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FENOMENOLOGIA DO ETHOS
1 – Preliminares Semânticos Para Aristóteles seria insensato e mesmo ridículo, querer demonstrar a existência do ethos, do mesmo modo que é ridículo tentar demonstrar a existência da physis. Ambos são duas formas primeiras de manifestação do ser. Sendo o ethos, a transcrição da physis na peculiaridade da práxis ou da ação humana e das estruturas histórico-sociais que dela resultam. No ethos se encontra presente a razão profunda da physis. Demonstrar a ordem da práxis, vinculada em hábitos ou virtudes, não segundo a necessidade transiente da physis, mas segundo o finalismo imanente do logos ou da razão, aí o propósito de uma ciência do ethos, como Aristóteles se propõe constituí-la. Deste modo, a ética alcança estatuto de saber autônomo, e a a ocupar lugar preponderante na tradição cultural e filosófica do ocidente. A primeira definição do ethos designa a morada do homem, ele é a casa do homem, que habita sobre a terra acolhendo ao ethos. Esta comparação com a casa indica justamente, que pelo o ethos o espaço do mundo torna-se habitável para o homem. O domínio da physis é rompido pela abertura do espaço humano do ethos do ethos no qual irão se inscrever os costumes, os hábitos, as normas, os valores e as ações. O espaço do homem como espaço, não é dado ao homem e sim é por ele construído ou reconstruído incessantemente. É no espaço do ethos que o logos torna-se compreensão e expressão do ser do homem como exigência radical de dever-ser ou do bem. A segunda definição do ethos indica o comportamento que resulta do constante repetir-se de atos, o que geralmente ocorre ou quase sempre, mas não sempre, nem por uma necessidade natural. O modo de agir do indivíduo, expressão de sua personalidade ética, deverá traduzir a união, entre ethos caráter e ethos hábito. Entre o processo de formação o ethos se define como o espaço de realização do homem, ou como lugar privilegiado para a inscrição de sua prática. Enquanto ação ética, a práxis humana é a atualização imanente. O ethos como costume é princípio e norma dos atos que irão criar o ethos como hábitos. Há pois, uma
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variação entre três momentos: costume, ação, e hábito, na medida que o costume é fonte das ações, e a repetição destas vai dar origem aos hábitos. A práxis é mediadora entre os momentos constitutivos do ethos como costume e hábito. A universalidade abstrata do ethos como costume inscreve-se na particularidade da práxis como vontade subjetiva. Ao expor a circularidade dialética do ethos, Hegel indica a diferença entre o costume e a lei, como dupla posição do universal ético que é o conteúdo da própria liberdade. A agem do costume para a lei assinala a emergência definitiva da forma de universalidade, que será a forma por excelência do ethos, capaz de abrigar a práxis humana como ação livre. 2 – Ethos e Tradição A célebre distinção de Aristóteles entre virtudes morais e intelectuais, pode ser considerada o capítulo final da batalha que opôs os Sofistas e Sócrates em torno do ensinamento da virtude. A distinção aristotélica consagra a profunda transformação que tem lugar na estrutura histórico-social do ethos grego com a aparição do logos reflexivo e demonstrativo no domínio da práxis. Tradição e razão, entre estes dois pontos ará a oscilar o destino do ethos na história. A forma de existência do ethos é a tradição ética. Elevando-se acima da physis ethos recria na sua ordem própria, a continuidade e a Constancia que se observam nos fenômenos naturais. Na physis, vemos uma necessidade dada, no ethos, uma instituída, e é justamente a tradição que a e se torna, a estrutura fundamental do ethos na sua dimensão historica. O fato incontestável de que a religião se apresente em todas as culturas conhecidas, como a portadora privilegiada do ethos, é uma ilustração eloqüente do necessário desdobramento do ethos em tradição ética. Dentro do conceito de tradição, é possível descobrir na comunidade ética, uma relação entre lei e fato rigorosamente inversa àquela que vigora no mundo natural: neste vai-se do fato para a lei, naquela a lei ou a norma antecedem o fato. A tradicionalidade é um constitutivo essencial do ethos e se origina da relação dialética estabelecida entre o ethos costume e o ethos hábito singularizado na práxis ética. Não há como se falar de um ethos individualmente, pois na eternidade do ethos, efetivada e atestada na tradição tem em vista
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resgatar a existência temporária e contingente do indivíduo empírico, tornando-o indivíduo universal. A tradição é a relação que se estabelece entre a comunidade educadora e o indivíduo que é educado, justamente para se elevar ao nível das exigências do universal ético ou do ethos da comunidade. A íntima e profunda relação, entre ethos e cultura, encontra no terreno da tradição ética o lugar privilegiado da sua manifestação. Na medida em que se apresenta na forma de tradição em toda a força do sentido original do termo, a cultura é igualmente forma de vida, e assim, essencialmente ética. Deste modo, o tempo da tradição não pode ser puramente linear, ele participa da circularidade dialética do ethos. na estrutura do tempo histórico do ethos, o ado se faz presente pela tradição. Se levarmos em conta essa essencial relação entre ethos e tradição, e a estrutura dialética circular do tempo da tradição, poderemos compreender melhor a profundidade da crise do ethos na moderna sociedade ocidental. A relação do conceito fundamental da eticidade com o tempo histórico torna-se, extremamente problemática e aqui reside uma das causas mais visíveis desse niilismo ético nas sociedades modernas. O ethos não se define com efeito, em oposição ao tempo ou à duração como um estático oposto ao dinâmico, mas se estrutura segundo um dinamismo próprio que ite em seu meio conflitos, crises, evoluções e mesmo essas profundas revoluções que se manifestam no fenômeno da criação ética. 3 – Ethos e Indivíduo Se itirmos que a sociedade é um conjunto de conjuntos, devemos enunciar como condição necessária à possibilidade de se definir essa pertença não como um fato, mas também como um valor, segundo a avaliação que a sociedade faz das práticas sociais que se exercem nos seus subconjuntos. A pertença de uma determinada esfera e relações ao todo se definem ao nível de sua legitimação ética, de sua participação ao ethos fundamental que constitui o primeiro dos bens simbólicos da sociedade. Entre os diversos aspectos de socialização do indivíduo, o mais fundamental é aquele pelo qual a sociedade aparece ao indivíduo como um fim, como o lugar da sua autorealização, onde se experimente e se comprova a sua independência, sua posse de si mesmo.
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Nessa perspectiva, a vida social se ordena segundo uma estrutura normativa fundamental que é o seu ethos. Em cada uma das esferas de relações, a práxis humana apresenta peculiaridades que se traduzirão em formas particulares do ethos. A universalidade do ethos se desdobra e particulariza em ethos econômico, cultural, político e social propriamente dito. Do ponto de vista da estrutura social, o indivíduo não se apresenta como uma molécula livre. Uma cadeia complexa de mediações ordena os movimentos do indivíduo no todo social e, entre elas, desenrolam-se as mediações que integram o indivíduo ao ethos. Segundo a concepção que começa a vulgarizar-se a partir do século XVIII, as restantes esferas da sociedade se organizaram e exprimiram seu ethos próprio exatamente em função da organização e do ethos dominantes na esfera econômica. Nesse caso, a pretensa universalidade do ethos não seria senão a transcrição ideológica e, ocultante dos interesses econômicos dominantes na sociedade. Por conseguinte, a interpretação redutiva ideológica do ethos, que decorre da concepção do econômico como determinante em última instância, contradiz o próprio conceito de ethos. Este, com efeito, só é pensável a partir da posição de uma finalidade imanente à práxis humana e à qual devem submeter-se, tendo em vista a auto-realização do indivíduo, os bens exteriores, inclusive a riqueza. É, pois, permitido concluir que o reducionismo economicista, ou o que poderia se denominar a redução ideológica do ethos, implica numa negação radical do ethos que está presente no cerne mais íntimo dessa sociedade. A cultura é o domínio onde o ethos se explicita formalmente na linguagem das normas e valores e se constitui como tradição. É, sem dúvida, o ethos cultural e, de modo privilegiado o ethos religioso nas sociedades até hoje conhecidas, que asseguram eficazmente ao indivíduo empírico a agem a esse horizonte de universalidade no qual é possível formular o projeto da sua auto-realização como ser livre e inscrever sua cidadania no reino dos fins. O problema da relação entre ethos e indivíduo desdobra-se, através das mediações sociais que se tecem no campo das esferas particulares da sociedade. A evidência da função educadora do ethos e, da direção imanente do seu movimento dialético e segundo a qual o indivíduo deve ar da liberdade empírica ou da liberdade de arbítrio à liberdade ética ou liberdade racional. A primeira mostra o indivíduo no ser da sua individualidade empírica, a
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segunda o indivíduo no dever-ser da sua singularidade ética. A estrutura do ethos mostra uma articulação dialética entre o ethos como hábito, desembocando na práxis. No primeiro momento, a liberdade é exterior ao ethos, que constitui como seu corpo orgânico ou hábitos. Do ponto de vista da fixação historica dos costumes, esta agem se faz através do processo educativo na relação do ethos com a sociedade, uma estrutura homologa à da relação do ethos com o indivíduo. A idéia de uma prioridade dialética do ethos sobre o indivíduo empírico ou do conteúdo intrínseco do valor sobre a satisfação do indivíduo oferece uma resposta infinitamente mais aceitável à interrogação fundamental em torno da presença constitutiva do ethos na estrutura da sociedade humana. 4 – Ethos e Conflito A universalidade e normatividade do ethos não se apresentam pelo indivíduo segundo uma anterioridade cronológica: vindo depois de constituído o ethos, o indivíduo seria precedido por ele e, portanto, por ele predeterminado. Vindo para a existência no seio de um ethos já socialmente instituído o indivíduo seria por ele envolvido e condicionado. O indivíduo ético seria produzido pelo ethos como o efeito pela causa. A relação entre o ethos e o indivíduo, é, por excelência uma relação dialética, segundo a qual a universalidade abstrata do ethos como costume é negada pelo evento da liberdade na práxis individual. Assim, a liberdade não é exterior ao ethos como o ethos não é exterior ao indivíduo. Entre a práxis como ato do individuo empírico e a práxis como agir do homem bom, o movimento constitutivo do ethos percorre esse domínio de possibilidade onde se traça o caminho da liberdade como oscilação entre o não-ser da recusa e o ser do consentimento ao bem. O movimento imanente ao ethos, traz inscrito na sua própria natureza , a virtualidade de uma situação que pode ser caracterizada como conflito ético. O conflito ético se distingue essencialmente seja no niilismo ético, que é a negação pura e simples do ethos, seja da ação eticamente má ou da falta, que é uma recusa da normatividade do ethos. Ele se desenha como fenômeno constitutivo do ethos, e atesta igualmente a peculiaridade da natureza histórica do ethos, em interação com novas situações e novos desafios que se configuram e se levantam ao longo do caminho da sociedade no tempo.
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Assim, o conflito ético não é uma eventualidade acidental mas uma componente estrutural da historicidade do ethos. Quanto ao permissivismo da sociedade contemporânea, represente uma deterioração do ethos e não poderia ser confundido com o conflito ético, que traz consigo a exigência de uma criação ética superior. Sendo um momento estrutural do dinamismo histórico do ethos, o conflito ético deve, ser caracterizado fundamentalmente como conflito de valores e não como simples revolta do indivíduo contra a lei. Os traços que compõem a figura histórica do conflito ético, inspiram as explicações redutivamente sociologizantes ou economicistas desse fenômeno, formulando-o em termos de transposição ideológica dos interesses de classes dominantes e dominadas. Ele é pois, um conflito de valores. A descoberta socrática da alma é, uma reviravolta de valores que atinge os próprios fundamentos do ethos tradicional. O portador de novos valores éticos no horizonte de um determinado ethos histórico exerce implicitamente uma critica da racionalização ideológica. É talvez a idéia de transgressão que nos poderá conduzir mais diretamente à essência mais intima do conflito ético. Ela seria o reencontro do indivíduo com a sua identidade verdadeira e com a sua liberdade, rompidas as cadeias do ethos. Supõe primeiramente a consciência dos limites de uma liberdade situada. A partir desses limites reconhecidos e aceitos, o conflito ético coloca o indivíduo em face do apelo que surge de exigências mais profundas e aparentemente paradoxais do ethos: o apelo a sacrificar o reconhecimento dos limites. É nessa face positiva da transgressão que a força criadora do conflito ético se apresenta nítida e irresistível, descobrindo no seu fundo a própria natureza do ethos. O ethos, não é senão o corpo histórico da liberdade, e o traço do seu dinamismo infinito inscrito na finitude das épocas e das culturas.
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DO ETHOS À ÉTICA
1 – Ethos e Cultura Afirmar que o ethos é co-extensivo à cultura significa afirmar a natureza essencialmente axiogênica da ação humana, seja como agir propriamente dito, seja como fazer. A estrutura da ação se constitui em permanente tensão com o seu objeto, é essa tensão que se denominou o crescimento orgânico da ação. No objeto como termo da ação, a transcendência do sujeito é atestada exatamente pela forma simbólica pela qual a forma natural do objeto é integrada no sistema da cultura ou no sistema das significações com que a sociedade e o indivíduo representam e organizam o mundo como mundo humano. Enquanto portadora da significação do seu objeto, a ação manifesta
desta sorte uma propriedade
constitutiva da sua natureza: ela é medida das coisas e, eleva-se sobre o determinismo das coisas e penetra o espaço da liberdade. A co-extensividade entre ethos e cultura se estabelece justamente a partir do caráter mensurante da ação com respeito à realidade. É, pois, a partir da própria origem do universo das formas simbólicas que se desdobra a dimensão do ethos. A transcendência do sujeito sobre o objeto, atestada na prolação do símbolo, tende a ser suprassumida na transcendência do objeto significado e eleva-se sobre a contingência e a precariedade do real imediatamente dado ou do real empírico, ao qual o sujeito e sua ação permanecem irremediavelmente ligados. O caminho percorrido indica o sentido da transcendência da medida, em torno da qual se desenvolverá fundamentalmente a reflexão ética. A questão é se a práxis é a medida das coisas, como irá estabelecer-se uma medida para a própria práxis, uma vez que, na sua contingência e particularidade, ela não pode ser medida para si mesma? Em todos os grandes domínios das formas simbólicas, cuja articulação constitui o mundo da cultura, na linguagem, no mito, na arte, no saber, o ethos irá encontrar expressões da sua normatividade que se apresentam como transcendentes à ação efêmera do indivíduo. Enquanto mundo de realidades significadas tende pela tradição, a perpetuar-se no
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tempo, a cultura mostra, toda uma face voltada para o dever-ser do indivíduo e não apenas para a continuação do seu ser. A cultura tem uma dimensão que é constitutiva da sua natureza e em virtude da qual ela define para o homem não somente um espaço de vida, mas um estilo de vida. Seja no sentido de cultura do espírito, seja no sentido amplo da sua distinção com a natureza, a cultura é inseparável do ethos ou a cultura é constitutivamente ética. É reconhecidamente na religião que o ethos encontra sua expressão cultural mais antiga e mais universal. O mito e a crença aparecem como a linguagem mais antiga da consciência moral. É sabido que a esfera do ethos, na sua linguagem e na sua expressão conceptual, tende historicamente a se distinguir da esfera do religioso e do sagrado, não obstante a motivação religiosa permanecer, talvez a mais universal das motivações que alimentam o agir ético. A expressão do ethos na forma do ensinamento e do comportamento religiosos é um fato universal da cultura, e é impossível de separar, na história das grandes civilizações, tradição ética de tradição religiosa. Desse ponto de vista, o processo histórico-cultural que se encaminha na civilização ocidental, assinala igualmente uma das mais graves crises, entre as historicamente conhecidas, da tradição ética de uma grande civilização. As tentativas de se suscitar um ethos artificialmente anti-religioso em alguns estados revelam, a profundidade dessas camadas culturais onde o ethos e crença religiosa entrelaçam suas raízes. A relação entre ethos e essa outra forma fundamental de expressão da cultura que é o saber apresenta-se importante, pois será assumindo a forma de saber demonstrativo que, na tradição ocidental, o ethos irá constituir-se como linguagem universal codificada e socialmente reconhecida como tal, ou seja, como ética. As primeiras formas de saber em que o ethos se exprime são, de um lado o mito e, de outro a sabedoria da vida, estilizada em legendas, fábulas, parábolas e na sabedoria gnômica. A essencial relação entre o mito e o ethos manifesta-se seja na função didática do mito enquanto ensinamento sobre a realidade seja na sua função educadora e ordenadora. Já a sabedoria da vida aparece como o lugar privilegiado da formação da linguagem do ethos. Veremos que é através das formas literariamente estilizadas da sabedoria da vida que tal vocabulário nos é transmitido. Um dos traços importantes no ethos da sabedoria de vida é o
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fato de que essa sabedoria se apresente como expressão da própria natureza. Assim, através da sabedoria da vida, manifesta-se essa analogia entre a regularidade da natureza e a constância e regularidade do ethos, na qual a ética como ciência do ethos irá encontrar seu ponto de partida e seu motivo fundamental. 2 – Nascimento da ciência do Ethos A ciência do ethos surge no contexto mais vasto de uma mudança radical no estatuto social do discurso. Ela assinala a agem do logos mítico e sapiencial ao logos epistêmico e dá início ao ciclo histórico da ciência na cultura ocidental. A formação de um logos que busca exprimir a ordem do mundo na ordem das razões, partindo de um princípio, é conduzido a elaborar a primeira noção científica de natureza. A analogia entre a physis e o ethos será, o primeiro terreno sobre o qual começará a edificar-se uma ciência do ethos, acompanhando o brilhante desenvolvimento da ciência da physis que marca os primeiros dois séculos do pensamento grego. A correspondência analógica entre phisis e ethos atende ao objetivismo da ética grega, na qual a primazia do fim implica uma primazia da ordem ou hierarquia das ações. A analogia entre physis e ethos, traz consigo uma revolução conceptual na idéia do ethos, cujas conseqüências serão decisivas para o aparecimento da ética como ciência e se tornarão patentes ao longo da querela que opõe os sofistas e Sócrates. O ethos verdadeiro deixa de ser a expressão do consenso e a a ser o que está de acordo com a razão e que é conhecido pelo sábio. Na Grécia, a medicina apresenta-se como referência analógica privilegiada para a ciência do ethos. Platão estabelece uma proporção entre a justiça ou a ciência do bem-estar da alma e a medicina. A ética como ciência encontra na medicina, um modelo para desenvolver o método adequado ao seu objeto. A partir da idade sofistica, os grandes temas sobre os quais se exerceria a reflexão ética estão definidos, e estão também delineados os modelos epistemológicos que irão guiar a formação de uma ciência do ethos. Na agem do século V para o século VI, o relativismo moral na sua forma mais abrupta faz parte do fundo comum das idéias que circulam através do ensinamento dos
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sofistas. Tal o contexto social e cultural no qual uma ciência do ethos se tornava como resposta à questão de cuja solução pendia a sobrevivência do próprio ethos e do mundo de cultura do qual ele era a expressão mais genuína. Os primeiros os em direção à ciência do ethos serão dados no campo da reflexão sobre a lei. Mas são, sem dúvida, as transformações sociopolíticas, das quais emerge a pólis como estado democrático, que impõem a necessidade de uma explicação do ethos como lei, segundo os predicados da igualdade e da correspondência com a ordem das coisas. A poesia política de Sólon oferece-nos o primeiro núcleo conceptual sistemático do que será uma ciência do ethos. Na lírica de Sólon, a justiça apresenta-se como imanente ao tempo. Pela primeira vez a justiça emerge como uma força histórica no horizonte do destino político da pólis. Alguns textos célebres irão construir sobre esse fundamento a grandiosa analogia entre o ethos e a ordem universal que encontrará uma expressão grave e solene no Górgias de Platão. No domínio da filosofia da cultura e da filosofia política que a transcrição do ethos no logos epistêmico alcança uma amplitude e uma profundidade inigualadas, e tal se dá na obra de Platão, na qual o núcleo da reflexão racional sobre a práxis ainda não se dividiu. Platão edifica a ciência do ethos como ciência da justiça e do bem e, como ciência da ação justa e boa que é a ação segundo a virtude, sobre o fundamento de uma ciência absolutamente primeira, de uma Ontologia. A concepção platônica do ethos repousa nessa relação entre o homem e o ser, que se exprime no logos do ser. O caminho do pensamento platônico, da República às Leis, antecipa e como que descreve da antemão aquele que será o percurso conceptual clássico da reflexão ética na história da filosofia ocidental. Assim, a ciência do ethos é dotada de uma estrutura fundamental nessa dialética que se estabelece entre a norma paradigmática e a ação reta, pela mediação da lei adaptada às circunstâncias concretas. Outra linha conceptual da ciência do ethos se traça acompanhado do finalismo do bem. Ela prolonga a reflexão sobre a lei apontando para o pólo objetivo da práxis que designa ao homem seu lugar na ordem universal. A idéia do bem como fim absoluto e transcendente da vida humana torna-se o princípio absoluto da ciência do ethos. Ela permite fundamentar a racionalidade da práxis. Desta sorte, fica compreendida no logos da ciência a identidade entre
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ethos e cultura, que Platão exporá no programa educativo da República e no imenso mural religioso-político das Leis. É igualmente no campo conceitual da idéia do bem que o temeroso problema do mal e do destino é transposto do registro do mito para a ordem da razão que rege a ciência do ethos. Um dos mais obscuros enigmas da existência ética do homem incorpora-se, assim, à ciência do ethos e começa a ser penetrado pela luz da razão. Se o bem constitui o pólo objetivo unificante da práxis, a virtude é o seu pólo subjetivo: entre os dois se estabelece o campo de racionalidade do ethos. O epicentro deste abalo poderoso na cultura grega foi Atenas na segunda metade do século V a.C. Os obreiros da transformação da educação ateniense que se seguiu à crise do ethos foram de um lado os sofistas, e de outro Sócrates e seus discípulos. O diálogo Protágoras que assinala o primeiro grande conflito entre o Sócrates platônico e os sofistas no terreno de um ethos submetido à judicatura da razão demonstrativa, termina por levantar a questão decisiva: a virtude é uma ciência? O diálogo Menon pode ser considerado o momento decisivo da tradição do saber socrático para a ciência platônica e, portanto, de um ponto de vista histórico, a página inaugural de uma ciência do ethos no sentido rigoroso e próprio. A República, no entanto, estava reservada a exposição pormenorizada do programa dessa nova paidéia que repousará exatamente sobre as bases de uma ciência rigorosas do ethos. Mas ela se anuncia já na conclusão do Menon, quando a virtude acaba por se identificar com a opinião reta, acompanhada de um dom divino. Com o advento da ciência do ethos, a opinião reta cederá lugar à ciência do bem e o dom divino à idéia do bem. O problema do sujeito moral ou da práxis ética enquanto ato humano por excelência, fecha o ciclo dos grandes problemas que delimitam o campo de racionalidade aberto pela penetração do logos da ciência na esfera do ethos. A lei, a bem, a virtude como perfeição do agir: esses os tópicos fundamentais em torno dos quais se constitui a nova ciência do ethos. É justamente em razão do novo conceito de homem como sujeito moral, centro do seu ensinamento, que o título de fundador da ciência da moral pode ser atribuído a Sócrates. Desta sorte, a interrogação para a qual convergem todas as questões que o logos da ciência levanta no domínio do ethos volta-se, finalmente para o próprio homem, portador do logos:
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Que é, pois o homem? Evidentemente, a pergunta não tem em vista o indivíduo empírico, a composição física ou orgânica do homem, mas o Si essencial que o preceito délfico ordena conhecer. Trata-se do homem capaz de ser o portador da sabedoria, do discernimento e da escolha do justo e do melhor, ou seja, o individuo ético. Nas origens da ética, a dimensão antropológica aparece paradigmaticamente, no ensinamento socrático, como um cuidado da alma, exigindo o conhecimento de si mesmo. Segundo Jan Patocka, a Europa nasceu como de um germe, desse cuidado da alma. Ele alimenta a tradição espiritual fundada sobre a idéia do homem interior no sentido socrático, sujeito de uma práxis ética que é guiada pela luz do logos. Essa tradição espiritual começa a formar-se quando se entrecruzam e se fundem a antiga tradição do ethos grego e o novo ideal de cultura representado pelo logos epistêmico. Tal entrecruzamento e fusão têm lugar no ensinamento de Sócrates. Ele inaugura a ciência do ethos. A partir de então, no itinerário que conduz Platão a Hegel, construir uma ciência do ethos se apresentará como a mais alta aspiração da filosofia. 3 – Estrutura da ciência do Ethos O caráter que acompanha a ciência do ethos desde os seus primeiros os vem do fato de que, se cruzam duas exigências aparentemente inconciliáveis: a exigência do logos teórico que se volta para a universalidade e imutabilidade que é, e a exigência do logos prático que estabelece as regras e o modelo do que deve ser. A contingência inerente à práxis humana, situa-se, entre dois pólos de necessidade: a necessidade do ser e a necessidade do operar, a necessidade da essência e a necessidade do fim. O ser é em razão da sua essência. Para que o ethos possa ser pensado segundo as normas de inteligibilidade será necessário referi-lo a dois espaços de racionalidade, sem que seja suprimida a sua originalidade. A complexidade teórica desse problema completa seus traços se levarmos em conta que o ethos, considerado na sua aparição histórica, mostrou-se dotado de uma racionalidade própria. O problema fundamental é então que tipo de correspondência é possível estabelecer entre a racionalidade do logos formalizada na episthéme ou no discurso
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demonstrativo e a racionalidade fenomenológica do ethos histórico? Isto é essencial à ética como ciência ou à Filosofia moral. A correspondência entre a racionalidade da episthéme e a racionalidade do ethos supõe, que a práxis, pelo discurso da ciência do ethos, não seja a práxis do indivíduo empírico, mas a práxis como ação ética, termo de mediação do ethos como costume pelo ethos como hábito. Se a relação que constitui a racionalidade do ethos, tem como momentos seus a universalidade abstrata dos costumes, a singularidade concreta da ação ética e a particularidade do hábito, à ética como ciência caberá investigar a forma de racionalidade que é característica da universalidade do ethos como costume. Do cruzamento da racionalidade que é causal e da que é teleológica, irá emergir a racionalidade própria do ethos. Mas essa grandiosa correspondência entre a ordem humana e a ordem do mundo foi abalada com a crise da segunda metade do século V a.C. O o decisivo para que a homologia entre a physis e o ethos possa ser reformulada dentro dos novos fundamentos será a introdução, por Anaxágoras, do finalismo da inteligência na concepção da physis. É sobre a analogia physis-ethos que irão repousar as duas grandes construções com as quais tem início a história da ciência do ethos: a ética platônica e a idéia aristotélica. A ética pode ser definida na sua autonomia como a ciência que estuda a práxis do homem orientada para seu fim propriamente humano. Ela é assim, uma ciência especificamente prática. Com efeito, o saber que aparece ligado ao ethos tradicional é o saber de uma norma de vida, de uma prescrição ou de um interdito: trata-se de um saber que se constitui regra de uma ação e não somente conhecimento de um ser. A agem do saber presente no ethos tradicional à ciência do ethos ou à ética implica, a pressuposição de que a racionalidade imanente da práxis, uma práxis fundamental ou justificada teoricamente, ou trazendo em si explicitamente a demonstração do agir virtuoso ou bom como agir conforme a razão. A ciência do ethos ou simplesmente ética, tal como se constitui na tradição ocidental, repousa, sobre a pressuposição de que à theoria é inerente uma virtude educadora segundo a qual, tendo como objeto o bem, ela torna bom aquele que a exerce.
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Vê-se que o problema fundamental de uma ciência do ethos é o problema da razão universal que ela é chamada a exprimir na sua relação com a existência empírica do indivíduo. Preservar a universalidade efetiva da razão prática em face das instâncias do natural, do histórico e do pessoal, eis a complexa tarefa teórica que se apresenta à ciência co ethos. A sobrevivência da ética antiga nos quadros da cultura teológica cristã e a conciliação da universalidade objetiva da razão prática com a rigorosa teonomia da moral bíblica formam um capítulo extremamente rico e complexo da história da ética ocidental. Por fim, a universalidade da razão pratica a a ser uma universalidade pura, vem a ser, atributo das estruturas cognoscitivas do sujeito construtor da ciência. Assim se apresenta, como é sabido, a extensão ao domínio da razão prática da revolução copernicana de Kant no sistema do conhecimento. A idéia de uma ética discursiva tenta, unir a racionalidade formal do discurso argumentativo e a racionalidade histórica do mundo da vida. Nesse mundo está presente o ethos longamente sedimentado da sociedade ocidental. O destino da ciência do ethos segundo a tradição clássica, ou da ética filosófica na cultura contemporânea, parece, ligado à possibilidade de se levar a cabo a síntese entre a moralidade kantiana e a eticidade hegeliana. Desta forma, é a própria possibilidade de uma teoria do ethos ou de uma ética filosófica, tal como se constitui a partir dos tempos socráticos, que se vê posta em dúvida, ou é a própria significação dessa forma de saber, integrada há vinte e cinco séculos na tradição espiritual do ocidente, que se vê obscurecida. Parece difícil itir que uma teoria do ethos no sentido filosófico da sua justificação
possa desaparecer
do horizonte cultural da nossa civilização.
Essa
responsabilidade, assumida efetivamente no exercício da reflexão filosófica, impõe-se a partir do momento em que o conflito dos ethos particulares e a violência simbólica na relação de indivíduos e comunidades entre si podem ser considerados abolidos em princípio na perspectiva de uma satisfação razoável e universal das necessidades e desejos sob a regra da justiça. A estrutura da ciência do ethos pode ser definida como articulação da exposição discursiva que tem por objeto o movimento lógico do universal que se autodetermina com conceito da práxis humana propriamente dita ordenada ao fim da sua própria perfeição. A ciência do ethos repousa sobre a estrutura lógica fundamental que expõe a relação entre o
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ethos e a práxis como movimento dialético de autodeterminação do universal. Nesse sentido, a estrutura da ciência do ethos não é mais do que a estrutura do espaço lógico no qual as dimensões do sujeito ético, da comunidade ética e do mundo ético objetivo determinam a singularidade da ação ética. Na comunidade ética, o universal se constitui como universal do reconhecimento e do consenso que se particulariza no ethos histórico ou na tradição ética como espaço se participação e comunicação e se singulariza na consciência moral social que é o universal concreto da existência da comunidade ética. No mundo ético objetivo ou no universo, o universal se manifesta na relação inter-relação dialética do fim e do bem, constituindo o princípio universal do agir ético. A estrutura conceitual básica da ciência do ethos é, em vista disso, a explicitação da idéia de liberdade assim como se manifesta historicamente, isto é, como ethos. Com efeito, a idéia de liberdade é o núcleo inteligível do ethos. Nenhum sentido pode ser descoberto na liberdade senão a partir da própria liberdade. Esse é o fundamento conceitual último de uma ciência do ethos. Quando a individualidade livre emerge da ruptura da eticidade substancial, o ethos vê esvair-se sua força unificadora e ordenadora: nasce então a Ética.