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Resenha do filme “O Grande Desafio” por RACHEL HILFRED A. NUNES Ebony And Ivory Live Together In Perfect Harmony Side By Side On My Piano Keyboard, Oh Lord, Why Don't We? (Paul Mccartney)

Cenas iniciais do filme: dentro de um ônibus a câmera focaliza homens e mulheres brancos sentados nos bancos dianteiros. Ao caminhar em direção ao fundo do ônibus, focaliza uma mulher jovem e negra sentada nos últimos bancos junto a outros homens e mulheres negros. Cena posterior: a mesma mulher jovem de pé, com bagagens e ao seu lado um banco vazio com a seguinte inscrição: “somente para brancos”. Num contexto histórico de segregação racial vivido pela sociedade norteamericana da década de trinta, um professor da pequena faculdade texana de Wiley seleciona um grupo de estudantes para sua equipe de debates no ano de 1935. A faculdade de Wiley era uma instituição metodista, voltada exclusivamente para a educação de estudantes negros. O grupo de debates da mesma já existia antes da orientação do professor Tolson (protagonista do filme), mas somente ganhou prestígio e projeção nacional a partir da atuação do referido educador. É importante salientar que Melvin Tolson foi um personagem histórico, importante escritor afro-americano engajado nas lutas dos negros. A história foi baseada em fatos reais. O que, inicialmente nos parece um filme sobre a luta política dos movimentos negros em prol da conquistas dos direitos civis, se revela ao longo do filme como uma interessante reflexão sobre o ato de educar. Ao analisarmos o filme em sua profundidade, a temática central do longa metragem deixa de ser a luta contra o regime de segregação racial e a a ter como primeiro plano a compreensão do ato de educar como um ato político. O professor Melvin Tolson pode ser compreendido como um “educador libertário”, pois é um educador crítico: dos conteúdos, dos programas e instituições oficiais, da sociedade e todas as esferas de reprodução de formas de opressão e, inclusive, de si mesmo. Ele advoga por uma pedagogia engajada, radical e crítica em relação aos processos educacionais fundados em bases opressoras e autoritárias. Nesta perspectiva, não há lugar para a neutralidade da educação. Conforme retratado no filme, podemos perceber o forte comprometimento do professor Tolson com as lutas sociais da localidade na qual ele vivia. O longa, mostra o seu envolvimento com a política local, com a formação dos sindicatos dos trabalhadores rurais, que neste caso superava a questão racial. Já o envolvimento com os seus alunos focava as problemáticas cotidianas relacionadas ao preconceito racial vividos pelos seus alunos e familiares. Momento fundamental do filme é a primeira aula ministrada pelo professor Melvin Tolson para a turma de estudantes do ano de 1935. Assim que o professor adentra na sala de aula ele inicia a declamação do poema “I, Too, Sing America”, de Langston Hughes, no qual o tema principal é a inclusão do negro como cidadão na sociedade norte-america. O último verso do poema resume bem essa reivindicação: “I, too, am America”. Hughes foi um dos expoentes do movimento conhecido como "Renascimento do Harlem", movimento artístico que celebrava a cultura negra dos EUA nos anos 1920 e 1930. Após a declamação do poema, a palavra escrita no quadro é “Revolução”. E a revolução a qual o professor Tolson se refere é exatamente ao movimento dos artistas negros do Harlem que estava em curso naquela época. Era objetivo maior do professor que seus alunos soubessem o que estava acontecendo, que conhecessem

esses novos artistas negros e que compreendessem o contexto de desigualdade e injustiça social no qual todos os afro-americanos estavam inseridos. O professor termina a sua aula com o questionamento sobre as restrições dos direitos civis que ainda imperavam naquela época através da Lei de Jim Crow, leis estaduais que tornavam oficiais as políticas de segregação racial. Seu objetivo maior enquanto educador se resumia através de uma importante fala do personagem: “Há uma revolução acontecendo no norte do país, Harlem. Vou apresentá-los a novas vozes. Eles estão mudando a forma como os negros pensam na América”. Dessa forma, podemos perceber que o assunto central do filme é o comprometimento social e político do professor com o processo educacional e com a transformação social. Essa é a única cena filmada dentro da sala de aula. A história do filme não se atém a rotina e as aulas ministradas pelo professor Tolson. Exatamente porque o objetivo do filme não é mostrar esse cotidiano e esse ensino, e sim, mostrar algo mais amplo: o papel da educação e a seu comprometimento com a luta coletiva dos negros contra a violência dos linchamentos e contra as políticas que restringiam os seus direitos sociais. O filme gira em torno dos esforços empreendidos pelo professor Tolson em colocar a sua equipe de debatedores em pé de igualdade com os brancos. Assim, o filme se focaliza nas relações entre o professor Tolson e os quatro alunos selecionados para a equipe de debatedores. Sob a perspectiva de engajamento político do professor Tolson, a equipe de debates de Wiley é planejadamente preparada por ele com o objetivo de vencer os debates com as outras faculdades negras do país para que a equipe ganhasse projeção nacional. Sua intenção já era clara desde o início: ele queria que seus alunos negros tivessem a chance de debater com as grandes universidades brancas e elitizadas do país. Seus métodos de ensino e estímulo a pesquisa realizadas pelos debatedores se pautava numa convicção de que a educação daria aos negros uma chance maior na sociedade americana. Ele também tinha como objetivo explícito lutar contra o regime de segregação racial. Então, inicialmente, o próprio professor era o responsável pela redação e sistematização dos argumentos a serem utilizados nos debates, pois o principal objetivo naquele momento era ganhar os debates contra as outras faculdades negras, conquistar espaço na mídia, e obter prestígio nacional. Assim, enquanto o professor Tolson não julgou os seus alunos preparados, ele esteve presente exercendo um papel de tutor para os orientarem nas pesquisas e na arte da oratória. Seus métodos de orientação, que inicialmente pareceram impostos aos alunos, se mostraramm eficazes para alcançar esses objetivos, sem retirar dos estudantes a autonomia intelectual e criativa. Tanto que no último debate, realizado com Harvard, a sua equipe não tem mais o seu auxílio para escrever os argumentos sobre o tema “desobediência civil”, e mesmo assim já se encontrava preparada para “andarem com as próprias pernas”. A trajetória de sucesso da sua equipe de debatedores possibilitou o confronto histórico entre estudantes negros e estudantes brancos de Harvard. Este “grande desafio” foi transmitido via rádio para todo o país e foi um marco histórico não só pela disputa entre estudantes brancos e negros, mas também porque a equipe vencedora foi da pequena faculdade texana. O primeiro debate inter-racial portava em si mesmo um duplo objetivo: oferecer exemplos positivos aos alunos negros, ao dar a eles mais autoconfiança e autoestima, e contribuir para a afirmação de um discurso contra a segregação racial, ao demonstrar que brancos e negros possuíam a mesma capacidade intelectual. Através do trabalho de orientação do grupo de debates da faculdade, o professor Tolson concretizou o sentido político da sua práxis de educador. Suas ideologias se faziam presentes no seu trabalho diário com os estudantes, no planejamento das suas aulas, na seleção de temas para currículo da sua disciplina, na

escolha dos textos a serem lidos e nos poemas a serem debatidos em sala de aula. Para este professor mediador, o ato de educar era um ato de ação para a vida, onde não havia espaço para dicotomia entre o “mundo da rua” e o “mundo da escola”. Para o professor Melvin Tolson, o que mais valia no processo educativo era a consciência do seu papel social, era o questionamento do que é realmente importante ensinar. Assim, o filme contribui para se pensar a prática pedagógica educacional como um ato político voluntário, acima de tudo, como um projeto político que realmente possa intervir na realidade social.