... Voltávamos empanturrados e felizes... Será que tudo era tão maravilhoso só porque éramos jovens? Em que idade de nossas vidas perdemos o encanto por coisas tão simples e prazerosas? A propósito, pergunto aos amigos que me lêem... há quanto tempo não comem pastel com caldo-de-cana?
Por volta de 1968, eu era estudante de Economia na Álvares Penteado do Largo São Francisco e o meu jantar era um pastel especial, aquele com ovo, e um caldo-de-cana, na Pastelaria do China. Determinado dia, ao chegar para “jantar”, o China me avisou: — “Cabô pastelo”. A minha fome era tanta que arrisquei uma empada. Conclusão: no dia seguinte, ei o tempo todo feito uma flor: plantado no vaso. Antonio Souto
O bauru do Ponto Chic
Do filé ao arroz com feijão Doris Day Na década de 1970 e início de 1980, freqüentava alguns restaurantes dos quais não me esqueço. Gostava muito de ir comer um franguinho grelhado com uma salada de tomate, cebola em rodelas e palmito no Galeto’s, ali da Avenida Doutor Vieira de Carvalho; adorava o quibe do Almanara (da travessa da Praça da República); o beirute do Frevinho; a massa do restaurante Elio, na Albuquerque Lins; a pizza da Sperança e seu pão de torresmo; a feijoada do Star City, na Rua Canuto do Val; o filé de peixe com espinafre ao molho branco do Jota’s, na Rua Major Sertório; o filé à Chateaubriand do Rubayat; um pãozinho delicioso de uma padaria da Praça Villaboim; as massas, em geral, do Gato que Ri; as comidinhas deliciosas da Praça da Liberdade aos domingos; as iscas de peixe de um bar na Rua Veridiana; o cachorro-quente inimitável da lanchonete em frente ao Cine Astor; a salada de batata da Salada Paulista; os doces engordativos da Dulca, como as bombas de chocolate e tortinhas de frutas, na Vieira de Carvalho; o arroz com feijão do Um Dois Feijão com Arroz... Já estou com fome! Fico imaginando que judiei de vocês com tudo isso, portanto, vou parar.
Celia Berardi Spangher Pois é, eu cresci ouvindo meu pai falar da São Paulo antiga, das senhoras de chapéu e luvas, das leiterias, do Mappin. De como a cidade era linda, limpa e bem cuidada. Eu tenho 42 anos e meu pai, que está com 88 anos, foi radialista da Rádio Cruzeiro do Sul, na época de Vicente Leporace, Raul Tabajara e Adoniran Barbosa. Recentemente meu pai saiu de sua sétima internação hospitalar por causa de problemas do coração, e estamos aqui nos deliciando com as histórias dele. Vocês podem não acreditar, mas todas as vezes que ele saiu do hospital nesse nosso tempo moderno, ele comeu um bauru do Ponto Chic, que outro amigo de 80 anos vai buscar para ele na Praça Oswaldo Cruz. Aqui entre nós, acho que meu pai só se recuperou de tantas internações, por causa do bauru do Ponto Chic!
O bauru do Ponto Chic do Largo do Paissandu, as coxinhas do Guanabara, ai que saudades da minha São Paulo. Antonio Souto E as empadas do Bar Viaduto? Para mim, inesquecíveis, pois ainda lembro de meu pai pedindo-as naquele belo ambiente, meio obscuro e iluminado por coloridos vitrais. Faz tempo! Luiz Saidenberg
O naufrágio do Kakuk Luiz Saidenberg Ficava no começo da Alameda Glete, continuação da Martim Francisco, antes de se chocar com o Minhocão. Tinha nobre origem: fora fundado pelos mesmos donos do Bar Brahma. Alguns de seus cozinheiros e garçons tinham vindo a bordo do navio alemão Winduk, cuja tripulação deu origem a mais de um bom restaurante. Sua entrada, elevada, era alcançada por um lance de escadas, enquanto a garagem afundava no solo. Separadas do balcão por um longo e estreito corredor, havia uma série de “cabines” privativas, forradas de madeira escura, isolando as mesas. E podia-se chamar o garçom, de preferência o Seu Otto, por uma luz verde, que era acionada na “cabine” por um botão. A música também era sintonizada e aumentada por outro botão, na parede, ao fundo da mesa. Excentricidades à parte, tinha uma ótima comida e atendimento. Pratos preferencialmente germânicos e chope. Dos gentis garçons, como já disse, destacava-se o seu Otto; já idoso, alto, queixo quadrado, a cabeça raspada e uma orelha mutilada, parecia um personagem dos filmes expressionistas de Murnau, ou Fritz Lang. Quando chamado, parecia que até viria batendo os calcanhares – “jawohl, mein herr!”. Como se estivesse na
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Wermacht (exército alemão durante a Segunda Guerra Mundial), ou no seu perdido Winduk, onde fizera parte da tripulação. Meu pessoal da MPM ia sempre nesse restaurante, que, aliás, ficava bem perto da agência. E recebia um tratamento especial. Numa das últimas vezes que fomos lá, José, um dos donos, queixava-se desanimado do fraco movimento. Qual seria a causa? O minhocão, que tudo degrada? Mas quando conheci o Kakuk o elevado já lá estava, e a casa era bastante freqüentada. Aqui, sucesso e fracasso desencadeiam-se rapidamente, na cidade implacável. Mal minha agência foi transferida para a Vila Olímpia, soube do fechamento do bom Kakuk. Teria sido este o golpe definitivo? Brincadeira, mas só o fato da mudança da agência para um lugar mais “moderno”, já demonstra o agravamento da decadência da região central. E o pobre Kakuk afundou nessa onda. São Paulo parece Saturno, o Tempo, que devorava os próprios filhos. A gente que se cuide!
O Kakuk era tudo isso e muito mais, o Otto era fantástico e temperava uma salada como ninguém, o camarão com arroz à grega do Kakuk também era especial. Única ressalva é que ele não foi fundado pelos antigos donos do Brahma e sim pelos donos do Gambrinus, que era uma chopperia que funcionava ao lado de onde foi montado o Kakuk. A coragem dos criadores custou caro, pois não agüentaram o capital imobilizado e, após pouco tempo de funcionamento, precisaram vender para os antigos donos do Brahma. Na época, eu trabalhava no laboratório Upjohn, ali na General Júlio Marcondes Salgado, e éramos assíduos do Gambrinus e depois do Kakuk. Havia na nossa empresa um holandês de nome Jan que parecia demais com o Otto e, às vezes, por brincadeira, pedia o paletó do Otto e saía atendendo as mesas, chegava a confundir. Antonio Souto
alucinante para atender inúmeras filas que se faziam na hora do almoço. Os preços eram bem populares. Salvação dos duros, como eu!
A Drogadada foi a primeira drogaria com um balcão de lanches, no estilo das drugstores americanas. Os liquidificadores estavam sendo lançados no mercado e a novidade era os sundays, sorvete, no geral de creme, misturado com groselha, leite ou Coca-Cola. Se você fosse conservador tomava um leite batido, com coco ou não, na época chamado de frappé, aliás, melhor do que aquele servido no chá das cinco do Mappin, já na Praça Ramos de Azevedo, depois do incêndio do prédio da Praça do Patriarca. Quem estava “curto” ou “liso” de grana, recorria ao restaurante automático na descida da Antônio Prado, entre Líbero Badaró e Praça do Correio, comprava a ficha e esperava a portinhola abrir com o prato escolhido fumegante! Defronte havia o melhor cachorro-quente, nada de hot dogs da cidade, com o tradicional anúncio de neon com dois porquinhos que puxavam uma “réstia” de salsichas. Depois da decadência do restaurante do Papai, na Barão de Itapetininga, onde se fazia o footing nos domingos à tarde, já na Avenida São João criaram um Sopão, tipo mata-fome, a preços módicos. Expedito Marques Pereira Eu lembro, por volta de 1963. Entrava-se pela Rua 24 de Maio e descia um lance de escadas. Era um ambiente grande, escuro e meio asséptico. Creio que os pratos tinham, também, uma lista de calorias. Afinal, era a Drogadada! Aliás, lembro da Drogadada, muito antes, de 46. Não havia nada igual, creio que foi a primeira drugstore do Brasil! Luiz Saidenberg
Drogadada
A lasanha verde do Pelicano
Turan Bei
Neuza Guerreiro de Carvalho
Não sei a origem do nome, só sei que, na década de 1950, eu freqüentei por muito tempo essa esquina da Rua 24 de Maio com a Praça Ramos. Era lá que eu tomava lanche, geralmente um cachorro-quente com uma batida de frutas com legumes. Havia, nas paredes, de cima em baixo, uma relação extensa de combinações entre batidas de frutas com legumes, elas eram numeradas e o pedido era feito pelo número, salvo engano, havia mais de cem números. Os liquidificadores de copos de alumínio faziam um som rouco, daqueles que parecia algo engasgado na garganta, e trabalhavam num ritmo
No começo da década de 1960, éramos jovens, um casal bastante apaixonado, dois filhos pequenos de 6 e 3 anos e dávamos muita atenção ao cuidado no nosso relacionamento. Todas as sextas-feiras eu me embonecava, deixávamos de lado os problemas domésticos e profissionais, os filhos com os avós que esperavam ansiosos por esse dia e saíamos para namorar. Sempre no Centro, carro estacionado na rua, na porta. Cinema, jantar romântico, olhos nos olhos para repetir o que já estava incorporado às nossas vidas, mas que nunca era demais repetir: “Eu te amo”. “Eu também...”. Ar273
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remate de noite com flores da Praça da República em românticos buquês de violetas ou ervilhas, num gesto carinhoso de amor repetido. Depois de uma noite tranqüila, só nossa, no sábado de manhã, continuávamos o fim de semana. eios pelo Centro, compras, procura de novidades para nossa casa, nossos filhos, nosso universo. E no arremate, o almoço no Pelicano, na Praça da República, um misto de restaurante e lanchonete, cujo termo ainda nem era usado na época, com bancos altos e balcão de mármore e, a inesquecível “lasanha”. Sou capaz até de sentir o gosto, numa memória gustativa revivida. Era uma lasanha verde, com muitas e muitas camadas de massa finíssima intercalada com molho à bolonhesa, num bloco de uns 10 cm de altura. Mal conseguíamos dar conta da gostosura que era aquilo. A volta para casa, o repouso merecido e a recuperação dos filhos que então tinham nossas atenções absolutas. Um fim de semana só deles com tudo a que tinham direito. Depois de muitos anos reencontramos o Pelicano na Rua Conselheiro Crispiniano, mas era então uma sombra do que tinha sido. A lasanha, nem mais era servida... Lembranças de um tempo, de uma vida, de uma São Paulo diferente.
a gigante do Brás, da loja da vitrine de quatro ou cinco andares chamada Eletroradiobrás, quase no Largo da Concórdia, na Rangel Pestana. Era uma cantina simples, aconchegante e que tinha uma comida “supimpa”. Os donos eram três irmãos educadíssimos, gentis e alegres. Nos fundos do prédio havia um quintal cheio de árvores e com algumas mesas ao ar livre. Para conquistar de vez uma namorada, bastava levá-la jantar uma noite lá. No salão, as mesas eram separadas por um biombo e havia garrafas de vinho penduradas em uma armação de madeira próximo ao teto. Recordar é viver. Lembro que lá, há quarenta e cinco anos ados, às 2 horas da madrugada de um sábado, como não havia outra coisa, comemos uma feijoada. Será que fomos os primeiros?
Eu não conheci o Pelicano da Praça da República e, por conseqüência, nem cheguei a provar a lasanha. Mas eu freqüentava o Pelicano na Rua Conselheiro Crispiniano, ao lado do Cine Marrocos, que era parada obrigatória para uma “fritada americana”, inigualável e que era servida ainda dentro da inha. Carlos Ogasawara
Trabalhei no Brás por quinze anos e na Celso Garcia existia o Brazeiro, um excelente restaurante e o La Coruña, que ficava na Rua Joli, uma travessa em frente à antiga Pirani. Conheci o último dono desse restaurante, bem como sua filha que ajudava o pai no caixa. Em cima da Pirani tinha um clube que promovia bailes nos finais de semana. Antes de existir a matriz da Igreja Universal, na esquina da Bresser, havia um conjunto de edificações antigas como a Loja de Calçados e o Bazar da Dona Olga, que vendia lã, linhas para tricô e bordado, junto com sua irmã, uma simpatia. Tinha o cinema que virou igreja e mais adiante, onde hoje é um grande prédio, do lado oposto, funcionava o Cine Universo. Flavio
A sua descrição da lasanha do Pelicano é absolutamente fiel e fez reviver em minha mulher e em mim muitas saudades daquele tempo que éramos estudantes e sem dinheiro para um restaurante mais refinado. Até hoje procuramos por esta São Paulo inundada de restaurantes, mas inútil, aquela lasanha tinha o sabor da nossa juventude. O primeiro local do Pelicano realmente foi na Praça da República. Joaquim Mário
E por falar em cantinas... Heitor Felippe Por uns momentos, o tempo voltou atrás e, de repente, lá estava eu sentado à mesa esperando “aquela” lasanha que era servida na cantina que ficava na Rua do Hypodromo, no Brás, bem junto à linha do trem da Central do Brasil. Quanto tempo faz? Pouco importa, era o tempo das Casas Pirani,
Está faltando uma referência importante. Um boteco de espanhóis, numa rua paralela à Celso Garcia, que servia pratos espetaculares. O nome? La Coruña! Esse mesmo que agora é um chique restaurante dos Jardins. Ademar Souza
Eu não esqueço do Ballila; trabalhava na Rua do Gasômetro, 115, era só atravessar a rua, sentar-se à mesa e ser servido do que havia de melhor em termos de culinária italiana! Nelson Coslovsky Falando do Brás, não podemos deixar de mencionar o Ballila e o Marinheiro, que era na Rangel Pestana, 1060, sob o Viaduto do Gasômetro e que servia um jacaré fantástico. Roque Vasto
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Sanduíche de pernil Antonio Ferreira da Silva Corria o ano de 1956 e nós morávamos, então, na cidade de Mauá, que hoje faz parte da grande São Paulo. Meu pai trabalhava como empreiteiro na fazenda das empresas Matarazzo, famosas naquele tempo com o pomposo nome de IRFM – Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo. Quem é daquele tempo vai se lembrar dos caminhões amarelos com o emblema do Matarazzo nas portas, era um desenho de fábricas com suas chaminés fumegantes e as palavras escritas abaixo: Fides, Honor, Labor, cuja tradução, meu pai dizia ser: Fidelidade, Honra, Trabalho. Ele pode até ter errado na tradução, mas assim ficava muito bonito. Dessa época, ficaram guardadas na minha memória as viagens que eu fazia junto com meu pai, para ir de nossa casa na fazenda até os escritórios do Matarazzo, no Centro em São Paulo. Saíamos de casa pela manhã, íamos até a estação de trens em Mauá e, de trem, seguíamos até a Estação da Luz em São Paulo. Depois, pegávamos o bonde até bem pertinho do escritório, cujo prédio hoje é a sede da Prefeitura de São Paulo. Terminada a reunião com seus chefes, saíamos e voltávamos novamente de bonde até a Rua Mauá e, bem em frente à Luz, havia um bar... só me lembro que era bar e restaurante, o nome não guardei. Ali, meu pai pedia os sanduíches de pernil mais gostosos que eu já comi na minha vida... Que saudade... Do bonde, do trem, do meu pai, do sanduíche de pernil.
Na década de 1950, esses sanduíches eram saborosíssimos, mas, os que eu me lembro, eram comprados próximos à estação, na esquina da Rua São Caetano. Mirça Bludeni de Pinho
Gastronomia de São Paulo Mário Lopomo A cidade de São Paulo das décadas de 1950 e 60 era desprovida de restaurantes para atender as classes mais abastadas. O Fasano, da Avenida Vieira de Carvalho, era um que poucos tinham o, devido aos altos preços. Mais tarde, já na década de 1960, havia uma filial do Fasano na Avenida São Gabriel, no Jardim Paulista, em frente à igreja do mesmo nome. Na Rua Nestor Pestana, havia o Gigetto, que abrigava os espectadores do Teatro Cultura Artística, e depois, todo o pessoal que freqüentava a TV Excelsior, arrendatária do teatro, onde ficava o auditório da emissora.
A Rua Avanhandava também tinha seus restaurantes, bastante procurados pela sociedade. Em termos de pizzaria, o Paulino era o nome de destaque. Não esquecendo da doceira Viena, na Rua Barão de Itapetininga, onde as madames da sociedade iam tomar o famoso “chá das cinco”, imitando o que se fazia em Londres. Vários restaurantes de porte médio e populares se concentravam no chamado “Centro Novo”, que era a parte oposta da cidade em relação à Praça da Sé, ou seja, o quadrilátero Avenida Rio Branco, Rua 7 de Abril, Avenida Duque de Caxias e Vale do Anhangabaú, tendo no miolo, as avenidas São João e Ipiranga e as ruas Barão de Itapetininga, 24 de maio, Conselheiro Crispiniano e Dom José de Barros, incorporando o Largo do Paissandu, com a sua majestosa Igreja do Rosário. Os restaurantes chamados populares, onde os pratos eram baratos e trabalhadores de escritórios e lojas faziam suas refeições, eram: Um dois feijão com Arroz, e Três Quatro Feijão no Prato, ambos na Avenida São João. No Vale do Anhangabaú também tinha um respeitável restaurante na esquina da Avenida São João, próximo à Praça Antônio Prado, onde tinha o coreto com alguma atração musical. As casas de lanches eram os locais que mais concentravam as pessoas, principalmente aos domingos, dia reservado para ir ao cinema. Para quem gostava de pastel, a pastelaria dos chineses, na esquina da São João com o Vale do Anhangabaú. Já na calçada do Cine Dom Pedro II, era um prato cheio, literalmente falando, porque a maioria comprava no mínimo meia-dúzia de pastéis, que vinham num prato de alumínio. Na Avenida São João, quem saía do Cine Metro não deixava de dar uma entrada na Kibelândia, para comer quibe frito ou cru. Mas a casa de lanches preferida de todo o povo que ia ao centro da cidade de São Paulo era a Salada Paulista, na Avenida Ipiranga, em frente à Praça da República. Tudo ali era de primeira qualidade, desde a comida, os sanduíches, as lingüiças fritas no rolê de alumínio gerido pela eletricidade e, também, a gentileza e singeleza dos seus garçons, que anotavam na pedra de mármore do balcão a conta dos clientes. Nem mesmo a falta de cadeiras ou bancos era motivo de deixar de entrar na Salada Paulista. A colher de chá, em termos de acomodação, era o cadeirão para colocar as crianças e aliviar o colo das mães. Perguntado do por que a Salada Paulista não ter cadeiras ou bancos, e todos tinham que encostar o umbigo no balcão, o proprietário, um senhor português, disse: — Sabe, se tem cadeiras ou bancos, vem cá um gajo com sua rapariga, pede um Guaraná e um sanduíche de mortadela, e se põe a ficar por duas horas batendo papo. De pé já fica mais difícil, né? No fundo da lanchonete tinha um mural de azulejos com a efígie do dono da Salada Paulista. A concorrente da Salada Paulista era a Salada Record, na Avenida São João, metros antes do Cine Metro. Mas não tinha a mesma freqüência e nem o glamour da outra. Apesar de não ter a mesma freqüência, mesmo porque o espaço era menor, o bar para lanches mais romântico da cidade era o Ponto Chic, no 275
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Largo do Paissandu. O local era o reduto de grandes intelectuais, os estudantes das Arcadas do Largo São Francisco, que na década de 1930 reuniam-se para conversar e fazer poesias. Foi no Ponto Chic que nasceu o famoso sanduíche bauru. Quem contava a história era Abreu Sodré, Roberto Costa de Abreu Sodré, na época, estudante. Nos bate-papos, era comum comer o tal misto quente ou frio: pão, queijo e presunto. Um dia o Casemiro de Abreu, que era um estudante nascido em Bauru e chamado por todos pelo nome da cidade, mandou o garçom colocar uma folha de alface e um rodela de tomate junto ao queijo e presunto, o que chamou atenção de todos que ali estavam. Não demorou muito para que alguém gritasse: Garçom, faz um sanduíche para mim, igual ao do Bauru. Pronto, todos começaram a pedir ao garçom: me faz um bauru? E aí o nome pegou. Outra coisa interessante que tinha no centro da cidade e que muita gente apelava, principalmente pela manhã, eram as leiterias. Só na Rua Conselheiro Crispiniano tinha três. E ali não tinha mendigaria, não. Era cada copaço de leite que dava gosto. Tinham também os chás gelados, feitos em espaços minúsculos, que davam água na boca. A mais famosa casa de chá gelado era na Avenida São João, um pouco antes da Avenida Ipiranga, à direita de quem ia para a Avenida Duque de Caxias. Já nos bairros, posso dizer das cantinas do Bixiga onde rolava as maiores massas da cidade. Pelas imediações da minha casa, na Avenida Santo Amaro, tinha o famoso Chico Hambúrguer, que na década de 1960, podia se igualar ao McDonald´s. Principalmente aos domingos, na hora da saída da sessão das dez do Cine Radar. Tinha o mesmo tanto de gente em pé esperando os sentados desocuparem um lugar. Na Vila Olímpia, tinha o bar Deixa de Onda, que concentrava o rebotalho da Vila – muitos, quando não estavam na casa de Detenção, estavam lá fazendo misérias. Já em termos de restaurante e pizzaria, o Zé Carioca, na zona sul, era imbatível. Lá, na porta do banheiro, poetas de latrina escreviam suas besteiras. Até que um dia apareceu um poeta com seriedade e em meio a montoeira de bobagens, esse anônimo sério escreveu: “Mentalidades putrefatas de pensamentos sórdidos, guiam dedos nesta porta, expondo-se ao negrume de suas idéias”.
Leiteria Campo Belo Maria Alice Garrucho Varella
e comíamos os doces que escolhêssemos. Era o máximo! O ambiente era encantador. Garçons bem uniformizados e gentis, homens de terno e gravata, senhoras de chapéu. Tudo muito chic. Depois íamos ear pelas ruas do Centro. Olhávamos as vitrines das sofisticadas lojas das ruas Direita, São Bento e Barão de Itapetininga. Voltávamos para casa pela Rua Quintino Bocaiúva, apreciando os lindos pares de sapatos da Casa Fidalga e outras tantas lojas de calçados que existiam nessa rua, até chegarmos à Rua Senador Feijó, onde elas moravam. Naquele tempo os paulistanos orgulhavam-se de sua bela, limpa, moderna e organizada cidade, com seus lindos prédios bem cuidados e seu ar bem paulista. Até hoje adoro andar pelas ruas do Centro. Tenho sempre a esperança de voltar a ver minha querida cidade, orgulhosa e bela como era na minha infância.
Eu me lembro muito bem das mesinhas com tampo de mármore e da delícia do café com leite. Minha mãe ia fazer suas compras no Mappin, depois levar seu donativo para o Pão dos Pobres de Santo Antônio e, por fim, me levava para o café com leite. De volta à Xavier de Toledo, tomávamos o bonde 29 – Pinheiros, que subia a Consolação, pegava a Doutor Arnaldo e descia a Teodoro Sampaio. Descíamos na esquina da Oscar Freire, onde morávamos. Às vezes o bonde saía da Praça Ramos como “Dr. Arnaldo” e fazia o retorno em frente ao Instituto de Higiene. Então descíamos aquele trecho inicial da Teodoro Sampaio a pé. Lindas lembranças. Paulo Kirschner Junior. Nessa época ainda não existiam cafeterias, como as de hoje. As leiterias faziam esse papel, e na Rua São Bento tínhamos a Campo Belo e a Pereira, que eu me lembre. Esta ainda existe, embora comprada pelo Restaurante Guanabara. Na Campo Belo, tomei minha primeira Coca-Cola, pelos idos de 46. E achei horrível. Para ver como a gente se acostuma com tudo. Luiz Saidenberg Lembro que quando a Confeitaria Campo Belo pegou fogo, o senhor Fernando, um dos sócios, montou uma padaria bem em frente ao prédio em que eu morava, na Mooca. Invariavelmente quando ia à padaria ouvia os lamentos do simpático português pela perda trágica da confeitaria. Carlos Roberto Teixeira Trindade
Por volta de 1940, minha prima e eu estudávamos no Colégio São José, na Rua da Glória. Todo fim de mês recebíamos o boletim com nossas notas escolares. Se elas fossem boas, minha tia nos levava para tomar lanche, como prêmio, na Leiteria Campo Belo, na Rua São Bento. Tomávamos chocolate com torradas 276
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sabores e pratos
O churrasco grego Tony Belviso Eu estudava no Liceu Marechal Deodoro, na Avenida Rudge, continuação da Rio Branco, e morava no Bairro do Aeroporto de Congonhas. A ida para a escola era feita num Sinca 1964, carona de um vizinho que trabalhava na região, mas, a volta, era no bom e velho ônibus FNM, com carroceria Grassi da CMTC, linha 623, Santo Amaro via Aeroporto, que saía do Anhangabaú, em frente ao Cine Cairo. Depois de uma caminhada até o Vale, e sendo já hora do almoço, o estômago roncava e com razão. Em frente ao ponto do ônibus havia um famoso churrasco grego, super concorrido pelos populares que avam. A fome aumentava e aquele churrasco ali me chamando, minha consciência entrava em pânico: comer ou não comer? Mas toda vez que eu me inclinava a comprar um belo churrasco grego, o ônibus do ponto bem em frente – o bom e velho FNM da CMTC – dava a partida, e a fumaça preta e fedida invadia o pequeno bar e a grelha, aí a fome ava na hora! Por causa disso, nunca comi um churrasco grego na vida, mas, em compensação, o croquete da Salada Paulista, ao lado do Cine Ipiranga, era um antes e um depois do filme ...
ra de Carvalho, veremos o local onde ficava o tradicional Panamericano. Não sei há quanto tempo estava ali, mas era um estabelecimento com características singulares. Discreto, aparentemente simples, só ao entrar é que dava-se conta de sua sofisticação. Era mesmo despretencioso; comiam ali desde políticos de nome à funcionários classe média da região. O atendimento a todos era simpático e impecável, e os preços, creio, moderados. Sua ótima cozinha variava desde sua famosa carne seca com pirão, sua piéce de resistence, a lagosta, polvo e belos frutos do mar. Grande carta de vinhos, onde era ível um bom Chateau Neuf du Pape. Aquela bela região, com o charmoso Largo do Arouche e a Vieira de Carvalho era dotada de outros ótimos restaurantes; o antiqüíssimo Carlino, o exuberante Rubayat, o pitoresco La Casserole e os mais simples, mas honestos, Gato que Ri e Almanara. E o bastante modesto Arroz de Ouro, o macrobiótico da esquina. Mas o Panamericano era mais íntimo e acolhedor, era como almoçar em casa. Eles faziam questão que o cliente se sentisse à vontade. À noitinha, havia quase um happy hour, com belos bolinhos gratuitos, para acompanhar o uísque. Estive lá muitas vezes, com colegas de firma, amigos e namoradas, e de lá só trouxe boas lembranças. Um dia deixei a Vieira de Carvalho para novas paisagens e aventuras. Quando voltei lá, muito tempo depois, já não existia, sem que ninguém pudesse explicar a razão.
Na Barão de Itapetininga Maria Amélia Toledo Tenho saudades da década de 1960, quando ia ao centro da cidade com meus pais e eava pela Praça da República, dava comida aos pombos, tirava fotografia com aqueles fotógrafos antigos e suas máquinas fantásticas e depois ia ao Fasano, que ficava na Rua Barão de Itapetininga, comer empadinhas de camarão e coxinha de frango. Até hoje sinto aquele gosto maravilhoso. O ambiente, nem se fala, um prédio suntuoso, muito bem decorado, seus garçons sempre impecáveis, servindo senhoras, senhoritas e cavalheiros que, além das guloseimas, ainda tomavam um delicioso chope. Que pena que a Família Fasano não pode trazer de volta um pouco da São Paulo antiga!
Restaurante Panamericano, íntimo e acolhedor Luiz Saidenberg No canteiro circular, a réplica em bronze do Augusto da Prima Porta, cujo original foi encontrado nessa região de Roma, alça o braço, apontando para a direita. Mas, se olharmos para o lado oposto, o final da Avenida Viei-
Largo do Cuspi e Rua do Comércio Turan Bei Muitos anos palmilhei aquelas ruas e praças da antiga zona bancária do Centro Velho da capital, tais como: Boa Vista, 15 de Novembro, Álvares Penteado, Quitanda, João Brícola, Praça Antônio Prado, mas era na Rua do Comércio, aquela curta e estreita travessa que liga a Rua São Bento com a 15 de Novembro, que eu tomava um fôlego e uma pausa para um cafezinho no Café Tic-Tac, limpo, asseado, café de coador ado na hora. Para ter um lugar no balcão tinha que esperar uma vaga, era um cafezinho delicioso, você via a água ser despejada e ar pelo coador e, às vezes, direto do coador para a sua xícara. O asseio que se via nesse café era o oposto ao do Largo do Cuspi, que se formava com a junção da São Bento, Álvares Penteado e a Rua do Comércio, pois, as pessoas que ali paravam para conversar por horas intermináveis, tinham o hábito de mascar fumo e cuspir no chão. Mas não eram só as cusparadas, a gordura que escorria do churrasco grego servido na calçada também contribuía para o aspecto nada higiênico que fez época naquele espaço do Centro Velho.
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Lembro da Salsicharia Especial, que tinha, no luminoso, dois porquinhos em neon, disputando uma fieira de salsichas. Era na descida da Avenida São João, logo depois da Líbero Badaró, no sentido de quem vai ao Anhangabaú. Luiz Saidenberg
início de 1960. Se lotérica não encontrei, imagine uma leiteria. Quanta saudade daquela São Paulo romântica. Mário Lopomo
Um pedaço de pizza A turma da Leiteria Americana Roberto Motta de Sillos Em 1963, meu pai ganhou pela Federal um fusca 63 Zero Km e a sorte grande foi minha, pois completaria 18 anos em três meses. Ter carro nessa época era um privilégio de poucos e o sucesso com as garotas, em função do carro, era inevitável. Não fosse o prêmio, não teria carro tão cedo. Entre os anos de 1964 e 67, ei boa parte da minha vida freqüentando nos dias de semana, à noite, e nos finais de semana, a Leiteria Americana da Rua Xavier de Toledo, que era para nós, inveterados paqueradores, um ponto de encontro. Lembro do atendente de balcão, o Lúcio, rapaz nordestino extremamente simpático que nos servia um café muito bem tirado e morria de rir com nossas piadas. Nossa turma de amigos, todos motorizados, era grande e chegamos até a criar uma escuderia com decalque e tudo. Estacionávamos na Xavier, em frente à Leiteria, e lá ávamos horas contando nossas aventuras. A paquera consistia em um quadrilátero, circulando com o carro saindo da Leiteria, virando à esquerda na Praça Ramos, em frente ao Mappin, novamente à esquerda subindo a Conselheiro Crispiniano, esquerda novamente na 7 de Abril e finalmente, a Xavier de Toledo. Hoje isso seria impossível. Feita a conquista, o destino, invariavelmente, eram os barzinhos de Interlagos ou drive-ins como o Texa’s Ranch e, na falta de dinheiro, a bela vista da cidade lá do alto do Morumbi. Trago ótimas lembranças desse tempo, até o dia que tudo aquilo acabou, quando abordei em frente a uma vitrine do Mappin, aquela que se tornaria a mãe dos meus filhos. Por onde andará o Paolo do Karmann Ghia vermelho, o Ferrucio, do Fissore e os meus outros amigos da época?
Mauro Lima de Souza Uma das atrações de São Paulo na década de 1950 era, sem dúvida, os bares centrais e suas atrações gastronômicas. Destaco para isso os famosos pezzos de pizza, quando não as mesmas inteiras. Sempre que voltava com meu pai do centro da cidade, rumo à nossa casa na Rua Vergueiro, o pit stop da época era a Padaria Santa Tereza, cujo pedaço da muzzarella é inesquecível. Um sabor leve e delicioso fazia os pequenos estômagos repetirem por duas ou até três vezes aquela maravilha macia e saborosa, com um molho de tomates até hoje jamais visto. Além da leveza da massa. Forrávamos nosso prazer com alguns goles bem gelados de Guaraná caçula, da Antárctica. Outro ponto que destaco com vaga lembrança, mas grande sabor, é o do Restaurante Gouveia na Praça da Sé, próximo ao Edifício Mendes Caldeira, a primeira implosão de prédios em São Paulo. Que gostosura! Ainda hoje não sei dizer se este Gouveia das Pizzas e dos balcões iluminados por neon é o mesmo da Avenida Santo Amaro que se especializou em feijoada ou se é simplesmente um parente distante. E quando o dinheiro sobrava, e isso era bastante raro, íamos então com a família devorar pizzas de outros sabores no Restaurante Papai, da Praça da Sé. Deste, acho que todo mundo se lembra.
Realmente, a pizza da Santa Tereza era imbatível, mas não podemos esquecer a da São Pedro, da Mooca e a da Palmeiras da General Olímpio da Silveira. Antonio Souto Os salgadinhos da Santa Tereza eram imbatíveis, muitas madrugadas tive oportunidade de saboreá-los, principalmente quando saía do salão de bailes denominado Amarelinho que funcionava exatamente na parte de cima da confeitaria. Leonello Tesser
Lembrar do nome dessa leiteria reavivou minha memória. Cada caneca de leite que lá era servida! O chamado canecão. Depois de quarenta e tantos anos, voltei a esse pedaço da cidade, quis rememorar aqueles tempos e comprar um bilhete de loteria. Desde a Praça da Sé, até o antigo Mappin, não encontrei uma lotérica sequer para imitar o que fazia no 278
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“Quando paramos fomos brindados com o som vibrante de uma orquestra que iniciava o samba bem quente. Modéstia à parte, eramos bons pés de valsa e bem conhecidos nas domingueiras dançantes.”
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Happy Hours no Paribar Luiz Saidenberg Caminhando atrás da Praça Dom José Gaspar, topava-se com um meio bloqueio de calçada. Corpos estranhos: cadeiras, mesas, pilastras de um toldo. E mais, gente sentada ali, batendo papo e bebendo como se não estivessem em praça pública. Muitos pareciam ser velhos conhecidos, como uma família, pois iam lá quase todo santo dia. Quando trabalhei nas imediações, freqüentei pouco o Paribar. Minha turma preferia uma galeria na 7 de Abril, aquela que tem um operário em bronze no portal. Galeria Ipê, provavelmente. Eu quase não ia lá, também. Tive maior intimidade com o Paribar quando trabalhei na Rua Vieira de Carvalho. Lá, um chefe revoltado com o que supunha ser boicote por parte da firma, ou a freqüentá-lo todas as tardes, e insistia para que o pessoal se juntasse a ele. Na verdade, a empresa ia mesmo mal, e em grande parte, por culpa dele. Pouco serviço, por isso às vezes nós o acompanhávamos em seus uísques. De repente, surgiam figuras conhecidas, em grande euforia: José de Alcântara Machado, o ator Raul Cortez... O Paribar era o refúgio de todos os estressados da época, dos carentes de calor humano, o centro de todos os “Centros” da cidade. Há muitos anos estava ali, plantado no final da praça, e parecia que ficaria até o final dos tempos, imune mesmo aos pedintes, que cada vez apareciam em maior número. Foi por isso que, quando lá estive com minha esposa, então namorada, escolhemos seu cálido interior, parecido com um bistrô parisiense. Com vinho rosé e as pipocas de oferta da casa. Parecíamos estar flutuando, nossa alegria espocando como as pipocas ou bolhas de champanhe, se champanhe estivéssemos tomando. Éramos jovens e inconseqüentes e, naquele particular instante, o Paribar era uma festa. Depois o trabalho me levou para outras latitudes, com as agências de propaganda fugindo do Centro como o diabo da cruz. Perdi o contato com o Paribar e com a própria região da 7 de Abril. Quando lá voltei, tinha fechado. Era um dos símbolos da São Paulo central, em grande estilo, sofisticada, mas ível, agradável e aberta a todas as pessoas de boa vontade. Não havia mais o que fazer, o Centro havia sido removido para outras regiões, sendo substituído por uma nova e populosa camada, mas de qualidade muito inferior. O Paribar não acompanhou a mudança, e preferiu naufragar, provavelmente com seu capitão, em plena praça. Mas em grande estilo.
O Paribar foi o primeiro a pôr mesas e cadeiras na calçada, à semelhança dos bistrôs ses. Houve muita discussão na época a respeito da legitimidade da ocupação do “eio público”. Eu também estive lá muitas vezes, bebericando... e vendo as donas arem. Era o Paribar de dia e o Nick Bar à noite. Entre os habitués estava o “Zé do Pé”, um dos mais famosos boêmios da Paulicéia desvairada. Expedito Marques Pereira Bares tipo Paribar, dificilmente se encontrará hoje em São Paulo... Muitas tardes ei ali sentado às mesinhas, tomando um chopinho e vendo as horas arem...depois, às vezes, ia ao Cine Metrópole ou àquelas lojinhas que tinham umas “máquinas loucas” de jogos... Bons tempos... Se não me engano o Paribar fechou suas portas nos fins da década de 1980, eu já não estava mais em São Paulo. Flávio Rocha Eu freqüentei muito o Paribar, pois trabalhava no Centro nas décadas de 1970 a 1980, era ótimo. Conheci bons amigos ali, alguns já morreram. Depois, eu ei a ir na galeria Metrópole que era ao lado, ali perto, onde tinha um bar chamado Bárbaro, que também já acabou. Um dia ando pela Praça Dom José Gaspar, notei que acabou tudo, parece que caiu uma bomba e só ficou “curva de rio”, com um péssimo nível de freqüentadores. Alguém precisaria fazer algo para restaurar o velho e bom Centro. Viva o Paribar e todos aqueles que por lá aram. Rubens Rosa
Paulistanos, noctívagos & boêmios Turan Bei Todas as noites do ano inteiro, você os via entre 22h30 e 23 horas saindo dos seus esconderijos, sorrateiros, apressados como se estivessem atrasados. Bem vestidos, os homens tinham o brilho nos cabelos e olhos, geralmente de terno escuro, camisa branca de colarinho duro de goma, prendedor e abotoaduras de ouro polido; eram a imagem da fortuna e da boa vida, muitas das vezes acompanhados de beldades dignas de Hollywood, resplandecentes nos pós e cremes cintilavam à luz artificial da noite; ao entrar em seus carros, risos fáceis eram ouvidos, sinal que tudo ia bem, a vida lhes era uma festa. O destino? Os santuários e templos dos prazeres da noite. Jogos, espetáculos, mulheres, bebidas e aventuras. Bem, não só o rico sabe se divertir, o remediado também tem o espaço e lugares apropriados. 281
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Daquilo que eu vi na década de 1950 e 1960, a boemia corria solta aqui: Boate Bambu no caminho de Congonhas, ainda não havia a Ruben Berta. O top da época eram as aeromoças daquelas companhias internacionais com seus uniformes muito bem cortados, saias justas, os casacos com fileiras verticais de botões dourados, do lado esquerdo o símbolo da aviação, as asas abertas do pássaro, um luxo; bem maquiadas, o perfume não deixava enganar ninguém, elas ali estavam. Jorge Amado conheceu Zélia Gattai numa noitada do Bambu. Boate Oásis, na Praça Júlio de Mesquita, no subsolo do cinema do mesmo nome, lugar que a Elza Soares fez a sua entrada em Sampa. O Barbazul, na Avenida São Luís com a Ipiranga era o preferido das despedidas de solteiros, assim como o Brahma e o Paribar. La Licorne marcou os tempos de luxo no endereço da Major Sertório, mulheres fora de série gerenciavam as contas bancárias dos figurões da época. Os remediados ficavam no outro lado do Viaduto do Chá, os endereços eram: Lilás, na Praça Clóvis, e o Guarani, na Rua Silveira Martins, que ficavam lotados de marinheiros quando havia navios aportados em Santos. Na Rua da Glória havia o Sete de Setembro, um dancing freqüentado por negros, mas os brancos eram itidos. Já o Som de Cristal, na Rua Rego Freitas, era o máximo, uma multidão se formava à sua saída, para ver as brigas e os embriagados. Quem não sabia dançar e queria aprender era no Taxi Dancing Avenida, na Ipiranga. Lá os tickets eram vendidos e as dançarinas os recolhiam dos aprendizes que podiam livremente escolher a parceira, e era proibido recusas. Fast food ainda não existia, mas, no Largo do Paissandu, o Ponto Chic era o campeão da rapidez. A bola da vez era o bife a cavalo, e o Moraes não deixou para ninguém. Música ao vivo na Baiúca foi a pedida mais pedida, lá desfilaram os reis da noite; na vez da Elis Regina, a lotação era um problema de segurança. E tinha muito mais.
O importante é que a nossa emoção sobreviva
Noite e o Vou Vivendo. Os dois não existem mais. Certamente muitos outros foram criados em Sampa para manter a emoção, como os da Vila Madalena, Pompéia e outros bairros, mas não há como deixar de sentir saudades do Boca, onde vi Paulo César Pinheiro, cantando, contando e declamando – fui dois dias seguidos ao show e ainda comprei o livro de poesias dele. Lá também conheci a cantora Maria Martha, esposa do dono do Bar, cujo nome agora não me lembro. Divina. Ficou conhecida pela gravação da música Flor Amorosa que tocou na novela global Nina, mas a cantora sempre preferiu cantar nos bares de Sampa, nos Sescs, escolhendo com amor seu repertório, sem chegar ao grande estrelato. No Vou Vivendo, que um amigo meu chamava, por engano, de Vou Levando vi shows alternativos excelentes e tive a honra de ver e ouvir o grande João Nogueira, além de outros nomes. Shows excelentes sempre existiram e existem, embora meio-caros na maioria, mas nos bares eles vinham acompanhados da cumplicidade e da proximidade com o artista, naquele clima de meia-luz e a vibração das pessoas percorrendo as pequenas mesas abarrotadas de emoção. Que viva sempre a noite, a boemia, apesar das dificuldades da cidade grande nos dias de hoje, mas, também, depende de nós deixar que sobreviva a emoção e a música que é a nossa grande aliada nesta empreitada.
Tudo isso é uma verdade que deixa muita saudade. A ditadura tem esse lado “bom”, a cultura abunda. Quanto mais opressão sentiu, mais aflora os sentimentos do ser humano. Percebeu que foi nesse duro período que Chico mais desenvolveu o seu lado poético? Quando a ditadura acabou parece que Chico também. Caetano, também, não foi mais aquele de “É Proibido Proibir”. Vandré foi muito ousado e, em plena efervescência da ditadura, escreveu “Para não dizer que não falei de flores”. E com todas as letras jogou tudo na cara dos militares. Naquele tempo a mordaça era desrespeitada. Mário Lopomo
Vera Lúcia de Angelis Esta frase está na música Mordaça, de Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro. Também deu nome a um disco e show dos dois com a cantora Márcia. A música foi feita em 1974, na época da ditadura, quando a emoção surgia da luta e da revolta. Mas essa frase pode servir para qualquer tempo e para qualquer pessoa na busca de sua emoção e de intensidade para a sua vida. A emoção sobrevivia e transbordava na gente em alguns shows que pudemos presenciar em bares memoráveis de São Paulo, como: Boca da
Ah! Que saudades eu tenho... Miriam Panighel Carvalho Naquela época, as noites paulistanas eram tranqüilas e não havia os perigos que hoje existem em cada canto, a cada esquina em que amos. Medo era só de baratas e ratos... Coisa de mulher. Nada desse medo de morrer pela violência que grassa atualmente na cidade. Naquela época havia romantismo, respeito, amor próprio... Cavalheirismo era a tô-
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nica principal do homem. E a mulher só usava calças compridas em casos excepcionais! Naquela época, “marginal” era apenas o nome de uma avenida ainda em construção; carro, era chamado de “carango”; fusca, com motor envenenado, tala larga e escape aberto era o carro “da hora”! Tinha também o Karmann Ghia, com o formato de um besouro. E para quem ouvia ao meio-dia em ponto a Rádio Bandeirantes, “a moça do Karmann Ghia vermelho” que nunca apareceu, mas que sempre era lembrada pelo saudoso Hélio Ribeiro, o locutor com a voz mais bonita do rádio... Naqueles tempos, nós então jovens, freqüentávamos as casas de samba mais conhecidas do momento. Quem não se lembra do agitado Teleco Teco, do esfumaçado Balacobaco, da Catedral do Samba, todos na famosa Rua Santo Antônio? Quantos sambistas saíram de lá direto para a fama? Benito de Paula, Adauto Santos, Oswaldinho da Cuíca... O Jogral foi a primeira a que fui. Claro, acompanharam-me meus pais... para saberem exatamente como era o possível “antro” que os amigos de sua filha mais nova ameaçavam levá-la... Foi quando vi encostado a uma mesa de canto, um homem pequeno e franzino, tomando umas e outras, já “pra lá de Bagdá”... Tinha a expressão mais triste e solitária que jamais havia visto até então! Chico Anísio dava os primeiros os para se tornar um dos humoristas mais conhecidos do Brasil... Na Oscar Freire com a Rua Augusta, delirei ao ver – e apertar a mão!! – do ator Hélio Souto, famoso galã de antanho, dono do também famoso Dobrão, boate das mais bem freqüentadas da época. E quanta saudade tenho das sessões de cinema do elegantérrimo Cine Astor, no Conjunto Nacional, onde também funcionava, no terraço da cobertura, o badalado restaurante Fasano que a partir das 17 horas servia o gostoso e sofisticado chá da tarde! E por falar em chá... parada obrigatória para quem descia a Rua Augusta “a cento e vinte por hora”, era a Yara, onde o chá completo já valia por um jantar! Ou, nas tardes mais quentes, o “lanchinho” do Frevo com direito a um imenso Banana Split salpicado de farinha doce crocante. Antes de “cair na noite” para ouvir os chorinhos e sambões da Rua Santo Antônio, uma chegadinha ao Deck Bar, na Avenida 9 de Julho... Como era gostoso! Final de noite – após “badalar” nas boates mais conhecidas de Sampa, como a Paspatour, a Moustache, O Beco, Cave, onde moça de família só ia para conhecer, Stardust, Ta Matete, Shalako, Charade, Summertime, Djalm, Ton Ton Macoute, Candel Light, Semba, Mirage – era praxe tomar a famosa sopa de cebola do CEASA, bem na madrugada, então tranqüila, da saudosa São Paulo dos gostosos e inesquecíveis Anos Dourados...
Eu e toda a turma “amávamos” Hélio Ribeiro: que vozeirão! Adolescentes ainda, estávamos na praia de Itararé quando soubemos que Hélio Ribeiro lá estava. Ficamos enlouquecidas e fomos até ele! Que decepção!
O homem era bem pequenino, feio de doer, tinha uma corrente supergrossa, comprida e estranha no pescoço! Enfim, para nós adolescentes tinha sido a primeira grande decepção! Márcia Ovando
Um portão misterioso na Praça da República Antonio Maschio Lá pelo final da década de 1950, nas imediações da Praça da República, ainda havia dois casarões típicos das tradicionais famílias paulistanas, separados apenas por um alto portão e um corredor. Coisa misteriosa: a que lugar ou construção levava aquele portão? O que separava aqueles dois casarões? Ouvi as mais diferentes hipóteses, até a que uma das famílias lá escondia uma parenta louca. Finalmente descobri a verdade, que conferi: por trás do portão, ao final do corredor, atrás de uma goiabeira, escondia-se o primeiro bar gay de São Paulo: o Diana Caçadora. Nenhum mistério, nenhuma parenta louca, apenas o refúgio de um grupo que hoje não precisaria mais se esconder, mas que, certamente, adoraria a sombra da goiabeira bem no centro da cidade.
Bar e bilhar Mário Lopomo Na década de 1950, quase todo bar tinha uma mesa de bilhar. Não eram essas mesinhas ridículas que existem hoje em qualquer boteco de periferia, com bolas de duas cores apenas e uma branca para matá-las. Refirome à mesa de bilhar oficial, com todas as bolas, da vermelha (1) até a preta (7) e a bola branca, pião de jogo. Já no início dos anos de 1960, eu e o Antonio Ignácio, que todo mundo imaginava ser meu irmão, íamos a todos os bares por onde tinha uma mesa de bilhar. Como morávamos na Vila Olímpia, jogávamos sempre no bar do Valdemar, Rua Casa do Ator esquina da Rua Ribeirão Claro. O nosso Pacaembu do bilhar. Mas queríamos coisa nova, então, começamos a circular pelo centro da cidade à procura de mesas. O bilhar em cima do Cine Cairo e no subsolo do prédio Martinelli ou a ser a arela das bolas encaçapadas. Havia um clima de muita rivalidade. Ora era um que estava no ciclo de vitórias, ora era o outro. Quando voltávamos para casa o perdedor sempre estava com a cara emburrada. Mas não havia brigas. Havia, sim, muito respeito 283
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pela vitória do adversário e colega de jogo. Um dia o Birolho, que só jogava a dinheiro, nos perguntou se tínhamos jogado num bilhar da Avenida Ipiranga. Com a dica dele, já no dia seguinte, às 20 horas, estávamos lá à espera de uma mesa. Era nada mais nada menos que o bilhar Maravilhoso, a poucos metros da Avenida São João. Foi ali que conhecemos Carne Frita, o maior jogador de bilhar do Brasil. Quem ouviu falar em Rui Chapéu, saiba que era fichinha perto do grande Carne Frita. Certa ocasião eu e o Antonio tínhamos um apontamento com duas “minas” na Vila Mariana. A mais bonita era sempre dele. Chegamos lá na Domingos de Morais uma hora antes do encontro com as peças. Tinha um boteco daqueles bem sujos, mas com uma coisa boa: a mesa de bilhar. — Tonhão, vamos matar o tempo enquanto não vêm as frangas? — Lógico que sim! Bolas na mesa e o desafio estava novamente em cima do feltro verde, da pedra mármore. Bola cai, bola fica, quando demos pela conta eram 22h30. As franguinhas já estavam no ninho há muito tempo. Ainda bem que a minha era de se jogar fora!
O lar dos velhinhos
— Esta transmissão é um oferecimento da Funerária Pantojo, se sua sogra é uma jóia, nós temos o estojo! Um belo dia, o Sangirardi criou o seguinte: — Serviço de utilidade pública: O lar dos velhinhos está necessitado de doações, faça a sua parte, mande a sua contribuição para o Lar Licorne. Lar Licorne onde os velhinhos são recebidos com muito amor, Lar Licorne o verdadeiro lar dos velhinhos.
Lembro bem do La Licorne, sempre que ava em frente sentia um misto de curiosidade e receio de ser pega olhando, afinal, era um mistério pra mim, que era garota. Doris Day O La Licorne era o reduto das melhores partines do Amor. Era uma referência. Altas autoridades nacionais e internacionais eram levadas para lá. Gente com o crachá de respeito ia em carros de luxo oficiais ou particulares. Quem freqüentava muito aquele recinto era um opressor do Dói-Codi. Uma mesa ficava à sua disposição. Um litro de uísque 12 anos também. Quando saía, o vasilhame estava vazio. Mário Lopomo
Antonio Souto Na década de 1970 havia uma casa noturna, eufemismo para rendezvous, que era o sonho dos “machos” paulistanos, inclusive o meu. A boate ficava ali na Major Sertório já ando a Rua Doutor Vila Nova, seu ambiente era refinadíssimo, suas instalações, embora um pouco brega, luxuosíssimas, mas, o forte da casa eram as garotas: lindas. Os donos da casa, Laura e Ercílio, buscavam meninas lindas do interior ou de outros Estados, davam um “banho de loja”, tratavam dos dentes com o doutor Francisco, na Rua Marquês de Itu, levavam ao médico, davam certo traquejo social e elas partiam para a mais antiga das profissões. Consta, inclusive, que algumas casaram com ricaços e tornaram-se respeitadas damas da sociedade. Essa casa era o La Licorne, ou Lalico para os íntimos. Só havia um porém: para entrar lá era preciso ter grande respaldo financeiro e tal fato fazia com que a casa fosse freqüentada por milionários e políticos idosos. Em São Paulo, o grande Estevam Sangirardi tinha um programa humorístico-futebolista chamado O show de rádio. O Sanja criou vários tipos, inclusive recrutando grandes imitadores como: Serginho Leite e Beto Hora. Com isso ele inventava emissoras fictícias, como a Difusora de Cotia que só transmitia em japonês, a Difusora de Camanducaia, onde todos os anunciantes eram da Praça da Matriz, quem se lembra?
Eram casas caríssimas e eu, amante da noite que não podia freqüentálas, me contentava, porém, em fazer ponto na porta e bater papo com o porteiro, aliás fui amigo de quase todos os porteiros dos inferninhos da ”Boca do Luxo” e da “Boca do Lixo” também. Miguel Chammas Trabalhei vários anos na Rua General Jardim e as janelas de minha sala davam para o Licorne. No lado de cá da calçada, em frente, ficava outra boate menor, o Big Ben. E mais acima o famoso João Sebastião Bar, que não cheguei a conhecer. Luiz Saidenberg
Bailes de rostos colados Miguel Chammas Os ritmos que imperavam nos bailes da época eram: fox, foxtrote, swing, bolero, mambo, samba-canção, samba, baião, choros e, no momento mais importante, a valsa. As músicas eram tocadas em seleções de 4x3, ou seja, quatro com a orquestra completa e três com um conjunto que era intercalado
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com cada seleção, composto pelos mesmos membros da orquestra, e assim permitia-se que os demais elementos tomassem fôlego para a nova música. As seleções musicais eram preparadas pelo maestro de forma a terem seu início com ritmos mais lentos e terminarem mais aceleradas. Assim, a seleção de fox ava para o foxtrote e terminava com swing, e mais tarde até com um rock; as seleções de bolero avam para mambos e depois, inclusive, com chá-chá-chás; as seleções de samba-canção avam para choros e depois para sambas rasgados. Os rapazes, com receio de “tábuas”, faziam convites para as damas de alguma distância, geralmente balançando a cabeça num gesto de assentimento. Se ela demonstrava aceitar seu convite ele se dirigia até a mesa, aguardava ela se achegar e saíam a bailar. Era comum, se houvesse interesse do casal, dançar de rostos colados. Esse gesto dava ao casal um ar mais envolvente e carinhoso. A colação de rostos podia ser feita de duas formas. Na primeira, os rostos se colavam lado a lado, ou seja, o lado direito do rosto do cavalheiro colava no lado esquerdo do rosto da dama; na segunda, os rostos se colavam do mesmo lado da face, fazendo com que o casal olhasse para o mesmo lado enquanto dançava. A posição dos braços era também muito importante, o cavalheiro abraçava a dama com o braço direito na altura de sua cintura enquanto que sua mão esquerda segurava a mão direita da dama, mantendo o seu braço e o dela em posição dobrada na altura do ombro. Devemos ressaltar que a posição da mão esquerda do cavalheiro e da mão direita da dama, conforme o grau de envolvimento do casal e do ritmo que estava sendo dançado, poderia variar com os braços estirados para trás ou então com ambos os braços dele enlaçando a cintura da dama e ambos os braços dela enlaçando o cavalheiro na altura da sua nuca, onde na posição normal apenas o braço direito dela estaria repousado. Lógico que, ao cavalheiro, de acordo com a situação, cabia o ato de com o braço direito ou com ambos os braços rodeando a cintura da dama, promover maior ou menor arrocho. A dama, por sua vez, também dependendo do grau de interesse e envolvimento, com sua mão direita acariciava a nuca do parceiro aumentando a sensualidade da dança. Os principais salões de São Paulo: Club Homs: ainda hoje instalado na mais paulista das avenidas, próximo à Avenida Brigadeiro Luís Antônio. Clube Pinheiros: localizado até hoje na Avenida Faria Lima. Clube Paulistano: situado até agora na Rua Colômbia (continuação da Rua Augusta). Clube Transatlântico: ficava na Rua 13 de Maio, um pouco depois da Avenida Brigadeiro Luís Antônio. Clube Alepo: também situado na mais paulista das avenidas. Maison Suisse: instalado na Rua Caio Prado, entre as ruas Augusta e Olinda.
Palácio Mauá: Viaduto Maria Paula. ACF São Paulo: Rua Augusta, 33. Clube Badaró: Rua 24 de Maio. Centro Social Brasileiro: Avenida Ipiranga, em cima do Expresso Brasileiro, local onde depois foi se instalar o Restaurante Fuentes.
Mais ou menos nessa época evocada ou mesmo um pouco antes, os bailes de formatura, quando era grande o número de formandos, eram realizados no Ginásio do Pacaembu, como os do OR, das Arcadas, do Tiro de Guerra e os de encerramento da MAC-MED, PAULI-POLI que eram disputas esportivas estudantis. Lembro ainda dos bailes de carnaval do Clube Royal, realizados na Barra Funda. Onde também existiam bailes populares era no “Estadão”, um salão que diziam ser um dos preferidos das domésticas, assim como “Elite 28”, da Rua Florêncio de Abreu, cuja lembrança chega até os dias de hoje em razão de um princípio de incêndio que gerou pânico total, causando a morte de dezenas de pessoas, esmagadas na única e estreita escada de saída. Expedito Marques Pereira Ouvi lá no fundo das minhas recordações o som envolvente das músicas tocadas naquela época. E incluo na sua lista de salões o da Casa de Portugal, na então Rua da Liberdade. Heitor Felippe Descrição fiel dos Anos Dourados, era assim mesmo. Gostaria de acrescentar à sua lista o Centro do Professorado Paulista, na atual Avenida Liberdade, que tinha ótimos bailes e o Arakan, que promovia bailes de carnaval nos salões do Aeroporto de Congonhas. Mulherada de monte. Gilberto Ramos
A Era Disco José Luiz Batista da Fonseca Puxa vida! A Era Disco foi demais! Foi tão assim que até hoje algumas discotecas ou danceterias continuam tocando o gênero. E a moçada continua curtindo. Aliás, mudam-se os nomes, mas a base é a mesma. O que já se chamou de salão de dança hoje é lounge. Bonito, né! E dá pra cobrar bem mais caro pela entrada. Mas a coisa na verdade não é igual. Acho que nunca teve algo parecido com a Era Disco. Eram os anos de repressão, os anos de chumbo. Nada podia em termos de manifestação cultural com conotação 285
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política. E toda manifestação cultural tinha conotação política. Então, baixavam o porrete na moçada. A censura era rígida e estúpida. Às vezes, algumas coisas muito sutis e inteligentes avam despercebidas. Isso exigia muito jogo de cintura dos artistas. Nos colocaram uma mordaça, nos sujeitaram a uma condição de acefalia total. Então, pra nós, que dançávamos com a ditadura militar, só restava cair na dança. E Sampa acabou tendo várias casas de dança Disco como as discotecas: Papagaio’s, Hypopótamos, Banana’s Power, Ta Matete, Up and Down, o Círculo Militar e a sua domingueira. Na ZL (zona leste) tinha a Toco, famosa na região. Muita luz negra, globo espelhado, muita fumaça de gelo seco, spot e, principalmente, caixa de som com muita potência. Som alto, naquela batida cadenciada, no ritmo do coração acelerado, bem característico. Precisávamos acelerar nosso ritmo. Não tínhamos mais tempo a perder. Precisávamos viver nos embalos de sábado à noite, e nos domingos também. O cigarro era de tabaco, e só de tabaco. A adrenalina era natural. Não tinha Red Bull nem outros balls. Não rolava essa droga de droga toda. E a gente curtia muito mais, sem risco de uma parada cardíaca. Overdose? Nada que na veia não resolvesse uma boa glicose, socorrendo quem tivesse se excedido na Cuba Libre. Lembra do John Travolta? E dá pra esquecer? Era um dançarino que virou ator-dançarino. Só dançava, não interpretava. Ou interpretava dançando. E a Olívia Newton-John, a namoradinha que a gente queria. Que dupla! Uma versão disco do Fred Astaire e da Ginger Rogers. Aquele filme dele Nos embalos de sábado à noite foi o grande lançamento mundial da Era Disco. Foi a síntese do movimento. Depois veio Grease, nos tempos da brilhantina, daí foi a consagração total da Era Disco. E nessa febre toda, a Globo não perdeu a viagem. Como sempre, faturou algum em cima. Algum não, muito. Tratou logo de aproveitar o sucesso emergente da Sonia Braga, que deixava de ser a Gabriela Cravo e Canela, do Amado, pra virar uma dançarina amada da Era Disco, naquela novela Dancing Days. Êta nome porreta!. Dias dançantes! E o sucesso foi tanto, que surgiram as maiores promoters das discotecas brasileiras: As Frenéticas (by Nelson Motta)... “Abra suas asas, solte suas feras, caia na gandaia, entre nessa festa...” Era o hino da Era Disco Brasil! Mas eu queria mesmo era ser John Travolta. Cabelo empastado com muito gel, como o dele. Eu queria dançar como ele. E o que ele dançava! Queria me vestir como ele. Calça cintura alta, boca larga, bem larga, que acompanhasse os movimentos sincopados da dança. A camisa de manga comprida tinha que ser brilhante, de preferência de cetim preto, com os três botões de cima abertos, mostrando algum medalhão metálico no peito. Lembro que mandei fazer, pois não existia pronta, uma calça boca larga. E lógico, só pra usar em baile, nas Discos. Era roxa ou lilás, há controvérsias. Algum tom intermediário. Dava um efeito todo especial na luz negra. Parecia uma vestimenta interplanetária. Só dava a calça na pista. Acho que de tanto ir aos
bailes com ela, a calça já dançava sozinha. Devia até já saber a coreografia e a seqüência das músicas da pista de cada danceteria. Sair de casa para os bailes, à noite, tudo bem. Estava escuro mesmo e quase ninguém via. O problema era voltar de ônibus, com o dia raiando ou já de manhã, no domingo. Acabava cruzando com as vizinhas carolas, amigas da minha mãe, que quase me excomungavam ao me ver com uma calça daquela cor e bem agarrada na cintura. Elas indo pra igreja, eu voltando das catedrais da dança, indo pra casa dormir. Acho que se benziam quando me viam. Na cabeça delas eu devia ser a incorporação do Demo. Eu que me achava o Demo das discotecas! Salve Gloria Gaynor, Donna Summer, KC & Sunshine Band, Bee Gees, Village People (YMCA e Macho Man), Gibson Brothers, Blondie, Kool & Gang, The Buggies, Chic, ABBA, Sylvester, The Emotions, Celi Bee & The Buzzy Bunch, George McCrae, Hot Chocolate, Debbie Jaccobs, Weather Girls (It’s rainning man), The Destinations, Claudia Barry, Voyage, Lady Zu (A noite vai chegar), As Frenéticas e Big Fraze (meu cunhado, grande músico da Era Disco nas Domingueiras do Círculo).
Gardel no Brás Pedro Nastri Numa pequena rua do Brás, espremida entre a Avenida Rangel Pestana e a linha do metrô, cerca de cinqüenta pessoas reuniam-se todas as sextasfeiras à noite para ouvir os maiores clássicos do tango. Eram os cultuadores da memória de Carlos Gardel, o francês de Toulouse que melhor aprendeu a alma argentina, com todas as suas nuances. Na casa de nº 120 da Rua Melo Barreto – onde o culto a Gardel obedecia quase um ritual – a data da morte do artista não ava despercebida. Aos poucos, as pessoas chegavam e se acomodavam. Um clima de discreta excitação dominava corações e mentes à medida que os cantores – como Carlos Lombardi – iam se revezando na interpretação de sucessos como Corrientes 348: “Y todo a media luz, que es un brujo el amor,... a media luz los besos, a media luz de amor. Y todo a media luz, crepúsculo interior, que suave tercio pelo la media luz de amor”. Este endereço da Avenida Corrientes foi imortalizado pelo tango A media luz, cuja letra narra os encontros amorosos entre jovens de classe alta e as mulheres da noite, La Cumparsita, Caminito, entre outros. A emoção desenhava-se nas faces. Havia um quê de derramamento, característico da alma portenha. Com ar de enlevo, o público acompanhava as músicas, para a satisfação de Antonio Gomes, idealizador da Casa de Gardel no Brás, a única no gênero em São Paulo. Infelizmente, neste 24 de junho, dia de São João, Antonio Gomes não mais poderá recepcionar os cultuadores de Gardel. A casa não mais existe
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e Antonio está a “tanguear” embalado pela voz angelical daquele que foi o maior cantor de tangos de todos os tempos. “Adiós muchachos, compañeros de mi vida... Y al darle, mis amigos, el adiós postrero, les doy con toda mi alma, mi bendición.” “Desde que se fue/nunca más volvió /Seguiré sus pasos... / Caminito, adiós.”
Nasci no Brás em 1940, precisamente na Rua João Boemer, e desde pequeno ouvia meu pai cantalorando tangos de Carlos Gardel. Waldir Bigo Lembrei da minha infância na década de 1940; meu falecido tio Luiz Gasparetto chegava do trabalho por volta das 16h30 e ligava o rádio na Bandeirantes para ouvir um programa de tangos denominado Réfá-si. Desde então ei a gostar da música portenha, lembro-me de alguns tangos como: Tomo y obligo, Chorra, A media luz, Mi noche triste, Tiempos viejos e tantos outros. O que mais me toca o coração até hoje é o tango de nome Volver, que retrata fielmente a vida de alguém que volta ao seu bairro antigo e relembra os velhos tempos com suas alegrias e tristezas. É uma pena que eu não cheguei a conhecer a Casa do tango. Leonello Tesser
Bailes inesquecíveis regados a Cuba Libre Carlos Roberto Teixeira Trindade Quem não dançou Blue Moon na Maison Suisse, Contigo en La Distância no Palácio Mauá, Moonlight Serenade na Casa de Portugal, La Mer no Clube Holms ou Meu último desejo e as marchinhas juninas no Hispano-Brasileiro na Mooca, e ao som das grandes orquestras da época: Sílvio Mazzuca, Orlando Ferri, Zézinho, Henrique Simonetti, André Penazzi e tantas outras. Para mim foram realmente bailes inesquecíveis e para muitos, creio. Dançava-se coladinho e se houvesse alguma excitação, não se falava uma palavra, era uma cumplicidade erótica velada. Dançava duas ou três vezes com a mesma garota em um baile, e no final, saía sem ao menos saber seu nome. Muitos rapazes da minha época eram tímidos, inclusive eu. Quando chegávamos a um determinado baile, já íamos ao bar à procura da “droga” mais usada para perder a timidez: a grande bebida “sua majestade” o Cuba Libre. Assim, com dois ou três cubas, dava para encarar com maior naturalidade as tábuas e não ficar com cara de tonto no meio do salão. A volta é que era triste, fosse onde fosse o baile, o caminho era sempre o mesmo,
vir a pé até a Praça Clóvis Bevilácqua, tomar o ônibus 28, Vila Bertioga e saltar na Mooca. A marcha mais longa era do Club Holms, pois tínhamos que descer a Brigadeiro todinha e de madrugada, mas era legal, não havia perigo algum e a conversa pelo caminho era toda sobre o baile recém-findo: tábuas, conquistas, quantas pisadas no pé... ava no Gouveia, no térreo do implodido Edifício Mendes Caldeira, comia uma pizza brotinho, tomava uma vitamina, pronto, estava completa a festa.
Essa história até parece a minha, o mesmo trajeto e quase sempre os mesmos locais. Sou natural da Mooca, mais precisamente do Belenzinho, sobrinho de um jogador de futebol famoso do bairro e freqüentador boêmio das noites paulistanas. As lembranças fortes e tão vivas de nossos bondes, o balão do bonde na Rua Bresser, no Largo São José e em frente à Santista, na Quarta Parada. O Vila Bertioga 28, ou o Oratório 27, e mesmo o Parque da Mooca 26 eram os veículos que nos traziam dos bailes e das festas. Não posso esquecer da brilhantina, Glostora; lembro que dava um ar especial ao colarinho branco que na época era sinal de honestidade, esperança e cavalheirismo. A orquestra do Sílvio Mazzuca marcava como ponto máximo, o item mais importante dos bailes de formatura. Ainda consigo, ao fechar os olhos, ver e escutar os lustres de mil tons dos suntuosos salões tremerem ao som da orquestra; metros abaixo casais elegantes dançavam com seus colarinhos brancos e vestidos esvoaçantes, a inesquecível Blue Moon, e tantas outras. Lembrei de minha formatura nos anos de 1970 na Avenida Paulista que foi animada ao som da orquestra do Sílvio Mazzuca. Luiz Carbone Outras boas orquestras que animavam os bailes paulistanos eram as de Walter Guilherme, do Totó, de Severino Araújo, de Raul de Barros, de Tobias Troisi e outros tantos que aqui excursionavam vez por outra como Nelson de Tupã, Casino de Sevilha, Astor Piazzolla e até mesmo Xavier Cugat. A rumba que fazia todo mundo ir para o salão era El Manisero, muito antes das congas e mambos. O bar do Gouveia, na Rua Santa Tereza, defronte ao Edifício Mendes Caldeira (célebre por ter sido alvo da primeira implosão em São Paulo) tinha um mexidinho de ovos com presunto que era uma delícia, principalmente se fosse acompanhado de um chope na “Maracanã”, a maior taça da cidade... A gente voltava para casa de “pé redondo”. Expedito Marques Pereira
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Lembrei do Cine Odeon, Sala Azul e Sala Vermelha, onde havia sempre bailes de carnaval. Parece que ficava na Rua da Consolação. Mas foi lá que eu vi e ouvi, pela primeira vez num baile, a orquestra do Peruzzi tocando o sensacional Mambo Jambo. Foi uma grande novidade. Havia também os bailes no Tênis Clube e num outro salão da Rua Dom José de Barros, cujo nome não lembro. Vicente Portaro Que delícia lembrar dos bailes de antigamente. Freqüentava o Clube Pinheiros, Aeroporto, Casa de Portugal e Círculo Militar, todos com orquestra ao vivo. Uma que estou lembrando agora é Três do Rio, mas havia outras. Apesar de não beber, lembro muito bem da Cuba Libre e de como dançávamos seguidamente as seleções de músicas. Me fez lembrar como a gente paquerava naquela época. Margarida Pedroso Peramezz
A madrinha do Som de Cristal Miguel Chammas Animei a escrever sobre minha estréia na noite dançante de Sampa. Estávamos no final da década de 1950, a grande curtição dos jovens eram os bailes de formatura ou de pró-formatura, que aconteciam nas tardes de domingo. Eu fazia parte de uma turma de seis amigos inseparáveis intitulada “Duques de Piu-Piu” (esvaziadores de barril...). Saíamos sempre juntos a não ser que uma namorada viesse atrapalhar nossos planos grupais. Nesse sábado, por exemplo, eu e o Antonio Settani estávamos desacompanhados de amigos e namoradas. Então, resolvemos fazer um programa diferente, ir ao Cine República, na sessão da meia-noite. O Toninho morava na Rua Santo Antônio e eu na Rua Augusta 291, o trajeto, lógico, seria ele sair de sua casa, subir o escadão da Avenida 9 de Julho e ar na minha casa e, de lá, irmos a pé até a Praça da República. Feito o combinado, saímos de casa por volta de 11 horas, com tempo mais do que suficiente para chegarmos ao cinema, descemos a Rua Augusta até a Praça Roosevelt, que ainda não estava tão mal remodelada como hoje, saímos em frente à Igreja de Nossa Senhora da Consolação, entramos na Rua Rego Freitas e, logo no seu início, verificamos um aglomerado de pessoas na calçada do lado esquerdo de quem vai sentido Largo do Arouche. Sem saber o que era, avançamos e quando paramos quase junto ao grupo, fomos brindados com o som vibrante de uma orquestra que iniciava um samba bem quente. Modéstia à parte, éramos bons pés-de-valsa e bem conhecidos nas domingueiras dançantes.
À noite, só dançávamos em bailes familiares ou de formatura. Nas primeiras notas da melodia, nos olhamos significativamente e resolvemos mudar nossos planos noturnos. Tudo isso sem trocarmos uma só palavra. Chegamos à portaria daquele salão desconhecido e ficamos sabendo, neste momento, que estávamos à porta do Som de Cristal, a gafieira número 1 de São Paulo. Nos dirigimos ao porteiro, todo imponente no seu terno escuro, depois ficamos sabendo que era o Foca, e perguntamos como poderíamos fazer para entrar no baile. Ele, do alto de sua magnânima posição, nos olhou e disse: — Infelizmente, vocês não poderão entrar, pois estão sem gravata. Em seguida, percebendo nossa frustração, abaixou um pouco mais a voz e, quase num sussurro, disse: — Bem, comprem os ingressos com o bilheteiro e peçam para que ele alugue, também, as gravatas para vocês. A decepção desapareceu e um sorriso brotou no canto de nossos lábios. Compramos os ingressos, alugamos as melhores gravatas entre as que nos foram apresentadas e, pronto, estávamos aptos para ingressar naquele palácio de damas, até então totalmente desconhecido por nós. Entregamos os ingressos para o Foca e, com os ouvidos na música que era executada pela orquestra. (depois soubemos que se tratava de Salgado & sua Orquestra), iniciamos a subida da suntuosa escadaria da entrada. Assim que chegamos ao topo, nos deparamos com um salão amplo e quase lotado por pares que rodopiavam ao som das músicas. Aqui é necessário fazer um intervalo na narração para contar, para quem nunca esteve dentro desse santuário de danças, como eram suas dependências: para quem terminasse de galgar as escadarias, à sua frente e às suas costas, mostravam-se as fileiras de mesas de madeira que circundavam a pista de danças; à frente ficava o palco onde a orquestra estava armada. Do lado direito, uma única fileira de mesas e, depois, junto à parede, uma longa fila de cadeiras de madeira (mais ou menos umas cinqüenta) ocupadas pelas damas desacompanhadas e que, pelo aspecto, quase nunca conseguiam companhia. E, pior, ficavam sentadas em duas camadas: uma sentada no colo da outra. Feita essa explicação, voltemos à narrativa. Logo que entramos, fomos atendidos por um garçom que nos ofereceu uma mesa de pista. Ele era conhecido por Baiano e nos serviu durante todos os anos em que fomos habitués desse salão. Aceitamos a oferta, sentamo-nos às cadeiras e, imediatamente, o Toninho, sempre sortudo com o sexo oposto, se enroscou com a Neide, que foi também seu par constante por muitos anos. Nessa hora vivi um grande transtorno, porque eu não conseguia dançar com ninguém. Mais desesperado fiquei depois que a Neide me avisou que se eu não conseguisse sair dançando poderia esquecer o endereço, pois estaria marcado na lista negra e nunca mais dançaria com alguém do salão. Então, não tive dúvidas, criei coragem e decidi convidar uma daquelas damas desacompanhadas para
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dançar. Qual não foi minha surpresa quando recebi “tábua”, de todas as ilustríssimas damas. Fiz a peregrinação por duas vezes, ida e volta, ou seja, umas duzentas tábuas. Ainda mais desesperado voltei para a mesa e numa última e esperançosa tentativa disse: — Já que os bagulhos não quiseram dançar comigo, vou dançar com uma das melhores bailarinas do salão. E apontei para uma linda e esfuziante negra que eu vira dançando maravilhosamente bem. A Neide me desaconselhou dizendo que ela era muito exigente e só dançava com quem conhecia. Não quis ouvir mais nada, assim que a seleção de músicas terminou, botei os olhos nela e comecei a cercá-la. Ela, muito desinibida, brincando com todos, foi se aproximando do guarda-civil que estava de plantão na beira das escadarias de entrada. Eu fui me acercando, sem perder de vista a movimentação dos músicos, porque sabia que a próxima seleção seria de sambas e assim que a orquestra deu o primeiro acorde, me dirigi ao guardacivil e falei enquanto ia segurando o pulso dela: — Seu guarda, me dá licença? Ele, sem nada desconfiar disse: — Pois não... E eu, sem perder tempo, olhei para ela e disse: — Você viu, o guarda deixou... E sem mais delonga saí dançando com ela e fazendo questão de mostrar que eu sabia trançar os pés e fazer figurações dançantes. Ela, mesmo surpresa, me acompanhou nos os e dançamos uma excelente seleção de sambas. Juro, ela foi minha madrinha no Som de Cristal e por toda a minha trajetória naquele salão nunca soube o seu nome, sempre a tratei de madrinha. Por sua causa fui um dos bailarinos dos mais exigentes e me dava ao luxo de só dançar com damas escolhidas a dedo e que viessem me pedir uma contradança. Ah! que saudades dessa noite de estréia...
Avenida Danças Mário Lopomo Um dia de 1966, um amigo me convidou para ir ao Chuá Danças, era por ali no final da Avenida Ipiranga. Depois de umas idas, um amigo me disse que o Avenida Danças era bem melhor. Fui lá e pela primeira vez paguei para dançar. A gente, quando entrava, recebia um cartão que era picotado. Após dar uma parada, a dançarina pegava o cartão e dava para o funcionário picotar o correspondente aos minutos que tínhamos dançado. Dez minutos de dança, ela mandava dar dez picotadas. Era preciso prestar atenção porque o cara sempre dava umas duas ou três a mais. Mas valia a pena, porque tinha muita mulher bonita e gostosa.
Em uma ocasião, numa sexta-feira, estava dançando com uma dona de babar. Pensei: é hoje que eu ralo a coisa. Depois de arrastar o pé por alguns minutos, fomos tomar um drink. Ela não tomava bebida alcoólica por determinação da casa, por ser dançarina. Eu, que sempre tomava Guaraná, para dar uma de bacana pedi uma dose de uísque. Do mais barato é lógico (Drurys), estava sempre duro. E o papo rolou firme. Apontamento marcado para sábado de manhã, hora que ela tinha disponível. Fui embora, para não depender do “navio negreiro”, o último ônibus da jornada, aquele que recolhia os motoristas, cobradores e boêmios. Quando fui pagar o meu cartão estava dobrado, isso acontecia quando a marcação atingia 120 e significava que eu já estava no segundo. Como eu controlava os minutos para não gastar muito, reclamei. — Xará eu dancei 25 minutos e tomei um drink, porque tudo isso? O cara do guichê foi firme: — E o tempo que você ficou sentado batendo papo com a piranha, não conta? — Porra, você tá me cobrando os minutos que estávamos tomando o drink? — É lógico! Você tirou ela do trabalho. Estando contigo, ela deixou de ganhar com outro. O negócio é que eu não tinha dinheiro para pagar. Tive que deixar o relógio, um Omega folheado a ouro que era do meu pai, como caução. Dali para frente era só uma dançadinha de leve. Drinks nunca mais.
Sou filha de um dos donos do Avenida Danças, embora não gostasse muito da idéia naquela época e, confesso, também não gosto muito ainda hoje. Você sabia que quando Che Guevara esteve no Brasil, ele foi até o Avenida? Meu pai não era um homem muito fácil e proibiu que eles entrassem com as armas que portavam, mas, depois de alguns acertos, eles aceitaram deixá-las no cofre e foram dançar com as ditas bailarinas. Também lembro do reboliço na Avenida Rio Branco, nos meses de setembro, quando acontecia o Baile da Primavera e todas as dançarinas vestiam branco. Somente uma vez entrei lá, aos 16 anos, às 3 da tarde, para dar uma incerta no meu pai, porque tinha um caso com uma bailarina. Ele ficou branco! Dagmar Ferreira
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Um retorno ao flerte e às danças de picotar cartões Luiz Carlos Gusman Que bom que você veio, atendeu a meu convite e se pôs pronto para dançar. Não foi surpresa, pois sabedor que você ou pelas décadas de 1950, 60 e 70, eu tinha certeza que a dança também o contagiara. Impossível ar incólume. Antes de sairmos preciso lhe segredar uma coisa: tenho uma pequena deficiência, mas que muito me incomoda. Procuro guardar isso como um segredo, porém, tendo você me inspirado confiança e como vamos ar um longo tempo juntos, circulando por pistas e pistas, me encorajo e lhe confesso: sou horrível dançando! Fujo da pista se estiver tocando algo mais que um bolero ou, por vezes, um fox. Sentindo um frio em minh’alma, só arrisco um dois-prá-lá, dois-prá-cá. Como neste nosso mergulho no ado temos total domínio sobre o tempo, eu ficaria bem mais confortável se você me permitisse umas poucas horinhas para um aperfeiçoamento. Não quero fazer feio perto de você que me parece ser um bom pé-de-valsa. Sendo assim, antes de iniciarmos a visita aos locais onde São Paulo baila, me permita dar uma adinha na Academia de Danças do Professor Patrizzi ou, se não houver vaga (vive lotada!), na do Professor Pavão. Rápidas aulas e já me porei pronto a enfrentar qualquer estilo, do liso ao quadradinho, do samba ao boogie-woogie, se é que alguma orquestra ou conjunto se arrisque a incorporar tal ritmo a seu repertório dançante. Confiante! É assim que me sinto, graças ao Professor Patrizzi. Que venham o chá-chá-chá, o swing, o sambão e até mesmo a marcha fúnebre: eu quero é rosetar! Como você dança muito bem e agora eu me sinto mais confiante, posso apostar que qualquer que seja o salão, depois da primeira contradança, nenhuma dama será capaz de nos dar “tábua”. Então, sem mais delongas, pés à obra e, quando na pista, revivamos os momentos, os enlevos que, sem dúvida, nos retornarão à mente. Deslize; permita-se (ou não) o show; traga para seu par aquela que a lembrança fizer ressurgir e vá às nuvens. Se a orquestra não lhe agradar, substitua-a. Traga-nos Glenn Miller, Ray Conniff... Para nosso roteiro, não apreciaremos um traçado lógico ou pré-elaborado. Se nos depararmos com uma gafieira, um ambiente mais descontraído, mais solto ou menos convencional, nos poremos prontos para a ocasião: traje eio. Se por outro lado, o evento exigir gala, um simples piscar de olhos e... eis-nos de black-tie. E aproveitando a “deixa”, já que de smoking, iniciemos o eio por um palácio, o Palácio Mauá. Talvez pela proximidade, talvez por uma iniciante tradição, a maioria dos bailes de formatura dos acadêmicos de Direito do Largo de São Francisco se dá aqui, neste majestoso salão, palco de concorridas domingueiras que atraem para nosso Centro dançarinos de todos os bairros da Capital. Concorrem com elas outras domingueiras de prestígio, as que se realizam nos salões da AABB – Associação Atlética Banco do Brasil – na sua sede da Avenida
Prestes Maia. Também vamos ar por lá e tão logo adentrados, vamos reviver momentos postos em desuso nos anos de onde viemos, os que se iniciam pelo algarismo dois: vamos flertar! Flertar, se é que alguém não se lembra mais, é um verbo que indica uma ação próxima do que se conhecerá por paquerar, só que muito mais romântica, respeitosa. Um verbo que se conjuga lançando olhares emoldurados por leves sorrisos e, às vezes, por um discreto pestanejar ou uma arrojada piscadela. Diferença? No pestanejar você usa as duas pálpebras, cerrando-as lentamente. Já na piscadela o ritual é outro: apenas uma delas se fecha, enquanto o outro olho, aberto, busca concentrar-se o mais possível nos olhos do alvo escolhido. Há craques nessa arte, que conseguem fazer percebida uma levíssima contração do canto de um dos olhos. Exige treino. Até há bem pouco tempo, a piscada ou piscadela chegava a ser considerada obscena. Hoje, anos de 1950, 60, 70 nada mais é que uma comunicação natural, mensagem cifrada que exprime simpatia, atração. Quase um pedido de licença para uma aproximação. Vamos ver o que nosso flerte renderá de felicidade. Para nós, românticos, o ato de recordar pode ser bem mais gostoso que o momento relembrado, por mais feliz que esse tenha sido. A recordação é um flashback remasterizado, aparado em eventuais arestas e mixado de forma a valorizar nossa importância. E se algum desgaste houve na cena viva, ele não tem que necessariamente estar presente na reprisada. Então, por que esperar mais? Há tanto a ver! Não vou descer à indiscrição e lhe perguntar como terminou sua noite, ontem, companheiro. Até onde vi, enquanto na AABB, você deslizava inflado pela felicidade. Seu sorriso parecia forjado a ferro ou cinzelado. Vi quando, depois de dançar, no embalo de suas lembranças, escolheu uma – a mais bela, creio – e se foi. Flutuava. E agora já o vejo aqui, puro entusiasmo, olhar pedinte que parece exclamar “Vamos!”, sem dúvida já vivendo o prazer que está por vir. Dispostos a dançar, não poderíamos de modo algum deixar de picotar cartões! Estou falando de uma modalidade de entretenimento que já se aproxima de seu estertor, portanto se quisermos saboreá-la, temos que ir já, antes que só nos restem saudades. Saudades do OK, do Avenida e do Chuá, nomes esses – todos eles – completados por um chamativo: Danças. Como se parecem, nossa escolha pode se dar ao acaso, ou melhor: como o Avenida Danças será o último a tombar e até em homenagem à sua tenacidade, à ele! Essas “garotas”, algumas delas já na sexta dezena de suas idades, com seus vestidos “rasgados” e seus sorrisos nem tanto, disputam seus pares no olhar, muitas vezes arriscando uma “piscada” e até, mais atrevidas, um beijinho discretamente atirado. Exímias bailarinas em sua grande maioria, se contentam até em ser apenas arrastadas pelo salão. Só reclamam de pisadelas; afinal vivem de seus pés, por assim dizer. Em qualquer dos dancings dificilmente você encontrará “brotinhos”. A prevalência é sempre pelas balzaquianas, por uma razão que se explica não só pela experiência acumulada, mas pelo acréscimo de um estranho detalhe: elas não têm mais
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“paquete”, ou seja, já adas da menopausa, não lhes vêm mais as “regras”, que as deixariam “incomodadas”, afastando-as do trabalho por uns três dias, todos os meses. Escolha com calma; temos todo o tempo do mundo. Elas é que não têm, ou melhor, até têm mas precisam vivê-lo na pista, alugando-o. Tudo pela arte, ou seja: na pista de um dancing vale o “arrocho”, a-se o bafo, aceita-se o o, esteja ele no ritmo ou não... Enfim, tirada para dançar, seja o que Deus quiser! Quando sua escolhida perceber que você veio aqui apenas pelo prazer de dançar, ah!, seu sorriso se porá verdadeiro, sua alegria se fará real. Não fosse o fiscal e ela certamente nem picotaria seu cartão. Dizem que a casa proíbe o uso de perfumes, o que se explica pelo fato de a colônia Tabu – unanimidade entre elas e de aroma inconfundível – ar seu odor para os cavalheiros, fato que já causou muitos atritos domésticos. Do que elas não abrem mão é do batom, do rouge e do rímel. Aí já seria demais; seus cavalheiros que tomem cuidado! Sem dúvida vai se iniciar uma conversa, por vezes agradável, quase sempre divertida. Isso pode levar você a convidá-la para sua mesa. Feliz, ela pedirá peppermint, que virá lindo, transbordando, verde esmeralda. Você pode, então, pedir conhaque: valoriza sua “macheza”. Só não peça Palhinha; é muito popular. Se a intimidade iniciada sugerir algo mais sério, mais profundo, você terá que esperar pelo menos até duas da madrugada, quando então elas serão liberadas. Não são empregadas fixas da casa, mas têm regras, horários. Tudo dito, pés à obra. Amanhã nos veremos, mesma hora, mesmo lugar.
Os bailes do Paulistano da Rua da Glória Leonello Tesser Ah! Meus amigos, quantas lembranças do Salão do Paulistano na Rua da Glória! O maestro executando sambas, boleros, mambos e os casais rodopiando no salão previamente salpicado com parafina em flocos para facilitar os movimentos dos pares. Os cavalheiros dançavam com um lenço nas mãos para que o suor não manchasse os vestidos das damas, um imenso globo espelhado girava no teto iluminado por holofotes, o mestre-sala circulava pelo salão e caso algum casal saísse do sério era logo advertido com um simples olhar, os desentendimentos quase não existiam e quando ocorriam eram prontamente abafados pelos próprios freqüentadores, os briguentos eram levados para o saguão de entrada, ouviam um sermão dos dirigentes da casa e, se não se comportassem, eram colocados para fora. No mês de setembro ocorria o Baile da Primavera, as damas todas vestidas de cor rosa ofereciam um espetáculo maravilhoso, não sei se ainda existe esse salão, mas que deixou saudade, com certeza deixou, para mim e para aqueles que tiveram a felicidade de gozar os bons momentos.
Ainda costumo dançar em salões como o nosso Paulistano, e sempre que penso neles me vem à lembrança esta música: “Na gafieira segue o baile calmamente, com muita gente dando volta no salão...” Miguel Chammas
Liberdade, berço do carnaval Nelio Nelson Gonçalves O carnaval nasceu ali na Liberdade, em 1857. Até então, o paulista só conhecia o tradicional entrudo com os golpes de laranjinha. Mas, nesse ano festivo, São Paulo rasgou a fantasia... e na chácara que pertenceu naquela época ao comerciante Caetano Ferreira Balthar, situada entre as ruas Américo de Campos e Barão de Iguape, com entrada pela Rua da Glória, reuniu-se o primeiro núcleo carnavalesco de São Paulo! Dali saíram pelas ruas, pela primeira vez, os “Zuavos”, que constituíam um clube de barulho. Desse bando, fazia parte grande número de comerciantes abastados, funcionários públicos e figurões que se mascaravam e embalados pelos vapores da “gengibra” saíam pelas ruas escandalizando os moralistas da época. Estava lançada a primeira semente da folia, porque até então, o povo não podia se mascarar em público. Mesmo nas comemorações mais festivas esse costume não tinha a aprovação das autoridades. Por isso a licença que o Capitãogeneral Bernardo José Lorena concedeu por ocasião do nascimento da Princesa da Beira foi um grande acontecimento Atendendo ao júbilo que deveria assaltar o ânimo popular, o então Governador de São Paulo expediu ordens para permitir o uso de máscaras pela cidade. Só assim. Foi preciso nascer uma princesa para o povo poder mascarar o rosto. Desde 1857, quando os arrojados “Zuavos” desprezaram os preconceitos e saíram pelas ruas em grande alarido, exibindo as berrantes fantasias, o povo compreendeu. Estava implantado o Reinado de Momo. Próximo da Liberdade, do outro lado do vale, mais de cem anos depois, o barulho continuava... na Brigadeiro, mais precisamente no Teatro Paramount. A fila para entrar estava no meio do quarteirão e eu já estava pulando porque podia escutar a orquestra tocando e a galera cantando...”Mamãe eu quero, mamãe eu quero...mamãe eu quero mamar”. Finalmente lá dentro, que alegria, que folia. O lança-perfume em latinhas douradas espirando no pescoço suado, pingando. “Me beija... me amassa... não existe pecado do lado debaixo do Equador”.
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Corso, confetes e muito lança-perfume Ivette Moreira Carnaval, para mim, sempre foi sinônimo de fantasia (roupa) e fantasias (incorporar o/a personagem). Sempre fui dada a fantasias e minha mãe fazia minhas fantasias nos carnavais: de boneca, de odalisca, de cigana, de havaiana.. Curiosamente, nunca me vesti de baiana no Carnaval, mesmo Carmem Miranda sendo o modelo da época. Confete e serpentina também enriqueciam esse universo. E o lança-perfume então? Era vendido em barraquinhas, que comercializavam juntamente com as máscaras de plástico transparente que eram usadas para proteger os olhos, sempre o alvo mais visado pelos lançadores. Havia os tubos pequenos, em vidro, mais baratos e os metálicos, muito cobiçados por mim, mas raramente comprados por meu pai devido às limitações financeiras. De posse desse kit lá íamos nós para a Avenida São João, ear, cantar, brincar, atirar confete, serpentinas e regradamente o lança-perfume, para que um vidro pequeno durasse os três dias de folia. Lá pelas tantas da noite, após as 20 horas, iniciava-se o desfile de carros alegóricos, pequenos, nada monumentais como os de hoje, feitos em fundos de quintais por foliões bem humorados e alegres, muitas vezes por famílias inteiras, que nele desfilavam. Havia carros com críticas à política e aos políticos, sempre muito aplaudidos pelo público, navios-piratas, carros das flores entre outros. Íamos também apreciar o corso na Avenida 9 de Julho, próximo ao túnel. Os carros de eio desfilavam enfeitados, cheios de jovens sentadas(os) nos pára-lamas, fantasiados ou não, que cantavam, desciam dos carros e sambavam no asfalto sob o comando de poucos instrumentos de percussão e suas próprias vozes. Muito confete, muita serpentina, muito lança-perfume e muita paquera inocente, comandada pelo kit de carnaval: confete, serpentina e lança-perfume. O corso era mais ou menos elitizado, porque não era todo mundo que podia ter um carro. A grande maioria da população somente apreciava. Houve um ano em que meu tio Felix, irmão rico de meu pai, dono de um Buick preto, resolveu levar a sobrinhada jovem para fazer o corso. Glória suprema! E por ter sido um grande acontecimento, nossos pais fizeram um investimento – rombo no orçamento – e nos compraram uma bisnaga grande do metalizado Rodo (assim chamado porque era fabricado pela Rhodia do Brasil). Nossos pais foram para a avenida de ônibus tomar posição para nos ver desfilando no corso. Obrigada Tio Felix. Foi um Carnaval inesquecível!! Hoje os carros não têm pára-lamas que acomodem pessoas sentadas... Dois ou três anos depois disso o corso acabou porque começaram a entrar caminhões no desfile cheios de gente, muitas vezes bêbada, que jogava farinha, água e até urina nos participantes. O centro de São Paulo era realmente um espaço público, social, com
suas praças – Dom José Gaspar, da República, do Arouche – bem cuidadas, onde se podia usufruir de momentos de descanso, de lazer e, claro, de namoro. Suas avenidas – São João, Ipiranga, São Luís e viadutos – com sua bela arquitetura e belos monumentos e estátuas (assim chamávamos as esculturas), suas casas de lanche – tanto as mais refinadas como a Confeitaria Vienense, na Rua Barão de Itapetininga, o Bar Brahma, quanto outras mais populares, mas igualmente gostosas, como a Leiteria Americana, a Salada Paulista e algumas populares e pequenas na Praça da Sé, que faziam um delicioso sanduíche de pernil assado com molho acebolado e tomate, colocado em um pãozinho francês quentinho. Os bailes nos clubes eram familiares, com pais acompanhando suas filhas. Lá a paquera era sempre na base do lança-perfume. Via-se, vez ou outra, rapazes colocando lança-perfume na cerveja ou em um lenço, para cheirar, mas logo eram identificados ou dedurados aos seguranças e retirados do salão. Quando a coisa foi ficando mais incontrolável, e aí começávamos a adentrar no mundo das drogas, Jânio Quadros proibiu o lança-perfume. E assim, com os excessos em todos os níveis aumentando, foi acabando o carnaval gostoso de São Paulo, as famílias se recolhendo e os poucos foliões virando expectadores de escolas de samba que investem rios de dinheiro montando um carnaval de sambódromo operístico, pago e para pouca gente. Ficamos por aqui, com nosso confete, pedacinho colorido de saudade. Pelo menos ele ainda alegra os carnavais!
Cheguei a ver um pouco disso, quando aguardávamos a agem dos blocos na Praça Marechal Deodoro. E meu pai sempre nos comprava a Rodo metálica, a famosa “Rodouro”. Bela crônica de bons tempos, quando eu ainda gostava do Carnaval. Hoje, nem vejo os desfiles na TV. Luiz Saidenberg O carnaval não era oficializado, desfilavam mais cordões do que escolas de samba. O meu Vai-Vai, era ainda cordão, nessa época. Com a oficialização do carnaval pelo Faria Lima, a pedido de Moraes Sarmento, os cordões foram extintos. O carnaval virou comércio e indústria da alegria. Mário Lopomo A saudade veio forte, porque participei de muitos corsos em cima de uma caminhonete Dodge, ano 1928 ou coisa parecida, pela 9 de Julho, até o cruzamento com a Avenida Brasil e daí, retornando até a Praça da Bandeira. A gente era feliz... e sabia. Heitor Felippe
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O carnaval de outrora Dayse Seyssel Piro Barreto AH!... o carnaval de outrora na cidade de São Paulo! Marchas-Rancho... alegres e românticas, blocos fantasiados que se rivalizavam na competição das mais originais fantasias e nas mais populares marchas! As famílias iam para a rua, sempre ostentando fantasias que caracterizavam os blocos, como dos palhaços, dos chineses, dos cozinheiros, monstros, havaianos e dos árabes. Muito confete e serpentina O maior atrativo do carnaval em São Paulo eram os corsos. A minha família costumava ir para o corso da Avenida 9 de Julho. Moças, lindamente fantasiadas, iam sentadas nos pára-lamas dos carros, que, por serem muitos, andavam a dez ou vinte por hora e às vezes paravam para que os componentes de uma família brindassem com os de outra família, sempre cantando e dançando, porém com o maior respeito. Que saudades de Sérgio Reis, Lamartine Babo e tantos outros compositores que cantavam o contagiante amor sob a garoa fina e romântica que caracterizava esta, então, lindíssima cidade.
realizava durante o carnaval. Os bailes em salões ainda não eram populares e a folia se restringia às ruas, especialmente na Avenida Paulista. A maior parte dos automóveis daquela época eram sem capota, conversíveis, o que facilitava a alegria. Na ocasião, o volume de confetes e serpentinas jogados à rua era tão grande que dificultava o tráfego e os automóveis eram obrigados a parar para que os garis fizessem a limpeza. Quase todos usavam fantasias, máscaras, faces pintadas e a alegria era contagiante. Os automóveis paravam para que os foliões pudessem brincar entre si, dançando, pulando e cantando. Tudo era realizado dentro do maior respeito, mesmo porque os que participavam dessa comemoração possuíam automóvel e eram considerados a “elite” paulistana. A maior concentração era realizada no domingo de carnaval. É uma pena que a juventude de hoje não possa ter idéia do que foi a vida de seus pais e avós para seguirem o exemplo, mas é a evolução dos tempos e a nós compete aceitar. Poder recordar já é uma dádiva.
Meus primeiros carnavais Lembro que o meu pai nos levava no carnaval da Praça Antônio Prado, aquela em frente ao Banco do Estado de São Paulo, para que dali do alto, pudéssemos ver o povo se divertindo na Avenida São João, com suas fantasias, confetes e lança-perfumes Colombina e o metálico Rhodia. Carlos Ogasawara
Folia na Avenida Paulista Sylvio Neves da Rocha Nasci em São Paulo em 1928, no bairro Indianópolis, à Alameda Tapuias, e no mesmo ano fomos morar na Avenida Doutor Arnaldo, 1532, no Sumaré, na casa que meu pai construiu e que ainda existe. Tenho boa memória quanto às agens da minha infância. Lembro-me que em 1933 ou 34, numa tarde de domingo, meu pai nos levou à Avenida Paulista para que fossemos (eu, irmã e irmão) provar Toddy, que era a novidade mais recente em São Paulo. Naquela época não havia bares e nem lanchonetes, por isso instalaram um balcão na calçada e ali preparavam e serviam o delicioso Toddy, que era procurado por muita gente. A Avenida Paulista, como hoje, era palco de grandes acontecimentos e quem viveu durante as décadas de 1930 a 50, deve lembrar do corso que se
Ismael Petisco Lemos O carnaval, embora seja uma festa que acontece todos os anos, sempre deixa algo novo para ser lembrado. Minhas primeiras lembranças, aos 8 anos, reforçadas posteriormente por fotos, são da roupa usada. É preciso esclarecer que minha mãe, por viajar ao Rio de Janeiro, adorava a vestimenta dos homens cariocas no carnaval. Todos queriam imitar os malandros de calça e sapato branco, camisa listrada e chapéu de palha, em estilo clássico. Como éramos comportados, usávamos a camisa dentro das calças, o que deixava aparecer o cinto. Minha mãe não se importava que fosse preto mas, após muitos desentendimentos, quem ganhou foi meu pai, quando achou um branco, com o qual a fantasia ficava completa. E assim íamos, de posse de confete, serpentina e lança-perfume, metálico é claro – papai já pensava na segurança dos herdeiros. A iniciação era o corso, famosa confusão de veículos em avenidas importantes, poucas naquela época. A velocidade era mínima, mas a delícia estava em poder jogar confete, serpentina e espirrar lança-perfume nos estranhos ao seu lado. Para sermos originais, usávamos a velhíssima pick-up do nosso tio, que normalmente era usada para entregar a cachaça que era engarrafada por eles. Podemos imaginar o “aroma” do veículo, misturado aos carros importados, com um bando de “malandros”, numa avenida como a Brasil. Pois essa foi a nossa grande entrada no mundo do carnaval.
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Marchinhas na rua até a meia-noite Célia Minha lembrança é da infância que ei na Rua Barão de Limeira, esquina com a Praça Júlio de Mesquita. Lembro dos carnavais das décadas de 1940 a 50, quando os carros alegóricos avam com os foliões em cima, dançando. Eu, meu irmão e nossos pais, ficávamos sentados à beira da calçada com as fantasias confeccionadas pela mamãe, extasiados, olhando tudo; algumas vezes ava alguém e lançava um jato de lançaperfume, confetes e serpentinas. Auto-falantes eram colocados nos postes, tocando aquelas marchinhas gostosas, ia das 14 horas até a meia-noite, muitas vezes até mudávamos para a casa de uma tia, pois o barulho não nos deixava dormir. Também me lembro bem dos bondes. O 14-Vila Buarque que meu irmão pegava para ir à escola era aberto, e minha mãe pedia para ele não ir no estribo. Eu pegava o 36-Angélica e ia com minha avó ao Parque Trianon ear e ver o bicho preguiça que eu adorava, ficava horas olhando ele. Também sinto saudades dos cafés que tomávamos na Confeitaria Vienense, na Rua Barão de Itapetininga, onde escutávamos violinos, e do café no Mappin, com seus desfiles de moda, era o must.
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“Aquele momento era mágico. Aquele sorriso era ouro. Como se fossem milhões de moedas de ouro enchendo e transbordando de uma verdadeira arca de tesouro.”
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De repente, naquela esquina Nely Cyrino de Mello Já se vai longe aquele tempo, mas se não me falha a memória, a relojoaria ficava numa ruazinha entre o Largo do Paissandu e a Praça do Correio, lá pelos lados do Viaduto Santa Ifigênia. O homenzinho, atrás do balcão, observava os movimentos do meu “quase” noivo e sorvia satisfeito minha expressão de felicidade. — Não precisa escolher mais, meu rapaz, ela gostou da facetada. Eu girava a aliança no dedo, encantada com os reflexos das arestas, como se fora um prisma decompondo a luz. Lembrei-me do meu primeiro anelzinho de rubi que refletia as luzes da capela, durante a missa, no colégio. — Quero esta. É linda! Nomes gravados, pagamento feito, pacotinho no bolso, subimos a Avenida São João. — Que tal um cineminha? Tem o Marrocos, o Olido, o Rivoli, mais adiante o Metro... Caminhando felizes, viramos à esquerda e lá estavam majestosos, frente a frente, o Marabá e o Ipiranga. As lojas já começavam a cerrar suas portas, mas naqueles tempos ainda se podia ear tranqüilamente por aquelas bandas. Como era bonita a galeria Califórnia, na Barão de Itapetininga, onde as madames compravam suas peles, desfilando luvas e bolsas combinando com os sapatos! Desistimos do cinema e caminhamos até o Mappin, irando a arquitetura imponente do Teatro Municipal. Na volta, eamos pela Praça da República, observando as crianças com suas pipocas e algodões-doces. Então, bateu a fome e resolvemos comemorar com um jantarzinho. — Tudo bem, mas lembre-se de que o portão é fechado às 9 horas em ponto. Eu morava num pensionato de freiras, na Rua Gravataí, estudava no Sedes Sapientiae e trabalhava no Dês Oiseaux, que enfeitava a acanhada Caio Prado, esta de cotovelo com a então famosa Maria Antônia. Que delícia ear pela Augusta com seu Simbad, o Marachá, o Picolino e o Majestic. E quantas vezes atravessei correndo a Praça Roosevelt para tomar o bonde que descia barulhento a Rua da Consolação; ia até a Praça Ramos de Azevedo e de lá, a pé, até a 25 de Março, fazer compras para o enxoval, na Casa Moysés. Outras vezes andava até a Biblioteca Municipal, para assistir às palestras de meu professor de filosofia, Ignácio da Silva Telles, que começavam às 8 da noite. Bem, jantamos num local aconchegante, duas quadras abaixo daquela famosa esquina que fez a coisa acontecer no coração de Caetano: Ipiranga com São João. Estávamos radiantes com o noivado próximo e não resistimos à tentação de experimentar de novo as
alianças. Foi então que olhei para o relógio da parede: ava das 8h30. Dispensamos a sobremesa, pagamos a conta e, pernas-para-que-as-quero! De repente, ali, naquela mesma esquina, São Pedro abriu as comportas do céu e despejou tremendo dilúvio. Abriguei-me sob a primeira marquise, ele sumiu e reapareceu com um jornal. Mas qual o quê: antes de chegarmos à Caetano de Campos, já estávamos encharcados, o jornal, os cabelos, as roupas e os ossos. Atravessamos feito loucos a Avenida São Luís e para completar a tragédia, a tira da minha sandália arrebentou, e lá ficou a dita cuja, bem no meio da rua, embaixo dos carros. Ele voltou para buscá-la e chegamos quase sem fôlego à Igreja da Consolação, faltando três minutos para as nove. — E se o portão já estiver fechado? — Você vai comigo para o hotel. — Deus me livre! Vamos correr mais. A Madre Superiora já descia as escadas balançando o chaveiro e abanando seu chapéu de três pontas chamado de coifa. — Que horror! Por onde você andou? Quase fica para fora. Responder o quê? Apenas respirei aliviada. Já se vai longe aquele tempo em que a gente casava virgem.
Pagando contas e recebendo o troco em ouro José Carlos Munhoz Navarro Quando as contas da mercearia atrasavam, meu pai tinha que saldálas nos escritórios dos fornecedores ou concessionários dos serviços. E esse encargo sempre sobrava para mim. Assim, uma vez por semana, logo após o almoço, eu, de banho tomado e mil recomendações daquele mais famoso Zé que eu amei, ia cheio de contas e cheques para a cidade a fim de liquidar os incômodos débitos. Para chegar lá, tinham duas opções: pegar os ônibus elétricos ou ir até a Avenida Brasil pegar um daqueles convencionais que vinham dos lados de Pinheiros, Vila Sônia, Ferreira, Taboão, que me deixavam no Vale do Anhangabaú. Estes subiam a Avenida 9 de Julho, avam o túnel, a Praça 14 Bis, entravam no Anhangabaú, davam a volta em torno do buraco do Adhemar e faziam o ponto final quase na saída da 9 de Julho outra vez. Onde hoje é o calçadão, transitavam ônibus e carros. Na volta, eu só pegava o Jardim Europa-51, cujo ponto final era na Praça da República, atrás do Caetano de Campos. Minha primeira parada era na esquina do Vale com a Avenida São João, quase na entrada de um cinema, onde hoje tem um restaurante. Lá eu 297
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trocava meus gibis velhos por outros que ainda não tinha lido. A regra era dar dois gibis para receber um. Às vezes, valia a pena, na maioria das vezes, não. Bem, gibi na mão, subia a Avenida São João em direção à Rua Boa Vista para pagar a duplicata da Sanbra, depois ia até o Viaduto do Chá, liquidar as contas com o Matarazzo. Subia no ritmo de ver as vitrines, enfeitiçado pela infinidade de canetas expostas ou de roupas novas que a Exposição ou a Ducal apresentavam. Na Sanbra era uma chatice só. Uma série de cubículos, muita demora e em dois minutos o gibi que tinha trocado já estava velho. Velho e lido. No Matarazzo era fascinante, pois tinha uma imensidão de guichês e todos os caixas impecavelmente vestidos, camisa sempre branca e gravata. Um deles parecia um artista, pois estava sempre com sua camisa branca e gravata borboleta e, enquanto o documento não chegasse, espalhava seu charme, de pé, conversando um pouco com as mocinhas que se lhe apresentavam, ou gozando o pobre do office boy, cujo time perdera no domingo. Do Matarazzo para a Light era um pulo. Só atravessar o viaduto e nova peregrinação junto a atendentes, conferentes e caixas. Peregrinação porque na época tínhamos que entregar a documentação no balcão, receber uma ficha, geralmente metálica, e esperar que nosso número fosse chamado. O documento percorria todo um caminho de conferências, cálculos, conferências, registros e conferências novamente, para, por fim, voltar até nós e aí liquidarmos a fatura. Às vezes a demora era tanta que os boys se enchiam e começavam a bater com as fichas no balcão. Logo ficava um tim tim tim tim só, para desespero dos caixas que aguardavam, como nós, a chegada dos documentos. Uma estranha sinfonia de tins e tuns, de fichas no balcão e carimbos que ecoavam na amplitude do espaço da Light. Uma rápida olhada no bolso, Sanbra/Matarazzo/Light, legal, tudo feito, missão cumprida. Hora de voltar para casa... Voltar para casa uma ova, agora é que o legal começava. Em frente ao Mappin, subo a Xavier de Toledo ou entro na Barão de Itapetininga? Vou dar uma lambiscada num pedaço de pizza na Ayrosa, lá no Largo do Paissandu, ou... que nada, nessa hora a cabeça se curvava ao coração e eu seguia em frente na Barão, em direção à Praça da República, convencendo-me que aquela era sempre a melhor opção. Ia pegar o 51Jardim Europa, na Praça da República. A longa e aguardada espera, não do ônibus, mas dela. Às 5 horas, um bando de meninas, blusa de fustão branca e saia azulmarinho, surgia em desabalada carreira para voltar para casa. Carros e peruas esperando, num alarido e atropelo só. E eu esperava que ela asse... quantas vezes eu a vi ar, e quando ela me via dava aquele sorriso dentuço e seguia adiante, pois não podia deixar de pegar a perua que a levaria para casa. Seus 9, 10 anos não permi-
tiam outra opção. E aquele momento era mágico. Aquele sorriso era ouro. Como se fossem milhões de moedas de ouro enchendo e transbordando de uma verdadeira arca de tesouro. Voltava para casa, cansado e satisfeito, e nem mesmo a bronca do meu pai por eu ter demorado tanto era suficiente para tirar o brilho de tanto ouro. Quase ia esquecendo. As contas que eu pagava, quase sempre minha mãe as encontrava dobradas em quatro, ligeiramente encurvadas, perdidas no bolso de trás da minha calça, um pouco antes de levá-la ao tanque.
A garota da Praça do Correio Zélio Andrezzo Em 1965, no dia 3 de agosto, lembro bem, era uma terça-feira, trabalhava de office boy numa empresa na Praça da República, 386, 9º andar, conjunto 93, telefone 44-7533. Meu chefe pediu para eu sair mais cedo e colocar algumas cartas no correio. Era meio-dia e na Praça do Correio tinha um ônibus chamado Parque Novo Mundo que ava na Vila Maria. Fui para o ponto e lá havia uma garota que, uniformizada, vestia camisa branca, gravata, saia plissada cor de vinho e meias três quartos, um uniforme de colégio. Era a única pessoa na fila, porém em frente havia uma banca de revistas com mais duas meninas com o mesmo uniforme. Perguntei se ela estava na fila, e ela respondeu que eu podia ar à frente. Entramos no ônibus e eu sentei na frente delas, depois desci na Vila Maria, deixando-as para trás. Na outra quinta-feira, no mesmo ônibus, conheci uma garota, que parecia totalmente diferente, mas ao conversarmos, descobri que era a mesma em que havia reparado na semana anterior. Isso foi dia 5 de agosto de 1965. Mais tarde, essa garota veio a ser minha esposa, tivemos dois filhos e fomos felizes por 26 anos. Até hoje guardo doces lembranças desses dias e de São Paulo, que não canso de poetizar esta cidade rica em todos os sentidos, já que tudo depende dos olhos de quem a vê.
Adeus à vida de boêmio Miguel Chammas Em 1964, eu estava no auge da minha vida de boemia, dançava muito, bebia bem, comia melhor ainda e ainda trabalhava de verdade. Estudo, por “falta de tempo”, tinha sido relegado a um terceiro plano e, mesmo assim, não abandonava a freqüência no velho e querido Ozanam. Eis que as ativi-
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dades de pré-formatura começam a tomar corpo. Bailes, rifas, promoções. Fui surpreendido, porém, com o convite do meu primo Roberto e dos demais membros da Comissão para ajudá-los na missão. Perguntar-me, naquela época, se eu queria aceitar um desafio de trabalho, era o mesmo que perguntar se macaco queria banana. Então, lógico, aceitei. A primeira missão era concordar com o nome “Turma do Senta a Pua”, eu concordei. A segunda missão era promover o primeiro baile para arrecadação de fundos. Então começamos a trabalhar, escolhemos a data e o local, um domingo à tarde no próprio colégio, e partimos para a divulgação do evento. Comunicados e cartazes foram preparados e colocados nos mais diversos lugares da escola e avisos verbais foram formalizados em todas as classes. Convites foram preparados e impressos no velho e querido companheiro mimeógrafo, que não se fazia de rogado para trabalhar, sujando com sua tinta todos os que se aventurassem a operá-lo. As fases preparatórias foram sendo vencidas, uma a uma, dentro de seus requisitos. Chega o grande dia, 15 horas, as portas já abertas, os convidados chegando, este que lhes escreve assume o seu posto de disck-jockey já que não se sentia tentado a dançar com as menininhas do evento quando, na noite anterior, havia dançado e se esbaldado com verdadeiras bailarinas do Som de Cristal. Como era de se esperar, dei partida no toca-discos, coloquei o disco que era nosso tradicional prefixo musical, Moonlight Serenade, com Glenn Miller e sua orquestra. Depois dos primeiros acordes, liguei o microfone, impostei a voz como sempre fiz ao falar no microfone e mandei a seguinte mensagem: — Com esse prefixo musical, a comissão pró-formatura da Turma do Senta a Pua deseja a todos uma excelente tarde dançante, com muita alegria e prazer... continuem dançando ao som da big band de Glenn Miller. O baile seguia tranqüilo e alegre, saí do recinto em que estava trabalhando e fui até o salão de danças, onde reparei numa meninota morena, trajando um vestido rodado de cor amarela, todo estampado que, ouvindo o comentário de outras meninas que a acompanhavam, olhava para mim e sorria. Matreiro nos assuntos femininos, percebi que falavam de mim, fui até elas e me dirigindo à moreninha, disse: — Vamos dançar, assim você aproveita e conta o que estavam falando de mim... Dançamos e percebi que ela tinha tudo para ser uma grande bailarina de salão. Mal sabia que, naquele momento, estava dando adeus à minha vida de boêmio e de solteiro. O baile continuou e eu dancei com a menina até o final da matinê. Pedi a ela que esperasse um pouco, fui até o microfone e, novamente, com a voz impostada e o fundo musical de Glenn Miller disse: — Queridos amigos, com este sufixo musical, a comissão pró-formatura, esperando que tenham ado horas alegres em nossa companhia,
agradece a presença de todos e informa que os aguarda, com muito carinho, no próximo baile. Boa noite a todos. Deixei a música rolando e fui ao encontro da garota de quem até aquele momento eu só sabia o nome, Cidinha. Encontrei-a na porta do salão. Sugeri acompanhá-la até sua casa, ela aceitou, mas quando descíamos as escadas encontramos com outro aluno, que parou para cumprimentá-la e ela, respondendo ao cumprimento, me apresentou como seu namorado. Não falei nada sobre o assunto, como se dizia na época: “Me manquei em copas” e a levei até a porta de sua casa na Rua Augusta, 1172. Durante a semana seguinte, tentei encontrar com a Cidinha, mas ela escapava do encontro como um “bagre ensaboado”. Eu, malandro e boêmio, não conseguia itir que estivesse levando um baile da garota, insisti até que, finalmente, consegui cercá-la e conversar. Fiquei sabendo então que a minha apresentação ao Milton como namorado dela, tinha sido para provocar ciúmes, já que eles haviam namorado e estavam brigados. Resumindo, dei uma bronca danada, mas o olhar de arrependimento me convenceu e, então, começamos a namorar. Foi um namoro cheio de altos e baixos, brigas, retornos, novas brigas, novos retornos. Em 1965 continuávamos namorando e em 1966, já estávamos noivos. Alguma coisa havia mudado no nosso status colegial, ela estava cursando o 4º ano básico e eu, que me formava naquele ano também, havia sido nomeado assistente e substituto do professor José Pinto, na matéria de contabilidade, e ministrava aulas na classe onde ela e mais dois amigos de noitadas estudavam. Nunca misturei os relacionamentos externos com o ambiente e as condições da sala de aula, porém, eles não acreditavam na minha rigidez. No final de 1966, eu e a Cidinha marcamos a data de nosso casamento: nos uniríamos em matrimônio no dia 15 de março de 1967. adas as festividades de formatura, chega fevereiro e com ele o dia das provas. Lá estou eu à frente dos alunos autorizando o início da prova. Ao final, iniciei a correção. Corrigi primeiro a dos meus amigos, as notas foram médias e eles conseguiram aprovação raspando na trave. Fui corrigir, então, a prova da minha futura esposa. Terminando, somei as notas parciais de cada questão e conclui que ela havia repetido por faltar 0,3 para a média. Usando de toda a honestidade, assinei a nota sem arredondar nada e entreguei na secretaria. Sabia que estava arriscando até meu casamento, mas não poderia ser desonesto com a minha consciência. Saímos e no caminho para a casa dela contei o ocorrido. A princípio ela não acreditou, mas, depois, caiu na real e chegou chorando à porta da sua casa. Entrou sem me dizer nada. Fui embora para casa e tive uma noite terrível, o telefone tocou diversas vezes, eram meus amigos professores, o secretário da escola, o dono da cantina, todos pedindo para que eu reconsiderasse a decisão, não concordei. O último telefonema foi o do professor João Baptista Negrão, diretor e dono da escola, que disse em voz grave: 299
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— Miguel, quero você amanhã às 8 horas em ponto na minha sala. Eu fui, entrei e depois de uma seleção de palavras de baixo calão, ele
Um beijo perdido no Horto Florestal Alvair Teixeira
disse: — Vai lá na secretaria, corrige a nota, case-se e seja muito feliz, ou então, vou eu com a minha autoridade de diretor e faço essa correção. Não aceitei e ainda retruquei: — Negrão, se você fizer isso estará truncando minha carreira de professor neste colégio. Ele que fez, e eu nunca mais dei uma aula em minha vida. Só entrei no colégio novamente um pouco antes dele ser demolido e quando já não era mais de propriedade do Negrão, que hoje já está lá no andar de cima. Ah! ada a trovoada, me casei e vivi feliz por 32 anos junto da dona Cidinha, dos meus filhos e dos meus netos.
O namoro da vovó Kemie Carolina Makiyama Guerra Minha avó saiu de Lisboa em março de 1938 para ar férias em São Paulo com o irmão, que aqui morava, e assim esquecer de um namorado indesejado pela família. Mal o navio começava seu trajeto e um brasileiro se interessou por ela. Já na Bahia começaram a namorar. Só que o moço ficou no Rio de Janeiro, porque lá morava, e ela seguiu para São Paulo. O percurso do Rio para São Paulo era feito de trem, um trem muito chique – o Trem de Prata. E assim, durante os três meses de férias eles ficaram se correspondendo e telefonando. E ela eando. Meu tio-avô morava na Avenida Paulista, esquina com a Rua Frei Caneca, num casarão onde hoje está um prédio com um Itaú embaixo. Um irmão da cunhada dela, cujo sobrenome era Cozzo, tinha uma “baratinha” amarela, um carrinho pequeno, e eles ficavam fazendo tour pela Avenida Paulista. Mas, após os três meses, chegou a hora de ela ir embora. O que o moço fez? Veio correndo para São Paulo. Nesse dia em que ele veio, em junho ou julho, estavam ela e meu tioavô no Campo de Marte, voando no avião pequeno que ele tinha importado da Polônia. Enquanto ela estava lá em cima com o aviador, o moço ficou embaixo, e a pediu em casamento. Aí ela concordou, casou em dezembro, e nunca mais voltou...
Ainda está muito presente em minha memória aquele eio ao Horto Florestal com a turma do Colégio Estadual da Água Fria, no início da década de 1970. Eu carregava uma grande expectativa de ter, durante o eio, a oportunidade de declarar meu amor à Leslie – nome de atriz de Hollywood, uma menina de cabelos negros, olhos espertos e um sorriso lindo. Tudo acertado para irmos, uma turma de meninos e meninas, uma vitrola – daquelas de alto-falante na tampa, colorida, alguns discos de vinil – Creedence tocando Have you ever seen the rain e o frescor de nossa adolescência. Os casais se formaram naturalmente e os deslocamentos pelas trilhas do horto começaram a acontecer. Conversamos muito, eu e a Leslie, mas, para minha decepção, nada mais aconteceu. Nenhum beijo, nenhum abraço, nenhum amasso. O amor durou talvez somente mais uma ou duas semanas até que uma lourinha de minha turma me chamasse mais a atenção do que a Leslie, que certamente não gostara de meu pouco jeito de lidar com as meninas. O tempo ou, tive dois casamentos, viajei boa parte do mundo, moro hoje em outra cidade, mas ainda trabalho aqui em São Paulo e ouvindo a CBN ontem a respeito dos parques desta cidade, lembrei dessa história que me remete a um tempo em que os adolescentes se permitiam deslocar de um local a outro sem qualquer risco de assaltos, seqüestros e violências, sendo somente minha principal razão de tristeza a profunda mágoa de um beijo perdido, de um abraço negado e de um amasso contido.
Minha família e a de uma tia adoravam ear no Horto. Tenho até algumas fotos, em branco e preto, já amareladas, de eios por lá. Na época ninguém tinha carro, mas não deixávamos de ear e bastante. Tomávamos ônibus até o centro da cidade para pegar o ônibus Horto Florestal e era longa a jornada. Mas nada impedia a alegria, até descobrirmos que o Horto ficava bem perto do nosso bairro, Itaberaba, Freguesia do Ó. No máximo 15 minutos de táxi, que compensava tomar por ser perto. Não tínhamos a noção de direção da cidade e nos deslocávamos ao Centro (40m do nosso bairro) para voltarmos. O mais importante em tudo isso é perceber que antigamente enfrentávamos mais os obstáculos para conseguir algumas alegrias. Vera Lúcia de Angelis
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Reuniões na Galeria Olido Mário Lopomo O grupo da Galeria Olido começou comigo parando na charutaria do Nivaldo, bem na porta da galeria, pela Avenida São João. E foram chegando outros que, vagando pela cidade, paravam ali para comprar um cigarro ou chicletes e colocar o papo em dia. A turma foi aumentando e ficou completa quando surgiu a dupla do Bixiga: Baixinho e Cabeleira. A turma estava bem ajustada e nossos encontros já eram rotina, e a coisa ficou engraçada por causa do Cabeleira: um cara alto que estava sempre de terno e gravata, de bigode espesso, cabelo “jaquetão abotoado”, que foi alvo de pilhéria por parte de uma prostituta que fazia ponto na Rua Dom José de Barros, na entrada da galeria que dava o à Rua 24 de maio. Ela soltou a frase: — Não parece um biscatão, o grandão? A outra prostituta foi mais longe: — Parece mais um mafioso da Sicília, baixa Itália! A gargalhada foi geral tanto do grupo de mariposas quanto dos vagais da noite quase perdida. A partir daí o papo com aquelas alegres mulheres da vida amorosa ou a ser diário. Muitas piadas. Contos inimagináveis, e até coisas emocionantes, demagógicas. Muitas mentiras também, para enaltecer ou fazer crescer o ego. A verdade é que estávamos sempre no centro da cidade esperando o Nivaldo fechar a charutaria às 22 horas para começar a andança à procura de tudo e, muitas vezes, alcançando o nada. Cada qual queria se arrumar, mas o que mais tinha por ali eram uns tremendos bofes. Mas todos os dias estávamos com aquele grupo de prostitutas batendo um papo legal. Foi assim que nasceu uma grande amizade entre eu e Vera. Ela estava com 36 anos de idade, cansada do metiére, dizendo que ia pendurar as “chuteiras” por estar com o pé-de-meia formado. Já não dava expediente como antes. Fazia aulas na escola de cabeleireiros da Avenida Ipiranga, 1248. Numa sexta-feira, Vera deu a entender que aquele dia faria forfait, ou que faltaria, na linguagem artística, então combinamos de bater um papo em seu apartamento que ficava no prédio do Cine Regina, na Avenida São João. Vera era onze anos mais velha do que eu, mas tinha um rostinho de menina e um corpo de fazer inveja a muita mulher famosa da época. Ficamos em seu apartamento ouvindo discos de boleros, o que mais se tocava na época, na sua vitrola Hi-Fi, com rádio stereo, que poucas pessoas tinham. Ficamos por muitas horas juntos, e já era meia-noite quando me dei conta que estava na hora de pegar o bus da 24h30 para não depender do navio negreiro, o ônibus que recolhia motoristas e cobradores. Um beijo na testa foi a minha despedida simplória de Vera, que me pegou pelo braço, e foi dizendo: — Amei você, sabe?
Fiquei meio sem jeito. E ela, sem deixar a peteca cair, disse: — Pela primeira vez recebi alguém aqui que me tratou como gente, porque até então não ei de um objeto na companhia de um homem. E aí a amizade foi ficando cada vez mais forte. Toda sexta-feira era dia de visita no prédio do Cine Regina e tudo acontecia sem aquela formalidade de cliente e servidora. Um dia em que o calor estava sufocante, fomos dar uma volta pela Avenida São João para tomar um sorvete e um ventinho que vinha lá da Alameda Glete ou da Rua Apa e quando estávamos na Praça Júlio Mesquita, ouvimos um tremendo sururu. Gente olhando pra cima e discos 78 rotações voando pela janela. Perguntamos a uma pessoa que disse tratar-se de briga de marido e mulher. Os gritos dele eram bastante audíveis: vagabunda, sem-vergonha. Um disco caiu bem nos meus pés e era Odeon, de Pedro Vargas, um daqueles boleraços que só ele sabia interpretar. De repente, vinha o queixoso aos berros, dominado pelos guanapas da Força Pública. Era nada mais nada menos que o jogador de futebol que tinha sido do São Paulo e do Palmeiras, Ponce de Leon, com aquele cabelo avermelhado repartido ao meio, xingando sua amada pega em flagrante manuseando a alavanca de câmbio de um negrão. Ponce de Leon estava jogando futebol, lá pela Colômbia, sei lá. De vez em quando vinha a São Paulo acertar as contas com seus compromissos e aquele dia, inesperadamente, teve que acertar as contas com a mulher e com a polícia. Minha amizade com Vera foi até o meu casamento em maio de 1969. Daí para frente cada qual tomou seu rumo.
Amores memoráveis Miguel Chammas Dizem que o primeiro amor não se esquece nunca! Concordo com a afirmativa, mas acho que ela deve ser complementada e eu a escreveria assim: os primeiros amores não se esquecem jamais. Digo isso porque tive grandes primeiros amores e não os consegui esquecer até hoje. Amei a Norma Toschi, que depois ou a receber de mim um amor fraternal que persiste até hoje; amei a Nair Krivanec (acho que ela nunca soube); amei a Daura e depois a apresentei a um amigo e eles estão casados até hoje; amei a Nora, que dizia ser o que ainda não era, “nora”! Amei a Maria Helena, que me desprezou por um tal Dito e com ele se casou tempos depois. Amei também uma menina-moça que marcou minha adolescência, seu nome era Nilza Chacon Pereira. Foi ela, na realidade, a namorada que mais me prendeu e acho que se não fosse pela mãe dela, que me detestava, teríamos nos casado um dia. Lembro-me que começamos a namorar quando ela foi morar com sua mãe, uma viúva, na casa de meu futuro tio João, 301
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cuja mãe alugava quartos. Depois ela foi morar na Rua Augusta, na casa da irmã do Monsenhor Bastos, juntamente com o meu grande amigo Juca Batista. Na época, a coqueluche da moda feminina era uns cintos largos, de elástico, que mais pareciam barrigueiras para montaria. Eram também muito parecidos com os cinturões usados pelo Corpo de Bombeiros. As moças, entre elas a Nilza, ficavam com cinturinhas de pilão ou de vespa e nós, rapazes, gostávamos de abraçar aquelas cinturinhas. Um dia, a Nilza foi morar na Rua Matias Aires, a mesma para onde meu amigo Juca Batista havia se mudado. Foi então que apresentamos a Nilza a um amigo em comum, Murilo, também morador daquela rua, e cuja maior qualidade era ser filho avulso do galã Walter Foster. Esse parentesco fez com que a mãe dela tivesse os “olhos crescidos”, tanto que nosso namoro terminou e, depois de alguns anos, a Nilza se tornou nora do galã, para o deleite da mãezinha. Nunca mais nos vimos, mas a memória guardou os bons momentos que tive ao namorá-la. Ainda me pergunto por onde ela andará. Será que se lembra de mim? Não sei e vou continuar sem saber...
A deusa da minha rua Luiz Saidenberg Há coisas que temos pudor em citar. Afinal, sou um cara bem casado e adoro minha mulher, romance que se estende há 33 anos. Mas, sempre fui um romântico, e tive muitas paixões. Algumas delas impossíveis, para o momento. Este foi o caso de Wanda. Eu morava na Rua Barra Funda, quase esquina com a Conselheiro Brotero. Dobrando a esquina, no fim do quarteirão, havia uma casa de fachada para a rua, que tinha um grande balcão, como se usava naqueles tempos, fins da década de 1950. Nessa rua morava a família de um dentista e a pessoa com quem eu tive uma relação platônica, e totalmente muda. Uma vez, quando eu e meu irmão voltávamos da missa de domingo, da Igreja de São Geraldo, no Largo Padre Péricles, cruzamos com uma linda adolescente loira, de cabelo curto Chanel, rosto redondo e enormes olhos assustados. Pois precisamente em mim é que foi recair esse olhar, e fiquei atônito. Muito pobre, e tímido, meu choque transmutou-se em paixão. Não tardou para descobrir que Wanda era um dos prósperos habitantes do sobrado com balcão, e que sua mãe, viúva, fazia parte da Orquestra Sinfônica do Estado, como violinista. Como descobri tudo isso, não sei, pois nunca chegamos a nos falar. Mas, quando ela surgia em seu balcão, lembrava Shakespeare, em Romeu e Julieta – O balcão é o leste, e Julieta é o Sol! Eu trabalhava num estúdio de flâmulas e, às vezes, lhe deixava algumas no portão, numa tímida oferenda. Coisa de vizinhos, minha zelosa mãe
chegou a conversar com a dela. E, tocando casualmente na história, recebeu a resposta – Ele precisa caminhar muito, e então veremos. Ou seja, cresça e apareça! Mas não havia chegado meu tempo de aparecer. Wanda era sósia, uma gêmea mais jovem, mas idêntica, da atriz americana Shirley Jones, que estrelou musicais como – Carroussel e Oklahoma. Havia grande diferença de posses, a família dela poder-se-ia dizer rica. Como disse, nunca nos falamos, e nos nossos raros encontros, de agem, eu sempre ficava atônito e confuso pela sua inesperada aparição. Creio que a última vez que a vi, ela saía do Cine Metro acompanhada da mãe. Mas o que eu podia fazer? Se fosse hoje, as coisas seriam bem outras. Talvez, como o verdadeiro Romeu, eu saltasse do meu balcão para raptá-la. Mas, cada tempo tem suas mazelas, e suas conquistas. Eu tinha, mesmo, muito a caminhar. Só que esses caminhos levavam a rotas muito diferentes. Nunca mais a vi, a não ser ocasionalmente, nas fotos de Shirley Jones, que mesmo “madurona” continuou muito bonita.
Cito aqui o poema de Jorge Faraj, Newton Teixeira e Silvio Caldas, que dá título a esta história, por sua rara beleza: A deusa da minha rua tem os olhos onde a lua costuma se embriagar, nos seus olhos eu suponho, que o sol num dourado sonho, vai claridade buscar, minha rua é sem graça, mas quando por ela a, seu vulto que me seduz, a ruazinha modesta é uma paisagem de festa, é uma cascata de luz, na rua uma poça d’água, espelhos da minha mágoa, transborda o céu para o chão, tal qual o chão da minha vida, a minha alma comovida, no meu pobre coração, espelhos da minha mágoa, meus olhos são poças d’água, sonhando com seu olhar. Ela é tão rica e eu tão pobre, eu sou plebeu e ela é nobre, não vale a pena sonhar. Mário Lopomo Eu também morei na Rua Barra Funda, quase esquina com a Conselheiro Brotero, em um prédio pequeno no número 625, de 1957 até 1965. Não me lembro da Wanda porque meu amor platônico era um jovem da Sérgio Meira de quem nunca cheguei a saber o nome e que a timidez nunca me permitiu pesquisar, nem mesmo quando íamos à missa das onze na Igreja São Geraldo! Mirça Bludeni de Pinho
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A ausência de Anita
Um devastador olhar castanho
Antonio Souto
Luiz Saidenberg
Em 1959, eu cursava o segundo ano no curso noturno do Ginásio Centro Independência, no Ipiranga, onde havia duas irmãs muito bonitas. Uma delas, a Anita, era minha colega de classe e tinha apenas 13 anos sendo que eu tinha 14. Embora ela fosse uma criança ainda em formação, portanto, com pouco seio, já era muito bonita. Também era ossuda e prometia se tornar uma linda mulher. Eu era um garoto ingênuo; sim, naquela época com 14 anos, éramos crianças ingênuas e, como era previsível, visto que morávamos próximos e íamos embora todo dia juntos, nasceu uma paixão arrebatadora. Três meses depois, de minha parte, a paixão havia arrefecido e eu sentia falta da algazarra com os colegas e, sendo assim, terminei o namoro. No final do ano, ela mudou para outro lugar do Ipiranga e perdemos o contato. ado um ano, eu estava trabalhando no Mappin quando o recepcionista do meu andar foi à minha seção e disse: — Souto, tem uma tremenda loira te procurando. Dirigi-me à recepção, e para minha surpresa deparei-me com uma Anita já moça, uma mulher, linda e sexy, com o cabelo tingido de loiro e, o que foi melhor, ainda apaixonada por mim. Reatamos. Nessa época, ela era caixa da Doceira Paulista e assim uni o útil ao agradável, pois todo dia na hora do almoço eu ia namorar e aproveitava para comer um doce mil folhas, e ainda me sentia o máximo pois ela era alvo dos olhares cobiçosos e era minha namorada. Porém, como tudo que não exige esforço a gente não valoriza, alguns meses depois tornei a terminar com ela. ado mais um ano, eu estava descendo as escadas de serviço do Mappin quando no prédio em frente, na Rua Conselheiro Crispiniano, eu a vi: linda, deslumbrante, enfim, um “mulherão”. No ato eu pensei: vou voltar com ela, contei os andares e, como era fim de expediente, deixei para o dia seguinte. No dia seguinte, procurei-a no local que a havia visto e fui informado que no dia anterior havia sido seu último dia na empresa. Como tudo que a gente não pode ter a gente quer, bateu-me uma “paixonite”, mas nunca mais a vi. Durante muito tempo sofri com a ausência de Anita, sofrimento que só acabou quando conheci aquela que viria a ser minha mulher e que, apesar dos percalços, está comigo há 36 anos e era tão bonita quanto a Anita. Atualmente é uma senhorinha linda e quando eu estou junto a ela, me encho de orgulho. Agora, aos 62 anos, quando estou no mar com meus pensamentos, ainda pergunto: — Por onde andará Anita, a que me amou sem reciprocidade?
Eu morava há nove anos no Bosque da Saúde. Vivia com uma moça e a relação, que nunca fora das mais felizes, deteriorava-se rapidamente. Até que um dia, 6 de julho de 1974... Nessa altura eu, felizmente, estava bastante decepcionado com o futebol. De torcedor fervoroso na Copa de 1970, vira rolar, além de muita água debaixo da ponte, muitas cabeças de presos políticos, tortura, morte, prisão de amigos, censura e repressão. ei a ser contra, como dizem sobre os espanhóis, em relação a qualquer governo. Meu lado Camargo, provindo do vale espanhol de mesmo nome, ou a falar mais alto. Naquele momento, a exaltação ufanista da Seleção cheirava-me, com razão, a propaganda demagógica da ditadura. “Brasil, ame-o ou deixe-o” e outras coisas do gênero. Um terror. Mas, onde eu estava mesmo? Ah, sim, indiferente em relação ao jogo, ao invés de sentado em frente a um televisor, estava, naquela histórica manhã, num auto-elétrico, por sinal, japonês, fazendo um conserto no fusca. Foi quando ela ou... uma jovem beldade, caminhando com altivez e acompanhada por uma menininha, que depois soube ser sua irmã mais nova. Eu estava à porta da oficina e ela, apesar do narizinho erguido, enviou-me de soslaio um devastador olhar castanho esverdeado. Uau!!! Transido, apressei-me em segui-las. Por sorte, o conserto já havia terminado. Arranquei com o carro e ultraei-as, julgando ter visto, novamente, um quase sorriso naqueles grandes e belos olhos. Esperei-as mais à frente e conversamos brevemente. Trocamos telefones e ela me deu umas balas, que tinha comprado para a irmã na padaria. Não era fã de futebol, também, e por sua casa estar tomada pelos amigos dos irmãos, torcendo rumorosamente, aproveitara para dar uma volta. O que é a coincidência! Ou será que outros fatores misteriosos escondem-se atrás do acaso? Eu já morava ali há vários anos e jamais a havia encontrado antes. Poucos minutos de conversa e, embora eu ainda não soubesse, minha vida estava mudada, para sempre. Casamo-nos dois anos depois, aí vieram os filhos, o tempo ou rapidamente, e agora, quando recapitulo, vejo que estamos juntos há 32 anos. Sempre, ainda, com muito carinho e emoção, como se jamais tivéssemos amadurecido e o dia 6 de julho de 1974 tivesse congelado no tempo. Muito tempo depois, perguntei-lhe o que a havia atraído em mim, naquele momento. Disse que eu parecia uma figura deslocada no panorama do velho bairro e que tinha no olhar um brilho quase de loucura, no que não deixava de ter razão. Eram o fascínio e a perplexidade ante o milagre espantoso de nossa vida, tão singular e ao mesmo tempo compartilhado com milhões e milhões de outras pessoas.
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Paquera ageira Doris Day Um final de tarde quente de verão, já tinha voltado do trabalho e acabado de jantar quando um amigo tocou a campainha. Ele e um outro casal estavam indo a Santos tomar um chope, um sorvete, dar um eio e aram pra me convidar. Esse tipo de programa era comum nos anos de 1970. Topei na hora, claro, mas... ele não havia dito que o casal ia de carro e eu, com ele, de moto! Eu nunca tinha andado de moto na vida e aquilo me parecia uma loucura. Sem esperar que eu refletisse muito, ele me deu um capacete, pediu para que eu pegasse um agasalho e fomos. Era uma moto grande, me parece que 1000 cilindradas. Ele era um hábil piloto e no começo, não senti muito medo. Ele foi devagar, me orientando para que segurasse bem na sua cintura e acompanhasse o movimento do corpo dele, ora jogando para a esquerda ora para a direita, dependendo da curva. Fomos pela Imigrantes. A noite estava bonita e assim que saímos de São Paulo, fui percebendo as estrelas. O céu estava magnificamente estrelado e o vento que sentia no meu corpo era delicioso. Fui perdendo o medo e apreciando a viagem. Não tirava os olhos do céu e eis que, numa fração de segundos, vi uma estrela cadente! Foi uma aparição tão rápida, tão bonita, que no mesmo instante fiz um pedido e comentei com ele. Foi uma viagem inesquecível, só que, na volta, não tive coragem de voltar com ele e voltei com o casal de carro e o pedido não foi atendido. Acho que foi melhor assim. Tudo tem o tempo certo!
O dia do casamento Miguel Chammas Hoje é dia 14 de abril de 2006; há exatamente 39 anos, às 18h30, mesma hora que começo a contar essa história, um jovem mancebo com 27 anos de idade, saía de uma sauna masculina, onde tinha ido se preparar para ficar em ótima forma para enfrentar o dia seguinte. Ele havia procurado por um massagista porque havia tido pequena torção no tornozelo dançando durante uma noitada, no dia anterior, e que seria a sua última como solteiro. Tranqüilo depois da massagem e da sauna, alimentado com as diversas asinhas de frango, a robusta salada de agrião, o saboroso peixe grelhado e as diversas cervejas geladas, lá foi ele para a Rua Major Diogo, 307, onde residia e iria residir depois do enlace, por mais algum tempo. Em casa, depois de ter sido recebido por sua mãe, seu pai, irmãos e primos, foi para o quarto no intuito de pensar no ato corajoso que iria prota-
gonizar no dia seguinte. Estava bastante consciente de que não seria um espetáculo teatral, mas uma cena da vida real, por isso achava que era preciso pensar, planejar todos os gestos e, principalmente, calcular como deveria ser o seu procedimento diante das peças que, sem qualquer sombra de dúvida, estavam sendo preparadas por seus fiéis e inseparáveis amigos. Nessas alturas, como flashes cinematográficos, suas maldosas brincadeiras com casais nubentes foram surgindo, uma a uma. Entre elas viu seu amigo Zinho, Luiz Loschiavo, tomando vários copos de chope misturado com óleo de rícino e em seguida saindo de viagem de núpcias para Aparecida, com as diversas paradas obrigatórias solicitadas pelo noivo; e também viu sua prima Hilda abrindo a mala que pensava estar cheia de doces e guloseimas preparadas para sua degustação quando da viagem de Lua de Mel, se deparar com todas aquelas brincadeiras que ele havia preparado. Naquele momento, sentiu um forte calafrio lhe percorrer a coluna vertebral e o cigarro que estava entre seus dedos caiu, quase queimando o lençol. Tentou imaginar que nada lhe aconteceria, mas não conseguiu mentir para si mesmo, lembrou que a promessa mais boazinha era de que todos os amigos iriam se colocar em alas nas escadarias da Igreja de Nossa Senhora da Consolação, empunhando garrafas de cerveja que, à sua agem pelo corredor, espocariam e formariam uma cascata de espuma banhando os noivos e todos os demais membros da comitiva nupcial. Tremeu, fechou os olhos e se entregou aos braços de Morfeu que lhe acolheu e o embalou durante toda a noite. O sábado amanheceu lindo e ele tentou viver aquele dia como qualquer outro, mas não conseguiu. Presságios ruins vinham atormentá-lo em todos os momentos. O telefone tocou, era o seu tio João, seu padrinho de casamento, que ligou para perguntar a hora em que deveria ir buscá-lo. Imediatamente ele recusou o convite, dizendo que iria sozinho para a Igreja e que encontraria o padrinho e a madrinha, tia Zazá, no altar. Chegada a hora fatal, ele vestiu as calças e a camisa, colocou as abotoaduras, chiquê da época, calçou as meias e os sapatos, colocou a gravata bem dobrada no bolso do paletó, depois o paletó sobre os ombros e, lembrando-se que havia prometido que não iria casar se a noiva chegasse atrasada, saiu para vencer a distância entre sua casa e a igreja, numa jornada solitária. Durante o trajeto, lógico, tomou alguns conhaques para criar um clima e continuou andando, fez o caminho mais longo, seguiu pela Rua Major Diogo, atravessou o Viaduto Major Quedinho, desceu a Rua São Luís e entrando na Avenida Ipiranga ou pela porta das casas noturnas como se delas se despedisse. Na esquina da Rua Consolação com a Avenida Ipiranga, colocou a gravata, vestiu o paletó e, nada vendo de perigoso, atravessou a rua e subiu, sobressaltado, as escadarias da igreja. Lá dentro ficou sabendo que sua futura esposa já havia chegado e esta-
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va dando uma volta de carro esperando a chegada do noivo. Entrou no altar, e disse o sim que o uniu a uma mulher por 32 anos de sua vida. Foi bom enquanto durou e agora só restam essas lembranças, além dos filhos e netos que são maravilhosos. Ninguém lhe preparou uma patuscada, mas o medo que sentiu da véspera até a saída da Igreja tinha sido exemplar, e como dizem os mais sábios, pau que nasce torto morre torto... Depois de alguns meses lá estava ele aprontando novamente com os casais nubentes da família, mas isso é outra memória.
Deixar o João por um turco rico, não Eudóxia Navarro Guerreiro (in memoriam) Quando eu tinha 15 anos, na época da Revolução de 24, trabalhava na Rua 25 de Março como bordadeira – bordava à máquina. Eu devia ser muito bonita porque na loja onde eu trabalhava, do Abraão e seu irmão Nagib, despertava atenção. Acho que foi o Nagib que começou a “arrastar a asa” pra mim e um dia me chamou para o “quartinho”. O que era esse “quartinho?” A loja tinha um salão grande, onde as moças trabalhavam bordando. Não podiam levantar a cabeça porque tinha um homem que ficava o dia inteiro vigiando para que não tivesse conversa. Quando vieram me dizer que ele estava me chamando no “quartinho”, eu quase morri de susto. Era nesse “quartinho” que eles davam broncas nas moças por qualquer motivo besta. Eu ainda perguntei: — O que será que ele quer? Eu não fiz nada de errado! No “quartinho” em vez da bronca, ele quis ar o braço pelo meu ombro e disse: -— Eu gosto de você e quero me casar com você. Quero casar mesmo. Eu respondi que não podia, que tinha namorado. Nessa época, eu já namorava o João, com quem depois me casei. Mas era um namoro de crianças, eu tinha 15 e ele 18 anos. E ainda era um namoro escondido. Então ele disse: — Deixa ele. Eu posso te dar uma vida boa, eios, você fica dona da loja. E eu respondi: — Não, eu tenho namorado... E ele: — Pensa bem e depois me dá uma resposta. E consegui sair do “quartinho”. Nenhuma das moças levantou a cabeça. Não se ousava perguntar nada. Mas eu nunca mais falei nada e o assunto morreu ali.
No mesmo dia, contei para minha mãe, que era gananciosa e queria que eu deixasse o João para casar com o turco rico. Ela insistiu muito, mas eu bati o pé e disse que do João eu não largava. Depois que o Nagib me pediu em casamento eu saí da loja e fui trabalhar na Rua São Bento, na Casa Paiva, uma loja muito conhecida. Acho que foi para ganhar mais. Embaixo era a loja de roupas e em cima um grande salão onde ficavam as bordadeiras, a máquina e as costureiras. Eles recebiam encomendas de enxovais completos para gente rica. Roupas de cama, mesa e banho e também de vestidos com muitos bordados. De lá saíam coisas lindas. Uma vez, eu lembro que bordamos um enxoval completo para uma moça rica e era tudo tão bonito que quando ficou pronto foi exposto para que todos vissem. E, uns meses depois, veio a encomenda do enxoval do bebê que deveria nascer nove meses certinhos depois do casamento. Também foi um enxoval rico e caprichado. Aí, minha mãe cismou e me fez deixar de trabalhar fora. Fiquei bordando em casa, mas era pouco serviço. Bordei o meu enxoval todo. Eu já tinha 17 anos e fiquei noiva. Noivei três anos, de 1926 a 29, quando um dia, um outro turco riquíssimo, dono de lojas, parente do Nagib, apareceu em casa com um pacote de presente. Me encontrou com meu noivo João, ficou sem graça, logo se despediu e foi embora. Mamãe ficava danada porque preferia que eu me casasse com um homem rico. E eu teimei, teimei e fiquei com o João. Minha mãe comprou uma leiteria e mudamos para a Rua Inácio de Araújo. Foi aí que casamos, em 6 de julho de 1929, e depois de nove meses justinho, em 9 de abril, a Neuza nasceu. Olhando agora as fotografias, eu era bem bonita, tinha cabelos compridos que minha mãe enrolava em papelotes. Não tinha muito estudo, só tinha o primário. Mas minha mãe sabia ler e no tempo dos folhetins ela reunia todas as vizinhas para ler as histórias.
Amor platônico Décio Nappi A década era a de 1940, e eu fazia o ginasial no Acadêmico São Paulo, onde convivi com pessoas que jamais apagarei de minha memória: o Bira, Ubirajara Silva Alves, meu melhor amigo; o Arthur Murad, excelente cantor lírico; o Dino, ótimo jogador de basquete apesar da baixa estatura; o Jomar Pereira da Silva, um gentleman que poderia muito bem seguir a carreira diplomática; o Hélio Malpica, o Walter da Penha; os irmãos Heitor e Lupércio além, naturalmente, da encantadora Sarah, de rosto meigo, sorriso puro e lindos olhos negros, por quem me apaixonei perdidamente na pureza dos nossos 14 anos. 305
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Demorei algo como dez meses ensaiando as palavras que deveria usar para saber se ela aceitava namorar comigo, em dúvida se o sentimento era recíproco. Um dia, depois da última aula e a caminho do ponto do bonde, me enchi de coragem e fiz a grande pergunta, a mais importante de minha vida até aquele momento. Rosto corado de emoção e o chão sumindo aos meus pés, aguardei a resposta com a cabeça num turbilhão. Sarah respondeu que aceitava, sem mesmo pedir tempo para pensar, que era o jeito como as garotas conduziam o tema naquela época. E o ano chegou ao fim sem que eu tivesse sequer tocado em suas mãos no único encontro que tivemos fora da escola. Acho que foi amor platônico porque, em nenhum momento, me ocorreu pensar em Sarah pelo lado sexual. Ela foi para sempre um maravilhoso símbolo de pureza.
Vila Maria e suas curvas Luiz Ramos Tenho uma certa fixação por determinados bairros e a Vila Maria é um deles. Vila Maria Baixa, onde por volta de 1976, havia um bar que conhecíamos por “Porta Aberta” – nenhuma ligação com a música famosa do Vicente Celestino; o caso é que o bar não tinha portas mesmo, ou seja, nunca fechava. Um pouco à frente desse bar ficava a boate Cachoeira, onde abrilhantava as noites insones o balé do Manteiga; nesse balé, mostravam seu talento as belíssimas – pelo menos à noite, no ambiente pessimamente iluminado, claro – Índia e Bonitinha, nomes de guerra suspeitíssimos. O fato é que eu, meio que descobrindo o mundo e as coisas do mundo, andava por ali. Cheguei a ter um caso com uma delas. Aliás, acho que era por isso que eu gostava tanto da Vila Maria, ou antes, acho que foi por isso tudo que a vila marcou tanto a minha vida. Tive diversos casos com garotas dali. Umas de comportamento pra lá de familiar, outras nem tanto assim e algumas claramente “profissionais”, mas que, seja lá por que motivo fosse, tinham mania de me “adotar pra namorado”. De todas essas paixões efêmeras, uma ficou mais forte na lembrança. Tratava-se de uma garota que eu pegava no trabalho e acompanhava até em casa, ganhava um beijo caliente, sofria como que uma descarga elétrica, ficava em polvorosa, mas não “ficava”. Um singelo “até amanhã” jogava água no fogo incipiente da paixão. Talvez devesse guardar a lembrança boa e ir dormir, mas não. Ao despedir-me prometendo ir pra casa, era na boate Cachoeira que eu encerrava a noite, e aí, a um o do fogo, gostosamente eu me queimava.
Paixão na Paulista Goimar Dantas Era hora do rush em São Paulo. E eu andava, assim, com meus dilemas. Contra-fluxo de todo sistema, arremedo de um bom cidadão. Eram seis e trinta de um verão. De um calor abafado e ardente. E eu suava, ainda inocente ante tudo que iria viver. De repente, me vi ofuscado. Pela bela de jeito agitado, que surgiu em meio à multidão. Emanava um calor, uma chama, um desejo, uma estranha doçura... Luz del Fuego no meio da rua! Carceragem com um rosto solar. E eu freei o meu o apressado. Cavalo xucro preso por um laço! Fera vencida em tourada de Espanha! Senti no peito o varar de uma espada, de uma lança feroz que transa e ainda zonzo voltei meu olhar, à procura do rosto solar. Para mim era puro poema, feito a moça do sol de Ipanema. Visão semelhante à do mar. Bem depressa tratei de segui-la, mas o fim da avenida surgia. Feito emblema, enigma, signo: Uma esfinge que vem devorar! E eu sozinho enfrentando o feitiço, que era o viço da dama ao andar. Mas o rush em São Paulo é uma dança. Um bailado, um forró animado, onde todos terminam sozinhos(!)
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Festa estranha demais de entender. Procurei-a por todos os lados (como bicho de faro apurado). Mas a moça já tinha sumido, se esquivado sem deixar vestígio. Ah! São Paulo de amores perdidos! Dessa graça do encanto instantâneo. Da paixão que se acha e se perde no abrir e fechar dos sinais. No metrô que prescinde do cais, no olhar sedutor que se lança nos cinemas e bares, boates. Nos nasceres de sóis escarlates. Sentimento rompendo o concreto, coração no como do verso. Betoneira da selva de pedra. Com a qual eu misturo essas cenas. Para erguer edifícios-fonemas. E chegar ao meu céu... Com poemas.
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“O ponto culminante foi quando as vedetes, num golpe de marketing, anunciaram que durante um dia útil, à tarde, estariam tomando um banho coletivo de biquíni num lago em frente ao teatro.”
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Samba na Vila Madalena Chico Aguiar Aos faraós da Vila, Edu Rocha e Pedrão Vieira, uma parceria que fez história. Era uma vez um bar, na esquina das ruas Girassol com Purpurina, dois nomes que evocam luz, alegria e brilho. Era o bar Sete, para os íntimos, Sete de Setembro, de batismo. Quartel-general de um brioso time de futebol do mesmo nome, com direito a lousa na parede anunciando as datas das partidas. Costume antigo. Um dos sócios fundadores da agremiação e, ao que diziam, dirigente bem mais dedicado de quantos andam agora por aí, era o Zé Leiteiro, um português bem apessoado; um daqueles que fundaram, na verdade, a própria Vila. Na ocasião, já pelos setenta, mas ainda bem disposto para quem tinha ganhado a vida tocando uma vaquinha de leite por aquelas ladeiras acima. Corria o já longínquo ano de 1983, mas mesmo para a época, o lugar parecia um túnel do tempo. O bairro era ainda tão sossegado que aos sábados, quando havia mais gente, chegava-se a colocar mesas no meio da Girassol! Mas sossego demais também cansa, e quis o destino que a essa altura, os inquietos sambistas da Paulicéia elegessem o lugar como ponto de encontro. Um lugar considerado uma espécie de “Clube do Samba”, o Botekão, tinha fechado havia pouco tempo, deixando sem teto algumas dezenas de boleiros e sambistas, estes últimos quase todos bambas do glorioso Grêmio Recreativo Escola de Samba Mocidade Camisa Verde e Branco. Isso acontece muito: os bares são entidades viventes, que nascem, crescem, cumprem sua sina e morrem um dia. Então esse pessoal foi abrigar sua batucada naquela esquina. Foi lá que vi, já quase cego, pouco antes de morrer, o Roberto Ribeiro, do Império Serrano, cantor idolatrado pela raça sambista; o Boca Nervosa, “canário”, isto é, puxava o samba nos desfiles do Camisa; o Reinaldo, depois promovido a “Príncipe do Pagode”, vejam só! Com 30 e poucos anos, meio de saco cheio da vida dura e mal paga que me proporcionavam uns nove anos de formado em Medicina, eu havia descoberto o samba há pouco tempo. E descobrira também, que havia poucas coisas na vida melhores que cantar um samba de Paulinho da Viola ou de dona Ivone Lara na companhia de um bom cavaquinho, de um violão sete cordas e de um pandeiro. Freqüentar os ambientes de samba, aquela “nigéria”, como dizia o também negro Dedé, era e é realmente muito agradável. Em pouco tempo as pessoas faziam você se sentir em casa; o único segredo era o novato saber chegar devagarinho, sem empurrar. As pessoas eram alegres de um jeito que eu não conhecia; isso sem falar das mulheres, às pencas, todas de bem com a vida. Estava na moda uma maquiagem com purpurina que as deixava ultracharmosas. Só quem já rodou por essas paragens é que entende um verso de canção que diz assim: “Um sorriso negro, um abraço negro, traaaaz felicidade!”
Pois é. Entre os novos amigos, um dos mais chegados era um mulato gago, prata da casa, lá da Vila mesmo, onde morava nos fundos de um terreno, numa casinha muito humilde como já não há mais por lá: o Joca. Ele por sua vez amicíssimo do Nadão, um “bambambam” da Ala dos Compositores da Vai-Vai, e coisa e tal. Com eles vivi uma historinha curta, uma história de samba que vale a pena deixar registrada. O ano terminava; o Buru, agora gerenciando o negócio, resolveu aproveitar aquele movimento todo, organizando um bloco para o Carnaval: o “Bando Sete”, evidentemente. Seria para isso mister o competente samba, em tese, a ser escolhido por concurso. Só que um tal Digê, por sua vez compositor do Camisa, largou mais rápido que todo mundo: fez um negócio genial, curtinho, malicioso, que em dois tempos estava na boca do povo. Acontece que o Nadão tinha lá seus brios, e resolveu entrar na parada assim mesmo, junto com o Joca. E o curioso da história é que resolveram me convidar para a parceria; mais precisamente para escrever a letra. “Doutor” deve saber fazer essas coisas bem, imagino que tenha sido esse o raciocínio. Afinal, por mais apaixonado que fosse por samba, eu não deixava de ser um recém-chegado. Em uma ou duas semanas entreguei ao Joca uma folha de caderno com a primeira letra da minha vida, e última, até o momento. ei a aguardar então, o resultado final da parceria: a música que ele e Nadão acrescentariam à minha obra de estreante. Sábado seguiu sábado, Carnaval chegando, e nada, a não ser o tratamento efusivo de “parceiro”, com direito a tapinhas nas costas e convite para cerveja gelada no balcão. Um dia, afinal, depois de me festejar um pouco mais que de costume, o Joca mostrou uma filipeta com uma letra já impressa, e cantou ao pé-do-ouvido, ali mesmo, a melodia, marcando o ritmo com a mão, coisa de sambista de verdade, eu já me sentindo o próprio... Só estranhei um pouco não reconhecer naquela primeira audição nenhum dos versos de minha lavra, nada! Peguei o papelzinho pra ler, virei, revirei, não tinha uma vírgula do meu texto; e não custei a perceber que esse de agora era, na verdade, infinitamente melhor. Mas pra minha surpresa, o Joca não comentou nada, e continuou a me tratar do mesmo jeito – parceiro daqui, parceiro dali, com a maior naturalidade... Um negócio realmente estranho, mas fiquei quieto; resolvi dar um tempo pra ver se entendia mais adiante. Hipótese mais provável: acharam minha letra um lixo, mas não dava pra desfeitear assim, sem mais nem menos, um “doutor”; a solução mais diplomática teria sido aquela. O impresso foi distribuído, os dois divulgaram pra valer. Embaixo do título vinha em negrito o nome dos compositores: Nadão, Joca e Chicão – assim mesmo, rimando. O Digê, que apesar disso até hoje é meu amigo, se aborreceu com aquele concorrente de última hora. Mas confesso que eu estava achando aquela glória imerecida muito engraçada. De quebra, com meus um e setenta e poucos nunca tinha ado de Chico, e agora 311
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era promovido a Chicão, nome artístico escolhido por meus parceiros, sem consulta prévia. A “escolha” do samba acabou não ocorrendo, isto é, não houve júri, nem votação. Num sábado à tarde, na véspera do Carnaval, ao ritmo de bem uns quarenta componentes da bateria da Pérola Negra, os dois sambas foram cantados – outra solução diplomática, pensei. Com minha filosófica colaboração, nosso trio manteve a farsa, e compartilhei dos aplausos devidos aos compositores, perfilado em lugar de honra, na frente da bateria. Pena que a maioria dos meus conhecidos não estava lá para assistir à cena! Nunca esquecerei meus dez minutos de fama, como Chicão! No dia do desfile, só deu o samba do Digê; era bom demais, embora o “nosso” fosse também uma obra-prima. Mas isso não afetou minha importância, que só aumentou quando, em anos seguintes, meu “parceiro” Nadão ganhou concursos oficiais – acho que a Vai-Vai chegou até ser campeã com um samba dele. Meu parceiro! Meses depois, já meio esquecido da história, enviada para o arquivo mental de situações mais ou menos misteriosas, vou à casa de uma colega, a Leda, que era bem amiga da mulher do Nadão, a falecida Edilamar. Então a Leda me conta: — Sabe que no mês ado eu fui à casa da Edilamar, e o Nadão estava lá com o Joca, desesperado? aram a tarde inteira procurando o tal papel que você tinha escrito, uma coisa assim... Então tinha sido isso! Nem ou pela cabeça deles que “doutor” faz cópia do que escreve. Ainda bem... Sábios desígnios da Providência – o samba só ganhou com isso! O bar Sete? Tinha virado galeria de arte, agora nem sei mais. Só restou a esquina, de Girassol... com Purpurina.
Corrida atrás da cabra Roberto Masagão No final dos anos 1960, construía uma casa num loteamento da City, denominado Vila Inah, em região próxima ao Estádio do Morumbi. O meu lote ficava na divisa do loteamento, tendo como vizinha uma pequena chácara, cuja moradora criava uma cabra para fornecer leite aos seus filhos. Num determinado fim de semana, vistoriando o término da minha construção, fui surpreendido com uma gritaria: a senhora e filhos, aos berros, reclamando a devolução da cabra que estava devidamente laçada pela carrocinha de cachorros e sendo enfiada na mesma. Juntei-me ao grupo e, num impulso de grande solidariedade, postei-me na frente da carrocinha, alegando ser advogado – estava terminando o 4° ano – e que só levariam a cabra se assem sobre mim. Não deu outra: quase trafegaram por cima de minha
pessoa e desceram a rua, em direção à Avenida Francisco Morato, em cuja esquina havia uma Delegacia de Polícia. Descemos todos em correria, eu, a mulher, seus filhos, tentando alcançar a carrocinha, que sumiu pela avenida em direção, supúnhamos, à famosa fábrica de sabão da Prefeitura – não sei se ela efetivamente existia e se haveria um novo tipo de sabão com cheiro de leite de cabra. No embalo, entramos na Delegacia, apinhada de gente e, provavelmente, de muitas ocorrências sérias. Paramos perante o Delegado e eu falei peremptório: vim aqui dar queixa sobre a laçada da cabra de minha cliente pela carrocinha de cachorros. O Delegado pôs as duas mãos na cabeça, em gesto de desespero, olhou para nós e, pelo seu olhar, resolvemos todos sair de fininho e tentar achar a cabra em outra freguesia.
Sapato de cromo alemão Heitor Felippe Eu tinha mais ou menos 14 anos e morava na Rua Catumbi, 191, no bairro do Belenzinho. Não era um cortiço, era uma casa muito grande onde moravam várias famílias, mas todos tinham seus quartos, cozinhas e banheiros. Em um dos quartos vivia um senhor italiano, sozinho, que fazia sapatos por encomenda. Seus fregueses eram homens ricos que quase sempre chegavam em carros com motoristas. Nas horas em que eu não estava na escola – no glorioso Grupo Escolar Maria Zélia – na vila do mesmo nome, ajudava o scarparo (sapateiro) no que eu podia: polia os sapatos, limpava a bancada onde ele trabalhava e varria o chão de tábuas largas. Não ganhava nada, porém, ele sempre consertava meus sapatos sem cobrar, embora raramente fizesse consertos. Um dia, sem mais nem menos, ele me presenteou com um par de sapatos de puro cromo alemão que um freguês encomendara e não fora buscar, mesmo tendo pago pelos sapatos. Vejam a honestidade: como ele já havia recebido pelos sapatos, achava que não podia vender para outra pessoa. No fim da estória, eu que vestia roupas muito simples, calçava um par de sapatos marrom que fazia inveja a todos os meus colegas e que lembrava um Vulcabrás ao contrário, pois a sola acabou e o couro continuou perfeito!
Meu sonho quando criança era ter um par de sapatos de cromo alemão. Quando me formei em Química Industrial, fiz uma “loucura” e comprei um par, numa fábrica do Ipiranga, para a formatura. Quem disse que os
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meus dedos criados na maior liberdade se acostumavam com a rigidez do cromo alemão? Daí, ada a formatura, vendi o par de sapatos e comecei a usar pelica. Hoje, meus dedos são extremamente gratos, pois moro na praia e só uso sandálias. Antonio Souto Eu, na sua idade, tinha que usar sapatos de sola de pneu de caminhão. Eram intermináveis. Miguel Chammas Sapato de cromo alemão era o sonho de consumo da “plebe” nas décadas de 1940, 50 e 60, mas não era qualquer um que podia ter. Custava muito caro, principalmente se fosse um Camelo ou Scattamachia. Eu sempre tive aqueles mocassins meia-boca, cujo couro rachava mais que o solo nordestino. Mário Lopomo
Bota uma meia-sola! Luiz Saidenberg Sempre apreciei bons calçados. Fetiche, dirão alguns. Mas tenho outra explicação, que vem de minha adolescência. Em verdade, é sempre fácil para a gente achar uma explicação, como fazia Freud. Mas creio ter minhas razões. Em Campinas, quando freqüentava o mais venerável e tradicional colégio público da cidade, as finanças da casa iam mal, não correspondendo a tanta pompa e circunstância. Então, meus pais compravam-me sapatos com um nome armênio, Bogosian, Kherlakian, algo assim. Os benditos sapatos, de qualidade duvidosa, não podiam pegar uma chuva que a sola, mais parecendo papelão, inchava e começava a se desgastar rapidamente. Para agravar o processo, eu muitas vezes descia do bonde na praça central e seguia a pé para casa, talvez uns dois quilômetros distante. Logo surgiam buracos na sola, como nas ruas paulistanas. E o remédio era colocar um forro de jornal dentro, para o vexame não ser total. Por isso, assim que tive melhores condições financeiras comecei a comprar não só belos calçados, mas boas roupas. Lembro-me que nos tempos de colégio, em São Paulo, para aumentar a durabilidade, costumava-se colocar uma chapinha na ponta. Então ficávamos todos parecendo sapateadores da Broadway, tilintando a cada o. Outro costume da época era botar uma meia-sola, para salvar o calçado. Nunca gostei disso. Ficava aquela emenda no meio da sola, e o sapato,
reconstituído, nunca mais ficava o mesmo. Mas havia muitos sapateiros naquela época, e com certeza cheios de clientes. Não faziam mais sapatos e botas, como outrora, mas consertos não lhes faltavam. As coisas mudaram muito. Acho que um dos primeiros sinais foi o Vulcabrás, com sola de borracha indestrutível. O sapato acabava, mas não a sola. As solas de borracha foram virando maioria, mesmo em calçados finos. Depois veio a invasão dos tênis, abandonando as quadras e congestionando as ruas. Assim, o trabalho dos bons sapateiros foi ficando mais limitado, e suas oficinas mais raras. Mas ainda subsistem, sempre há um conserto a fazer, um salto ou fivela a substituir. Eles continuam, e creio que até bem. E a meia-sola? Deverá haver, certamente, ainda quem mande colocar.
Quando criança, tivemos sérios problemas financeiros e uma vez por ano um tio dava-me de presente um par de Vulcabrás no dia de Natal; o par precisava durar, e durava, até o Natal do outro ano, às vezes, o pé crescia, que sufoco. Quando pude tive sapato azul, vinho, havana entre outros. Hoje só uso sandálias e os dedos agradecem o conforto. Antonio Souto Meu marido ou por tanta dificuldade quando criança que o único sapato que tinha servia tanto para ir à escola como para jogar futebol na rua. Um par do sapato não resistiu e estraçalhou-se. Ele, então, para ir à escola, calçava o pé que ainda dava para o gasto e colocava uma bandagem no outro, fingindo uma contusão. Hoje em dia, ele tem sapato de todo tipo. Meus pais com seus nove filhos, também tiveram muita dificuldade para calçar a todos. Quando o sapato começava apertar, minha mãe cortava a parte da frente para liberar os dedos e dizia: — Olha que bela sandália ou chinelo eu fiz para vocês! Bernadete Pedroso Os Kherlakian eram proprietários das lojas: Casa Econômica de Calçados, Peralta, Pelicano, entre outras. Os Vulcabrás duravam muito porque tinham o solado Amazonas. As botas para crianças eram as Kicker. Pedro Nastri
Mumu da loteca e o sorteio que premiou a torcida brasileira Antonio Souto Vou contar para vocês quem foi o Mumu da Loteca. Antes de mais nada, um comentário: pra quem não se lembra, existiu o Dudu da Loteca, 313
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o primeiro milionário feito pela Loteria Esportiva, Loteca, que em 1972 ganhou dez bilhões de cruzeiros. Vamos à história: em 1972, o Dudu da Loteca ganhou uma fortuna na Loteria Esportiva e tal fato desencadeou uma verdadeira febre de jogatina. Na época, eu trabalhava numa empresa localizada na Rua General Júlio Marcondes Salgado, quase esquina com a Glete, e um cara chamado Nelsinho organizava os “bolões” para jogarmos na loteca. Num domingo de agosto, fui com minha esposa comemorar o aniversário da minha mãe no Kakuk, um restaurante muito acolhedor onde trabalhava o Otto, o garçom mais simpático e eficiente que conheci em minhas andanças, que não foram poucas. No caminho conferi o nosso “bolão” e vi que havíamos feito os treze pontos, ou seja, eu estava milionário. Chegando no Kakuk fiz o seguinte comentário para o Otto: — Otto, esta semana você “está frito”, o pessoal do meu escritório ganhou na loteca e você vai ter que servir muitos chopes. Ao que ele me respondeu, com um meio sorriso e um ligeiro erguer de sobrancelhas, numa maneira bem característica: — É, esta semana vai ser cansativa, pois além de vocês, o pessoal que está na mesa “X” também ganhou, o pessoal da mesa “Y” também ganhou... Enfim, em cada mesa havia um ganhador e como para bom entendedor um pingo é letra, enfiei minha viola no saco e fiquei quieto. Na segunda-feira, cheguei ao serviço às 7h15 e às 7h30 chegou o Edmur, cujo apelido era Mumu. Ele era aquele funcionário que é o sonho de qualquer chefe: solícito, trabalhador e quieto, porém tinha apenas 15 anos. Naquele dia chegou outro Mumu, que chutou o cesto de lixo, deu um soco na mesa e anunciou: — Tô rico, vou pedir demissão assim que meu chefe chegar! Chamei-o na minha mesa e lhe pedi para esperar o rateio, pois os resultados do fim de semana haviam sido muito lógicos. Por sorte ele me atendeu. Naquele dia ninguém trabalhou, amos o dia calculando quanto cada um iria ganhar, inicialmente considerando um ganhador, à medida que o tempo ava dois, três, cem, até que no final do expediente veio a notícia fatal: — Praticamente o Brasil todo ganhou na Loteca. Só como medida de grandeza, eu jogara CR$ 5.000 e recebera CR$ 7.000, ou seja, os CR$ 2.000 de lucro não pagavam um chope no Kakuk. Nesse momento, quando Mumu estava triste e cabisbaixo, entra o Xikiño, o garoto mais divertido e espoleta do escritório e grita: — Gente, este é o “Mumu da Loteca”.
veja, e no final de tudo ele deu seus móveis para os amigos, a casa para seu compadre e no extremo de sua alegria jogou seu velho caminhãozinho dentro de um rio... pegou um dinheiro emprestado e se foi para a Capital receber o prêmio. Resultado: o “prêmio” não dava nem para pagar as despesas da festança. Coitado! Além de ter que implorar para lhe devolverem seus móveis e sua casa, teve que esperar dois meses até o prefeito liberar um trator de esteira para tirar seu caminhão do fundo do rio... Nunca mais ele quis saber de loteca. Samuka Por falar em Loteca, próximo ao prédio onde funcionava o Mappin, no Itaim-Bibi, havia uma casa de apostas com um nome muito sugestivo: “Adeus, patrão”. Nelson Coslovsky É bom lembrar que os bilhões do Dudu viraram pó, como a letra daquela música: “dinheiro é vendaval nas mãos de um sonhador” pois infelizmente, depois do seu pomposo casamento, ele começou investindo num hotel em Campos do Jordão, que faliu, depois ainda se meteu em várias confusões e penso que voltou de onde tinha saído, como a maioria dos ganhadores de fortunas, e nunca mais se ouviu falar dele. Engraçada, porém triste para o Mumu, foi a sua história, onde prevaleceu a frase: “quem não sabe esperar, come quente e cru” se a frase não for assim exatamente, fica valendo essa... Quanto ao Dudu, acho que ficou bilionário, devido a uma zebra que o moleque travesso montou no Timão. Flavio Rocha Teve um teste da loteca, que todo mundo achou que ficou rico como nessa história. Eu trabalhava na Bandeirantes e no bolão da rádio também deu os treze pontos. O Fiori Gigliotti, que transmitia o jogo principal, gritava: — Ganhamos na loteria esportiva torcida brasileira! Loteria esportiva também é com a Bandeirantes. Tinha um locutor da Band que estava em Campinas que queria jogar o microfone fora e pedir a conta no dia seguinte. Quando saiu a lista dos ganhadores, o rateio foi de 1.100,00 cruzeiros. Foi muito gozado. No bolão da rádio estava também o saudoso Vicente Leporace, que tirou um tremendo sarro no seu programa O Trabuco. Mário Lopomo
Em 1974, meu tio que vivia em uma pequena cidade do Mato Grosso acertou os treze pontos e foi aquela festa: cabaré, mulherada, muita cer314
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Pecados em nome dos sorvetes italianos Miguel Chammas Em meados da década de 1950 eu residia na Rua Augusta, 291 e o João Baptista (Juca) morava no quarteirão de cima, o número não me recordo, mas era do lado par, na altura do quatrocentos. Ele morava com os pais e irmãos, duas tias e o tio Monsenhor Bastos (todo sãopaulino deve lembrarse da figura) em uma casa enorme que permitia, ainda, a locação de um ou dois quartos. O Zilando morava com a família na Rua Bento Freitas esquina da Rua Major Sertório, local no qual seu pai tinha instalado uma pensão, onde foi feita uma parte do filme Modelo 19, com Jardel Filho. Na Rua Rego Freitas, esquina da Rua Marquês de Itu, havia se instalado uma sorveteria com sorvetes tipo italiano, coqueluche da época, e nós ficamos fãs da localidade. Porém nos faltava o principal para as visitas constantes que pretendíamos fazer: a verba suficiente para matar nossa vontade gelada. O que fazer? Qual seria a solução mais viável? Reunidos os três, discutimos várias possibilidades e optamos por uma idéia que surgiu da adaptação de várias sugestões apresentadas: iríamos fazer três listas de captação de contribuições em nome da Igreja de Nossa Senhora da Consolação, devidamente assinada pelo responsável, Monsenhor Bastos, e arrecadar a verba que nos fazia falta. Plano definido, pusemos mãos à obra em folhas de papel almaço pautado e escrevemos um preâmbulo mais ou menos assim: “A Igreja de Nossa Senhora da Consolação, através de seu responsável Monsenhor Francisco Bastos, autoriza seus representantes, portadores desta lista, a arrecadarem contribuições para a compra de alimentos para pessoas carentes da comunidade”. Eu, como chefe dos coroinhas, fui até a sacristia e consegui chancelar as folhas com o carimbo oficial da Igreja; o Juca, mais chegado ao tio, forjou uma parecida, e os três, devidamente documentados, saíram para executar a missão. O plano estava dando os resultados esperados. Todas as tardes, reunidos, íamos à sorveteria e nos fartávamos de sorvetes. Não sei como, um belo dia, o comentário sobre a lista chegou aos ouvidos do Monsenhor. Ele, mais ladino do que se podia esperar, iniciou investigação particular e, claro, chegou aos três pequenos meliantes. Lembro como se fosse hoje. Chegamos à igreja despreocupados, entramos na sacristia e zapt! Fomos aprisionados e suspensos pelas orelhas por um religioso totalmente fora de suas condições normais. Informados que toda a história tinha sido descoberta, fomos obrigados a devolver as três listas que já estavam bastante sujinhas de tão usadas, levamos uma tremenda reprimenda e ainda, como penitência, tivemos de rezar o terço a tarde inteira, na presença de todos os fiéis que chegavam à igreja. O Monsenhor ainda teve a “audácia” de ir até a sorveteria e ar uma descompostura no proprietário, ameaçando-o, inclusive, com uma queixa policial.
Assim terminou nossa aventura e como prejuízo maior, a proibição do proprietário da sorveteria de nossa presença no recinto. Foi-se também nosso melhor quitute... Que Deus nos perdoe a peraltice!
Os ilustres militares da Rua Groenlândia José Carlos Munhoz Navarro No fim da década de 1960, a Rua Groenlândia abrigava a residência oficial do comandante do II Exército, cujo quartel está situado no Ibirapuera. A casa, de esquina, muro baixo, cercado de folhagens espinho-de-cristo, tinha, tanto na própria Groenlândia quanto na Rua Venezuela, três ou quatro guaritas, nas quais ficavam perfilados os sentinelas. O maior aparato acontecia quando o general entrava ou saía de casa e um ou dois pracinhas paravam o trânsito. Fora isso, tudo o mais era discreto e calmo. Meu pai tinha uma mercearia há mais ou menos cem metros da casa do general e como era conhecida, diariamente os pracinhas vinham até nós para comprar lanches e refrigerantes. Falávamos pracinhas, mas na verdade era a tropa de elite do exército, a famosa PE, com seus uniformes impecáveis, lenços brancos no pescoço e outros aparatos. Era engraçado, pois se um deles aparecesse com roupa de “briga”, ou seja, de trabalho interno, teríamos dificuldades em reconhecê-lo. Mas o interessante é que eles vinham diariamente à nossa mercearia e levavam sempre aquele algo mais que meu pai acrescentava aos seus fregueses. Até os empregados domésticos conheciam o valor dos diversos tipos de sanduíches ou o tempero das famosas sardinhas fritas feitas pela minha mãe e que eram vendidas no balcão. Uma vez, o próprio general deu uma adinha por lá, nem desceu do carro, apenas um dos pracinhas veio até meu pai, falou alguma coisa, gesticulou, deu uma piscadela, como dizendo: — O homem está ai. Meu pai sorriu, fez um breve aceno e o carro se foi. Uma noite, quando voltávamos de um eio, o pneu de nosso carro furou justamente em frente a casa do general. Assim que o carro parou, dois pracinhas se acercaram de nós, dando ordens para que saíssemos logo. Argumentos daqui, ordens dali, um princípio de tumulto, até que um dos pracinhas reconheceu o velho seu Zé da mercearia e rapidamente correu até o capitão da guarda e informou quem estava por lá. O capitão, que já iria tomar providências mais enérgicas contra os suspeitos, soubemos depois, abrandou a voz, abriu um sorriso e deu ordens para deixar a gente trocar o pneu com calma. Assim foi feito. Enquanto eu lutava com porcas e parafusos e meu pai rodava pneus cheios e vazios daqui para lá, dois pracinhas ficaram ao lado do carro, batendo papo com a gente, armas nos ombros, fazendo uma guarda diferente, na pacata Rua Groenlândia. 315
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A primeira vez que ganhei dinheiro nas patas de um cavalo, ou melhor, de uma égua Miguel Chammas Hoje, 25 de Janeiro, me lembrei do Grande Prêmio São Paulo que era disputado no Jockey Club. Lembrança vai, lembrança vem e nesse embalo fui transportado aos meus tempos de freqüentador e apostador assíduo do Jockey Club, quando perdia tanto que já me considerava proprietário do relógio que era exibido junto das raias do hipódromo paulistano. Eram os últimos anos da década de 1960, e eu, como de costume, estava completamente duro. Estávamos no final do mês de janeiro, eu era funcionário de uma empresa chamada Auto Asbestos e trabalhava no setor de Tesouraria. Meu salário era pequeno e, além de pequeno, já com saldo devedor de pelo menos o dobro do seu valor nominal. Era realmente abuso da parte de alguns funcionários, entre eles, eu, que sacavam vales além dos salários, e no dia de pagamento assinavam a quitação do mês, um vale da diferença devedora e, lógico, um novo vale para enfrentar os dias que viriam. Era um moto perpétuo. Então o senhor Amadeu, Diretor istrativo e Financeiro da empresa, determinou que qualquer vale só seria concedido depois de consultada a conta corrente do funcionário. Para mim, aquilo foi um balde de água fria na cabeça. Fevereiro entrando, carnaval chegando e eu sem um trocado no bolso. Por mais que desse tratos à bola, não conseguia encontrar um caminho para sair da enrascada, quando o Candinho que era o tesoureiro da firma e meu superior hierárquico, se chegou perto de mim e disse: — Miguel, você sabe que estou para casar. Ontem fui entregar o convite ao padrinho de minha noiva e ele me chamando para um canto, disse que o meu presente de aniversário estava no papelzinho que me ava sorrateiramente: era o nome de uma égua que iria correr no hipódromo de São Paulo no sábado de carnaval e estava preparada para ganhar. Disse que eu deveria jogar tudo que pudesse arrecadar naquele cavalo. Disse mais: — Você sabe que eu não entendo nada desse jogo e que pela minha função na empresa nem posso me envolver em jogatinas, e eu sei também que você, embora tendo da empresa as mesmas restrições, conhece e continua jogando sempre que pode, então... No mesmo instante me assanhei.O que ele dizia era música para mim e perguntei: — O que você quer que eu faça? Quer que eu jogue para você? Ele anuiu acenando com a cabeça e eu concordei em ajudá-lo desde que ele me arrumasse algum dinheiro para jogar. Ele concordou e, na segunda-feira antes do carnaval, com os valores em mãos, me dirigi para a quitandinha do Jockey na Rua Boa Vista e formalizei as apostas em pules antecipados. A semana transcorreu e eu, ainda duro, não me animava em fazer planos para os festejos de Momo. O sábado fatal chegou, o cavalo que não
era cavalo, era uma égua de nome Olaia, correria no terceiro páreo por volta das 15h30. Nesse dia, com medo da decepção, não fui ao prado. Fiquei em casa munido do meu radinho Spica, então recém-lançado no mercado, e comecei a ouvir a irradiação que era feita pelo famoso Vicente Chieregatti: “Atennnnnnnnnção, foi dada a partida para o terceiro páreo do programa, tomando a Olaia que vai se distanciando, nenhum animal força para brigar com ela, contornam a curva e iniciam a reta final, Olaia vem de agem, o jóquei já colocou o chicote em baixo do braço e vem tocando apenas com as rédeas, Olaia vai chegando, vai chegando e cruza o disco final.... Olaia, azarona do páreo, deve pagar um caminhão...”. Eu saí de casa como estava: de camiseta, short (naquela época usavase short e não bermudas) e chinelos. Peguei um táxi na esquina de casa já avisando que ele iria me levar ao Jockey Club e esperar na porta para receber a corrida. Entrei brincando com o porteiro e cheguei ao guichê, lá encontrando todos os nobres do Ducado de Piu-Piu. Foi o maior carnaval da minha vida. Fechei o 5ª Avenida Show e levei todas as moçoilas para brincar nos bailes do Clube Royal, que eram realizados no Cine Odeon, na Rua da Consolação, bebi e pulei durante quatro noites espetaculares. Só voltei para casa na quarta-feira de cinzas de manhã, sem um tostão no bolso. Do dinheiro ganho, só restava uma parte que eu havia dado de presente à minha mãe no sábado, antes de sair para a farra.
Apenas uma correção na sua história, desculpe, mas o Jockey pagava as poules ganhadoras na base de Cr$10,00 jogados e não Cr$1,00. Mas valeu e muito ler sua narrativa. As pastilhas do muro da Avenida Lineu de Paula Machado, até o início da Francisco Morato e final da Eusébio Matoso, foram colocadas com meu rico dinheirinho, troquei a grama da pista umas duas vezes. Carlos Roberto Teixeira Trindade Eu era um catedrático em corridas de cavalo. Pegava o jornal e ia fazendo minhas acumuladas. Um dia, ando pelo Jockey Club, que ficava no caminho de casa, – entrei para fazer as acumuladas daquela noite e lá, já de saída, estava o Vidraça, com suas acumuladas feitas: — Mário, primeiro páreo nº1. Terceiro nº 4 e sétimo nº 1. Para não desprezar o amigo fiz uma acumulada no duro a cinqüenta centavos, e dois a dois com mais um cavalo de minha confiança, tirando um que ele havia indicado. À noite, quando liguei o rádio, já havia corrido os três primeiros páreos. Os dois cavalos que ele indicara ganharam. O meu da pule de 2x2 já tinha furado. Restava o sétimo páreo, ganhando, eu pegaria no duro.
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Aqueles minutos se transformaram em dias. Quando veio o sétimo páreo, sua indicação ganhou de ponta a ponta. Aqueles cinqüenta centavos se transformaram em oitenta, que em cruzeiros novos era equivalente a oitenta mil cruzeiros velhos. Mário Lopomo
Arruaças da turma dos Duques de Piu-Piu
de choque que atenderam a ocorrência foram os “Duques de Piu-Piu”. Fomos detidos e encaminhados à Central de Polícia, na época localizada no Pátio do Colégio. Ali tivemos que aguardar o Delegado titular que só chegou e nos dispensou às 7 horas da manhã. Cheguei em casa, e mesmo todo amarfanhado, liguei o rádio na Bandeirantes e tive que ouvir o Vicente Leporace no programa O Trabuco mandar um recado para o meu pai, que era seu amigo. O recado foi mais ou menos assim: “O Alfredão, filho bailarino que acaba baile e faz arruaça é um predicado meio difícil de ser aceito”. Que papelão!
Miguel Chammas A memória me leva para uma aventura de baile. Não me lembro o ano, mas a fama de bons bailarinos conquistada pela turma voava com o vento. Uma das meninas que falava de nossa especialidade trabalhava na Philips do Tatuapé e nos convidou para o baile de aniversário da empresa, que seria realizado nos salões do Palácio Mauá. Aceitamos de pronto, com quase dois meses de antecedência. Começaram, então, os comentários, e já tínhamos compromisso de dançar com muitas damas. Lembro que eu e o Xiribi fizemos beca nova para o evento. O Nelson, alfaiate, foi convocado para fazer nossos ternos que, por coincidência, eram idênticos, feitos em tropical na cor caramelo com colete transado. Eis que chega o esperado dia, ou melhor, a esperada noite, e às 23 horas nossa turma, os “Duques de Piu-Piu”, sem nenhuma baixa e com mais uns agregados: o Dito Caipirinha e o Aluísio, o Tche, se apresentavam nas monumentais portas do Palácio Mauá. Entramos e logo fomos assediados pelas damas conhecidas. Antes da primeira seleção, fui até a beira do palco e com satisfação constatei que a maioria dos músicos eram grandes conhecidos, caso do Mãozinha, ritmista, do Cópia, pianista, do Orlando, trompetista e de vários outros. Começa a música e não temos como recusar, começamos a dançar. Já vividos na malandragem, fomos percebendo que os “cavalheiros” da Phillips começaram a nos olhar atravessado e comentar entre eles. Nada tínhamos a fazer, continuamos dançando e recebendo algumas represálias tais como empurrões “sem querer”, pisadas por “descuido” e outras cositas más. O baile estava bom e continuamos a dançar. Mas, tentando evitar alguma ocorrência mais desagradável, combinamos que dançaríamos mais ou menos próximos uns dos outros, e assim o fizemos. Por volta da 1 hora da madrugada, durante uma seleção de sambas, aconteceu o esperado. Um chute mais forte recebido pelo Toninho, gerou a confusão. Imediatamente os “Duques” se agruparam formando um círculo para não serem atacados pelas costas e começaram a distribuir bordoadas nos atacantes. Apanhei tanto que nem me agüentava em pé, ainda por cima com um braço luxado. Para abreviar, os únicos detidos pelos policiais das oito viaturas
Rua da Assembléia, o grande roubo Nélio Nelson Gonçalves Lá estava eu sentado no muro, chupando umas gostosas mangas com uns amigos. O Milton, que tinha a melhor pontaria, era o encarregado de derrubar as mangas. Esta era a única mangueira sobrevivente da antiga Chácara Itororó. Enquanto conversávamos, escutamos batidas de carros e corremos para ver o que estava acontecendo. Vimos que uma Kombi azul que vinha da Praça Carlos Gomes descendo em alta velocidade a então estreita Rua da Assembléia, batia nos carros que estavam estacionados tanto à esquerda quanto à direita. Não deu nem tempo de fazer comentários e, logo vários fusquinhas preto e branco da polícia aram por nós fazendo um barulhão de sirenes. Os policiais só chegaram perto da Kombi, ao lado do prédio dos Calçados Pellegrini, onde a troca de tiros deixou marcas na parede e a vizinhança assustada. Depois chegou a notícia pela Rádio Bandeirantes, se não me falha a memória. O Banco Moreira Salles, ali pertinho da Praça João Mendes, havia sido roubado em quinhentos milhões de cruzeiros, cifra que marcou o maior roubo a banco até então ocorrido na nossa querida cidade. Quando soubemos disso pela boca de minha mãe saímos correndo e fomos até a Rua Jaceguai, e era polícia pra todo lado. Como o roubo foi na área da Liberdade, as pessoas já diziam que os gatunos pertenciam à máfia japonesa e até tinham nomes dos possíveis ladrões, entre eles: Fujiro Kakombi, Sumiro Kanota e o mais temido, Atiraro Nozomi. Nesse mesmo dia, a Kombi foi encontrada na Bela Vista, inteiramente queimada. Para surpresa de todos e alívio para a colônia japonesa, dias depois, descobriram que os ladrões eram gregos que estavam de agem por São Paulo.
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Encontros furtivos Luiz Saidenberg “Il Cacciatore”, tradicional casa do Bexiga, se diferencia das cantinas dali por preparar comida do Norte da Itália, do Vêneto, da Lombardia, ao contrário das outras, geralmente napolitanas. Estive lá recentemente para almoçar, e estava absolutamente igual, inclusive na qualidade, aos bons tempos em que trabalhei na Denison Propaganda, na Brigadeiro, há quase trinta anos. Pois foi justamente na Denison que se iniciou essa história, algum tempo antes de minha entrada lá. A turma de criação, geralmente almoçava junto, hábito raro nas histéricas agências atuais. E todo dia, na hora do almoço, era o mesmo agradável dilema – aonde iremos? Um diretor de arte, convidado a compartilhar da refeição, declinou do convite, dizendo estar esperando um cliente, “um japonês”. Sem saber onde iria ele almoçar com o “japonês”, alguém sugeriu o “Cacciatore”, e para lá foram em bando. Adentraram o estreito corredor do restaurante, e com espanto e embaraço, depararam, numa das primeiras mesas, com o diretor de arte, não com um japonês, mas com uma bela secretária da agência. O primeiro a entrar estancou, aparvalhado, mas era tarde, não havia como retornar, teria de sair tropeçando na fila que vinha atrás. Entraram, portanto, procurando sentar bem longe do rapaz do “japonês”, que também não sabia onde enfiar a cara. Foi um desastre total. O mal-estar perdurou por vários meses, e pior, o termo “japonesar” ou “japonesada” pegou, sendo usado para designar encontros furtivos e almoços secretos. Ainda falando em “japonês”, atualmente o pessoal das agências pede o insosso sushi delivery em caixinha para comer a sós. Belos tempos aqueles em que ocorriam as tais “japonesadas”. Sayonara!
Reservista de terceira categoria Mário Lopomo Aos 18 anos estava na hora de cumprir uma obrigação de brasileiro. Servir a pátria. E como servir a pátria? Apresentar-se ao Exército para um ano em benefício do País, em caso de alguma necessidade. Meu local de apresentação foi no 2º Batalhão de Saúde, na Avenida Independência, Cambuci. Na verdade, não tinha muita vontade de servir o Exército porque ia ficar um ano sem trabalhar, apesar de ter o direito de continuar na firma, por lei. Num belo dia de 1957, manhã de uma segunda-feira, eu e muitos outros jovens estávamos à disposição dos militares. Eu levei um jornal, A Gazeta Esportiva, para ler e me distrair mas, logo de cara, encontrei dois colegas de escola lá do Brás. Os veteranos que estavam no final de suas jornadas nos tratavam com
autoridade e prepotência. A princípio fizemos um exame médico, mediram a pressão de todos, depois fomos à balança, e na marcação do meu peso o praça marcou errado e eu percebi. Não tive dúvida, e falei: — Capitão, a medida está marcada por engano. Ora, chamar um praça de capitão foi tudo o que ele queria ouvir. Mas os outros praças me chamaram de puxa-saco, como se ele fosse capaz de me dispensar do Exército. Tive que engolir um tremendo mico. Eu nunca consegui entender aqueles “risquinhos” nos ombros dos militares. Sempre tive facilidade para fazer amizades e nessa altura eu já estava bastante enturmado com outros rapazes. Sem contar que tinham dois que estudaram comigo no Senai, mais três que entraram no papo e a coisa foi ficando gozada. Por causa da bagunça, um cabo já havia chamado a nossa atenção. Estávamos contando piadas, em cima de algumas cenas que víamos como a hora que tivemos que fazer o exame da vista e todos nós, 45 jovens, ficamos pelados em volta da parede de um quarto que, quando muito, tinha uma escrivaninha. No meio da sala tinha um com as letras que deveriam ser lidas por nós para saber se estávamos bem da vista. Aí que a coisa pegou e os risos foram abundantes. Eu e a minha turminha estávamos acostumados a ficar pelados porque jogávamos futebol e sempre ficávamos sem roupa no vestiário na hora de colocar o uniforme do clube. Mas a maioria não. Aí que foi gozado. Muitos com vergonha colocavam uma mão na frente e outra atrás para esconder o pênis e a bunda. Os risos estavam altos, os militares chamaram duramente a nossa atenção, mas também riram. Tinha um cara que era alto, bem gordo, e um “bilau” do tamanho de um amendoim. Um japonês que tinha os pêlos da parte baixa totalmente lisos, diferente de nós que tínhamos crespinhos. Confesso que não dava para não rir. Eu e os outros, na hora de ficar no meio da sala para o teste, colocávamos as mãos na cintura como se estivéssemos no jogo de futebol. Na nossa conversa escapavam alguns palavrões. Um oficial chegou a dizer para os outros que nos éramos da malandragem. Numa chamada de atenção, teve um cara alto e forte que se exaltou e xingou um praça. Vários outros vieram, o pegaram pelo braço e o levaram para dentro, na base da brutalidade. Uma hora mais tarde, o grandalhão exaltado estava carregando um armário nas costas para deixar de ser trouxa. Depois do almoço veio a entrevista. Um sargento fazia muitas perguntas. Eu bastante desinibido batia um papo como se fosse velho conhecido do capitão. Quando ele ficou sabendo que eu trabalhava com estofados, me disse que eu seria seu ordenança, e ia ficar na casa dele reformando os sofás e poltronas. E disse mais, que eu ia ficar na maciota, com umas folgas no fim de semana. Aquele cara devia ser mulherengo! Mais tarde, vieram as provas escritas. História, matemática e outras coisas bem simples que não tinha como errar. Falei para o pessoal: — Olha, vamos errar tudo, porque os mais burros eles dispensam logo de cara. E assim foi. Mas o oficial professor deu uma ada de olhos pelas carteiras e percebeu que todo mundo estava errando. Mandou parar.
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— Vocês sabem para que serve estas provas escolares? Ninguém respondeu. Foi um silêncio total. — Olha, é o seguinte: os mais inteligentes vão servir neste quartel. Os mais burros vão servir em Mato Grosso. Ouviu-se um grande barulho ao voltar às folhas para a correção. Um mês depois fomos para o quartel. Alguns iam pegar a farda, outros não. Dezenas de jovens esfregavam as mãos à espera de não ser chamados. Os nomes eram ditos através do microfone, e muitos vibravam quando eram dispensados. Quando estavam no penúltimo nome, apareceu o meu. Dei um pulo igual ao Pelé dava quando marcava um gol. Meses depois, todos nós fomos chamados ao Estádio do Pacaembu para jurar a bandeira como reservista de terceira categoria, em caso de guerra. Nunca vi tanta sinceridade naquela jura. Tinha gente que jurava por todos os juros!
Primeiro porre Miguel Chammas Lá vou eu novamente cutucar a saudades com vara curta! Então, que seja, fecho os olhos e vejo um casarão enorme, pé direito com mais de três metros, situado na Rua Augusta, 291. Olho para dentro dele e vejo, depois de uma escada de mármore, uma porta de madeira maciça, ao lado, uma janela grande com a veneziana fechada. Abro a porta e entro. Estou em um pequeno corredor de entrada, do lado esquerdo, uma porta leva ao quarto de frente, o pequeno corredor dobra-se para a direita e continua levando seus antes à sala de jantar, mas, antes, ando pelas portas de mais dois quartos, um deles que já comentamos quando falamos da entrada e o outro, imediatamente contíguo, depois da sala de jantar, ainda na continuidade do corredor, depois um pequeno quarto, depois o banheiro e, finalmente, a cozinha. Nessa cozinha, vejo uma porta de madeira que aberta nos apresenta um enorme quintal, que só termina nos muros da Gráfica Siqueira, devidamente instalada na Rua Frei Caneca. Bem, descrito o imóvel, forço mais minha visão e vejo, então, três meninos, reconheço-os de imediato, são eles: o Miguelzinho com mais ou menos 8 anos de idade, seu irmão Carlinhos, com 6 anos, e seu primo Robertinho de igual idade que seu irmão. Estão sozinhos já que a dona Tereza, mãe do Miguel, teve que sair e a dona Neide, mãe do Roberto, indisposta, está repousando nos seus aposentos. Crianças aparentemente sozinhas têm a tendência de querer “aprontar” e pressinto isso nas expressões faciais dos três moleques, principalmente na cara do maior. Vamos nos imiscuir e ouvir o que conversam: Miguel: — Gentinha, vamos brincar de piquenique?
Carlinhos: — Vamos. Robertinho: — Eu também vou. Interesso-me pelo assunto e continuo na oitiva. Miguel: — Então Carlinhos, você e o Robertinho ficam encarregados de conseguir as comidas e eu as bebidas, o local do piquenique será atrás da moita de hortênsias, lá no fundo do quintal. Robertinho: — O que pode servir de comida? Miguel: — Tem muita coisa, pão torrado, laranja, vocês resolvem. Carlinhos: — Então vamos. Agora eles se separam para cumprir suas tarefas. Penso um pouco e resolvo acompanhar o Miguelzinho. Ele sobe as escadas, vai em direção ao primeiro quarto do corredor, aquele em que a janela fica em frente da escada de entrada. Abre a porta, entra, a por cima de uma cama de casal, alcança um grande guarda-roupas, abre uma folha de suas portas, enfia a mão e, quando a retira, tem entre seus dedos uma garrafa. Imediatamente a esconde dentro do calção e sob a camisa, sai sorrateiramente e, quase correndo, se dirige para o fundo do quintal. Lá já estão os dois comparsas. Eles sorridentes e orgulhos mostram o produto das suas pilhagens, três laranjas, três cebolas grandes e uma boa quantidade de pão torrado em forno de carvão. Miguel: — Ótimo! Eu trouxe isto para bebermos. E orgulhosamente retira de dentro do calção uma garrafa de Biotônico Fontoura tamanho família, então recentemente lançada pelo laboratório do mesmo nome. É necessário que eu faça um pequeno parágrafo para explicar que o líquido apresentado para bebida no piquenique de última hora, era um estimulante de apetite infanto-juvenil que ainda hoje existe nas boas farmácias e drogarias. Feita a explicação, continuemos a narrativa: sem mais delongas, sentam-se os três e começam a comilança. Pão torrado com cebola crua e goles de Biotônico, os dois menores moderam um pouco na bebida, pois engasgaram com ela no primeiro gole, mas o Miguelzinho, deita e rola, dando grandes goladas. Ao término do piquenique, ocorrido junto com o esgotamento do líquido inebriante, percebo que o Miguel está tontinho. Agora a coisa deve esquentar de vez, dona Tereza voltou, vê o filho naquele estado e corre até a cristaleira da sala para ver se falta alguma garrafa de bebida. Não dando pela falta de nenhuma garrafa começa a inquisição, infrutífera. Sem mais argumentos ou quesitos, solta um aviso em voz mais autoritária: — Conta o que você bebeu ou então leva uma surra daquelas. Miguelzinho percebe que nada mais há para ficar calado e diz, com a voz pastosa e a língua enrolada: — Foi só um golinho de Biotônico Fontoura, e mostra a garrafa vazia. Dona Tereza não precisa ouvir mais nada, levanta a mão e começa a surra. Mais uma das memoráveis surras! Até hoje, quando exagero na bebida me lembro daquela cena e da surra. Então, sei que está na hora de parar. Nem toda a lembrança é alegre, muitas vezes ela é doída. 319
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Meu primeiro terno Mário Lopomo Quando dos meus anos de criança em que brincávamos na rua, ficava tão sujo de terra que quando chegava em casa tinha que ser lavado na base do caco de telha para tirar o cascão. E quem fazia isso era a mãe. Quando voltava da escola mal almoçava e já estava na rua, e nas férias a gente jogava bola o dia inteiro no campo do Cometa, que dava fundos para o Córrego da Traição, frente para a Rua Brejo Alegre e a lateral do campo para a Rua Cação, Brooklin Novo, na divisa com a Vila Olímpia. Divisa essa feita pelo córrego. O jogo rolava com todos os moleques despreocupados com a hora. Começava logo pela manhã, 9 horas, e ia em frente. De repente vinha aquela gritaria: Mário vem almoçar. Cláudio já para casa. Chico, que é, se esqueceu da sua casa? Eram as mães chamando seus filhos para almoçar. Os ponteiros estavam juntinhos marcando meio-dia. Mas ninguém queria ir. O jogo estava empatado em 11 x 11. E todos gritavam: — Péra mãe! Quem marcar mais um ganha o jogo. E como demorava para sair aquele gol. es calculados, muita atenção para não errar e levar o gol. E as mães nervosas pela demora. Quando chegávamos em casa, tomávamos uns tapas, não só por demorarmos, mas por estarmos todo sujo de terra preta. Quando já todos nós tínhamos seus 14 e 15 anos, não mais andávamos descalços ou de tamancos. Estávamos de olho nas “minas” e começávamos a querer nos vestir melhor. As calças curtas iam ser substituídas por uma calça comprida. Sapatos bem engraxados. Afinal, nenhuma menina ia dar bola para moleque de rua. Então os pais foram comprar uma roupa melhor para seus filhos. Seu Manoel oriundo de Guaxupé, Sul de Minas, comprou calça e camisa cor caqui, e uma botina cor de laranja para o Getúlio. Era o jeca-tatu perfeito, segundo a gozação da mulherada, que gostava de ficar debruçada num muro. Dona Stella, já foi mais prestimosa. Comprou uma calça azul-marinho e uma camisa branca para o gordinho, o Cláudio. Já meu pai trouxe da Rua José Paulino uma calça marrom, a chamada calça pula brejo, quinze centímetros acima do tornozelo. Segundo as línguas éramos uns verdadeiros palhaços fazendo footing na quermesse da Igreja do Divino Salvador, na Rua Casa do Ator, ou da Igreja Santa Teresa de Jesus, do Itaim Bibi, ambas na mesma época, festa junina, como se dizia. Quem se propôs a dizer para as outras mães que estávamos na boca dos outros como “os bocós da Vila” foi dona Stella, a fofoqueira do bairro, que andava de portão em portão, bisbilhotando a vida alheia. Então, num domingo em que a molecada foi na minha casa assistir o Circo do Arrelia, em 1957, minha mãe disse que tínhamos que nos portar melhor e vestir uma roupa mais simples, sem querer aparecer com o cabelo cheio de brilhantina ou glostora, fazendo pose para as meninas. Aí a rapaziada começou a vestir umas roupas diferentes. Quando não estava
com aquele sapato de ir à escola, ou na missa, estávamos de alpargatas roda, que era de lona por cima e de corda no solado. Quando eu estava com meus 18 anos, veio o convite para o casamento da Neide, irmã do Cezar, o goleiro das peladas do futebol. Ela ia se casar com Moisés, também nosso amigo. Foi aí que percebi que estava na hora de andar com uma roupa melhor. Um terno, que até então eu não tinha. Minha mãe sugeriu ir à loja A Exposição-Clipper, que ficava na Praça do Patriarca. Já meu pai dizia que se eu fosse à Ducal me daria melhor. A Ducal era na Rua Direita, bem próxima da Praça do Patriarca. Estava na Rua 15 de Novembro quando dei de cara com a loja Garbo. Lembrei-me da propaganda que ela fazia no rádio: “Você precisa de uma roupa nova, lojas Garbo têm a roupa que lhe fica bem. Para homens, rapazes e meninos, o mais completo figurino. Você precisa de uma roupa nova, lojas Garbo têm a roupa que lhe fica bem. Muito bem.” Era um sábado, dia 28 de junho de 1958. Véspera do jogo Brasil e Suécia, para ver quem seria o campeão do mundo. Comprei um terno azulmarinho a prestação. Pela primeira vez, fiz um carnê de pagamento, me senti gente grande. Ao chegar em casa, coloquei o terno acompanhado por uma camisa branca e uma gravata azul com listras vermelhas, sapato Scattamachia. E disse: — Batuta, ein mãe? Custou 120 merréis!
Minha primeira camiseta de rock Ivan Castelo Branco Pegando carona no assunto indumentária, resolvi escrever a respeito da minha primeira camiseta de rock. O ritmo mais louco do planeta sempre fez parte da minha vida. Meu pai, “um roqueiro das antigas”, insistiu que seus filhos tomassem contato com o gênero de Elvis Presley desde cedo. Então foi natural para mim conhecer e gostar, desde a mais tenra infância, de Led Zeppelin, Black Sabbath, Deep Purple, Dio, AC/DC, entre tantas outras bandas. Lá pelos idos de 1982, no início da minha adolescência, conheci uma turma de jovens que freqüentava a Praça Sílvio Romero, no Tatuapé. Eram os “metaleiros”, fãs de Heavy Metal, que com suas camisetas pretas, calças jeans apertadas e tênis surrados curtiam os grupos mais pesados da época. Chamar de “metaleiro” um fã de metal é considerado um insulto hoje em dia. O correto é usar a expressão americana headbanger, sacudidor de cabeça, coisa que o Deputado Aldo Rebello não deve gostar. Voltando à história, naquela época eu usava roupas mais comportadas, reflexo ainda da minha quase meninice, e se quisesse ser aceito por aquela galera precisava me vestir como eles. Falei para o meu pai que gostaria de mudar o visual e queria que ele me comprasse algumas camisetas de bandas. Meu velho, grande
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conhecedor do estilo, aprovou a idéia e no final de semana seguinte me levou para conhecer o paraíso do rock em São Paulo: as grandes galerias, na Rua 24 de Maio. Fiquei deslumbrado com o que vi, os corredores cheios de cabeludos e punks conversando animadamente, inúmeras lojas de discos, as mais antigas eram a Aqualung e a Baratos Afins, e muitas camisetas pretas com estampas de todas as bandas. Andei pelos vários andares da galeria ao lado do meu pai, que volta e meia, parava em uma loja para apreciar os discos de vinil. Entre tantas camisetas legais acabamos comprando uma que trazia a estampa do Jimmi Hendrix, empunhando sua guitarra de forma furiosa. Voltei para casa super-feliz e naquela mesma noite, todo pimpão, fui ao encontro da turma. Acharam minha camiseta o máximo, perguntaram quanto tinha pago, onde havia comprado e tal. A partir de então, ei a fazer parte do grupo e freqüentar festas movidas a muito rock pesado. Foi o meu batismo de fogo como “metaleiro”, quero dizer headbanger.
São Paulo no tempo da eleição Mário Lopomo A primeira eleição para Presidente da República que eu realmente participei, foi a de 1950. Pois a eleição anterior tinha sido quatro anos antes, em 1946, e eu tinha apenas 7 anos. Mas em 1950, eu já estava com 11 anos, filho de gente politizada, getulistas roxos, estava atento ao que diziam meus pais e os vizinhos. Meu pai Ângelo, minha mãe Orlinda, dona Laura, seu marido Antônio e dona Elvira, que eram os mais próximos de casa, tinham sérias discussões com seu Alfredo Cunha e dona Palmira, ambos professores do Grupo Escolar Aristides de Castro, no Itaim Bibi. Eram eles adeptos da União Democrática Nacional, UDN e, portanto, a favor do Brigadeiro Eduardo Gomes, um guapo – homem bonito – segundo as mulheres e também um solteirão, o que dava grandes suspiros às moças casadoiras. A briga entre PTB – Partido Trabalhista Brasileiro – de Getúlio e o Brigadeiro pela UDN, era coisa de rixa entre palmeirenses e corinthianos. A propaganda eleitoral era na base de alto-falantes que os carros circulavam com aqueles grandes bocais em som muito alto. Lembro-me direitinho da propaganda do PTB: “Presidente Getúlio, Adhemar senador, e Lucas Garcês, pra governador é PTB, é PSP, os dois estando juntos nós vamos vencer.” O comitê do PTB era bem perto da minha casa, na Rua da Ponte, rebatizada Clodomiro Amazonas, eu ia até lá todos os dias para pegar panfletos e aproveitava para ir ao chalé da Rua Joaquim Floriano, pegar o resultado do jogo do bicho para meu pai. Aquele alto-falante no bico do telhado de duas águas que tinha na casa do comitê, fazia uma tremenda barulheira. Tudo estava bem para meu lado, que colava vários nomes de candidatos numa casinha de madeira imitando
um comitê, e ficava que nem um palhaço, gritando nomes de políticos. Mas quando o Tonelli, responsável pelo comitê, foi em casa, é que o caldo engrossou para meu lado. Uma bela noite, que meu pai pensava que ia estar sossegado escutando música italiana na Rádio Gazeta – Mensagem Musical de lá Itália, com Antonella e Gian Paolo, lá vem o Tonelli, encher o saco. — Hei carcamano, tem aí um biquiere de vinho pra mim? Era o que mais tinha em casa. E como meu pai gostava de repartir seu vinho com os amigos... Só que o Tonelli não foi para tomar vinho, foi pedir uma coisa muito importante para a campanha de Getúlio. Eu só fiquei sabendo depois que o cara deu uma mordida naquele pão italiano com sardela e fazendo careta com o ardido da coisa, falou: — Seu Ângelo, seu filho Mário pode entregar cédulas em frente da escola no dia das eleições? — Claro que pode. Afinal, o moleque vai distribuir as cédulas da nossa vitória, e mãos no copo! No dia 3 de outubro, lá estava eu em frente ao Grupo Escolar Aristides de Castro gritando feito um louco varrido: — Olha a chapa do Getúlio. Olha a chapa do Getúlio. A chapa consistia em ter cédulas do Getúlio Vargas para Presidente, Café Filho para vice, Lucas Nogueira Garcês para governador com o Erlindo Salzano para vice e os deputados estaduais, federais e senadores. Já por perto das 17 horas, terminando a votação, chego pra um senhor alto, careca, encostado na porta da Casa Paes e mando o recado: — Meu senhor, estou te oferecendo a chapa do Getúlio! Ele com um sorriso bastante irônico foi logo dizendo: — Meu filho, para que vou querer a chapa do Getúlio, se tenho a minha? – tirando sua dentadura da boca. Naquele tempo chapa, era sinônimo de dentadura. Mais tarde, a eleição de 1954 para Governador de São Paulo prometia bastante, com Jânio e Adhemar. Seria uma eleição inédita para ambos. Iriam se encontrar pela primeira vez frente a frente numa eleição. Até então Jânio tinha enfrentado um candidato apoiado por Adhemar, no ano anterior. Jânio continuava com aquele mesmo jargão: — Tostão contra o milhão – e não largava da vassoura que dizia varrer todos os corruptos do Estado de São Paulo, aproveitando o fato de haver um processo contra Adhemar, no caso dos Chevrolets, em que o ex-governador era acusado de improbidade istrativa e peculato. Já Jânio, tinha contra si o fato de ser chamado de louco, demagogo, e se preciso fosse desmaiava em qualquer lugar. Era também chamado de pinguço, desde os tempos que freqüentava as Arcadas do Largo São Francisco, onde foi diretor do Centro Acadêmico XI de Agosto. Já Adhemar, sempre com seu jeito brincalhão, dizendo aqueles mesmos slogans anteriores: — Meus caros patrícios, para frente e para o alto. Fé em Deus e pé na tábua. Tinha um eleitorado cativo, entre os quais motoristas de praça, e as más línguas também apontavam as prostitutas como adhemaristas até debai321
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xo d’água. Francisco Prestes Maia também estava na disputa, esse já mais sério, era introspectivo, falava pouco, mesmo tendo um currículo invejável de obras pela cidade que não dava dúvida a ninguém. Nos últimos dias de campanha, seus correligionários soltavam panfletos, que diziam: ”Janista amigo, você já meditou! Prestes Maia governador, Jânio Quadros prefeito, derrotemos Adhemar, fazendo Prestes Maia ganhar, quem votar em Jânio estará ajudando Adhemar. Vote em Prestes Maia e mantenha Jânio Quadros na prefeitura. O Estado, a capital e o povo é que vão ganhar.” Jânio Quadros era o prefeito e muita gente queria que ele continuasse na prefeitura. Mas ele e seu vice, Porfírio da Paz, eram mesmo candidatos. Nessa altura Jânio estava com seu cartaz político bastante alto. Era certo que na cidade de São Paulo ele venceria. O interior era uma incógnita. E quando a eleição veio foi uma disputa simplesmente sensacional. Na marcha da apuração da contagem manual, era voto contra voto. Ora era um, ou outro na frente, foi uma semana de calafrios, gritos, urras. Nos bares, o rádio ligado na marcha da apuração prendia a atenção de muita gente ávida por ver seu líder político vencedor. Quando se anunciava que Jânio tinha levado uma boa vantagem numa determinada urna, os gritos eram mais fortes. Fogos eram espocados. Principalmente quando o rádio anunciou que em uma urna da cidade de Pederneiras, Adhemar de Barros não tinha tido um voto sequer. Novamente, pouco mais de dez mil votos foi a diferença. Só que Adhemar não se conformou, e pediu a recontagem dos votos. O que foi concedido pelo Tribunal Regional Eleitoral. E a recontagem dos votos foi realizada no Palácio da Justiça, na então Praça Clóvis Bevilácqua. E ao final da recontagem, surpreendentemente, Jânio tornou-se vitorioso pela diferença de dezoito mil votos.
Lembro bem dessa campanha, o comício da Praça da Sé foi épico de cinema de Hollywood! Turan Bei
Louca aventura Doris Day Sempre fui fã do Roberto Carlos. Em 1968, quando ele ganhou o Festival de San Remo com Canzone Per Te, de Sérgio Endrigo, ele era esperado por milhares de fãs em Congonhas. Eu tinha 18 anos e estava com muita vontade de vê-lo de perto, mas não sabia andar sozinha em São Paulo, era a própria caipira do interior, e pedi ao meu irmão para me acompanhar até lá. O aeroporto estava repleto de fãs e só podíamos esperar pelo avião na parte
superior. Só que era tanta gente que não me contentei em ficar espiando por entre braços. Impaciente para vê-lo mais próximo, fui andando com meu irmão até encontrarmos uma escada, e, quando vimos, estávamos na pista, no meio dos jornalistas e fotógrafos! Puxa... que aventura. Só sei que vi o Roberto mais de perto e isso, pra mim, foi uma louca aventura.
Meu amigo da banca de jornais Mariza Leone Pereira Na década de 1960, no bairro de Santana, ainda não existia a Avenida Brás Leme; ali havia uma chácara onde vendiam leite de cabra. Também ainda não existiam os prédios da Aeronáutica. Mas havia um lugar que nos chamava muito a atenção: era o quartel do Exército, na Rua Alfredo Pujol, e os rapazes que ali serviam ao Centro de Preparação de Oficiais da Reserva, OR, faziam um tipo de ronda no bairro, a cavalo, e as moças da vizinhança, me lembro bem, ficavam muito ouriçadas para vê-los. Todos eram considerados uns “pães”. Eu ainda não conhecia São Paulo, portanto, não sabia nem pegar um ônibus para ir ao Centro da cidade. Um dia minha mãe pediu a mim e a meu irmão para irmos até a VASP, então na Rua Líbero Badaró, próximo ao Largo São Francisco, para despachar uma encomenda para Uberlândia. Não tínhamos noção do local do endereço, mas perguntando aqui e ali, lá chegamos. O dinheiro que leváramos foi todo na remessa da referida encomenda. Meu irmão e eu ficamos apavorados com o fato, e não sabíamos como voltar para casa. A pé? Era muito longe, e não tínhamos conhecimento de como chegar em Santana, eu tinha 14 anos e meu irmão 12, então começamos a chorar desolados. Chegando ao Largo São Bento, tomei a iniciativa de pedir ao dono de uma banca de revistas o dinheiro para pagarmos a condução. Ele nos olhou meio desconfiado, mas resolveu nos emprestar o dinheiro e nos explicou como deveríamos fazer para voltar. Prometi que retornaria ainda naquele dia para lhe pagar. Acho que apesar de não ter acreditado em nós, decidiu nos ajudar. Chegando em casa, peguei o dinheiro com minha mãe, e voltei ao Largo São Bento e devolvi o dinheiro ao senhor. Ele quase não acreditou, mas, a partir daquele dia, fiquei sua amiga e também freguesa, pois comecei a trabalhar na Rua São Bento, no Banco Federal de Crédito, então no Edifício Martinelli. Eu sempre o visitava na banca, aproveitando para comprar revistas como a Capricho, Sétimo Céu, e outras fotonovelas, as quais por muitos anos pegava fiado, só acertando as contas no dia que recebia meu salário. Esse fato ficou muito vivo em minha memória, pois foi com minha honestidade que ganhei um grande amigo. Um senhor idoso, mas muito gentil e educado, do qual não me lembro o nome, mas lhe sou grata até hoje.
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Costumávamos jogar bola na quadra do quartel do Exército, na Rua Alfredo Pujol, quando o oficial do dia estava de bom humor. Fernando Duarte Tenho lembranças de quando fui fazer exame de recrutamento no quartel da Alfredo Pujol, e, ai de mim, fui aprovado, apesar da miopía. Recorri da “sentença” e aí fui liberado. Luiz Saidenberg
Memórias de um (quase) playboy Luiz Saidenberg Estava tudo tranqüilo. De repente, o rock and roll explodiu, com estardalhaço. E isso foi, rapidamente, acusado pelos jovens. O que eu sentia, no início da década de 1960, era só a superfície do iceberg. O que parecia um modismo ageiro evoluiria até uma revolução nos costumes, moral e política. Rapidamente, o sistema reciclaria todo esse furor, transformando-o em artigo de consumo, absorvido pelo próprio status quo. Mas, então, estávamos sob o impacto inicial, sem direito a críticas. Lembro-me de minha classe, no colegial. Embora ali ninguém fosse rico, ou “transviado”, como se dizia na época, aumentava dia-a-dia o número dos que vestiam calças Levi´s, Lee ou a mais modesta “Rancheiro”, que eram, creio, vendidas na Sears Roebuck. A ponto do jovem professor de história reclamar, que aquilo ali mais parecia uma oficina mecânica. Marlon Brando, com seu The Wild One (1953), James Dean e outros, eram os nossos heróis de então. No estúdio de desenho, em que eu trabalhava de dia, surgiam encomendas de flâmulas da gang dos “Didões”, famosos por suas proezas, hoje impossíveis, como cruzar na contramão o Túnel 9 de Julho. Alguns deles chegaram a comparecer ao estúdio, com seus “gomalinados” cabelos, jaquetão e blusas de couro negro. Mas na realidade não pareciam, no fundo, diferir muito de nós, pelo jeito tímido e desajeitado. Então eram esses os famigerados “Didões”? Na verdade, havia uma enorme diferença: o dinheiro, coisa que na época não me parecia inível. No fundo, confiava em meu talento e no futuro. Mais tarde, sentiria a real dificuldade que era consegui-lo, em volume apreciável. Na época, uma motocicleta parecia um requisito fundamental no status de um verdadeiro playboy. A pé, para as garotas, não se estava com nada. Meu irmão e eu pensamos primeiro numa lambreta, e quase a compramos de um vizinho metido a “transviado”. No fim, acabamos comprando uma moto Jawa, tchecoslovaca. Tinha pouca potência, mas um belo desenho, com seu parecendo uma cabeça de saúva, e da mesma cor. Era de um casal de alemães e tinha pouco uso. Logo de saída, um pequeno inconveniente:
eu não sabia andar de moto! Começamos a treinar, na Praça Charles Miller, e logo os desastres começaram a acontecer. Uma vez bati de frente numa guia, quase estourando o pneu. Logo a seguir, num carro estacionado. Finalmente, peguei o “jeitão” da coisa, conseguindo dominá-la e estava até fazendo corretamente os “oito”, manobras circulares. Mas muito longe de ser um ás no guidão. Certa vez fomos ao Ibirapuera, centro das gatinhas loucas por moto. Parti para uma larga volta pelo parque, fui me entusiasmando e aumentando as marchas. E me tornando descuidado. Ao fazer uma curva à esquerda, para uma trilha lateral, derrapei na areia, e lá fui com a moto para o chão. E terminou aí minha breve carreira motociclística. Não me atrevi mais a pegar no guidão, certo de minha incapacidade. Mas sempre as irei, acho bonitos os designs arrojados e os poderosos motores. Mas voltar a dirigir, ainda mais nos nossos dias, aqui em São Paulo? Com as ruas coalhadas de motoboys e assaltantes de motocicleta? Já de carro, escapar ileso é uma proeza invejável. Então nosso caso foi mesmo uma “febre de juventude”, nome dado em português ao belíssimo American Graffiti, filme de George Lucas, que trata do mesmo tema: a juventude “transviada” das décadas de 1950 e 60. Da qual tentei participar, mas não deu. Desculpem.
O meu sonho também era ter uma moto e, junto com meu primo Jonas, compramos uma Java amarela, bem usada, sem que nossos pais soubessem. Quando o velho soube ficou doido, tirou o motor e escondeu. Continuamos usando a moto sem motor, empurrávamos até no alto da Rua da Assembléia e daí descíamos embalados e só parávamos na esquina da Rua Asdrúbal do Nascimento. Nélio Nelson Gonçalves
O Homem do Sapato Branco José Luiz Batista da Fonseca Quem pensa que esse negócio de pegadinha na tevê e de táxi de apresentador é coisa séria, tá muito enganado! É tudo pura armação! Coisa montada e pré-combinada pela produção do programa com pessoas conhecidas. Mas esse negócio de inventar estória pra televisão, não é coisa nova! Eu até cheguei a ajudar a criar uma estória para um programa, certa vez. Lembra do O Homem do Sapato Branco, com o Jacinto Figueira Júnior, pois é... Costumávamos almoçar todos os sábados na cantina do Nicola, lá no Bixiga. Aquela feijoada já fazia parte de um ritual. Era quando encontrávamos amigos para rodas de bate-papo, sempre regadas com muita caipirinha e cerveja, acompanhando a feijoada da dona Santa, mãe do Nicola. Quem disse 323
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que a italiana não entendia de feijoada? Posso assegurar que era uma das melhores de São Paulo. Bem melhor que a do Bolinha, só não tão famosa e infinitamente mais barata, de forma a caber nos nossos bolsos. Preço mais que honesto! Sei que a feijoada da dona Santa era um religioso programa de sábado. Por tudo, pela feijoada, pela caipirinha e principalmente pelos amigos. Como a cantina ficava localizada entre muitos estúdios de gravação, o povo do ramo, atraído pela fama da feijoada e pela simpatia do Nicola e da dona Santa, também acorria ao local. A gente ali, que não era da área, acabava, de tanto freqüentar, se familiarizando com aquele pessoal. E entre eles, às vezes aparecia por lá o Jacinto Figueira, sem o sapato branco, que acho que poupava para usá-lo só no programa. Até que um dia, depois de muita caipirinha na cabeça, perguntei a ele se o tal sapato era de pelica. Ele me olhou feio e não respondeu! Devia estar com o sapato furado, inclusive! Mas numa dessas idas do Jacinto à cantina, depois da feijoada marcando presença no estômago de todo mundo e aquela sonolência típica das sonolentas tardes de sábado, ele se mostrou preocupado com o quê apresentar no seu próximo programa, que iria ao ar na quarta-feira seguinte. — Pô, tô sem assunto nenhum pro próximo programa. Vocês bem que podiam me ajudar! — Jacinto, porque você não leva o caso do Fuinha, o encanador aqui vizinho – sugeriu um dos nossos amigos. — Diz lá, como é isso aí. Eu até que conhecia o tal Fuinha. Aliás, eu e todo mundo por ali, pois de vez em quando o Fuinha aparecia na cantina pra desentupir algum cano, mas não sabia de nenhuma estória dele. Então nosso amigo começou a contar o que se sucedia. Acontece que o Fuinha tinha seu negócio em um salão alugado de um português chamado Manuel e já fazia uns sete meses que não pagava o aluguel. Daí que o português, dia sim dia não, aparecia pra receber e saía de lá sempre com as mãos abanando e promessa de pagamento no dia seguinte. — Bem e daí? – disse o Jacinto. Até aí nada de novo, nada que possa prender a atenção do telespectador. Mais uma estória banal, igual a de milhares de microempresários neste Brasil. Quem não está ando por algum aperto financeiro? Nosso amigo continuou: — Não, você não entendeu nada. A gente pode criar alguma coisa em torno disso. A gente pode dizer que o Fuinha tem uma maneira pouco ortodoxa pra quitar a dívida. — Como assim? – retrucou o Jacinto e a gente só ouvindo. — Vamos dizer que o Fuinha que é casado há pouco tempo, e sem dinheiro pra pagar a dívida ofereceu a esposa pra fazer um “servicinho especial” pro seu Manuel. Todo mundo achou meio absurdo aquilo, mas o Jacinto não. Parecia até que o nosso amigo já tinha toda a estória na cabeça. E o Jacinto se entusiasmou com a idéia e pediu para ele detalhar o plano. Só
sei que chamaram o Fuinha, que ficava no salão quase ali ao lado e ligaram para o seu Manuel. Quando os dois chegaram, foram direto cumprimentar o senhor Jacinto, com todo o respeito. Acharam que ele, mesmo sem o sapato branco, iria conciliar a situação, ali naquele momento. Que ele iria, na pior das hipóteses, quitar a dívida do Fuinha. Mas, não! Começaram então a detalhar o plano para eles. A idéia era exatamente levar ao programa aquela situação: Fuinha, inquilino devedor; seu Manuel, o cruel senhorio; e uma suposta esposa do Fuinha, oferecida como moeda de troca pelo aluguel – ou aluguer como dizia o seu Manuer – em atraso. Pro Fuinha, que estava na pior, até que tudo bem e a mulher nem existia mesmo. Pro Jacinto, que estava mesmo sem história, apesar daquela não ser das mais entusiasmadas, até que tudo bem também. Agora pro seu Manuel... aquilo tudo não soava muito bem não: — Ai Jisuis! Sou católico! Como vou aceitari isso tudo! Minha cara aparecendo na televisão como um proxeneta? Como vou explicari pra Maria e pros filhos? — Ah, seu Manuel! Os tempos são outros! E afinal, todos saberão que é brincadeira! — Todos não! Só eu e vocês aqui! — Mas o que importa o resto do mundo! Quem conhece o senhor? O programa nem a em Portugal, onde está quase toda a sua família. E ademais o senhor vai por a mão na grana do aluguel atrasado. Não é isso que preocupa o senhor? Não é mesmo, Jacinto? Seu Manuel coçou a cabeça com aqueles poucos cabelos brancos, refletiu um pouco e disse: — É, pensando bem. Pelo menos, acabo recebendo o aluguel. E chegando em casa é só explicairi pra Maria que isso tudo é coisa da televisão. E acho até que eu sempre tive mesmo um lado de artista de novela, que nem o Antônio Maria – Jonas Mello, no papel de imigrante da terrinha, na novela Meu Rico Português exibida na TV Tupi. – Acho que a Maria vai até gostari! Bem, só sei que na quarta-feira estavam todos lá no estúdio, encenando aquele circo todo. O Fuinha, o mau inquilino, o seu Manuel, o rígido senhorio e o Jacinto, agora de sapato branco e tudo mais. Todos naquele barraco armado, como tudo que parece ser na telinha. E o seu Manuel até que se saiu bem na estória. Agora se a Maria gostou ninguém soube!
As operárias de Sampa Mário Lopomo Nas décadas de 1940 e 50, não era comum mulher trabalhar. Seu papel era casar, ter filhos, cuidar da casa, ser a “rainha do lar”. Mas aos poucos a mulher foi entrando no mercado de trabalho. Em 1948, minha irmã, então com 14 anos, foi trabalhar na fábrica de chocolates da Kopenhagen, que
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ficava na Rua Joaquim Floriano, e lá se aposentou em 1978, após trinta anos de trabalho ininterruptos. E, o local de saída das moças era um verdadeiro setor de turismo para os homens, sempre à procura de uma possível moça bonita para namorar – aliás, minha irmã, tinha o apelido de bonitinha. Havia também muitas pilhérias por parte de engraçadinhos. Ao tocar a sirene de saída era uma tremenda correria, que chamavam de estouro da boiada. Alguns, mais ousados, diziam das “vacas”. Eu não gostava muito de ir lá fazer tal “turismo” por causa da minha irmã, sabe, né, qualquer mancada... Mas boa mesmo era a saída da tecelagem Calfat, na Avenida Brigadeiro Luís Antônio. Na Calfat havia dois turnos e eu ia sempre à saída das 22 horas. Só que lá imperava a ignorância dos rapazes que se achavam os donos do território. E a coisa era na base da porrada. Já tinha me dado mal uma vez quando fui lá catar um balão. Mas na noite que eu estava esperando uma moça que trabalhava na Calfat, a coisa foi diferente, naquele dia eu não estava com o Chicuta, um amigo que já havia me protegido anteriormente, ia apanhar mesmo. Cercado por cinco “valentes” buscava um jeito de escapar, mas não vislumbrava uma brecha. Foi quando um negro alto, que mais parecia o xerife do pedaço, me vendo encurralado, perguntou: — O que está acontecendo? Disse: — Estou apenas esperando uma moça que trabalha na tecelagem e eles estão dizendo que sapo de fora, aqui não chia. O cidadão então me perguntou quem tinha começado a ameaça. Apontei um cara meio gordo que me parecia sem muita mobilidade. O chefão do pedaço afastou os outros e disse ao gordo: — Agora você vai brigar com ele sozinho, no mano a mano. Para minha sorte ele refugou. Caso ele fosse pro “pau”, eu jamais iria assistir um jogo de basquete ou box no Ginásio do Ibirapuera. Ali não era fácil. Mas depois daquele episódio fiquei com franquia no pedaço. Ia até a porta da tecelagem e saía de lá com a mão no ombro da Stella, a minha musa da Calfat. Logo depois fui jogar no Esplanada do Jardim Paulista, cujo campo era ali mesmo, entre a Brigadeiro e a Rua Manoel da Nóbrega. Nada como um bom padrinho inesperado.
Mãe Leoa Nelson de Moura Alfredina foi uma mulher durona. Casou-se menina. Segundo contado por ela, tinha pouco mais de 14 anos, quando aconteceu. Em dez anos, cinco filhos. Um após outro, cinco homens. A vida não era fácil para ela. Ao contrário. Marido trabalhador chegava de volta do trabalho só depois que escurecia. Ela ficava sozinha na luta diária, tratando dos filhos de 10, 8, 6, 4 e 3 anos de idade. Tombos, gritaria, brigas, futebol dentro da cozinha. Tudo isso misturado com mamadeira, lanches, refeições e os pre-
paratórios para os maiores irem à escola. Leva e trás. Fazia tudo sem ajuda de ninguém. O café da manhã, almoço e jantar, eram feitos num simples fogão à lenha, tipo acampamento de índio. A comida mais trivial possível. Simples mas gostosa: arroz, feijão, o saudoso bife na chapa, batata frita. Às vezes, uma salada de alface com tomate e pepino fatiados. Sobremesa: bananas. Arrumava seis camas, lavava toda a roupa da casa, dos meninos e do marido no velho tanque; tudo no braço. ava roupas, com ferro cheio de brasas mantidas acesas no sopro. E arranjava tempo para estender cera por todo o assoalho da casa, ajoelhada e depois, ainda ava um escovão pesado, com um bando de moleques agarrados em sua saia. Banho nos menores, os maiores davam, e assim, de vez em quando ela subia num caixote, junto ao muro ao lado, para bater um papo com a vizinha. Dona Nica, amiga de todas as horas e a quem contava com socorro, pedindo emprestada uma xícara de açúcar. Com toda essa correria, no fim da tarde entrava num banho, fazia ligeira maquiagem com pó-de-arroz Coty. Pintava os lábios com tintura feita com água de papel crepom. ava um pente nos cabelos muito pretos e esperava feliz a chegada do marido. As noites sempre iguais, enquanto o pai lia o jornal, os filhos maiores faziam as lições da escola. Ela aproveitava a folga ageira e ouvia as novelas da Rádio São Paulo. Depois das 21h30, todos iam para a cama. Era uma vida simples, com as necessidades controladas. Outro dia começava. Rotina de sempre, assim avam semanas e meses. Havia dias apoquentados, e a molecada aprontava as maiores travessuras. Um caía do muro, outro machucava os joelhos com o tombo da árvore. Quando algum ferimento não acontecia, ficavam atazanando. Enchiam a paciência dela. Numa tarde dessas nubladas e frias, a mansidão da mãe leoa acabou de repente. Pegou o caçula e o número quatro, levou-os para o quarto. Colocou os dois na cama e exigiu que ficassem ali até ela voltar. Desceu a escada falando alto, com um cobertor debaixo do braço e estendeu no chão da sala sob a mesa de jantar. Amarrou os tornozelos de cada um deles e prendeu os meninos nos pés da mesa. E fez uma grande ameaça mostrando o chinelo: — Quem sair daqui vai tomar a maior surra. Vão ficar aí até o pai chegar! Apesar de todas as molecagens, eles respeitavam a disciplina imposta pela mãe. Começava escurecer e o frio aumentou, em pouco tempo dormiram sob a mesa. Ela mais tranqüila voltou ao fogão. Ficaram debaixo da mesa punidos até a hora que o pai chegou. Nenhum deles teve a coragem de escapar daquele simbólico e fino fio de linha, amarrado ao pé da mesa. Um simples fio de linha de carretel garantia a tranqüilidade da mãe leoa...
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O dia em que São Paulo parou
A mulher de minissaia
Luiz Saidenberg
Benedito de Lima Fernandes
Em 24 de fevereiro de 1972, dia de meu aniversário, eu trabalhava, então, numa pequena agência de propaganda na Avenida Vieira de Carvalho, mas com importantes contas. E trabalhava muito. No ano anterior, fora contratado um badalado, porém tresloucadíssimo jovem diretor de criação. Seu primeiro ato foi renovar a equipe, e nesta leva vim eu. Rapaz “certinho”, com direito a crédito na loja A Exposição, caí de repente num ambiente de contracultura, uma edição hippie limitada de Woodstock. Era um mundo novo e louco, mas, como sempre, procuro aprender e assimilar o melhor de cada situação. Foi o que fiz, renovando-me totalmente. A Vieira de Carvalho era charmosa, para começar, junto à Praça da República, a estátua do índio agachado, em bronze. E no seu final, no Largo do Arouche, a réplica em mármore do Augusto de Prima Porta, local onde a estátua foi desencavada em Roma, e que hoje está no Museu do Vaticano. Bons restaurantes, o Rubayat, o velhíssimo Carlino, o Almanara, o La Casserole, e last, but not least, o maravilhoso Restaurante Transatlântico, defronte à estátua de Augusto. Prédio de pouca estatura, ficava nossa agência à sombra do maciço Edifício Andraus. O dia decorria como de costume, quando alguém falou em fogo, no prédio atrás. A princípio, não parecia ser grande coisa. Fui a uma das salas dos fundos, puxei a persiana e o inferno abriu-se à minha frente. Entre os estouros dos bujões de gás, a primeira coisa que vi foi um homem, cortando o espaço, em direção ao solo. Uma colega, ao lado, desmaiou e tive de ampará-la. Avisamos o pessoal e evacuamos a agência, descendo pela bela escada circular. O “genial” diretor de criação, egoísta a não mais poder, já tinha fugido antes, sem avisar ninguém, agitando os braços, como um pato. Aliás, seu apelido era “Pato Donald”, por seus histéricos ataques de fúria verbal. Saí e, visto da Avenida São João, parecia o fim do mundo. O Edifício Andraus transformado numa pira, as chamas subindo a enormes alturas, rolos de fumaça negra toldando o céu. Os motores dos helicópteros tentando salvar as pessoas no teto, as sirenas dos carros de bombeiro, todo esse ruído contrastava com o horror mudo das pessoas na rua, impotentes para tentar qualquer ajuda. Precisava ir para casa, o que não seria nada fácil, com os imensos congestionamentos. Por sorte, tinha deixado meu carro longe, ali pela Rua Amaral Gurgel, e consegui escapar do tumulto. Muitas voltas e horas depois cheguei em casa. Era meu aniversário, mas não havia porque comemorar.
Na década de 1960, eu trabalhava na Rua 7 de Abril com a Rua Dom José de Barros, e também fui morar e trabalhar na Doutor Vila Nova, Vila Buarque, chamada na época de “boca do lixo”, então eu presenciei ou participei de muitos eventos. Um dos mais hilariantes, foi o caso da primeira mulher que usou minissaia na cidade. Eu estava no Viaduto do Chá, quando vi uma multidão de machos correndo atrás de uma guria de minissaia, foi um pandemônio, a menina ou voando por mim, e a turba atrás, e fui ver no que ia dar, até que a menina se refugiou, parece-me, numa loja ou lanchonete, não me lembro ao certo, sei que foi um evento e toda mídia noticiou.
Atravessando São Paulo a nado Theophilo Pereira de Moura Por volta da década de 1940, eu nadava no rio Tietê, éramos 5 irmãos, morávamos no Tatuapé, e eu era sócio militante, nadador e jogador de bola ao cesto, como era chamado na época, do Sport Club Corinthians Paulista. As competições de natação desse clube eram feitas em cochos no Tietê, e as do Esporte Clube Pinheiros eram no rio Pinheiros. Lembro que na época o Corinthians recebeu um financiamento do Governo para construção das piscinas e desviou o empréstimo para compra do jogador Domingos da Guia, por isso ficamos sem as piscinas, e quase todos os esportistas militantes aram a torcer, no futebol, por outros clubes: eu virei sãopaulino. Nesse tempo fazíamos a travessia de São Paulo a nado; era tempo de Havelange, Paraíba, Plauto Guimarães. Bons tempos aqueles.
De cachorros e carteiradas Mylene Cyrino Basso Rua Jorge Augusto, Penha, anos de 1950. Seu Manoel era um dos mais antigos moradores, estava lá desde as primeiras décadas do século XX. Como bom português, era dono de venda, apegado à família e tinha uma paixão: os cachorros. Era um entra-e-sai ininterrupto de vira-latas do quintal para a rua, naqueles tempos de muros baixos e portões escancarados. Entre os membros caninos da família, o preferido do velho Manoel era o Saringa. Magro, desengonçado, pulguento; talvez o cachorro mais feio que já latiu neste mun-
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do. Cruzamento de cruz-credo com deus-me-livre. Dissimulado, o bicho fingia dormir para meter os dentes nos calcanhares do primeiro incauto que lhe asse ao alcance. O coração tem razões que a razão desconhece. Dia de feira – e a feira do bairro acontecia na própria rua – o Saringa desaparecia e, algum tempo depois, voltava com os frutos de alguma “caçada”: fieira de lingüiça, naco de toucinho, salsicha, salame. Um dia teve a pachorra de aparecer com uma peça inteira de mussarela. Os filhos do seu Manoel não tiveram dúvidas: deram a parte mordida ao “caçador” e se fartaram com o resto do queijo. Achado – pelo Saringa – não é roubado. Certo dia, o Saringa sumiu de vez. Logo correu a notícia, para desespero do seu Manoel: a carrocinha levou o Saringa! Mário, o filho mais velho, se prontificou a resolver o problema. Expedicionário, vestiu sua melhor farda, as medalhas ganhas nos combates em Bolonha, chamou um jipe do Exército e foi direto para o canil da Prefeitura. Ao ver chegar aquele oficial, todo engalonado, em jipe dirigido por recruta, o funcionário que tomava conta dos animais desmanchou-se em continências e salamaleques. — Ah, o senhor veio procurar o seu cão? E qual destes é? E gentilmente mostrava ao militar de cara amarrada os exemplares mais bonitos, gordos, bem tratados; alguns até com pedigree. Mas a todos o expedicionário respondia com um maneio negativo da cabeça. Chegando na última cela, o Mário abriu um sorriso e apontou: — É aquele ali, o pretinho. O funcionário não acreditou. — Mas o senhor tem certeza? É aquele ali o seu cachorro? O rapaz não conseguia acreditar que uma pessoa tão importante viria até ali por causa de um cachorro imprestável como aquele. — Vamos, o que está esperando? Dê-me cá o bicho! E lá foi o Saringa, todo pimpão, montado no jipe, deixando para trás a poeira e um pobre servidor municipal espantado com o contraste entre cachorro e dono. Depois da morte do Saringa, seu Manoel ainda teve muitos cães. Apegou-se a um chamado Serrote, que também desapareceu. Dessa vez, o truque da farda e do jipe não deu certo: o bicho não estava na sede da carrocinha. Clima de luto na família. “Cachorro também é um ser humano”, como já disse um ministro. À tardinha, todos amuados no quintal, à porta da cozinha. De repente, o Mário grita esfuziante: — Olha gente! Quem vem lá! O Serrote! Todos se levantaram e olharam frenéticos, em todas as direções: — O Serrote? Onde? Onde? — Aqui! Disse o Mário, jocoso, mostrando a todos uma barra de sabão que pegou no tanque. Nota: Circulou durante muito tempo em São Paulo uma lenda urbana, a qual dizia que a carrocinha transformava os cachorros apreendidos em sabão.
A estátua do Duque de Caxinha Lucilia Cunha Ramiro Eu tinha 9 anos de idade e estudava no Grupo Escolar Princesa Isabel, em São Paulo, quando um grupo de jovens da área da cultura ou em nossa sala de aula, pedindo aos alunos uma contribuição para que a estátua do Duque de Caxias pudesse ser construída na cidade. Estátua que me orgulho de ter ajudado a construir. Corri em casa e pedi aos meus pais o dinheiro para ajudar na construção, mas na pressa disse: — Papai, quero ajudar na estátua do Duque de Caxinha. Por muito tempo, esse erro foi motivo de risada em casa. Hoje, com 75 anos de idade, lembrei-me de contar essa história.
Interlagos, sempre Interlagos Sérgio Arouche Em um dos dias que antecederam a corrida de Fórmula 1, fiquei pensando em como Interlagos fez parte da minha vida e como ele cresceu e acompanhou o desenvolvimento da cidade. Comecei a freqüentá-lo com 10 anos de idade, levado por meu pai, e a partir daí nunca abandonei minha paixão pelo automobilismo, sempre colaborando com a organização das corridas. Na época, o autódromo não tinha infra-estrutura alguma, nem ao menos banheiro público, era terra para todos os lados, até o o era dificílimo, mas nada desanimava os corredores e torcedores. Na minha juventude as coisas melhoraram um pouco, as escuderias de marcas nacionais como a Willys e a Vemag apareceram, as Mil Milhas e as Vinte e Quatro Horas eram um sucesso e os nossos pilotos foram para o mundo e o conquistaram. Três campeões do mundo pra ninguém botar defeito. Mas Interlagos continuava aqui, pista viva aos finais de semana, novos talentos aparecendo, nova tecnologia se impondo, obras, dessa vez pra valer, e finalmente a Fórmula 1 está acontecendo e com a competência de pessoas como nós, São Paulo vem trabalhando tão bem ou melhor do que muitos dos autódromos internacionais. Vi de tudo em Interlagos, mas entre os grandes momentos, não consigo esquecer o dia em que ainda muito jovem, dei de cara com Fangio, ele mesmo, o piloto argentino Juan Manuel Fangio, o supercampeão, um quase Deus para nós, bem ali na minha frente. Eu não podia acreditar... Fangio falando comigo, conversando com a turma, indo de carro em carro trocando idéias. Tenho amigos campeões que também me deram muitas emoções, mas o encontro com Fangio foi demais. Só mesmo em Interlagos, só mesmo em São Paulo isso podia me acontecer.
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Os melhores sempre morrem Lary Ramos Coutinho Houve uma época, na qual a pista de Interlagos ficava sempre aberta. Vestígios de um grande portão aramado, pendurado em única dobradiça, lembravam que a engenhoca costumava fechar o o, num ado mais ou menos distante. Tínhamos 18 anos, portanto estávamos no glorioso ano de 1954. Éramos felizes proprietários de um legítimo Zephyr Six, carro inglês de eio que podia ser transformado em belo carrinho de corrida, uma baratinha, como dizia minha avó. Matávamos as aulas e íamos correr em Interlagos. Com boa conversa e certo jeitinho, o Zephyr verde-bandeira chegava aos 180 km/h, no final do retão. Em 1957, durante a primeira edição dos 500 quilômetros de Interlagos, o carro do Ciro Caíres, uma Ferrari-Corvete, perdeu a roda traseira esquerda, com tambor de freio e tudo o mais e o conjunto saiu saltando barranco acima, em direção ao público. A roda que escapou, atingiu quatro pessoas, entre elas a então Miss Campinas que veio a falecer. Mesmo sem a roda, o piloto conseguiu controlar o carro e encostou num mato ralo mais adiante. Era uma corrida de carreteiras, automóveis híbridos montados em oficinas artesanais, levemente ou muito modificados. Nas imediações da Rua Barão de Limeira, em São Paulo, existiam ótimos especialistas. O que resultou daquelas carreteiras está, guardadas as devidas proporções, nas corridas de Fórmula 1. Ainda em Interlagos, volta e meia encontrávamos outros pilotos como o Miguel Ranieri, em seu Skoda, o Christian Heinz, então com o seu novíssimo Porsche, matando todo mundo de inveja e o Mário Guidi, meu corajoso co-piloto, quando um ou outro racha era disputado. Como equipamento de segurança, fazíamos questão de pneus novos e quando o racha era para valer, os perdedores faziam uma vaquinha e compravam pneus novos para o vencedor. A pista de Interlagos era bem diferente da atual, e nós aprendíamos uns com os outros os macetes para sobreviver. No final do retão, havia uma curva para a esquerda, com o pavimento inclinado, o que era moda em certos países. Então fazíamos o seguinte: entrávamos bem por baixo, com o “pé na tábua” e o carro era levado pela força centrífuga para o alto da pista. Um rápido toque no freio, a direção toda virada para a esquerda e conseguíamos mergulhar na curva do lago. Um dia o Miguel Ranieri entrou pela metade da pista, o carro foi jogado para o alto e despencou no barranco do outro lado. Ele morreu. Doutra feita, vínhamos disputando com o Christian Heinz, e quando percebemos a curva, já estávamos na metade superior da pista. O Christian havia entrado por baixo, corretamente. Durante alguns segundos, vimos aproximar-se a morte inexorável. Lembramos das faixas negras de borracha deixadas pela freada do carro do Ranieri e não usamos o freio, ao
contrário, aceleramos e mergulhamos na curva do lago. Pagamos a nossa parte no jogo de pneus com enorme satisfação. Meses depois, em 1963, o Christian Heinz morreu, correndo em Monza, na Itália. O Ayrton Senna não havia nascido e o grande piloto da época era o Chico Landi.
Chico Landi foi grande. Lembro-me que ele fez muito sucesso e ganhou de presente uma Maserati do Presidente Getúlio Vargas, creio que entre 1951 e 1952. Nas Mil Milhas Brasil da metade dos anos 1950, Chico Landi ganhou de ponta a ponta, mas foi desclassificado por esquecer de acender a lanterna traseira quando já estava escuro. Mesmo assim ele continuou na corrida e foi o segundo colocado. Ainda em 1957, nas Mil Milhas daquele ano, o Argentino Juan Manuel Fangio, deu um show na pista de Interlagos. Tenho muita saudade de quando a pista de Interlagos tinha ainda oito mil e tantos metros de extensão. Mário Lopomo
O Teatro de Alumínio e suas vedetes Roberto Motta de Sillos Nasci em 1946 e até 1967, morei na Rua Doutor Falcão, esquina com a Praça das Bandeiras, onde por volta de 1955, foi inaugurado o Teatro de Alumínio. Na parte posterior do teatro havia um enorme terreno, ladeado pelas ruas Santo Antônio e Santo Amaro, com alguns brinquedos, como gangorras, escorregador, balanços e gira-gira. Ao escurecer, o parque era freqüentado por vários tipos de pessoas, de casais de namorados a maconheiros. Naquele tempo, dos 9 aos 13 anos, eu fiz parte de uma turma de moradores da região, cujo ponto de encontro ficava na Travessa Noschese com a Rua Santo Amaro; saindo dali, íamos jogar bola no canteiro da Rua Asdrúbal do Nascimento e na Avenida 23 de Maio que terminava no Viaduto Maria Paula. Voltando ao teatro, houve noites que o nosso atempo era espionar por buracos estratégicos, as belas vedetes em seus camarins. Quando elas descobriram, a fim de expulsar os atrevidinhos, começaram a enfiar agulhas de tricot nos buracos, sendo que numa dessas, um amigo acabou se machucando feio. Uma coisa era certa, pelo Teatro de Alumínio aram as belas mulheres que fizeram carreira nos teatros de revista da época como a Nélia Paula. O ponto culminante foi quando as vedetes, num golpe de marketing, anunciaram que durante um dia útil à tarde, estariam indo tomar um banho coletivo de biquíni no lago em frente ao teatro. Foi o caos; o que tinha de homem em volta da praça era absurdo. Quando elas entraram no lago, começou um início de ataque para ar as mãos nas ve-
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detes e nesse momento, a Polícia Militar entrou em serviço, inclusive com a cavalaria. Um PM me empurrou e só não me bateu pois percebeu que eu era menor. Foi uma aventura que eu nunca esqueci. E assim como tudo acaba, o Teatro de Alumínio em poucos anos foi desativado, assim como os belos espetáculos dos teatros de revista, também.
Eu conheci bem esta piscina que havia em frente ao Teatro de Alumínio. Quase todas as tardes “chocávamos” o bonde 5 que vinha da Rua Rui Barbosa, no coração do Bixiga e descia para a Praça da Bandeira. Era uma farra só, jogávamos futebol no chamado Campo do Éden, na Liberdade, onde hoje está a Avenida 23 de Maio. Na volta, “chocávamos” novamente o bonde que ava na porta de todos nós, creio que pouca gente se recorda do cabo de aço que tracionava os carros, que era colocado sobre o Hotel São Paulo e sobre o edifício onde funcionava o Touring Clube. Sérgio Lúcio de Oliveira
da estaçãozinha férrea lá está desafiando o tempo, o bar da esquina e o armazém da pracinha também. Sem os trilhos do trem, o leito agora serve os automóveis. Fiz o percurso em três horas. Depois de algumas idas e vindas para localizar a chave, entrei na pequenina capela, bem asseada, clara e com duas fileiras de bancos. No altar, a imagem de um santo guerreiro que por ignorância não pude identificar. Desapontado, só recobrei a expectativa quando vi ao lado, no andor, a imagem de São Benedito. Mas agora com a marca da mutilação do tempo, entendo o porquê das promessas e de uma vida salva por meio de emplastos e súplicas. Nascer para a vida é um milagre. Viver 71 anos significa muitos milagres. Cultivar sentimentos remotos é como achar o remédio perdido. A peregrinação à capela de São Benedito continua tão fervorosa como há cem anos.
Sexta-Feira Santa Mauro Lima de Souza
Peregrinação ao ado Turan Bei A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) está terminada. O mundo chora seus mortos. As feridas estão expostas à visitação. São visões estarrecedoras. Mas o Brasil está preservado e os nossos problemas são muito mais de ordem doméstica do que internacional. Nossa família, agora com dez pessoas, enfrenta um surto de pneumonia, sendo que as cinco doentes são todas mulheres; uma em estado grave e desenganada pelos médicos. Depois de terem sido tratadas e com alta, a volta ao lar não foi de toda festejada, pois a que estava em estado mais grave continuava na mesma. Os emplastos de fubá e aveia foram providenciais nas mãos da avó experiente. Mas havia outras receitas de iguais valores: orações, terços e promessas. Todas atendidas e abreviadas pelos santos de devoção. Com todos salvos e saudáveis, chegou a hora de pagar as promessas. Dia e hora combinados, saímos bem cedinho. Mãe e tia resolutas tinham pela frente quinze quilômetros de estrada de terra para caminharem a pé. E eu, que pelos meus 10 anos não tinha nenhuma responsabilidade, acompanhava-as, porque ficar em casa era um estorvo. Finalmente, depois de horas, uma pequena capela no fundo de um vale nos acolheu, e o santo milagroso lá estava no seu pequeno altar. É negro. Depois de 61 anos, percorro o mesmo caminho a pé, agora com asfalto, e ao longo do percurso muitas moradias e bairros em formação. O prédio
Na São Paulo de minha infância a Semana Santa tinha um significado especial que começava com o período da Quaresma, ou seja, quarenta dias antes. Em um velho arquivo de jornais, notei uma propaganda do antigo supermercado Peg-Pag anunciando os produtos à base de peixe, a dieta católica para aquele tipo de celebração e que às sextas-feiras era rigorosamente cumprida. Chegava então a Semana Santa, que além dos “Ovos” de Páscoa pendurados em panificadoras e armazéns, também era anunciada pela programação dos cinemas. Lembro do Cine Esmeralda, no bairro das Perdizes, que sempre exibia o filme Jesus de Nazaré na tarde da “Sexta-feira Maior”. Interessante era a peregrinação às igrejas, que realizavam a Adoração ao Cristo, com sua morte solenemente noticiada e a visitação às igrejas do Centro Velho, onde fiéis trocavam suas moedas pelos tostões do “Senhor Morto”, guardando-as em suas carteiras para que nada lhes faltassem. Mas o que mais me tocava era o respeito da população, ouvia-se um silêncio ensurdecedor nas ruas da cidade. Minha família tinha o hábito de, à noite, seguir a “Procissão do Enterro” na Igreja de Santo Agostinho, na Liberdade e lembro-me do silêncio da multidão acompanhando o cortejo, apenas quebrado pelo dramático canto da Verônica, que exibia numa tela a imagem de Jesus. Após essa intervenção, a procissão seguia pelas ruas geladas do bairro, interrompendo o trânsito e causando uma imensa fileira de bondes parados na Rua Vergueiro. Os ageiros aguardavam contritos e no mais profundo respeito. 329
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Esperávamos com ansiedade o Sábado de Aleluia e a malhação do grande “culpado” por toda essa “tragédia” anunciada: o Judas! Hoje, infelizmente, essa tradição é apenas e tão somente véspera de um acontecimento comercial: as vendas de chocolate. Mas o doce mais saboroso mesmo, são aquelas lembranças de nossa vida.
Quando estava na puberdade, a Semana da Paixão já começava na quarta-feira de trevas. Na celebração da noite, em determinado momento, as luzes das igrejas se apagavam e nós, garotos, batíamos com os pés no chão, simulando a trovoada. No Sábado de Aleluia, deixávamos os “Judas” amarrados nas árvores ou nos postes até o meio-dia e quando as 12 horas chegavam, batíamos nos postes de ferro cobertos de alcatrão preto, mais tarde substituídos pelos de cimento armado. Era um grande alarido na cidade inteira porque essa tradição se espalhava por todo canto. Expedito Marques Pereira
Pecaditos e penitências
e o João Fonseca. No o e no como, lá ia o grupo no propósito de cumprir um ato religioso. Por volta das 9 horas da manhã, estávamos chegando à igreja, entrávamos, cumpríamos nossas obrigações de fé, e saíamos para tomar um café reforçado na padaria próxima. Depois dávamos um eio pelas ruas do bairro e, por fim, entrávamos no ônibus Penha-Lapa, que nos deixava bem próximo de casa. Chegávamos por volta de 11horas, aí cada um ia para sua casa tomar um banho e depois, voltava para a casa do Luiz, onde a dona Izabel, sua esposa, nos esperava com uma macarronada ao bacalhau, e uma bacalhoada com batatas, tudo isso, regado ao bom azeite e um excelente vinho. Essa atividade fazia com que a Sexta-Feira da Paixão chegasse logo ao seu final, que era coroada com a Procissão do Enterro que fazíamos questão de acompanhar. Depois, então, íamos dormir, afinal, sábado era dia de “malhar o Judas”, outra atividade que exigiria muita vitalidade e força da nossa parte.
Romaria ao Santuário de Vila Formosa Luiz Saidenberg
Miguel Chammas Fiz muitas peregrinações religiosas, especialmente ao Santuário de Nossa Senhora da Penha. Essas jornadas ocorriam todas as Sextas-Feiras da Paixão e eram realizadas por uma turma de freqüentadores assíduos do Bar e Lanches Urupês, situado na esquina das ruas São Domingos e Major Diogo, no Bixiga. Esse bar era de propriedade de dois irmãos muito queridos por todos os clientes: o Nelson e o Luiz Meggiolaro, sendo que o Luiz era o principal fomentador dessas caminhadas e a ele se juntavam o João Fonseca, compadre do Luiz, o Alfredo Chammas, meu pai, o Biaggio, o Nelson, o Paulo Domingos, o Mingo, o Alvarenga, o Vavá para os íntimos, o Luiz Loschiavo, os filhos do Luiz, o Carlinhos, meu irmão, o Roberto, meu primo e vários outros freqüentadores do bar, que desejavam penitenciar-se por pecaditos praticados durante o ano. O ponto de saída era o próprio bar que, nesse dia, guardava respeito e não abria, o horário, 6 horas da matina e o percurso era Rua São Domingos até a Rua Abolição, viadutos até a Praça da Sé, Avenida Rangel Pestana, Avenida Celso Garcia, Rua da Penha e finalmente, a antiga Igreja Nossa Senhora da Penha. Nesse trajeto, todo feito a pé, os participantes iam conversando, brincando e até mesmo cantando músicas e sucessos do ado. O grupinho de cantores era formado, impreterivelmente: por este escrevedor, o Mingo
Foi por volta de 1950, ainda nem morávamos em São Paulo, mas a família de minha mãe, numerosa e unida, sempre requeria atenções. Então, sempre vínhamos a São Paulo para as celebrações como Natal, casamentos, aniversários e morte felizmente não, já que minha avó e tios tinham uma tendência à longevidade, que se confirmaria no decorrer dos anos. Sediados na Rua Doutor Albuquerque Lins, 172, quase esquina com a Rua Barra Funda, tendo em frente a maciça parede do Teatro São Pedro, onde grotescas máscaras de tragédia grega nos espionavam com curiosidade – aliás, absolutamente recíproca – tínhamos, ainda mais de carro, o vasto espaço da Capital para explorar. Nessa época, quando ter automóvel ainda era relativamente raro, meu pai havia comprado um Vauxhall, carro médio inglês, e a parentada não perderia a chance de aproveitar os eios. Lembro que fomos de carro ao ainda pouco habitado Bosque da Saúde, ando por onde mais tarde seria o Ibirapuera, visitar uma afilhada de minha tia Maria José. Minhas tias, muito católicas, como também minha mãe, viram ali a oportunidade de realizar um sonho, que a rotina de professoras sempre adiava: uma visita ao distante Santuário Nossa Senhora do Sagrado Coração, na Vila Formosa. Lá era anunciado o milagroso “Escapulário Verde”, um saquinho de feltro, parecendo um patuá, que sabe-se lá o que continha. Pó de ossos de
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algum santo? Fragmentos do Santo Madeiro? Fotos autografadas do Papa, com sua benção? Não faço idéia. Era um elemento de fé, e fé não se questiona. Seja o que for, para elas era mágico e santo, e ficariam felizes com ele. E lá vamos nós! Mesmo sem trânsito a distância era grande. Tenho vagas impressões do Santuário, sei que achei imenso, principalmente para um templo de bairro. Do caminho, lembro da Igreja da Penha, ando ao nosso lado. Enfim adquiridos os tais escapulários, realmente de um verde escuro, era a hora de retornar. Pelo caminho paramos num bar, ou lanchonete, como se diria hoje, mas naquele tempo não existia o termo, onde comemos um misto frio com Guaraná, que era o nosso lanche usual. Meu pai teria tomado uma Mossoró, ou Caracu. No rádio tocava o choro Paraquedista e podíamos ver, ainda que longe, as torres da Catedral, em construção na Praça da Sé, brilhando ao Sol.
da comunidade. A garoa era uma constante, acompanhada do frio intenso das noites de junho... Só a lembrança é capaz de aquecer a saudade daqueles momentos.
Eu era da turma do Ouro Preto, mas não perdia a festa. Que saudades. Hugo Novelli Júnior Ah! Quantas saudades dessas quermesses. A minha era lá na Penha, no Largo do Rosário. Entre tantas coisas, lembro-me do serviço de som, onde podíamos paquerar muito e oferecer músicas românticas, anunciando: Esta música é oferecida ao rapaz de camisa verde, que está perto da barraca de argolas ou Lourinha de vestido rosa, oferece esta musica ao... Bernadete Pedroso
A festa de São Vito Roque Vasto Em 1958, a quermesse da Igreja São Vito Mártir, no Brás, atraía toda a população de imigrantes italianos, notadamente dos oriundos da Puglia, de Bari, de Polignano a Mare e de Castellammare. Eram seis barracas de sorteios de prendas, jogo de argolas, bingo, uma churrasqueira cheia de espetinhos de carne e frango, guimirelles, ficazzellas e um monte de gostosuras. Meus amigos sempre marcavam para encontrar toda a turma, aos sábados, 20 horas, na porta da igreja, onde havia uma exposição de quadros alusivos a São Vito Mártir e São Cosme e Damião. Quadros chocantes, com rodas de martírios, caldeirões de óleo fervente e coisas do gênero. Quem eram esses amigos: Barata, Dolce, Guardabassi, Scogliamiglio, Zuppo, Dalessio, Iervolino, Ricupero, Gandra, Chiarella, Carone, Caruso e um rol de sobrenomes bareses, que após mais de cinqüenta anos é difícil lembrar de todos. O pau-de-sebo, na praça da Igreja São Vito, era uma atração à parte, pois os comerciantes da Santa Rosa, Benjamim de Oliveira, Alfândega, sempre abasteciam com boas boladas o cesto no cume do pau-de-sebo. A queima de fogos era uma beleza, pois eram raras as oportunidades de ver aquele tipo de espetáculo. Em 1960 fui coroinha da Igreja São Vito Mártir, então dirigida pelo Padre Hugo. A festa grandiosa que hoje se realiza tanto na porta da igreja como na do salão, nada tem de identidade com aquela quermesse simples, de rua, que terminava logo após as 22 horas, pois a rua era habitada pelas famílias
Toalha de banquete Mirça Bludeni de Pinho Minhas contemporâneas, atualmente com 62 anos de idade, fizeram durante a adolescência, o enxoval que seria levado para suas novas casas após o casamento e que eram guardados em arcas aos pés da cama. Como minha irmã e eu fomos trabalhar cedo, ela infelizmente muito mais cedo do que eu, não tivemos tempo para tal, nem espaço para a arca, mas ainda assim bordamos em ponto de cruz azul uma única toalha para banquete, medindo mais de 4,5m com motivos de dragões chineses e flores, e uma dúzia de guardanapos. Levou mais de quatro anos para terminarmos o trabalho, quando mamãe levou para dona Angelina arelli, na Rua Barra Funda, para ar ponto ajours. Dona Angelina também fazia plissados, tão em moda na época. Depois de pronta, a toalha foi lavada, engomada e envolvida em papel de seda branco, esperando para ser usada em ocasião especial. O tempo foi ando, nossa situação melhorando, outras muito mais bonitas foram compradas, e a toalha símbolo da imposição materna de ter filhas prendadas, aguardando. Finalmente, quando a mamãe fez 50 anos, quisemos lhe fazer uma surpresa, inaugurando a histórica toalha. Onde estava ela? Onde foi parar? Naturalmente, em mãos indevidas que nada tiveram a ver com o esforço e a história familiar. Que não souberam o quanto foi difícil economizar para comprar o tecido. Que não souberam quanto foi cobrado para riscá-lo, após a tão estudada escolha do motivo. Que não souberam que a linha foi comprada aos poucos e de lugares distintos, já que precisava 331
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ser da mesma partida pra não dar diferença no tom. Que não souberam da energia empregada durante tanto tempo. Não deixamos mamãe saber do furto. Os guardanapos permanecem, para lembrar-nos que tudo deve ser usado imediatamente.
Os fogões da minha vida Neuza Guerreiro de Carvalho Fogões, objetos do cotidiano, sempre estiveram presentes nas minhas lembranças de infância e de adolescência. O primeiro fogão do qual me lembro por volta de 1940, tinha uma ou mais grelhas, mas não era fogão de lenha; era de carvão. E para acender o fogo era necessário fazer, no fundo da grelha, um amassado de papel – geralmente jornal – colocar umas madeirinhas entrecruzadas e o carvão por cima. Do papel, o fogo ava à madeira e só depois, chegava ao carvão. Demorava um pouco. Então, eu me lembro de minha mãe, à noite, cortando madeirinhas finas e “armando” a grelha, para ser mais rápido na manhã seguinte. Em algum tempo, usou-se o coque, carvão mineral, umas bolas bem redondinhas, do tamanho de bolas de pingue-pongue e o fogo durava mais, dava mais calor, mas também era mais caro. Numa emergência ou no café-da-manhã, enquanto o fogo não estava aceso, usava-se uma espiriteira, espécie de lamparina, que consistia numa peça de ferro redonda, com haste, pés de apoio para o fogão e para a a e uma canaleta destinava à colocação do álcool, que então era chamado de “espírito”. Para apagá-la havia uma tampa com cabo que cortava o ar e extinguia o fogo. O uso da espiriteira era perigoso e causava muitos acidentes, pois as as ficavam em um equilíbrio instável. Nem gosto de me lembrar de um “fogão” que tivemos quando moramos em um porão, na casa de minha avó e tias paternas em 1934. É triste, mas essas lembranças servem para valorizar às de melhores dias. Foram momentos amargos, péssimos para a minha família e esse fogão foi sua testemunha muda. O referido era uma lata de vinte litros, aberta numa das laterais, com uma grelha em cima. Funcionava com carvão e como tinha um só buraco, a comida tinha que ser feita aos poucos. Felizmente progredimos e tivemos um fogão elétrico – me lembro até da marca: Paterno. Ele tinha uma chapa redonda que ocupava toda a sua mesa e conservava bem o calor. Já estávamos em 1948, a eletricidade devia ser barata, pois esses fogões eram bem comuns. Os fogões a gás chegariam mais tarde, permanecendo até hoje, bonitos, sofisticados e eficientes.
Santa Marcelina e Colégio Batista! Mauro Lima de Souza Quem viveu ou ainda está pelos lados de Perdizes, sabe muito bem da importância desses dois “monumentos sagrados”. E sagrados ao pé da letra, uma vez que são duas das mais importantes escolas vinculadas a entidades religiosas no Brasil. Ali estudei quando as escolas particulares também ofereciam serviços gratuitos. De 1961 a 1964, período agitado na política do nosso País, estudei no Colégio Santa Marcelina, na Rua Alberto Torres. Recordo-me com clareza, quando em 1961 as aulas foram suspensas por causa da renúncia do então Presidente Jânio da Silva Quadros. As simpáticas “freirinhas” ficaram com receio das conseqüências de tal fato e resolveram decretar “feriado” naquela manhã cinzenta de agosto. Estava acompanhado de meu pai, que todos os dias me levava ao colégio no bonde 19–Praça do Correio. Naquele mesmo ano, depois de muita preparação, fizemos a primeira comunhão em um domingo de sol na Igreja de São Geraldo, no Largo Padre Péricles. E depois da missa e da cerimônia, os pais dos alunos foram convidados para um café na chácara do colégio. Foi uma festa de verdade! Também estava nesse colégio em 31 de março de 1964, data do Golpe Militar que marcou o início da ditadura, mas as freiras estavam bem integradas ao “espírito” da chamada revolução e nada deixaram transparecer aos alunos, criando a imagem de “calma e tranqüilidade” como apregoavam os militares. Lembro-me da professora, a irmã Neida, sempre com um largo sorriso, e das outras freiras professoras, como a irmã Carolina, a irmã Úrsula e da terrível irmã Palmira, que não só castigava os alunos com ofensas morais em frente a outras crianças, como também promovia sessões de espancamento quando os mesmos não cumpriam seus deveres ou a desagradavam. — A irmã meteu o cacete no Pereira, dizia um colega de classe comentando o que ocorrera no dia anterior com o Antonio Pereira, um garoto de origem simples, como quase todos os outros, de origem portuguesa, mas bastante levado. Ações como essa nos dias de hoje seriam manchetes de programas policiais na TV, e motivo para diferentes manifestações sociais. Depois que deixei o Santa Marcelina nunca mais tive contato com nenhum dos colegas de classe e não tenho idéia de que rumo tomaram na vida. Amigos como o José Roberto Bastos Leme, um menino negro com uma inteligência vivíssima, o Carlos Tilelli, hiperbagunceiro, o Antonio Marotti Netto, que morava na Rua Cardoso de Almeida, jamais fizeram parte de meus caminhos. Em 1965, para atender ao curso ginasial, enfrentei o famoso curso de “issão” mantido pelo Batista em pleno mês de janeiro. As aulas eram em período integral: pela manhã, Português e Matemática e à tarde,
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História e Geografia. Estão ainda vivas na memória as aulas de História do Brasil, ministradas pelo professor Dario e as de Português, por uma simpática senhora chamada dona Maria Mattosinhos. Mas valeu o esforço porque ei em 1º lugar e pela regra da issão, quem tivesse esta classificação teria bolsa integral de estudos, o que foi um alívio para o bolso do meu pai naquele ano.
Nasci em 1952 e fiz o jardim, o pré e antigo ginásio no Colégio Santa Marcelina, depois fiz o 1º colegial no Batista Brasileiro. Lembro que a madre superiora do Santa Marcelina tinha bigode e, apesar do medo que tínhamos dela, ríamos bastante por conta desse detalhe pouco feminino. Quando fui para o Batista, aprendi a fumar, a cabular aula e costumava ficar na lanchonete que existia em frente, onde o diretor ia me buscar quando minha mãe ligava para o colégio. Eliana Brandão
Colégio Costa Manso Carlos Alberto Fatorelli Minha família era da Vila Nova Conceição, da Rua Jacques Félix, onde meus avós eram chacareiros. Meu pai, Ernesto Fatorelli, colaborou como pedreiro na construção da Igreja São Dimas, situada à Rua Domingos Fernandes, onde ele também residiu. Em 1964, ingressei no Colégio Estadual Ministro Costa Manso, recéminstalado à Rua João Cachoeira, 960, próximo ao Córrego do Sapateiro e vizinho ao depósito do Mappin, na esquina da Avenida Juscelino Kubitschek. O colégio, posteriormente denominado Instituto Estadual Costa Manso, era de nível elevado, estando sob a responsabilidade do diretor e professor Athos da Silva Ferreira e contava com professores de formação acadêmica invejável como o Maiomone, de Ciências, a Mirtez, de História, o Tunica, de Canto, a Irene e o Moreau, ambos de Francês, o Tabir Pirajá, de Geografia e a Lessa, de Trabalhos Manuais, entre tantos outros que, sem dúvida, formaram a base para estruturar nosso caráter. Recordo bem do nosso uniforme azul-marinho garboso, completado por camisa branca onde do lado esquerdo estava bordado o símbolo de uma tocha com as iniciais C.E.M.C.M. – quando tornado instituto trocou-se o primeiro C pelo I –, que em tempos de inverno era coberto por espessa japona pesada.
Dos velhos tempos do ginásio Mário Lopomo Apesar de morar na zona sul, quando terminei o curso primário fui estudar no Brás e fiz um autêntico ginásio na escola SENAI Roberto Simonsen, na rua do mesmo nome, na esquina com a Rua Assumpção. Era uma escola profissionalizante, na parte da manhã íamos para a oficina e à tarde tínhamos aulas de teoria onde aprendíamos Português, Ciências, História, Aritmética e Desenho. O seu Nicolau e seu Antonio eram os instrutores da oficina. Seu Nicolau, bem mais velho, era muito engraçado. Não mandava o aluno calar a boca, gritava: — Chaaara. Já seu Antonio era mais novo e bastante calmo. De todos os alunos eu era o mais atrevido. Falava em política como gente grande, apesar dos meus 14 anos de idade. Também não era para menos, quatro anos antes já tinha participado da campanha de Getúlio Vargas para Presidente, em 1950, por isso, naquele triste dia 24 de agosto, seu Antonio veio me dar a notícia, antes de os outros ficarem sabendo, e disse: — Mário, Getúlio Vargas se suicidou. Espantado, não acreditei. Ele mandou olhar para a fábrica do Matarazzo, que já estava com a bandeira a meio-pau. Quando ia para a escola, levantava às 5 horas da manhã para pegar o ônibus na Avenida Santo Amaro e meu pai me dava o dinheiro para a condução e também para o almoço na escola, cujo valor era parcialmente subsidiado pelo SESI. Em pouco tempo descobri que quem servia a comida que vinha em grandes latões de alumínio eram os próprios alunos, que por isso não pagavam pela refeição. Falei com um considerado e logo estava lá servindo. Os novatos na distribuição da comida eram chamados de “calça branca” e começavam servindo pão ou banana. O mais difícil era servir o arroz, porque grudava na espumadeira e precisava de rapidez para dar uma facada nele, e deixá-la livre de qualquer grude. Com o dinheiro que eu economizava na comida eu comprava figurinhas das Balas Futebol. Mais tarde, me veio à cabeça uma nova mutreta para galgar um dinheirinho. Toda a manhã eu pegava o bonde na Praça Clóvis Bevilácqua, bem na virada da Rua Irmã Simpliciana. Vi que ir a pé até o Brás não era longe. Então, ei a descer a Ladeira Porto Geral, 25 de Março, Parque Dom Pedro e atravessar o rio Tamanduateí, em frente à Assembléia Legislativa. Mais um dinheirinho para o bolso do “degas”. Aí não tinha queijadinha que bastasse. Quem se saiu bem foi o “Deixa que eu chuto”, o vendedor de raspadinha, queijadinha e outros quitutes. Nas aulas de teoria, nossa sala ficava ao lado da sala das poucas meninas que lá estudavam. Era um olho na lousa e outro nas pernas delas. Até 333
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que tinham umas que davam gosto de ver. Algumas sem-vergonha, sabendo de nossas intenções, levantavam a saia para coçar as coxas de propósito. Eu gostava da Celina, mas era meio envergonhado para iniciar o papo. Um dia, deu certo de estar com ela longe das outras e fui para um “papo cabeça”: – Oi... dia lindo hoje, não? – É mesmo. É garantia que não vai chover este fim de semana. – Já que é assim, podíamos bater um papo mais amiúde? – Bater um papo? Que tipo de papo garoto? – Bem sabe... Eu... Ou, melhor... Nós... Quer dizer, ele... Sabe... Não é... Pois é... então. – Sai fora garoto. Se enxerga, meu. Foi a resposta da minha primeira investida para um namorico. Ela era dois anos mais velha do que eu. Me refiz logo, uma loirinha que trabalhava na fábrica do Matarazzo, que ficava em frente ao SENAI, cabelos compridos, uma bonita trança, vestido de chita, se engraçou comigo, e não foi preciso nem papo. Pronto, tinha uma namorada, era a primeira. E a primeira nunca se esquece. ava todo garboso, mão no ombro da mina, parecia um biscatão desfilando minha “exuberância”. Um dia ei a maior vergonha. Andando com ela pelas ruas do Brás, ali no fundão da Rua do Gasômetro perto do Largo da Concórdia, estava muito concentrado. Quando vi o circo estava armado. E não havia jeito de a lona baixar. Ainda bem que tinha pegado minha chuteira no sapateiro e consegui encobrir a coisa. Mas bom mesmo foi o trote que nos foi ado pelo Waldomiro. Foi demais. Ele era bem mais velho do que nós, que estávamos na faixa dos 14, 15 anos. Disse-nos que tinha dado uma trepada numa sa muito legal. Convidou uns cinco garotos para ir também. Mas tinha uma ressalva. Todos tinham que se pesar antes. Era perto do Cine Piratininga, na Avenida Rangel Pestana. amos numa farmácia e todos se pesaram e anotaram o peso. Ele então falou: – Agora vamos – e foi voltando para a escola. Todos perguntaram numa só voz: – E não vamos trepar na sa? – Mas vocês acabaram de trepar nela, disse ele. A sa a que ele se referia era a balança. Filizola. Também muito gostosas eram as aulas de desenho com o professor Fortes. Atrás das enormes pranchetas, ficávamos batendo papo sobre política. Estávamos em 1955, tínhamos tido eleição para Presidente, e toda manhã eu ava pela Praça da Sé, pois lá havia o placar com os resultados das apurações. Uma pessoa com giz ia colocando novos resultados. Falei para o professor Fortes:
— Acho que o Adhemar já ganhou! — Que é isso! Ganhou nada! O Juscelino já está na frente dele! — Professor, o placar da Praça da Sé está dizendo que o Adhemar tem quase um milhão de vantagem. — Que nada. Se eles colocarem lá que o Juscelino ou à frente, é capaz de ter uma revolução aqui em São Paulo. O Estado de Minas Gerais todo votou em Juscelino. Pode crer que, aos poucos vai diminuir a diferença e depois vai dar Juscelino. Não deu outra. O homem era um sábio.
Os cobradores novos dos bondes da Light também eram chamados de “calça branca” até receberem seus uniformes. Lembrei-me também do Gasômetro, onde as mães levavam seus filhos asmáticos para “cheirar o gás”, pois diziam que aquilo curava asma. Em 1953, trabalhei na Pianos Brasil, onde o almoço comunitário também era servido naqueles latões por quantia simbólica e era muito bom... melhor que aquele servido no Serviço de Alimentação da Previdência Social, SAPS, do Vale do Anhangabaú, que só foi legal quando da inauguração pelo Presidente Getúlio Vargas, no início da década de 1950. Flávio Rocha
Ledo engano Mauro Lima de Souza Parecia algo que jamais fosse acontecer, mas o ano de 1968 tinha terminado e eu concluído o curso ginasial no Colégio Batista, no bairro de Perdizes. Ainda sob os ventos do ano que se encerrava e das nuvens de mudanças que rondaram minha cabeça e a do nosso País, o desejo de outros desafios estavam presentes. Eu estava determinado a cursar Filosofia, Ciências e Letras e, influenciado pelo grande professor de física do Mackenzie, Francisco Suarez, fui incentivado a prestar o vestibulinho do Aplicação, da FFCL da Universidade São Paulo, que ficava na Rua Gabriel dos Santos, em um ponto que só os leitores paulistanos que nasceram com GPS no sangue poderão de fato determinar se era Pacaembu, Higienópolis ou Santa Cecília. Enfim, era uma rua tranqüila, esquina com a General Olímpio da Silveira, por onde desfilavam artistas como Ângela Maria, Agnaldo Timóteo e Cauby Peixoto e que ficava próxima do não menos conhecido, Cine Santa Cecília, que fez parte do glorioso ado paulistano. Mas voltando ao ímpeto de transformação, fiz a inscrição para o seletivo do curso colegial. Foram semanas de estudo para a prova que finalmente teve
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um final feliz: eu tinha sido aprovado e aos 14 anos estava na USP, pensava eu. Cheio de entusiasmo, fiz minha matrícula e fui para o primeiro dia de aula em março de 1969, acreditando ter ingressado na Sorbonne, mas a ansiedade era tão grande que nem tinha me dado conta que dois acontecimentos importantes tomavam o cenário político do Brasil: a reforma do ensino e o AI-5. Eu pensava que estudando ali, iria ao cerne dos assuntos filosóficos, esnobes e intelectuais da época, que teria participação ativa na política e no movimento estudantil, mas o que encontrei foi uma escola pálida, sem identidade e amordaçada e um curso chamado Colegial Eclético, onde quase quarenta matérias faziam parte do currículo. Parecia um soco no estômago. Não estava preparado e nem queria ser eclético. Queria apenas conhecer um pouco mais de matemática e me inteirar de ciências políticas, pensava eu. Ledo engano. Assim, durou pouco o sonho de ser um aluno da USP e com ajuda de meu pai, voltei ao Colégio Batista. Foi uma decisão acertada, pois em menos de um ano a USP não mais apoiava o colégio que ou à rede estadual com o nome de Fidelino de Figueiredo. Deixei para trás as noites frias naquele velho casarão iluminado. E essa pequena história veio à tona na noite de hoje, uma noite também fria, quando da mal iluminada e deprimente Rua General Olímpio da Silveira, vi o mesmo prédio agora com a inscrição: Universidade de Guarulhos.
O ano de 1968 foi muito triste. Para encerrá-lo com mais tristeza, o grande noticiário Repórter Esso acabava, no dia 31 de dezembro. Seu locutor gaguejava nas notas finais, e caiu num choro convulsivo, tendo outro radialista que continuar a leitura por instantes. Mário Lopomo
Nas represas Aparecido Schiavone Garoto de São Carlos, interior de São Paulo, ava férias em Diadema, na Represa Eldorado. Um parente me deixava (via Piraporinha – Diadema) na ponta da represa e através de um barco ligeiro íamos com o caseiro até uma mansão, dessas de políticos famosos cuja prima minha istrava. Volume de água colossal, as mãos iam roçando a superfície das águas e a sensação era maravilhosa. Já morando em São Paulo, trabalhando num laboratório farmacêutico na Rua Campos Sales, na hora do almoço, com um grupo de amigos, íamos à Represa Santo Amaro e ali lanchávamos num quiosque existente. A represa refletia o brilho de suas águas portentosas. Muito tempo depois (já trabalhando no Rio) e tendo um dia de folga em São Paulo, aluguei um carro e quis ver de novo a Represa Santo Amaro. Encontrei com dificuldade o caminho que fazíamos e fui barrado no final,
por uma portaria de condomínio elegante. Perguntei sobre a represa e o porteiro me disse: — Ah, secou! Faz tempo... Triste me dirigi para Diadema (onde realizava meus trabalhos em indústria de gases) e lembrei da Represa Eldorado. Entrei no mesmo caminho que fazia quando criança, agora asfaltado e completamente cercado por edifícios. Bem próximo à curva que nos permitia vislumbrar a enorme represa, qual não foi a minha surpresa ao ver o leito completamente seco e aterrado! Perguntei às pessoas que rodeavam o local e elas me disseram, meio chateadas: — Ah, secou! Faz tempo...
Uma Rua Augusta Cynthia Freeney O Caetano elegeu a esquina da São João com Ipiranga para ter sua taquicardia poética, e existe sim, uma enorme poesia naquele trecho de selva, com seus edifícios decadentes e seu cheiro de churrasco grego. Mas para alguém como eu, que se criou no eixo Bela Vista – Jardins, entre as décadas de 1960, 70 e 80 – a situação econômica da família determinando em que lado da Paulista vivíamos –, a Rua Augusta é o lugar em que o coração mais perfeitamente se arritmiza. E por Rua Augusta, entenda-se toda a extensão de asfalto que vai do prédio do Diário Popular até o Edifício da Dacon, na esquina com a Avenida Faria Lima, que embora receba tantos nomes diferentes entre um extremo e outro, no descomo do meu peito paulistano, onde as memórias se fundem com o mesmo grau de significância, perde todos os sobrenomes e se “Augustiza”. Dizem que foi por meados da década de 1950 que a Augusta começou a se celebrizar como rua da moda. Só sei que na época em que eu comecei a me entender por gente, a Augusta era a “Meca” da moda, da arte, do design e da cultura da elite paulistana. Muito antes da paulistada descobrir as conveniências de se gastar dinheiro no abrigo refrigerado dos shopping centers, gastar os solados dos sapatos Spinelli escalando os íngremes quarteirões da Augusta era a coisa mais “chique-re-quérrima” do mundo. Era onde todas as moças de “boa família” avam as tardes de sábado. A minha não era lá muito boa, mas meu pai tava enricando e por esse motivo a gente tinha que fingir que era “bem de vida”. Então lá ia eu com minha mama, olhar as exposições da Augôsto Augusta, comprar roupa na Paraphernalia, xeretar as lojas da Galeria Ouro Fino, ver o que o Aparício estava expondo na loja da Rastro, parar na Billboard pra ouvir música com aqueles fones de ouvido enormes, comer uma coxinha do Bologna e ficar lendo revista sa 335
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na sala de espera do Beka, esperando minha mãe sair de lá parecendo a Elke Maravilha. Depois pegar um táxi, almoçar muito tarde no Pandoro, eventualmente uma feijoada no Bolinha, e fazer a via crucis de volta. No domingo, tinha as matinês no Conjunto Nacional ou no Cine Vitrine, e com sorte, um taco do Jack in the Box, ou beirute do Frevinho. Teve o ano que acarpetaram – juro! – a Rua Augusta de vermelho. E teve o dia que a Rita Lee deu show no balcão da Jeans Store. E daí teve o êxodo da burguesia para o Iguatemi e o trecho chique da Augusta foi invadido pelos “Johnnys” e “Alfredos” da zona leste, e “orra meu, num dava mais pa subí a Augusta sem os cara ficá te chamando de mina, de drento da Brasília envenenada.” Mais ou menos ao mesmo tempo em que eu atingia a maioridade, e descobria o outro lado da Augusta. O lado “mardito”. Que começava com a efervescência dos freqüentadores da Medieval e seus memoráveis shows de travesti, na época se dizia travesti mesmo... essa coisa de drag queen é nova. ava pela serenidade da lojinha da Arte Índia e dos muquifos alternativos escondidos em becos e galerias, único lugar onde ainda era possível encontrar a versão cosmopolita das alpercatas nordestinas, e aquelas bolsonas de couro cru com fivelão, que quando eram novas, fediam a curtume.Terminava nos dois templos gastronômicos e culturais da galera do teatro: o Spazio Pirandello e o Amico Piolin, antes de dar uma guinada a direita e penetrar no auê do Bixiga e seus teatros, restaurantes, Cafés como o Piu Piu, os clubes como o Carbono 14 e Madama Satã, o Cineclube do Bixiga, as festas da Achiropita. E daí tinha o lado zen, na Avenida Europa, que provavelmente começava na sede do Ballet Stagium... ou talvez antes, no Procópio Ferreira, e culminava com as sessões gratuitas de cinema no Museu da Imagem e do Som, MIS. Em resumo, a Rua Augusta em toda a sua extensão e muitos nomes era como a veia principal dos mais importantes redutos culturais da Paulicéia entre as décadas de 1970 e 80, alimentando a ebulição dos Jardins e do Bixiga. A aorta cultural paulista.
Morei na década de 1960 em uma vila da Rua Augusta. Lá tinha a Foto Hejo, onde as boas famílias paulistanas fotografavam no dia da primeiracomunhão e a Eletroarte Discos, quase esquina com a Alameda Franca, que aos sábados virava o point depois das aulas no Dante Alighieri. Também era muito “in” tomar chá na Yara. Entre as alamedas Tietê e a Franca havia uma loja de brinquedos chamada Bazar Ludy que era o sonho. Entre a Franca e a Itu, havia a Galeria Florida e a primeira loja se chamava Turiguara, onde podiam ser comprados os mais lindos arranjos de flores e gaiolas com pássaros vivos. Calça Levis importada era na Tobbs, uma minúscula loja que ficava numa galeria entre a Alameda Lorena e Rua Oscar Freire. Sapatos eram
sob medida, ou na Spinelli ou na minha preferida, a Adriano, que ficava na Alameda Itu, quase esquina com a Augusta, literalmente uma portinha de garage. Na Rua Augusta, havia apenas quatro linhas de ônibus, todos elétricos: a 51 que descia como Jardim Europa e subia como Praça da República e a 54, que descia como Jardim Paulistano e voltava como Vila Buarque. Depois surgiu a linha Jóquei Clube, que voltava como Santa Teresinha, atual Santana, uma lonjura na época. Recordo de tudo sobre a Rua Augusta, quando ela era a “augusta” rua de São Paulo. A Rua Augusta não foi acarpertada só de vermelho, mas com placas quadradas de cores variadas. E por cima ainda penduraram panos brancos como se fossem toldos. E para ser justo, temos que falar do restaurante Flamingo, entre as alamedas Tietê e Lorena, a melhor batata palha da cidade. Israel Beigler Como aluno semi-interno do Colégio Paes Leme, que ficava onde hoje está a sede do Banco Safra, vivi anos da minha vida subindo e descendo a Augusta e curtindo tudo o que ela tinha de bom. Quero acrescentar a Duomo, que tinha as mais deliciosas empadinhas da cidade. O Fasano do Conjunto Nacional, com suas mesas na calçada da Paulista. E a minúscula lanchonete que ficava próxima ao Cine Marachá e que servia hambúrgueres deliciosos, hot dog com batatas chips e um sorvete chamado hot fudge nuts, um sorvete de creme com calda de chocolate quente e castanhas, uma delícia. Na Galeria Ouro Fino, lá no fundão, à direita, tinha uma nordestina que vendia calças jeans Lee e Wrangler e camisas de madras. Aos sábados de manhã, a gente ficava esperando o contrabando chegar pra disputar a tapa as últimas novidades. Na Augusta fazíamos a perigosa roleta paulista, que consistia em disparar da Rua Colômbia até a Martins Fontes sem parar nos faróis. Numa dessas perdi um grande amigo, o Roberto Andraws, que se foi na sua Berlineta e deixou muitas garotas apaixonadas em desespero. Um mito. Ademar Souza
Augusta, ponto de encontro da juventude Paulo Romanelli Que dias maravilhosos quando a Rua Augusta foi o ponto de encontro da juventude paulistana, principalmente nas tardes de domingo. Por volta de 1960, encontrávamos a turma do colégio e da ACM para assistir aos filmes mais badalados da época nos cines Picolino, Majestic, Marachá e Paulistano, com Elvis Presley, Pat Boone, Tony Curtis, Fabian, Rick Nel-
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son, Ann Margareth, Doris Day, Brenda Lee, Connie Francis entre outros astros e estrelas. Era dentro do cinema que se paquerava e que se conseguia conquistar a nova namorada. Também era deslumbrante o desfile de carrões de cores sóbrias, mas com as rodas pintadas de vermelho e com os escapamentos levemente abertos, roncando seus possantes motores. Eram os importados das marcas Chevrolet, Ford, Mercury, Dodge, Plymouth, Packard, Corvette, Thunderbird e tantos outros que disputavam espaço com os recém-nascidos Fuscas, DKVs e Renaut Dauphines. Depois do cinema comíamos aquele lanche saboroso, um hot dog ou Cheeseburger, acompanhado do delicioso sorvete com cobertura de chocolate quente e nozes. Era o chic da ocasião. As lanchonetes mais badaladas eram o Frevinho e o Simbad, ambas ficavam superlotadas.
O prédio realmente foi interditado e desocupado em 1993. Quem não se lembra do guindaste para retirar o piano de Pedrinho Mattar? As reformas elétricas e pinturas que o prédio precisava foram executadas em troca da colocação de anúncios externos. O Edifício Baronesa de Arary foi liberado pelo Contru apenas em 1997. Lúcia Santos Lembro da Casa Vogue, dos tempos em que a minha mãe era viva. Mas ela nunca comprou nada lá, faltava grana. Luiz Saidenberg
Fim de semana no aeroporto Casa Vogue Doris Day Em 1970 tive a oportunidade de conhecer a Casa Vogue, na Avenida Paulista. Meu irmão era o estilista da casa e eu, caipira do interior, fui convidada por ele para assistir um daqueles grandiosos desfiles de moda. Lembro como me senti constrangida no meio das dondocas da sociedade. Nunca havia assistido a um desfile de modas, muito menos visto, de perto, com manequins tão lindas e roupas deslumbrantes, a maioria adaptada à moda de Paris. Pesquisas rigorosas eram feitas em Nova Iorque e Paris, anualmente. A Casa Vogue ficava no Edifício Baronesa de Arary, na Avenida Paulista. Esse edifício com 556 apartamentos e que resiste até hoje, teve o seu período de glória na década de 1960, quando virou ponto de encontro da classe teatral e centro de difusão da alta moda, graças à Casa Vogue. A cobertura pertencia ao casal Walmor Chagas e Cacilda Becker, que utilizava o salão de festas para saraus. Posteriormente, virou salão de debates sobre a censura imposta pelo regime militar. O pior ocorreu em 1993, quando o Departamento de Controle do Uso de Imóveis, Contru, interditou o edifício, alegando risco iminente de incêndio. A desocupação só foi evitada pela mobilização dos moradores, que reformaram as instalações elétricas. A Casa Vogue também apresentava a moda para as filhas das madames e sua boutique se chamava Voguinho. Apesar de meu irmão ter trabalhado lá, nunca pude ter, sequer, uma peça, era tudo caríssimo, como a atual marca Daslu. Luís não foi um estilista famoso, mas era de um bom gosto e talento indescritíveis. Quem já usou roupas da TricotLã – Bonna – sabe a que me refiro. Saudades do meu irmão querido e dessa época tão feliz de nossas vidas!
Turan Bei Um final de semana completo se dava indo ao Aeroporto de Congonhas para olhar o movimento de ageiros no embarque, até a emoção da decolagem, não que a aterrissagem fosse menos importante, a gente até arriscava adivinhar o modelo do avião e a companhia. Enquanto no ar, o Constellation era o máximo, com quatro motores; a Varig, Vasp, Aerovias Brasil, Panair do Brasil, Real, eram as mais conhecidas com a nossa bandeira. Eu era freqüentador de carteirinha do aeroporto, lá rolava paquera, tinha aquela famosa banca de revistas, o cafezinho, e aquela gente elegante e bonita produzida para a viagem.
Minha maior lembrança do Aeroporto de Congonhas foi a chegada dos campeões mundiais de 1958. Lá estive com minha bicicleta Philips, meia-corrida, aro cromado, com duas bandeirinhas nas borboletas das rodas dianteiras. Voltei a pé, a bicicleta foi roubada enquanto eu estava vidrado na descida dos campeões. Mário Lopomo
iração pela Paulista Antonio Carlos Dias Desde criança, tenho iração pela Avenida Paulista. Morávamos no Jabaquara e minha mãe me levava pra Santa Casa de Misericórdia toda semana. Fazíamos baldeação na Avenida Paulista, eu tinha uns 6 anos, estávamos na década de 1960, e ainda existiam muitos casarões na avenida. 337
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Quando comecei a dirigir escondido do meu pai, aos 16 anos, fui com meus amigos até a Paulista. Era a glória. Menor de idade e dirigindo na Avenida Paulista. Quando comemoraram os 100 anos da avenida, lá estava eu, com minha mulher e filha assistindo um concerto do pianista Arthur Moreira Lima, sentados no asfalto da avenida. Apesar de você ser bem mais velha que eu, agora com 48, te amo Paulista!
Além da Casa Palma Johannes Luyten No final da Avenida Cupecê ficava a famosa Casa Palma, um armazém que vendia de tudo, inclusive fogos de artifício. Além dela, somente chácaras e sítios. Naquele tempo, para se chegar à Via Anchieta partindo de Santo Amaro ou Brooklin, era necessário ar pelo Aeroporto, Jabaquara, Americanópolis, Diadema e Piraporinha. Falo do final da década de 1950 e numa das minhas muitas viagens “de carona”, planejava ir para Santos encontrar a turma. Era um sábado de manhã, e eu consegui uma carona com um “aventureiro” que dirigia um jeep Willys no final da Rua Joaquim Nabuco, no Brooklin. Ele explicou que planejava ir para São Bernardo do Campo e que queria “experimentar” uma nova rota além da Casa Palma, para encurtar o caminho. Foi uma aventura ar por aqueles desvios e sítios para finalmente, subir o “morro” que separava São Paulo de Diadema. O motorista do jeep enfrentou várias derrapadas e desvios. Bem na divisa, no alto do morro, paramos para apreciar a paisagem e saborear a sensação de sucesso de termos sidos os primeiros a viajar do Brooklin até Diadema, além da Casa Palma. Mais tarde, já em meados de 1960, quando eu estudava na Faculdade de Engenharia Industrial, FEI, viajava de carona diariamente do Brooklin para São Bernardo pela mesma rota, já devidamente traçada e asfaltada. Fui novamente o “desbravador” como caronista, dessa vez em outro jeep, dirigido por um sitiante japonês, morador do local, e fizemos o primeiro percurso “aos saltos e barrancos” de Piraporinha até a porta da FEI, sem ar pela Anchieta.
No final da Cupecê estreita, da Casa Palma em diante, na verdade, começa a Cupecê larga, com duas pistas, até a divisa com Diadema, no bairro de Jardim Miriam. Na Casa Palma, – ainda existe a Casa? – que vende fogos, que é monopolista dos famosos fogos Caramuru. Palma é o sobrenome do desbravador daquele pedaço da cidade de São Paulo. Ou o pioneiro que na certa, loteou o que deveria ser um sítio. Mário Lopomo
Saudades do meu tempo Flávio Rocha Sou do tempo em que as pessoas atendiam ao telefone – aquele preto pesadão – dizendo: Pronto, ao que nossos irmãos portugueses diziam: Está lá? Da molecada rodeando nos estribos dos bondes, fugindo do cobrador pra não pagar os duzentos réis, que era o preço da agem quando esses eram ainda da Light and Power, antes de 1947. Nas orquestras não havia guitarras ou som estereofônico, o som era tirado no gogó mesmo – tanto dos instrumentos quanto da garganta, do chamado crooner –, os nomes eram todos americanizados, pois era a época dos famosos band leaders: Glenn Miller, Tommy Dorsey e outros mais. Nossas orquestras tinham, no mínimo vinte, excelentes músicos e executavam samba, samba-canção, boleros, rumbas, até tangos, sem dever nada às grandes bandas americanas ou argentinas. Tempo de Sílvio Mazzuca, Severino Araújo, com sua orquestra Tabajara, Osmar Milani, Enrico Simonetti, com o impagável Edgard na guitarra. Nos jornaleiros imperavam os gibis: Globo Juvenil Mensal, com seus personagens Mandrake, Flash Gordon, Zorro e o Tonto, Fantasma Voador, Tocha humana, Capitão Marvel, Bronco Piler, Príncipe Submarino, ufa! E a gente lia com a maior satisfação. As mulheres acreditavam que nove entre dez estrelas usavam o sabonete Lever. Era fácil “diferenciar as meninas das moças, as mulheres de senhoras, os meninos dos rapazes”. Meninos usavam calça curta até os 14 anos, daí em diante eram chamados “rapazes”, já ganhavam suas calças compridas e saiam à caça das namoradinhas. As famílias mais abastadas ouviam discos – aqueles de selo vermelho, geralmente importados dos Estados Unidos, de 78 rotações, em suas vitrolas. As mais pobres ouviam só rádio mesmo, discos somente uma vez ou outra na casa do amigo de família abastada, porém, rica ou pobre, toda família tinha a sua máquina de costura Singer e seu escovão para lustrar o assoalho, uma vez que as enceradeiras elétricas eram raras. Tomava-se o Xarope São João, pois a rádio sempre anunciava: “Tosse, bronquite ou rouquidão fogem atemorizadas ao ouvir falar do Xarope São João.” Francisco Alves era o “rei da voz”, Silvio Caldas era o “caboclinho querido”, Orlando Silva era o “cantor das multidões”, Carlos Galhardo era o “rei da valsa”, Vicente Celestino cantava com sua voz de tenor “alza alza Manolita” e todo mundo mudava a estação, pois diziam que dava azar escutar a Manolita. Leônidas da Silva aplicava suas bicicletas no recém-inaugurado Estádio do Pacaembu, para o terror dos goleiros adversários Bino, Oberdan, Caxambu e outros. Era o tempo do Repórter Esso, com a locução do Heron Domingues,
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que anunciou a morte de Carmen Miranda nos Estados Unidos: — Atenção Brasil, morreu hoje em Hollywood a cantora e atriz Carmen Miranda. Não me lembro se foi o Jatobá ou o Gontijo que “irradiou” em 1943: — Atenção Brasil, o Presidente Vargas acaba de declarar guerra aos países do Eixo. Depois veio o Kalil Filho, de excelente locução e que deixaria todos os repórteres locutores de hoje no chão. O carnaval... Ah, o Carnaval... Tanto os de salão como os de rua, eram de plena camaradagem. E o lança-perfume Rhodo de tubo metálico dourado que era lançado apenas para perfumar ainda mais as meninas, pois poucas pessoas cheiravam-no em seus lenços.
Também sou um setentão, rebuscando a minha memória lembrei-me de quando fui office boy, revejo agora na tela do tempo locais e fatos que marcaram a minha juventude como, o Teatro Santana que ficava na Rua 24 de Maio, onde assistíamos as revistas do Walter Pinto, estreladas pelas vedetes Nélia Paula, Renata Fronzi, Virgínia Lane, Rosinda Rosa, Elvira Pagã, Luz del Fuego, com a sua serpente, Wilza Carla, os humoristas Costinha, Chocolate, Grande Otelo, o Cine Odeon que ficava ali no início da Rua da Consolação, a Casa de Shows Tropical, que ficava na Avenida São João, ao lado da grande loja de peças para automóveis denominada Ali Babá, do Ernesto Annunziato e da Rádio Cultura. Leonello Tesser Em 1944, quando eu tinha 7 anos, fui ao Pacaembu pela primeira vez com meu pai e ele disse que para eu entrar de graça, teria que dizer que era sãopaulino roxo. Foi o primeiro 171 que me foi aplicado, pois o ingresso para menores era de graça mesmo. Naquele jogo, o São Paulo meteu 4x1 no “Coringão” e o goleiro era o Bino. Para minha felicidade, sou Tricolor até hoje. Carlos Roberto Teixeira Trindade Lembro-me do programa Simonetti Show, no Canal 9 – TV Excelsior, com a Lolita Rodrigues, sempre tentando cantar e nunca conseguindo, pois o programa sempre chegava ao fim. E um músico que fazia dupla com o Edgar, o Capacete, que além de bom, também era um grande humorista. Heitor Felippe Ainda recordo da revista Vida Infantil, que tinha Os Enganos do Pituca, Sir Can Can, Coronel Farofa, Cid Bengala e outros. Carlos Roberto Teixeira Trindade
No tempo que eu era simplesmente macaco de auditório, ei pela Rádio Nacional para levar umas roupas que minha mãe tinha que entregar para a Sarita Campos. Fui até o estúdio onde às 17h30 a dupla Tonico e Tinoco cantava ao vivo. Sentado num banquinho, vendo e ouvindo eles interpretarem Moreninha linda, percebi um microfone incrustado na parede a um metro e meio de altura e no intervalo comercial, perguntei a um deles porque aquele microfone estava ali e descobri que era para que o cantor Vicente Celestino cantasse. Ele ficava a mais de um metro de distância por causa de sua voz potente. Mário Lopomo
Tantas são as histórias Maria Cristina Caetano Dias Minha primeira experiência em cinema como platéia foi em companhia de meus pais, no Cine Cruzeiro, assistindo ao filme A Volta ao Mundo em 80 Dias com David Niven, que por muito tempo foi um ídolo. O sabor do sanduíche Americano que comia depois do filme nas Lojas Americanas, ainda está impregnado em minha memória olfativa... Decididamente, nada igual. São tantas lembranças... Ir à casa de minha tia no Alto da Boa Vista pegando o bonde Santo Amaro, sentindo o inesquecível cheiro de eucaliptos, após a chuva no trajeto. Visitas à Praça da Sé para missas em família, e minha mãe, como todas daquela época, prevenida, carregava um penico, uma garrafa de vidro, pois não havia embalagem plástica, com água para lavar o penico após minha urinada rápida entre um transporte e outro, que pegávamos para visitar a vovó na Vila Guilherme. Eu adorava, principalmente, ar por uma ponte ou pinguela, como chamava papai, sem medo nenhum, pois estávamos todos juntos, papai, mamãe eu e meu irmão mais velho. Os piqueniques que duravam o dia inteiro no Parque Zoológico. Nossas expedições pelos jardins da vizinhança, à cata de folhas diferentes para o trabalho de Ciências, numa paparicação só com as ditas folhas, nos sentíamos cientistas. Visitas ao Museu Paulista, assistir e participar dos desfiles em datas cívicas e, acima de tudo, saber cantar todos os hinos e músicas folclóricas de nossa terra. Creio que foi muito mais que isto que me lembro, porém o espaço é pouco para tanta memória viva, graças a um tempo em que tínhamos um só aparelho de TV, dois rádios à pilha, K-Suco para refrescar, cera Parquetina para lustrar nossas travessuras com a sola de borracha do calçado Vulcabrás; que não acabava nunca! Da calça Rancheiro que meus pais compravam na feira de domingo e que hoje chama-se jeans... 339
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O primeiro filme que assisti chamava-se A Flor de Pedra, no Cine São Caetano. Depois da sessão, preferia o cachorro-quente; a casa da minha tia ficava no Aeroporto e tomávamos o ônibus em frente à Galeria Prestes Maia; o primeiro piquenique foi em Santos, na praia do Gonzaga; não só pegava folhas como vendia mudas para a vizinhança que as comprava pelo menor trocado, só para incentivar; a feira perto de casa acontecia aos sábados onde infalivelmente, comprávamos bolacha a granel que vinha em embalagem quadrada, de folha de flanders, salsicha Santo Amaro, frutas, legumes, verduras e as calças tipo americanas ou Rancheiro. Lembro de um modelo que era abotoado com meia dúzia de botões distantes uns 15cm em duas fileiras. Mirça Bludeni de Pinho
Ampliando horizontes paulistanos Rubens Cano de Medeiros No início da década de 1960, um adolescente ultraa limites do bairro onde mora e se depara com um gigante: a Paulicéia. Percorre-lhe, a partir daí, os quatro cantos. De ônibus, de bonde, de trem de subúrbio e começa a descobrir a diversidade paulistana. Os ônibus, ou são da Companhia Municipal de Transportes Coletivos, CMTC, cujas cores o então prefeito Prestes Maia muda do tradicional e originário grená para um alaranjado, ou são “particulares”, como se denominavam as demais concessionárias das linhas. O moleque se familiariza com os ônibus elétricos, zunindo ainda por poucas linhas, para a Aclimação, Jardim Europa, Mooca ou Santana. Pitoresca é a última linha de bondes abertos dos dois lados: 24 - Praça Clóvis Belém, 101 - Praça João Mendes - Santo Amaro. Mas os bondes agonizavam. Os derradeiros morrem em 1968, no Largo 13 de Maio. O moleque se depara com os trens de subúrbio das estradas de ferro como a Santos – Jundiaí e seus belos carros Budd, de aço inoxidável prateados, na Estação da Luz; a Central do Brasil, com as linhas tronco e variante, ambas para Mogi, na Estação Roosevelt; a Sorocabana, com seus trens elétricos japoneses, verdes, na Estação Júlio Prestes e a ferrovia do Tramway da Cantareira, com parada na Rua João Teodoro e bifurcação na Estação de Areal. Nada disso o cara conhecia... Osasco, por pouco tempo, ainda é bairro, e para lá o sacolejante e barulhento Ônibus Papa-fila FNM, via Estrada Velha de Itu. Aliás, a cidade tem muitas “estradas” na malha urbana como a do Mandi, a do Cursino, a de São Miguel, a de Itapecerica, a velha São Paulo - Rio. Marginais, dos rios? Fragmentos. Arranha-céus? Quase que só no Centro. No Tietê, remadores. Nos “arrabaldes”, chácaras de flores e hortaliças, circos, parquinhos de diversão. Túnel? Só o 9 de Julho. Pontes e viadutos?
Alguns. Muitas porteiras, nas linhas de trem. Rodoviária da Júlio Prestes: formigueiro de pessoas e de ônibus. Conhecendo São Paulo... O aqui “protagonista” se surpreende com o coração fabril da outrora Piratininga, São Paulo produz de tudo: de brinquedos Estrela a caminhões Ford. Multidão de chaminés. Barulho, apitos. Fumaça que é, simultaneamente, progresso e poluição. São Paulo é esse conjunto de chaminés. Aromas: Canindé e Lapa recendem a biscoito; Belém e Mooca, a café; no Brás, cheiro de cigarro; no Brooklin, olfato de chocolate Lacta. Teares ruidosos no Ipiranga, no Tatuapé, no Belém. A imponente chaminé da Brahma, no Paraíso, é branca e tem cheiro característico. Matarazzo, das mil fábricas, é colossal na Água Branca. A Água Funda, uma siderúrgica dentro da cidade: Aliperti. Já na outra “água”, certamente, também fábricas: Água Rasa. Em Perus, gigantesca fábrica de cimento e sua linhazinha de trem, de bitola estreita. São Miguel Paulista exibe a grande Nitro-Química. Indústrias encravadas no Pari, na Casa Verde, em Vila Maria, Catumbi, Ponte Pequena, Barra Funda, no Anastácio, em Jurubatuba, Parque Novo Mundo. Enxame de operários, homens e mulheres de macacões de brim azul semeando e colhendo trabalho. Muitas fábricas têm “cara” sisuda – constata o moleque. Há outras, de tijolinhos aparentes; grandes ou pequenas que formam a São Paulo pulsante, “maior parque industrial da América Latina”. Há muitas ruas de paralelepípedos, outras tantas de terra e sem iluminação. Bairros afastados, que parecem cidadinhas do interior, com pracinhas e coretos, grandes vazios e vegetação. Pontilham o céu da zona norte os teco-tecos do Aeroclube, que brotam como libélulas, do Campo de Marte. No lindíssimo Congonhas, “mais um Caravelle da Cruzeiro do Sul, a bordo do Brasil”, garante o jingle. Imortais DC-3 com a inscrição “Vôe pela Real” (com acento). Lampejo da minha memória: um pouco do mensurável – pois São Paulo já era infinita – daquilo de que me recordo, aos13 anos. Quando comecei a fazer entregas nas ruas, para longe de Vila Mariana, onde morava. Vila Mariana de ruas orladas por tipuanas; das chácaras de portugueses, onde hoje se enfurecem os veículos, na Avenida 23 de Maio; do campo do Olímpicos “do Paraíso”, Tomás Carvalhal com Oscar Porto, de cujo barranco se avistavam os aviões pousando no xadrez de Congonhas. Da Estamparia Caravelas, dos casarões e dos lindos sobradinhos, das casas com quintal... E da Estação dos Bondes! Do ranger das rodas nos trilhos, dos bondes camarões que desciam a Avenida Conselheiro Rodrigues Alves, do Largo Dona Ana Rosa até o Instituto Biológico. Ruído, então, possível de ser ouvido, por exemplo, à noite, quando trazido pelo vento e com a cumplicidade do silêncio. Em tempo: eu morava quase a um quilômetro daquela avenida.
Moro no Ipiranga desde que nasci. Conheci o campo do Olímpicos, do Paraíso e também o Campo do Éden, na Liberdade, que ficava num vale
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onde hoje a a Avenida 23 de Maio. O Cine Cruzeiro, no Largo Ana Rosa e, como office boy, andei muito nos bondes que iam para Santo Amaro – bons tempos de nossa mocidade! Vamos fechar os olhos e reviver com alegria aqueles momentos alegres de nossas vidas. Leonello Tesser
São Paulo, das décadas de 50 e 60 Mauro Souza Algum de vocês presenciou o eio do artista Flávio de Carvalho, vestindo saias, na Rua Barão de Itapetininga? Quais foram os principais cafés do Centro de São Paulo? Alguém se lembra do Fasano, na Rua Barão de Itapetininga? Do cinema da Galeria Califórnia? Ouviu um poema ou frase de amor da namorada e disse: Excelsior...? Alguém alguma vez tomou lanche na Clipper ou cortou o cabelo lá e depois acompanhou ao vivo um programa da Rádio Excelsior, na mesma loja onde o radialista Hélio de Araujo perguntava ao balconista da seção de discos: — Qual é o compacto simples mais vendido na semana? Provou o sanduíche de lingüiça na Casa Califórnia da Rua São Bento? Aproveitou os descontos da “Quinzena da Indústria” no Mappin? Se apaixonou por alguém na década de 1960 ao som de Who´s loving you e no final sempre se lembrava do slogan do Mappin declamado pelo Antonio Del Fiol? Folheou pelo menos uns duzentos livros na Livraria Brasiliense? Paquerou na Confeitaria Vienense? – Segunda geração do Fasano da Barão. Almoçou no Pelicano, ou comeu a “senhora” feijoada do Gatão? Comeu pizzas na Saturno ou no Papai? Alguém ainda se lembra do debate na TV entre a Deputada Estadual Conceição da Costa Neves e o Coronel Fontenelle e na semana seguinte, com a mesma deputada, o debate sobre o palavrão no Teatro, com Augusto Boal? Da invasão do Teatro Ruth Escobar durante uma apresentação da peça Roda Viva do Chico Buarque? Do show de Roberto Carlos e a Jovem Guarda no Cine Universo? Das filas para se assistir aos filmes Tubarão e Calígula? Andou de bonde 36 numa noite de garoa? Meu Deus, quanta coisa linda! Só uma palavra define tudo isso: saudade! Nem acredito que eu tenha sido um desses, que vivenciou muitas das coisas acima...
Na Casa Califórnia da Rua São Bento os sucos eram batidos na hora, devo citar ainda o Cine Barão na Galeria Califórnia, o Cine São Bento, que ficava em frente à farmácia do Veado D´Ouro, o Cine Recreio, que ficava na Praça João Mendes, esquina com a Rua do Riachuelo, o Cine Rosário, que ficava na Rua São Bento, embaixo do Edifício Martinelli, o Restaurante Jacintho, na Praça da Sé, que servia um maravilhoso bacalhau. Quanto aos debates realizados na TV Tupi, Canal 4, pela deputada Conceição da Costa Neves, foram mediados pelo saudoso Aurélio Campos. Também tomei muito café na antiga Leiteria Pereira, com suas mesinhas azuis, na Rua São Bento e cheguei a degustar os salgadinhos do Restaurante Guanabara quando estabelecido na Rua Boa Vista, esquina com a ladeira Porto Geral, bons tempos. Leonello Tesser
Nos anos de 1954 e 1955, minha tia “que era boa de grana”, nos levava para tomar lanche com Toddy na Clipper de Santa Cecília, onde atualmente existe um banco do Bradesco. Pegávamos umas peruas, acho que Chevrolet com lateral de madeira, que saíam da Praça do Patriarca, bem defronte onde atualmente está a Prefeitura Municipal de São Paulo e para chegar ao Restaurante do Papai, na Praça da Sé, descia-se umas escadas, pois era no subsolo. Chá era no Rei do Mate que só existia na Avenida São João, pouco acima do Correio. Já nos fins da década de 1960, tive o privilégio de assistir ao programa Roda Viva, porque era culturalmente interessante para o vestibular do antigo Centro de Educação Continuada em Engenharia e istração, CECEA, ao qual estava me preparando, e consegui entrar na Faculdade de Economia, istração e Contabilidade, FEA-USP, ainda na Rua Doutor Vila Nova. Assisti da janela do prédio em que trabalhava na Praça Antônio Prado, nos anos de 1967 e 1968, o quebra-quebra dos estudantes contra o AI-5, incendiando as viaturas policiais, pela Avenida São João afora. Era a São Paulo e o Brasil da ditadura. Recordo também das compras de Natal pela Rua Direita, do Bazar 13, das Lojas Americanas, e do programa Astros do Disco, no Teatro Record, na Rua da Consolação, que era apresentado por Randal Juliano; dos Jogos no Pacaembu na década de 1950 com aquelas infindáveis filas de bondes no final do jogo e dos bondes... descendo e subindo a Rua da Glória, onde meu tio tinha escritório. Na mesma rua ficava o Colégio São José, com as suas meninas de uniforme marrom, que causavam iração e algo mais nos adolescentes da época. João Jodas 341
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LEGENDA DAS FOTOGRAFIAS
Rolê Paulista
Rolê Largo da Batata
Rolê Largo da Batata
Rolê Viaduto do Chá Anhangabaú
Rolê Praças
Rolê Rua do Gasômetro
Rolê Minhocão
Rolê Terminal da Lapa
Rolê Largo 13 de Maio
Rolê Bienal
Rolê Teatro Municipal Anhangabaú
Rolê Vila Madalena
Rolê Liberdade
Rolê Avenida Faria Lima
Rolê São João
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Mas as memórias não param por aqui...
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www.saopaulominhacidade.com
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São Paulo esquina do mundo Memórias musicais
Sobre o cd Verbetes Faixas e Letras Faixas
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S O B R E
O
C D
S Ã O P A U L O ES Q U I N A D O MUNDO Assis Ângelo
praças. Armas em punho e caras de mau. Mas, bom que se
bou. Corado, subi serelepe a serra tortuosa em busca de
diga, não vim para ficar. Nada demais. Muitos fizeram isso
outros dias. Perambulei na cidade. Uma tarde, um susto:
e depois inverteram o caminho. Eu, não. Fiquei. Tempos
soldados do Exército me confundiram não sei com quem.
depois a generosidade dos vereadores da cidade me le-
“Pare!”. Armas na cara. Tremi, corri, escapei. Virei repórter
varia à galeria dos cidadãos honorários. Orgulho imenso.
da Folha, do Diário, do Estadão, da Manchete, Globo. Ê,
Hino Nacional ressoando no salão nobre da Câmara. Uma
São Paulo, quantas lembranças!
honra do tamanho do mundo. Lembro que de onde vim,
Certa vez, o colega Wladimir Araújo me desafiou a
vim com os pulmões atingidos pelos impiedosos bacilos
escrever texto de duas páginas para o suplemento literário
de Koch. Sofria, tossia nas horas mais impróprias. Queria
D.O. Leitura, da Imprensa Oficial do Estado, que o editava.
descansar numa estância hidromineral. Lindóia, talvez.
O desafio consistia em descobrir músicas que abordassem
Mas não, caí sem forças no Hospital Bandeira Paulista, em
aspectos diversos sobre Sampa. Até então, nada havia sido
Campos do Jordão. Lá os dias e as noites avam séculos
escrito. Na primeira incursão ao ado, levantei cento e
para findar. O relógio na parede branca, com seu tic tac
poucos títulos, entre os quais o samba-canção “Ronda”,
pontual, me deixava louco. Eu queria matá-lo e acabar
de Paulo Vanzolini, gravado muitas vezes e até na Suíça
com aquilo, mas como? A sinfonia de tosse era infernal.
e que meio mundo conhece de cor e salteado. Procurei
Eu tentava disfarçar medo e impaciência como podia, mas
mais e achei um Lp dos fins de 1960, no qual o seresteiro
o bicho saudade complicava roendo sem dó nem piedade
Sílvio Caldas, amigo que se tornaria, cantava com voz de
Muita coisa mudou desde que desembarquei na
o peito um tanto dorido. Para amenizar, uma carta pra lá,
pluma pérolas de Lauro Miller. Na contracapa, um texto
rodoviária da Luz, num dia do mês do folclore de 1976.
outra pra cá. O frio cortante dilacerava a alma. Enfermei-
de Guilherme de Almeida, O Príncipe dos Poetas, O Poeta
Boca da noite. Tempo fechado, de garoa poluída castigan-
ras sorrateiras com bandejas de seringas, pílulas e injeções
de 32, como era chamado, dava ao disco um valor todo
do narinas e olhos. Militares de plantão, nas esquinas e
me arrepiavam. Por fim, após oito meses, o tormento aca-
especial. Deparei-me em seguida com a canção vence-
F A I X A S E L E T R A S 1 Apresentação (Assis Ângelo) que ver com faculdade... Mas foi muito Depoimento sobre Rapaziada do Braz bom ser filho dele. 2 (Alberto Marino Jr.) Assis: Ele deixou inéditos?
CONTINUA
Marino Júnior: O pianista era Artedoro
Assis: É a música da Discografia Brasi-
Piati. Mas é um...
leira com o maior número de títulos se-
Assis: Aí três. Lembra de mais algum
qüenciados. Foram onze “Rapaziadas”.
Trecho da melodia introdutória à valsa
Marino Júnior: Deixou.
nome?
Voltando à “Rapaziada do Braz”. O tem-
de Alberto Marino, extraída da matriz
Assis: Bom, aí o Alberto Marino,
Marino Júnior: Meu pai, quatro.
po a. Outros artistas a gravam. Aí..
original nº 1008, feita em 1927, pela
violinista, que depois formou o Sexteto
Assis: Quatro.
Os anos 50, a “Rapaziada” praticamente
Brasilphone, gravadora paulistana de
Bertorino Alma... Esse sexteto o senhor
Marino Júnior: E os outros dois não
não aparece. Anos 60, com Galhardo
curtíssima existência, cujos discos, já da
chegou a conhecer?
tenho...
[Carlos, cantor argentino naturalizado;
fase elétrica, mediam 25 centímetros de
Marino Júnior: Conheci quase todos eles.
Assis: Somem na poeira do tempo. Uma
1913-85]...
diâmetro.
Assis: Quem eram eles?
coisa curiosa: quando ele grava, em
Marino Júnior: É.
Assis: O dr. Alberto Marino como ele
Marino Júnior: Olha... Não é fácil. Eu sei
1927, “Rapaziada do Braz”, logo em
Assis: Entra nos ouvidos de todo mundo.
era?
que tinha um... Pilé. Já ouviu falar?
seguida uma enxurrada de outros autores
Marino Júnior: “Lembrar, deixe-me
Alberto Marino Júnior: Ele não era dou-
Assis: Não.
faz “Rapaziada da Liberdade”, “... do
lembrar/ Meus tempos de rapaz, no
tor, era só músico. Ele era um homem
Marino Júnior: Outro era o Zezinho
Bom Retiro”... Isso pra dizer o seguin-
Brás/ As noites de seresta...”. Eu tinha
simples, bem falante, que ele estudou
do Banjo, depois foi para o[s] Estados
te: que “Rapaziada do Braz” inspirou
um vozeirão... Agora eu vou contar uma
em bons colégios. Chegou a entrar pra
[Unidos] e tal...
muitos autores...
curiosidade que pouca gente conhece: o
faculdade, mas também não tinha nada
Assis: Esse ficou famoso.
Marino Júnior: Inspirou...
primeiro hino do Corinthians, quem graCONTINUA
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MEMÓRIAS SONORAS CINEMA
S O B R E
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dora do IV Festival da Música Popular, promovido pela
que não se renderam à complexidade e contradições da
to Marino, um violinista de boa estampa e descendência
Record, “São São Paulo”, de Tom Zé, cujo prêmio – a tí-
cidade fundada em 1554, pelo padre espanhol das Ilhas
italiana, que aos 15 anos, apaixonado, compôs a primei-
tulo de curiosidade – ele jamais receberia. Mais à frente,
Canárias José de Anchieta, O Apóstolo do Brasil, beatifica-
ra música (“Rapaziada do Braz”) a ver com um bairro de
encontrei “Sampa”, cria bastarda da citada “Ronda”, no
do por Paulo II no dia 22 de junho de 1980. Dessa pesqui-
Sampa, e que em 1960 receberia letra definitiva de Alber-
lembrar desenrolado do próprio Vanzolini. Pronto, não
sa, que já dura quase 20 anos, destaco o talento de Carlos
to Marino Jr., seu filho. Fui ouvi-lo no seu apartamento
demorou e fechei as páginas, razão do desafio. Hoje, de-
Gomes, Ary Barroso, Lamartine Babo, Luiz Gonzaga, Billy
espaçoso no bairro de Higienópolis. Marino é desembar-
corridas quase duas décadas, constato o crescimento do
Blanco, Vinicius de Morais, Tom Jobim e o brasileiro na-
gador de grandes feitos, hoje aposentado. Franco, espon-
acervo que mantenho desde há muito, especialmente no
turalizado Taiguara Chalar da Silva. Ainda no bojo, Chico
tâneo, nos seus mais de oitenta anos, disse que tem desejo
tocante ao item musical e memorial da capital paulista, ou
Alves, Nélson Gonçalves, Teixeirinha, Rielinho. Os mais
de publicar um livro de poesias. Fui ouvir Zica Bergami,
seja: algo em torno de 2,7 mil sambas, boleros, xotes, for-
antigos. Uma vez lembrei a Dominguinhos o fato de ele
autora da valsa “Lampião de Gás”, que Inezita Barroso
rós, marchas, dobrados, arrasta-pés, baiões, emboladas,
nunca ter feito uma música sobre a cidade. Riu e pouco
gravou com arranjos do mineiro Hervê Cordovil, em maio
canções, modas, baladas, tangos e mais do que o dobro
depois me mostrou a rancheira “A Moça do Metrô”, única
de 1958, na extinta Copacabana. Dona Zica, embora se
de autores. Há curiosidades, claro, muitas, como um mes-
no gênero na sua discografia. Fiz a mesma observação a
mostre permanentemente feliz com seus noventa e cinco
mo título repetido 46 vezes: “São Paulo”, e outro 14: “São
Geraldo Vandré, que me respondeu displicentemente: “É
anos, diz andar triste pelas mudanças que vê na cidade.
Paulo Antigo”. O Corinthians é o time mais festejado: apa-
mesmo...”, e escreveu em dias um poema que provavel-
Mestre Paulo Vanzolini, que também fui escutar no silên-
rece 112 vezes na lista. A mais antiga obra da relação foi
mente ganhará música, muito bonito. Como se vê, o tema
cio da sua casa no Cambuci, conta que se acha realizado
composta em 1750, por Calixto e Anchieta Arzão: “Missa
é bom e certamente ainda vai render muito. Não se perde
e, para surpresa, revela uma curiosidade guardada na ga-
a São Paulo”. O compositor mais freqüente é o baiano
por esperar... E digo, sem medo de errar: São Paulo é a
veta: o samba-canção “Ronda” jamais foi cantado corre-
Tom Zé; o segundo, o paulista Adoniran Barbosa, o ter-
cidade mais cantada em verso (e prosa) do mundo.
tamente. Após isso, ele aponta o erro e faz a cantora Ana
ceiro Geraldo Filme. Muita gente boa fez música sobre
O Cd inserido neste livro ilustra bem o que digo. E
Bernardo interpretar de forma certa. Pra história. O craque
Sampa, para Sampa. Na verdade, poucos foram os autores
nem fui longe. Fui ali perto, à zona leste, reduto de Alber-
Osvaldinho da Cuíca, indiferente às mudanças da cidade e
F A I X A S
E
CONTINUA
L E T R A S 3
São Paulo de Todos Nós
vou? Totó (Antonio Sergi, regente,
rio, mas é o justo.
Lembrando aquele amor fugaz/
Canção (Peter Alouche/Téo
Sou branco, sou negro, sou
arranjador ítalo-brasileiro, que
Assis: Qual é a melhor gravação
Uma sombra envolta na pe-
Azevedo)
oriental
usava o pseudônimo de Gennaro
de “Rapaziada do Braz” para o
numbra/ Por detrás da vidraça/
Vim de terras bem
Sou nordestino do sertão
Rodrigues para
senhor?
Faz um gesto lânguido/ Cheio
longínquas
Deixei a casa onde eu nasci
letras de música; 1913-
Marino Júnior: Das que conheço,
de graça/ Imagem de um
Abrigar-me no teu calor
Ah! Que saudades do Cariri!
2003) e Colúmbia (orquestra
a melhor ainda é a do Petrônio
ado/ Que não volta mais//
Fugi da fome de solos
Vim descobrir minha
criada por Antônio Sergi, que teve
(nome artístico de Francisco
E somente uma recordação/
áridos
esperança
Marino Júnior como crooner). Em
Petrone, cantor paulistano,
Restou daquele grande amor/
Fugi de guerras de almas
Ao te pedir chão e trabalho
seguida, nós gravamos o Hino do
do Bixiga; 1923-2007). É uma
Daquelas noites de luar/
secas
Com muita lágrima e suor
Palmeiras (1949, de autoria de
coisa esquisita: eles assassinam
Daquela juventude em flor/
Vim da Sicília, vim do
Fui perseguir teu futuro
Gennaro Rodruigues).
a melodia... “Lembrar, deixe-me
Hoje os anos correm muito
Japão
Edifiquei tua riqueza
Assis: Agora, se o senhor tivesse
lembrar/ Meus tempos de rapaz,
mais/ E as noites já não têm
Sou português, sou catalão
Tornei-te forte e poderosa
de mudar alguma vírgula, algum
no Brás/ As noites de serestas/
calor/ E uma saudade imensa/
Sou libanês, perdi meu
A mais altiva da nação.
ponto, alguma coisa na “Rapazia-
Casais de namorados/ E as cordas
É tudo quanto resta/ ao velho
chão
São Paulo, São Paulo de
da do Braz”, o senhor mudaria?
de um violão/ Cantando em tom
trovador”.
Não tenho pátria, sou judeu
todos nós
Marino Júnior: Não, não vejo por
plangente/ Aqueles ternos madri-
Eu gosto muito dessa última
errante
Ao te ver de braços abertos
quê. Não é nada de extraordiná-
gais/ / Sonhar, deixe-me sonhar/
estrofe.
Vim procurar paz, lar e pão.
Te adotei no coração. 351
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à questão exposta por Vanzolini, toca, canta e fala sobre a
viagem que faz por bairros da cidade e redondezas. A du-
polêmica da existência do samba paulista. Aproveita para
pla caipira Cacique e Pajé, afinadíssima, vai mais longe,
cantar em primeira mão o enredo de sua autoria Acorda
a um ado remoto, para cantar a moda “São Paulo An-
Brasil, feito em homenagem ao maestro Silvio Baccarelli,
tigo”, inspirada na leitura de um livro de história que lhe
cuja atuação firme no campo social mudou por completo
cai às mãos. Originalíssimo. Eu, da minha parte, aproveito
o cenário e a vida da comunidade Heliópolis, na zona
para dizer o que São Paulo representa para todos, ricos e
sul da capital de São Paulo. Cuíca, nesse samba, se deixa
pobres, brasileiros e estrangeiros de todas as partes que
acompanhar por integrantes do grupo musical Demônios
aqui chegam ansiosos à procura de dias melhores. Antes,
da Garoa. Dedé Paraizo (voz e cavaco), Ricardinho (sur-
pela voz do multiinstrumentista Jarbas Mariz, conto por-
do), Koki (violão), percussão, coral etc. O compositor e
que São Paulo é São Paulo, no samba “São Paulo Esquina
violonista Durval Souto canta “Praça da Sé”, um forró de
do Mundo”. Melhor do que falar é, naturalmente, ouvir o
classe. Sebastião Marinho e Andorinha, repentistas de ta-
disco inteiro. Vamos fazer isso?
lento e fama, cantam a presença dos nordestinos na cidade. Téo Azevedo, mineiro, solta a garganta e canta e toca no tom de canção os versos do egípcio Peter L. Alouche
Assis Ângelo é jornalista; colunista diário do Music
(“São Paulo de Todos Nós”). Mais adiante, o ator Jackson
News, um portal com o livre na Internet
Antunes, também mineiro, incorpora com categoria um
(www.musicnews.art.br). Tem uma dúzia de livros
inflamado estudante das Arcadas, no poema “Largo de
publicados sobre música e folclore e está preparando
São Francisco”. Brilhante. O brincante cearense Costa
Roteiro Musical da Cidade de São Paulo – Pequena
Senna, por sua vez, deixa as impressões de uma telúrica
Enciclopédia da Música Brasileira.
F A I X A S E L E T R A S por São Paulo 4 Viagem Rap (Costa Senna) Caieiras, Mairiporã, Socorro.
JARBAS MARIZ nasceu na estrada, no dia 14 de março de 1952, entre Minas Gerais e Espírito Santo. Foi criado na capital paraibana, onde, em 1967, abraçou a profissão de músico. Em 1968 formou o grupo Pedras Rolantes, que viraria Selenitas, um dos mais populares e requisitados conjuntos de baile do Nordeste, que existiu por 7 anos. Em 1977, começou a gravar discos. O primeiro foi um compacto duplo. Dois anos antes, fez show histórico no Teatro Santa Rosa, de João Pessoa, ao lado de Zé Ramalho: Três Aboios Diferentes, e com o próprio Zé e outros artistas, como Lula Côrtes, gravou o mais caro (e raríssimo) disco independente da história da MPB, Paembirú. No Rio de Janeiro cantou com o rei do ritmo, Jackson do Pandeiro, e com a rainha do forró, Anastácia. Em 1989, e já morando na capital de São Paulo, foi dirigido por Tom Zé e com ele ou a correr o mundo. Tem músicas gravadas por Marinês e Gilberto Gil.
Por toda a São Paulo o
Mas sei que Pedro
poeta já ou.
Primeiro
Pichei um grande poema.
São Caetano do Sul,
Por toda a São Paulo o
Soltou seu grito no ar.
Por toda a São Paulo o
São Mateus e Santo André;
poeta já ou.
Conheço Ribeirão Pires,
poeta já ou.
Já ei em Parelheiros
Guarulhos e Arujá;
Perto de Embu-Guaçu,
Lá em Itaquaquecetuba
Fui a Itapecerica
Tive o prazer de pisar.
De lá pulei pro Embu.
Em uma noite sem luz
Em São Bernardo do
Não me lembro qual o dia
ei em “Mogi das
Campo
A Cidade Tiradentes,
Vila Guilherme ou Maria,
De Jabaquara à Saúde
Me aproximei de Cotia
Cruz”
Me aplaudiram de pé.
A Terceira Divisão,
Nome da santa mulher,
Três estações de metrô.
Vi a Regis Bittencourt.
Onde pretendo voltar.
Não sei se cometo engano
As zonas da Zona Leste
Cangaíba, Belenzinho,
Onde fica Indianópolis?
Tem outro São Caetano
Despertam meu coração,
Deus me olha com carinho
Me responda por favor
Cruzei Carapicuíba
Suzano penetrei nela
Mas eu não sei onde é.
Ali o grito do povo
Pois sou um homem de fé.
A festa da primavera
E toda Barueri,
Pela estrada do morro,
Santana do Parnaíba
Quando entrei em
No São Miguel Paulista
Lá que parei pra dormir;
Cubatão
Já fui me apresentar
Cajamar, Parque
Fui mordido por
E no Itaim Paulista,
Vila Matilde, Itaquera,
Militei em Diadema.
Anhangüera
cachorro.
Bem pertinho de Poá,
Guaianazes, Mauá,
O poeta popular
Após a Vila Mariana
Não lembro que data era
Não parei naquela terra,
Ferraz de Vasconcelos
Vila Prudente ou Formosa,
Protesta contra o sistema
Já é Aclimação,
Mas sei que ei ali.
No Rio Grande da Serra
Onde um dos Vasconcelos
Ipiranga vou citar.
E mesmo estando cansado,
Cambuci e Liberdade
Que me prestaram
Me convidou pra almoçar.
Não sei se foi verdadeiro
Lá no Parque do Estado,
Que no Brasil é Japão;
Mooca e Tatuapé,
Morre mas nasce de novo Em busca de solução.
Transforma o Ibirapuera Fiz discurso em
No mais perfeito
Sapopemba,
esplendor.
CONTINUA
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MEMÓRIAS SONORAS CINEMA
V E R B E T E S ALBERTO MARINO era paulistano da Liberdade, criado no Brás. Nasceu no dia 23 de março de 1902 e morreu no dia 11 de fevereiro de 1967. Foi maestro da Sinfônica do Municipal e professor-diretor do Conservatório Dramático de São Paulo. Compôs “Rapaziada do Braz” na noite de 20 de novembro de 1917, para Ângela Bentivegna, com quem contrairia matrimônio em 1924. Antes de ser gravada pelo Sexteto Bertorino Alma (anagrama de Alberto Marino) e lançada pela Brasilphone, em 1927, já integrava o repertório dos seresteiros, e por sugestão do cantor Carlos Galhardo ganharia letra de ALBERTO MARINO JR., também letrista de outra valsa famosa do pai, Luar de São Paulo. No dia 25 de janeiro de 1968, o prefeito Faria Lima inaugurava o Viaduto Alberto Marino. Prestigiaram o evento Vicente Celestino, Gilberto Alves, Nélson Gonçalves e Demônios da Garoa. É o primeiro clássico musical sobre o Brás, o mais cantado dos paulistanos.
F A I X A S
E
PAULO VANZOLINI nasceu na capital de São Paulo, no dia 25 de abril de 1923. Seus pais eram Carlos Alberto, engenheiro civil e eletricista, professor da Escola Politécnica; e Finoco Guidici, dona de casa. Foi criança-prodígio. Tornou-se cientista e um dos mais importantes especialistas em répteis do mundo todo. Shakespeare e Dante, que lê no original, são seus autores de cabeceira, mais Camões e Bilac. É PhD de Harvard, EUA. Traz no currículo a formação de 38 doutores. Antes de concluir o curso de Medicina na USP, em 1947, e se especializar no estudo de vertebrados, serviu o Exército (reservista de 1ª Categoria) entre 7 de junho de 1944 e 14 de novembro de 1945. Um de seus livros, Tempos de Cabo, teve edição ilustrada por Aldemir Martins. Declara-se apaixonado pela cidade onde nasceu. É criador dos clássicos “Volta por Cima” e “Ronda”, essa com versão até na Suíça. Sua obra musical cabe em 4 Cds.
ZICA BERGAMI nasceu em Ibitinga, SP, no dia 10 de agosto de 1913 e se criou na capital paulista. Em 1958, procurou a cantora Inezita Barroso e a ela apresentou várias músicas, entre as quais “Lampião de Gás”, cuja letra era comprida e foi encurtada para se transformar numa referência musical, a partir de sua gravação. O arranjo coube ao maestro mineiro Hervê Cordovil. Nesse mesmo ano, a valsa recebeu versão japonesa de Kikuo Furuno, gravada por Yoko Abe. Ganhou também o Troféu Zequinha de Abreu. A partir de 1960, ou a expor desenhos e pinturas de estilo primitivista em Portugal, Itália, México, Israel e França. Em 1999, o cantor e instrumentista Filó Machado assinou a produção e direção musical do Cd Zezé Freitas Interpreta Zica Bergami. Em 2001, o mesmo Filó, mais Camila Machado e Zezé Freitas, produziria o Cd Salada de Danças, no qual pode ser ouvida sua voz em músicas até então inéditas.
L E T R A S
Digo perante a vocês
Santana friso melhor
Que o povo japonês
Porque conheço todinha.
Santo Amaro, Campo Limpo,
Heliópolis, Imirim,
Andei de carro e a pé,
Brooklin e Jardim Japão.
Cidade Universitária
Grajaú, Parque Cocaia,
São Paulo é com prazer
Osasco, Jabaquara,
Faz divisa com Pinheiros,
Eliana, São José,
Que ofereço a você
A paranóia da Sé
Pirituba, Jaraguá,
Ali amei uma mina
Conheço todo lugar,
Toda a minha inspiração.
Com a louca agitação,
Do Limão à Barra Funda
Corpo lindo por inteiro,
Já fui até me banhar
Depois a Santa Ifigênia
Cruzei lugar por lugar,
Me amou depois partiu
Na Ilha do Bororé.
E a Avenida São João;
Me sentiria feliz
Talvez porque descobriu
Preciso dar um suspiro
Se encontrasse em Perdiz
Que eu não tinha dinheiro.
Que rima com Bom Retiro
Um lugar pra eu morar.
Merece a nossa atenção.
Te levo em meu coração.
Linda Vila
De Cubatão a Perus, Embu-Guaçu, Jaraguá;
Pelo Taboão da Serra
Dessa tão Grande São Paulo
Não lembro quando ei,
Já terminei de falar.
Ermelino Matarazzo,
Na Capela do Socorro
Se alguma coisa faltou,
Adoro a Santa Cecília,
Jardim América, Brás,
Na sexta-treze rezei.
Não sou um computador,
Jaçanã, Tucuruvi,
Curto a Consolação,
Pari, Cerqueira Cesar,
No domingo de manhã
Sou poeta popular.
Brasil Grande,
Bixiga, Bela Vista
Cruzei via marginais;
Na feira do Butantã
Cachoeirinha,
É minha grande paixão.
É preciso andar com mapa
Ali me apresentei.
Espero que a Casa Verde
Linda Vila Madalena,
O Paraíso e a Lapa
Já esteja madurinha;
Mesmo não sendo
Não posso deixar pra trás.
A Freguesia do Ó
pequena,
E segue a composição...
Se alguma coisa faltou, Não sou um computador,
Pantanal, Capão Redondo, Granja Viana, Carrão,
Sou poeta popular.
Madalena, Mesmo sendo pequena, Te levo em meu coração 353
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V E R B E T E S CACIQUE E PAJÉ Cacique nasceu a 25 de março de 1935, em Monte Aprazível, SP. Antes de formar dupla com Pajé, adotou os pseudônimos Peixoto e Rei do Gado. O primeiro disco que gravou foi um compacto duplo, pelo selo Centenário, em 1969. O disco trazia Violeiro Franco, chibata (gênero musical de origem indígena), A Viola e a Guitarra, cururu; Cristão Verdadeiro, moda campeira; e Aliança dos Noivos, valsinha. Em 1970, pelo selo Califórnia, gravou o primeiro Lp: Tião Campeiro e Rei do Gado, produzido por Carreirinho. O segundo Lp surgiu em 1972, com João Ferreira, pela Fermata. O maior sucesso da dupla, formada originalmente em 1978, ocorreu em 1979, com o Lp Patrão e Secretária (220 mil cópias vendidas). O primeiro Pajé se chamava Roque Pereira Paiva (1936-94) e era paulista de Bofete. O atual se chama Geraldo Aparecido da Silva, também paulista de Itapuí, nascido no dia 29 de julho de 1943.
F A I X A S 5 Depoimento sobre Ronda
E
COSTA SENNA é cearense de Fortaleza, nascido no dia 30 de novembro de 1955. Filho de Joaquim Raimundo e Raimunda Senna da Costa, ele trocou sua cidade de origem por São Paulo em 1990, dez anos após decidir trabalhar com cultura popular. Nessa área tem produzido espetáculos e escrito folhetos de cordel. Atuou em peças teatrais e filmes de curta e longa metragem. Também compõe músicas, toca violão e canta. Tem Cds gravados, como Moço das Estrelas e Fábrica de UniVersos, e livros publicados, entre os quais O Doido, O Raulseixismo e Jesus Brasileiro, esse em parceria com o cordelista Marco Haurélio, revisor de textos e consultor da mais antiga e importante editora de folhetos de cordel do País, a Luzeiro. Na música, um de seus parceiros mais freqüentes é Cacá Lopes. Em 2007, participou de Educar para Transformar, documentário em vídeo de Tânia Quaresma, sobre o educador pernambucano Paulo Freire.
TÉO AZEVEDO de batismo Teófilo de Azevedo Filho, é natural de Alto Belo, distrito de Bocaiúva, MG. Nasceu no dia 2 de julho de 1943. Antes de ficar famoso como compositor e violeiro, foi engraxate, camelô, lutador de boxe e soldado corneteiro do 12º RI na capital mineira. Começou a gravar em 1965, pela Discobel. O primeiro Lp, independente, lançou no ano de 1974. O último, Guerrilheiro da Natura, duas décadas depois, pela Brasidisc. Tem músicas em discos de Zé Ramalho, Luiz Gonzaga, Sérgio Reis, Dominguinhos, Jair Rodrigues, Genival Lacerda, Banda de Pífanos de Caruaru, Cascatinha e Inhana, Pena Branca e Xavantinho, Tonico e Tinoco, Caju e Castanha e pelo bluesman Charles Musselwhite (“Feel it in Your Heart”). O poeta Carlos Drummond escreveu Viola de Bolso para seu pai, Tiófo, O Cantador de um Braço Só. Tem publicados alguns livros, como Literatura Popular do Norte de Minas e Plantas Medicinais.
L E T R A S
(Paulo Vanzolini)
Assis: 1945...
patrulha, vi aquelas
Assis: Já nasceu junto a música...
Assis: Qual era a sua
Ana Bernardo, cantando: “...
Paulo: Infelizmente todo mundo
mulheres entrar num bar,
e letra, Paulo?
relação com Adoniran
E nesse dia então/ Vai dar na
canta errado, até hoje. “Volto a
olhar, olhar e ir embora.
Paulo: Já.
Barbosa?
primeira edição...”.
te buscar...”, quando é “Sigo a te
Comecei a pensar o que
Assis: Duas do repertório
Paulo: Muito boa. Muito
Paulo Vanzolini: É “Sampa”! É
buscar”.
tinha atrás disso.
que poderíamos chamar
amigo. Trabalhávamos e
assim: “... Quando atravesso a
Assis: Você nasceu em São Paulo,
Assis: Você gosta de
de “repertório paulista ou
todo dia tomávamos uma
Ipiranga e a Avenida São João...”.
na (avenida) Brigadeiro...
“Ronda”?
paulistano”, que é música do
cachacinha, juntos, às 7
Assis: “Sampa” é em homenagem
Paulo: É.
Paulo: Gosto.
teu agrado?
horas da noite.
a Paulo Vanzolini, à “Ronda”, né?
Assis: Luís Antônio?
Assis: Como melodia e
Paulo: A primeira é de
Assis: O que aproxima
Paulo: Pois é, tem isso.
Paulo: É. Na casa do meu avô.
como letra?
Bezerrinha (Francisco de Assis
o popular do erudito e o
Assis: Mas é uma boa
Assis: Casa do seu avô... Você
Paulo: Exato.
Bezerra de Menezes, dos tempos
erudito do popular? Qual a
homenagem; bonita homenagem,
fez “Ronda” quando estava no
Assis: Você mudaria algum
da Faculdade de Direito de São
diferença de um popular e
você gostou?
Exército?
verso, alguma palavra...?
Francisco; falecido em junho de
de um erudito?
Paulo: Não.
Paulo: Foi.
Paulo: Não.
1995).
Paulo: A pureza.
Assis: Bom, Paulo Vanzolini:
Assis: Nos tempos de cabo?
Assis: Alguma vírgula?
Assis: “Perfil de São Paulo”.
Assis: O Paulo Vanzolini
“Ronda” você fez quando? Qual
Paulo: É.
Paulo: Não.
Paulo: É.
pesquisador do ramo da
foi o ano que você a fez?
Assis: Como foi isso?
Assis: Alguma nota?
Assis: E a segunda?
Biologia, pensador, já
Paulo: 45.
Paulo: Um dia eu estava de
Paulo: Não.
Paulo: Ah! As de Adoniran todas.
que disse algumas vezes CONTINUA
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MEMÓRIAS SONORAS CINEMA
V E R B E T E S SEBASTIÃO MARINHO de sobrenome Silva, é paraibano de Solânea e filho de Manoel Anulino e Damiana Marinho do Nascimento. Nasceu no dia 10 de março de 1948, e do verso se tornou profissional no dia 15 de novembro de 1968. É presidente da União dos Cantadores, Repentistas e Apologistas do Nordeste – Ucran –, entidade criada em 1988. Mora na capital paulista desde 1976. Há anos forma dupla com o pernambucano de São Bento do Una José Saturnino dos Santos, o Andorinha, com quem tem disco gravado. Andorinha participou do 2º Concurso Paulista de Literatura de Cordel, promovido em 2004 pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos e pelo Metrô de São Paulo, no qual classificou o folheto “TM e Metrô, Orgulho Paulistano”, que numa estrofe diz: “Quem vem a São Paulo encontra/ Um transporte especial/ Os trens metropolitanos/ Trafegam na capital/ Norte, Sul, Leste, Oeste/ Cobrindo a área central”.
F A I X A S a mim também que é um
E 6
PETER ALOUCHE é bacharel em Letras e poliglota. É o que se pode chamar de cidadão do mundo. Embora nascido no Cairo, Egito, terra dos faraós, e apesar de sua pátria cultural ser, como ele mesmo costuma dizer, “a língua sa”, a sua única e verdadeira pátria de adoção e de devoção é o Brasil. Ser engenheiro de formação e ter dedicado 35 anos de sua vida profissional à tecnologia do Metrô de São Paulo não o impediram de se aventurar nas letras brasileiras e até, pasmem, na literatura de Cordel. Em 2002 participou, com o pseudônimo de Pedro Nordestino, do 1º Concurso Paulista de Literatura de Cordel, e classificou, entre duas centenas de concorrentes de todo o País, a história em sextilhas “Encontro no Metrô”, publicada em folheto cuja capa recebeu a do cordelista Klévisson Viana. Essa “ousadia ímpar”, segundo ele, só conseguiu “graças ao amor que tanto nutre pelo povo” de nossa terra.
DURVAL SOUTO é instrumentista, compositor, cantor e produtor musical, natural da cidade de Itaji, BA, nascido no dia 25 de fevereiro de 1954. Tinha 15 anos de idade quando se apresentou em público pela primeira vez, num circo. Morou em Salvador e Rio de Janeiro, antes de se iniciar profissionalmente na capital paulista. Em 1973, atuou na peça “O Homem em Função do Meio”, de Alfredo Zonalto, dirigiu o espetáculo Música Popular do Brasil, produzido pelo Grupo Esquema Novo e apresentado nas escolas da capital por 6 anos. Ainda em 73 estreou no disco, gravando um compacto simples que trazia, de sua autoria, a canção Época de Todos Nós. Participou de vários festivais de música popular, até lançar o seu primeiro Lp, em 1981, pela extinta gravadora Continental. Gravou ao lado de Zé Geraldo e Inezita Barroso, lançou 8 discos, entre compactos, Lps e Cds. Seu último trabalho, o Cd Lobisomem Americano, é de 2002.
L E T R A S
São Paulo, poema (Paulo Vanzolini)
7
Praça da Sé Forró (Durval Souto)
Que a vida é maior
compositor bissexto; que
Nesta minha cidade de São Paulo,
A Praça da Sé
Pra quem veio com a ilusão
fazia ou faz música por
Neste meu berço, nesta minha arena,
É a praça do povo
de ser engenheiro
divertimento, o que a (esse)
Eu sou, na noite, uma espécie de poeta das menores e mais
Todo domingo
De repente olha a caixa eu
Paulo falta fazer mais?
fáceis
É um domingo novo
sou biscateiro
Paulo: Falta nada. Estou
Que sai sem rumo e volta sem destino
muito bem recompensado
Traçando o chão por força do costume e não faltando no
É comedor de gilete
Olha a sorte que eu tive
na vida.
braço ao dia a dia.
Engolindo fogo
Estou é fazendo um curso de
Ana: “... Porém, com
Na noite entrante, nas peludas asas da morcega madrugada
Cobra venenosa
detetive
perfeita paciência/ Sigo
Sobrevôo meu chão, num giro míope, cada vez mais certo
Serve de remédio
Vou escrever para minha mãe
a te buscar/ Hei de
Na segurança de encontrar sem pressa minha minúcia, meu
Mas a vida dessa gente
Que sou importante
encontrar/ Bebendo com
detalhe, meu flagrante
Não se resume num prédio
Mas aqui peguei peso como
outras mulheres/ Rolando
O ponto fino de contato e entendimento que é reforço de
Sanfoneiro perdido tocando forró
um elefante
dadinhos/ Jogando
umbigo e de semente
Bilheteiro vendendo a idade da
Não vejo a hora de regressar
bilhar...”.
Que me marca sem dúvida e que me dá certeza da noite e
avó
Pois tomei consciência vou
Neste meu berço
da manhã de mim.
São tantas as esperanças
pro meu lugar
Neste meu berço, nesta minha arena, neste meu chão,
Que a vida se trai
A Praça da Sé
Nesta minha arena
Nesta minha cidade de São Paulo.
São tantas as esperanças
É a praça do povo....
Mas meu orgulho de raça
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V E R B E T E S ASSIS ÂNGELO é jornalista profissional, nascido em João Pessoa, PB. Mora em São Paulo, capital, desde 1976. Trabalhou nos jornais Folha de S.Paulo, Diário Popular e Estado de S.Paulo, entre outros. Também trabalhou nas TVs Globo e Manchete. Apresentou
F A I X A S E 8 A Briosa Colônia Nordestina
programas nas rádios Mulher, Jovem Pan, Atual e Capital. Tem publicada uma dúzia de livros, a lembrar O Brasileiro Carlos Gomes (Ed. Nacional, 1986), A Presença dos Cordelistas e Cantadores Repentistas em São Paulo (Ed. Ibrasa, 1996), O Poeta do Povo, Vida e Obra de Patativa do Assaré (Ed. C/Umes,
L E T R A S 9
1999) e Dicionário Gonzagueano, de A a Z (edição patrocinada, 2006). Tem músicas compostas e gravadas por Téo Azevedo, Fatel, Costa Senna. Gravou o Cd Assis Ângelo Interpreta Poetas Brasileiros, ao lado de Elba e Zé Ramalho, Oswaldinho do Acordeon e Jackson Antunes. Fez o roteiro e narração do filme Boi, de Edu Felistoque e Nereu Cerdeira.
Faculdade de Direito do
em São Paulo
Casquinha e pirão de
Cordelista, coquista,
Largo São Francisco
E capelo, recebeu
Viva Monteiro
Mote decassílabo (Sebastião
guaiamum
embolador
Poema (Téo Azevedo)
E o Teixeira de Freitas
Lobato
Marinho e Andorinha)
Xerém tapioca e biju
Mês inteiro no parque,
Faculdade de Direito
Também foi o seu filho
Viva Oswald de
Zona Sul, zona Norte, Leste,
Buchada pirão de aratu
praça, feira
Do largo de São
Leis civis com muito
Andrade
Oeste
E sarapatel com macaxeira
Cantador repentista e
Francisco
brilho
E o Menotti Del
Do Tucuruvi a Jabaquara
Bobó de galinha capoeira
rezadeira
Lhe decanto com a viola
No edifício de taipa
Picchia
Guaianazes a Lapa, Vila Iara
Carne-seca e moqueca
Mamulengo e forró em
Canção que eu gravei
Que foi o velho
O Paulo Eiró, que
Em qualquer direção São
de corvina
toda esquina
num disco
convento
saudade
Paulo investe
Eu relembro seu ado
Fransciscanos, jesuítas
Salve Olavo Bilac
A chegada do povo do
A briosa colônia nordestina A briosa colônia nordestina Fez São Paulo crescer
No dia onze de agosto
Do direito um lenimento
E o José de
Nordeste
dessa maneira
Fez São Paulo crescer
Quando você foi criada
Repúblicas de
Alencar
Transformou a metrópole
São milhões e milhões
dessa maneira
Deu São Paulo um fino
estudantes
Pois são tantos
da bandeira
de paulistanos
Do Nordeste em São
gosto
De todo lugar do mundo
vultos juntos
A maior do Brasil e a primeira
Divididos em filhos
Paulo tem pedreiro
Convento de São
O Ensaio Filosófico
Que não dá para
De toda a América Latina
cearenses
Faxineiros, políticos,
Francisco
E o Ateneu profundo
contar
A briosa colônia nordestina
Piauienses, maranhenses
cientistas
Sua oficial morada
Da nossa independência
Viva o Centro
Fez São Paulo crescer dessa
Pernambucanos, alagoanos
Empresários, juristas,
É no estilo barroco
E também abolição
Acadêmico
maneira
Potiguares, baianos
jornalistas
Você foi edificada
Seu papel foi importante
De idade tem cem
Osasco, Guarulhos, Arujá,
Sergipanos e paraibanos de
Militares, artistas,
Lembro de José Arouche
Para o bem dessa nação
anos
Carapicuíba, Itapevi
primeira
engenheiros
Seu primeiro diretor
O Julio Frank e a Bucha
Dia onze de
São Bernardo, Poá, Barueri,
E a megalópole brasileira
Zeladores, vigias,
E na arte do Direito
Acadêmicos das Arcadas
agosto
Santo André, Diadema
Galopante para o mundo
cozinheiros
Você é mestre em doutor
Encontros Misteriosos
A pindura tá nos
e Mauá
descortina
Obstetras, doméstica e
Falo de Ademar Brotero
Iam até nas madrugadas
planos
Cubatão, Bertioga a Guarujá
Que foi o primeiro lente
Eu lembro filhos ilustres
Salve o território
Toda Santos, a região praieira
A briosa colônia nordestina enfermeira Fez São Paulo crescer dessa Professores de química
E lá no curral dos bichos
O querido Rui Barbosa
livre
Da serra do mar na Cantareira
maneira
e capoeira
Se encontrava muita
E também Joaquim
Piqui, piqui e
A grande São Paulo nos
São Paulo já tem aboiador
Português, matemática
gente
Nabuco
meia-hora
fascina
Forrozeiro nos clubes e
e medicina.
O nemine discrepante
Castro Alves verso e
No direito de ir
A briosa colônia nordestina
shows nas praças
A briosa colônia
Era o grau de bacharel
prosa
e vir
Fez sp crescer dessa maneira
Restaurantes e bares tem
nordestina
Os Gerais ficou marcado
O Álvares de Azevedo
É que o rá-tchim-
Paulistano da gema come
cachaças
Fez São Paulo crescer
Nesse ponto tão fiel
E o Fagundes Varela
bum chora
angu
Pratos típicos do nosso
dessa maneira
Manuel Dias Toledo
Maria Augusta Saraiva
Vatapá e jabá com jerimum
interior
O tempo não esqueceu
Uma mulher muito bela
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MEMÓRIAS SONORAS CINEMA
V E R B E T E S OSVALDINHO DA CUÍCA de batismo Osvaldo Barro, é paulistano do Bom Retiro, e filho de Benedicta de Almeida e Domingos Barro. Nasceu numa terça-feira de carnaval (12-2-1940). Iniciou-se nos estúdios de gravação em 1957. É o mais famoso cuiqueiro do Brasil. Gravou
com os maestros Peruzzi, Léo Peracchi, Chiquinho do Acordeon, George Henri, Erlon Chaves. Seus instrumentos de percussão podem ser ouvidos em discos de Orlando Silva, Nélson Gonçalves, Martinho da Vila, Adoniran Barbosa, Germano Matias, Paulinho da Viola, Cartola, Zé Kétti, Ângela Maria,
F A I X A S E L E T R A S 10 Depoimento sobre Lampião de Gás
São Paulo Esquina do Mundo Samba pop (Assis Ângelo/Jarbas
São Paulo de todo mundo
Assis: Em quanto tempo a senhora fez “Lampião de Gás”? ou um ano, ou um
Mariz)
Dos poetas romanticamente
mês, ou um dia ou fez de repente?
São Paulo Ponto Chic,
De Vanzolini à Inezita,
Zica Bergami: Não, eu fiz depressa.
Viaduto, correria, carros,
Que bonito, São Paulo
Assis: O que a senhora conta em “Lampião de Gás” já não existe nada mais em São
Anhangabaú, Ipiranga, Butantã,
De um, de dois, de mil,
Paulo, né?
A garoa dos nortistas
Dos poetas romanticamente
Zica: Ah! Não, não existe. Não existe mais aquela. Eu tenho muita saudade. “... Da
Pacaembu, Morumbi – gol!!!
De Adoniran à Geraldo Filme,
garoinha fria, fininha/ Escorregando pela vidraça/ Do sabugueiro, grande, cheiroso/ Lá
Vida corinthiana,
Que bonito, São Paulo
do quintal da Rua da Graça/ Lampião de gás/ Lampião de gás/ Quanta saudade você
Nos hotéis de mil estrelas,
De um, de dois, de mil
me traz...”. São Paulo mudou muito. Mudou muito, mesmo. Não é mais aquela São
Viva Deus, povo do brás,
São Paulo esperança
Paulo que era.
Quanta gente, quanta idade,
De negro, de branco, de rico
Assis: Obrigado. A senhora é maravilhosa.
Da Mooca à Liberdade
São Paulo, São Paulo
Zica: Obrigada mesmo, viu?
São Paulo, São Paulo
São Paulo, São Paulo esquina do
São Paulo, São Paulo esquina do
mundo
mundo
São Paulo, São Paulo de todo
(Zica Bergami)
11
12
Clementina de Jesus. Participou da trilha do filme Orfeu Negro, premiado em Cannes, com a Palma de Ouro. Integrou o grupo Demônios da Garoa. Fundou a Ala dos Compositores da Escola de Samba Vai-Vai, em 1975. Um ano antes lançou seu Lp de estréia e recebeu o título de Cidadão Samba de São Paulo, pela Secretaria de Turismo do Município.
São Paulo Antigo Moda campeira (Caetano Erba/Cacique) Lendo um livro de um velho amigo
Tanque no zuniga hoje é o Paissandu
Meu São Paulo antigo pude rever
Ladeira do Açú, hoje é a São João
Histórias concretas, gravuras pintadas
E no Martinelli mudou-se bastante
Muito bem narradas no meu entender
Esquina importante no Café Brandão.
No Beco dos Barbas, caminho dos homens
Lá no Ouvidor, seu nome era assim
Que hoje seu nome é “porto geral”
Largo do capim no tempo que foi
Tamanduateí, caminho dos barcos
Lugar que avam gente da roça
Foi o grande marco na era imperial.
Charretes, carroças e carros de boi.
Quem viveu nos Campos Guaré
Seresta se ouvia pela noite adentro
Que hoje, então, é o bairro da Luz
Nas ruas do centro à luz do lampião
Não são fantasias que faz o poeta
Nasceu outro centro do lado de lá
São coisas concretas que a história traduz
Viaduto do Chá fez a ligação
A igreja da Sé com suas torres quadradas
Saudade ficou do velho bondinho
Uma obra arrojada no estilo imperial
E novo caminho aqui se implantou
Mil e novecentos, pois foi demolida
Os trilhos montados subterrâneo
Para ser erguida a nova catedral.
E o paulistano já tem o metrô.
bis
São Paulo, São Paulo
bis
mundo...
Zona Sul, zona Norte, Leste, Oeste Do Tucuruvi a Jabaquara Guaianazes a Lapa, Vila Iara Em quaquer direção São Paulo investe 357
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F A I X A S E L E T R A S 13 Depoimento sobre o samba de São Paulo
14
(Osvaldinho da Cuíca)
de São Paulo ou o sotaque do Rio de
candomblé, originário da Bahia.
bambas da Barra Funda. Os primeiros
Osvaldinho da Cuíca: O samba é o
Janeiro?
Assis: Muito bem. As escolas de samba
sambas gravados sobre a Barra Funda
nosso patrimônio maior. O samba é o ar
Osvaldinho: Hoje em dia é um sotaque
misturaram tudo ou (as de São Paulo)
(bairro paulistano) foi realmente em
que respiro. O samba é a trilha sonora
só a batida do samba. Devido o veículo
guardam ainda um pouco da sua
31, de Januário França, com o grupo
desta cidade.
de comunicação. Devido ao rádio,
identidade?
do Veneno, onde tinha lá o Henrique
Assis: Osvaldinho, há uma polêmica:
devido à TV, devido à Internet, enfim... À
Osvaldinho: Hoje está tudo globalizado.
Costa, que não se sabe se é o Henricão
São Paulo tem samba?
tecnologia. Mas já houve época que São
Modificou bastante. Mas o samba da
(Henrique Felipe da Costa) ou não. Eu
Osvaldinho: Em todo canto do Brasil
Paulo teve a sua identidade inspirada nos
Barra Funda, samba urbano, o samba
vou mostrar de uma forma rudimentar.
tem samba. Cada um com seu sotaque.
cordões carnavalescos, nas folias, nas
de rua, o samba de avenida, nasceu
Então, o samba é assim: “Vem ver o
Cada um com sua batida. Cada um com
folias de reis. A batida do samba mais
realmente na Barra Funda, através do
samba/ Que é formado, batucado/
seu jeito, cada um com sua emoção.
pesada, com a influência religiosa, tanto
nosso querido Dionísio Barbosa, em
Pelos bambas da Barra Funda, ô, ô,
Em todo canto tem samba. O samba
do jesuíta (a imposição da igreja) como
1914, embora já houvesse manifestação
ô/ Tem macumba, tem cajerê/ Quem
é, realmente, o sangue do cidadão
do nosso afro-descendente, então havia
de blocos pequenos, de famílias, na
duvidar do que digo/ Venha ver.../
brasileiro.
muita diferença. A diferença de São
(rua) Glete, que eram os boêmios da
Ai como é bom, ver o samba/ Que é
Assis: Cada qual com seu sotaque! O
Paulo era regional, devido a umbanda.
Glete. Foi em 1913. Mas foi Dionísio
formado, batucado/ Pelos bambas da
samba de São Paulo tem o sotaque
A diferença do Rio (de Janeiro), o
Barbosa que fez a manifestação dos
Barra Funda, ô, ô, ô/ Tem macumba...”.
Acorda Brasil
15
Declaração de Amor a São Paulo
Samba enredo
Lutar
Poema (Assis Ângelo, com acompanhamento de
São Paulo do Solar da Marquesa, do Largo de
(Osvaldinho da Cuíca/
E deixar como herança
Osvaldinho da Cuíca)
São Francisco, do Masp, USP e dos mirantes a se
Serginho/Namur)
Um mundo melhor mais
São Paulo da rapaziada do Brás.
perder de vista.
No ar...
feliz
São Paulo dos eios, das charretes.
São Paulo dos heróis sem berço e dos profetas e
Nosso grito de alerta
Educando as crianças...
São Paulo dos segredos e mistérios do pátio do
loucos do marco zero da Sé.
O Bixiga desperta, a
Do nosso país
Colégio e do mosteiro de São Bento.
São Paulo dos anjos tortos, caídos, perdidos no
São Paulo das zoadas, rezas e silêncios; dos
breu da noite.
cantar Acorda Brasil
Bate coração
sambas e batuques dos negros forros.
São Paulo das trevas, cortiços e favelas.
É chegada a hora de
Bate feliz quando “ti vê”
São Paulo-babel de todas as cores, sotaques e
São Paulo dos lampiões, dos bondes camarão e
mudar
É um presente carinhoso
culturas que se expressam nas falas e gestos.
da garoa fina, finda.
Do saudoso poeta pra
São Paulo do Butantã e das cobras e lagartos do
São Paulo guerreira, das entradas e bandeiras.
você
poeta Vanzolini.
Ah, São Paulo!
Divina Luz Dos deuses da mitologia
São Paulo de Nóbrega e Anchieta; de Tibiriçá e
Menina-mulher pura e pecadora, durona e
Clareia...
Quero a paz...
Bartira; de João Ramalho e Borba Gato...
conciliadora. Esfinge à frente do próprio tempo!
Me conduz a exaltar
Que a brisa beija e
São Paulo do Patriarca, Bom Retiro, Itaquera,
No teu leito de vida e morte, São Paulo, mão e
Um anjo que desceu lá
embalança
Itaim.
contramão se chocam contra o irreal e a razão...
na favela
Eu quero é mais
São Paulo da Saúde, Jaguaré, Penha, Tatuapé.
Palitos de aço e concreto te ferem o céu do teu
E hoje traz pra arela
Respeito com nossas
São Paulo da Liberdade, Aclimação e Mooca...
pulmão, que chora poeira, óleo e carvão...
Um lindo sonho a
crianças
São Paulo da Fiesp, Bovespa e mais-valia; do
São Paulo, São Paulo...
realizar
Numa sinfonia triunfal
cansaço, da correria...
Em ti, por ti, joões e marias se atiram às cegas na
Viver...
Ver o bem vencer o mal
Ah, São Paulo! Bela e infinita... Deusa, Deus,
eterna luta pela vida, e ao fim e em uníssono, de
É amar a esperança
Vai-Vai feliz é carnaval
rainha do pobre e do rico.
todas as formas, todos dizem: Te amo!
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5
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L 8
E
G
E
N
D
A
1. A primeira gravação da valsa “Lampião de gás” foi feita por Inezita Barroso, em 1958. 2. Assis Ângelo e Zica Bergami, autora do clássico “Lampião de gás”. 3. ”Lampião de gás” recebeu várias gravações, inclusive em Lps. 4. A primeira gravaçao de “Ronda” foi em 78 rpm, pela paulistana Inezita Barroso. 5. Ana Bernardo cantou pela primeira vez “Ronda” de forma correta. Na foto, Ana Bernardo,
9
Paulo Vanzolini e Assis Ângelo. 6. A partir de 1953, “Ronda” ganhou versões em formatos de discos diferentes. 7. Antes de sair em Lps e Cds, “Rapaziada do Braz” pôde ser escutada em discos de 78 rpm. 8. Assis e Alberto Marino, autor da letra de “Rapaziada do Braz”. 9. ”Rapaziada do Braz” foi gravada em dezenas de Lps, depois que
10
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Alberto Marino Jr. pôs letra na melodia do pai, Alberto Marino. 10. Assis Ângelo e Oswaldinho da Cuíca em gravação em estúdio.
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F A I X A S CONCEPÃO E DIREÇÃO ARTÍSTICA DAS FAIXAS 1, 2, 5, 10, 13 E 15 Assis Ângelo PRODUÇÃO Andrea Lago TÉCNICO DE GRAVAÇÃO Fernando MIXAGEM E MASTERIZAÇÃO Osvaldo - Estúdio de Som G&G -
[email protected] São Paulo, primeira semana de janeiro de 2008. AGRADECIMENTOS ESPECIAIS: Alberto Marino Júnior, Roberto Marino, Zica Bergami, Silvia Nogueira Ferraz, Ana Bernardo, Paulo Vanzolini, Osvaldinho da Cuíca, Inês Falcochio Gaspar
D
O
C D
1. Apresentação 2. Depoimento sobre Rapaziada do Braz 3. São Paulo de Todos Nós 4. Viagem por São Paulo 5. Depoimento sobre Ronda 6. São Paulo, poema 7. Praça da Sé 8. A Briosa Colônia Nordestina em São Paulo 9. Faculdade de Direito do Largo São Francisco, poema 10. Depoimento sobre Lampião de Gás 11. São Paulo Antigo 12. São Paulo Esquina do Mundo 13. Depoimento sobre o samba de São Paulo 14. Acorda Brasil 15. Declaração de Amor a São Paulo, poema
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