Revista Nova Escola | Edição Nº 160 | Março de 2003 | Ricardo Falzetta
Ao selecionar desafios mais interessantes e permitir que os estudantes expressem suas idéias matemáticas, você vai criar verdadeiros exercícios para a vida. Pense na seguinte questão: "Um fazendeiro possui 30 ovelhas e 45 cabeças de gado. Qual a idade do fazendeiro?" Se seus alunos estão acostumados a resolver apenas problemas convencionais, provavelmente eles diriam: "Que conta eu tenho de fazer? É de mais ou é de menos? Setenta e cinco anos... Não entendi." O enunciado, é evidente, não tem solução. Não há como descobrir a idade do fazendeiro, mas nem todos os estudantes demonstram capacidade e autonomia para chegar a essa conclusão. Tudo porque a escola não costuma ensiná-los a pensar desse jeito. No modelo tradicional, eles formam a idéia fixa de que problemas matemáticos servem apenas para a aplicação e memorização de regras e técnicas de cálculo. Ampliar essa visão implica derrubar tabus. Mais precisamente, cinco crenças identificadas pelas consultoras em Educação Matemática Kátia Stocco Smole e Maria Ignês Diniz com base na observação de escolas brasileiras e em pesquisa realizada nos Estados Unidos pela professora Raffaella Borasi, da Universidade de Rochester, no início dos anos 1990 (veja a seguir quais são elas).
A resposta de um problema sempre existe, é numérica, única e chega-se a ela por um só caminho.
A resolução deve ser rápida. Do contrário isso indica que não se sabe resolver. Se errar, não adianta investigar o erro, é preciso começar de novo. Acerto só vem com esforço e prática para a memorização dos procedimentos. Uma questão não pode gerar dúvida, pois o bom professor não pode fazer isso com a turma.
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O certo deveria ser desenvolver nos alunos a competência para resolver problemas de qualquer natureza: compreender uma situação, analisar e selecionar os dados, mobilizar conhecimentos, formular estratégias de maneira organizada, validar os resultados e, se for o caso, propor novas situações. Os resultados do Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Básico, porém, mostram que boa parte do insucesso escolar se deve à falta de capacidade de interpretar corretamente os enunciados. Mas é possível mudar esse quadro. Veja agora como fazer isso.
Nenhuma ou várias soluções Você está na Penha, bairro da zona leste de São Paulo, e quer ir a Santo Amaro, na zona sul, num dia de muita chuva. São mais de 20 quilômetros. O que fazer? Ir de ônibus, táxi, carro, bicicleta, trem, metrô. Escolher as principais avenidas ou caminhos alternativos para tentar fugir do congestionamento. Tudo isso é possível, certo? Mas o que é mais importante? Ponderar várias hipóteses: o dinheiro para a condução, a hora do compromisso, pontos de alagamento, locais perigosos. A crença de que o enunciado sempre tem resposta, numérica, e de que há apenas uma forma correta para chegar até ela é efeito direto do uso exclusivo de problemas ditos convencionais na sala de aula. Detectar esse tabu não é complicado. Derrubá-lo exige planejamento e persistência. O professor Humberto Luis de Jesus, da Escola Municipal de Ensino Fundamental Afrânio de Mello Franco, em São Paulo, fez isso no ano ado numa turma de jovens e adultos. Na primeira lista de exercícios que ou, Humberto pedia que eles descobrissem apenas a operação que resolveria as questões. No meio delas, incluiu um problema sem solução. "De início todos ficaram intimidados, não aceitaram a pergunta e chegaram a questionar que ‘metodologia de trabalho’ era a minha", conta. "Aos poucos perceberam que o raciocínio que eu pedia era algo que usamos no trabalho, na vida cotidiana." A mesma desconfiança apareceu alguns enunciados adiante: "Ana e Júlia têm, juntas, 13 fitas para cabelo. Quantas fitas cada uma tem separadamente?" Há várias possibilidades de resposta. Ana, uma e Júlia, 12. Ana, duas e Júlia, 11. E assim por diante. Mais indignação entre os alunos. Mais uma quebra de tabu, pois é possível, sim, existirem problemas para os quais haja várias respostas. Para mostrar à turma de 3ª série do Liceu Salesiano Nossa Senhora Auxiliadora, em Campinas, que um problema pode ser resolvido de várias formas, a professora Marina Agostinho Daleffe convida alguns alunos para registrar e explicar suas estratégias no " de soluções" (o quadro-negro dividido em partes onde cada aluno apresenta sua resposta). "Isso melhora a autoconfiança deles, pois percebem onde estão errando e onde estão acertando — e como melhorar", diz ela.
Rapidez: devagar todos chegam lá
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Na Matemática, como na vida, quanto mais rapidamente você resolver problemas melhor. Mas a agilidade não é condição para determinar se alguém sabe ou não chegar a uma solução. Para derrubar o tabu de que quem não resolve um problema com rapidez é porque não sabe fazê-lo, basta dar tempo aos alunos. No Colégio Marista Nossa Senhora da Glória, em São Paulo, a turma de 4ª série da professora Ana Cláudia Florindo recebe a cada quinzena um desafio matemático. Isso mesmo, 15 dias para resolver uma questão. "Eles podem resolver como quiserem, com a ajuda dos pais, dos colegas ou perguntando a mim", explica. Esse mesmo trabalho é feito com turmas de 5ª série em diante no Marista de Brasília, porém com uma semana de prazo. No Glória, a antiga caixa de recados, utilizada para troca de correspondência como incentivo à escrita e à leitura, deu origem à caixa de dúvidas matemáticas, onde todos depositam bilhetes descrevendo as dificuldades que encontraram nos problemas. "Com isso avaliamos a turma tanto de forma coletiva como individual", afirma a assessora pedagógica Maria Paula Nicolini. O resultado é visível. Nem os mais tímidos perdem a chance de se manifestar. No caminho do erro esconde-se o acerto Se errar, não adianta investigar o erro. É preciso começar de novo, certo? Errado. Um trabalho eficiente com resolução de problemas não combina com a avaliação classificatória. Não é possível simplesmente recolher atividades, verificar se a resposta está correta e devolver uma nota ao aluno. No Colégio Marista de Brasília, por exemplo, algumas atividades são corrigidas pelos próprios estudantes, que trocam os exercícios entre si. "Quando encontram um erro, peço que eles procurem onde o raciocínio falhou e expliquem ao colega", conta o professor Luiz Otton Dumont Filho, da 6ª série. Outra estratégia utilizada por Otton, uma vez a cada semestre, é a avaliação em dois tempos. Assim que termina uma prova, Otton devolve a folha de perguntas ao aluno e permite que ele escolha uma questão para refazer e entregar no dia seguinte. "A condição, acertada com todos desde o início, é que eles mantenham as respostas originais e entreguem a nova solução numa folha separada." O objetivo, segundo Otton, é que o jovem se auto-avalie, compare os caminhos que seguiu e encontre a origem do erro. Esforço sim, decoreba não Uma prova sobre quadriláteros, aplicada pela professora Shirleni Mazoni Cavalcanti, da 7ª série do Marista de Brasília, sinalizou, há dois anos, que algo estava errado com suas aulas de Matemática. "Na revisão da matéria, os alunos fizeram tudo direitinho, mas no fundo eles estavam apenas repetindo algo que não haviam entendido. Na prova, com questões diferenciadas, vieram as respostas mais estapafúrdias", conta. Shirleni percebeu que os alunos estavam somente tentando decorar os conceitos (apostando na crença de que a memorização é tudo). O problema não acontecia somente nas aulas de Shirleni. Mudar a postura de ensino foi o primeiro o. "Começamos a realizar encontros periódicos entre professores de séries diferentes", lembra-se ela. No primeiro momento, para
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saber o que cada um estava fazendo. Depois para planejar o trabalho de forma continuada. "Uma dificuldade que tive foi a de dar voz aos alunos", ite Luiz Otton. "Eu achava que poderia perder o controle da sala, não aceitava uma aula barulhenta, mas fui percebendo que eles conversavam sobre Matemática, trocando idéias, colocando suas dúvidas. Quer coisa melhor?" O benefício da dúvida Ao contrário do que diz o tabu, é possível, sim, criar questões que gerem dúvidas. Tudo depende do aluno que se quer formar. Você quer que seu aluno seja no futuro um indivíduo ivo, que aceita cabisbaixo tudo o que lhe apresentam, ou alguém crítico, que propõe hipóteses e tira as próprias conclusões? Se for esse o caso, não traga respostas prontas. Faça como as professoras do Liceu Salesiano, que, ao perceber que um determinado desafio da problemoteca estava gerando alvoroço entre os alunos, potencializaram a questão. "O problema era um pouco mais complicado e os jovens começaram uma disputa (bastante saudável, diga-se de agem) para ver quem descobria a melhor estratégia de resolução", conta a coordenadora pedagógica Isabel Cristina Jarnallo dos Santos. Até os pais foram convidados a participar. Eles pediram mais Há dois anos os alunos do Liceu Salesiano escolhem na problemoteca um desafio matemático para resolver sempre que terminam as atividades do dia antes do final da aula. A idéia, uma caixa contendo fichas numeradas com problemas selecionados ou formulados pelas professoras, nasceu de um anseio dos próprios alunos. "Trabalhando com problemas mais desafiadores no nosso planejamento de Matemática, eles aram a sentir prazer em solucioná-los e começaram a pedir mais", afirma a professora Marina. Os enunciados são extraídos de livros didáticos e, muitas vezes, am por alterações que ampliam o desafio. Veja um exemplo: Problema original Roberto coleciona figurinhas e já conseguiu 13 para o álbum. Daniel, seu irmão, faz a mesma coleção e tem 19 figurinhas. Só para provocar, Daniel disse que já tem o dobro de Roberto. Quantas figuras Daniel tem a mais que Roberto? No caso, basta subtrair 13 de 19 para chegar à resposta. Modificação na pergunta É verdade a afirmação de Daniel? Quantas figurinhas faltam para que Daniel fique com o dobro da quantidade de seu irmão? Com o novo enfoque da pergunta o aluno é desafiado a justificar por que Daniel está mentindo. Para isso terá de recorrer ao conceito de dobro e explicar que, para a afirmação de Daniel ser verdadeira, ele precisaria ter 26 figurinhas. E que, portanto, faltam sete. Teoria
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Saiba identificar problemas convencionais e transformá-los em desafios mais interessantes e úteis. Problemas convencionais são apresentados em frases curtas. Os dados para resolução sempre aparecem no texto e, em geral, na ordem em que serão utilizados. Algumas palavras-chave identificam a operação solicitada. A resposta é única e numérica. Exemplo: O perímetro de um quadrado é 34 metros. Quanto mede cada lado? A resposta é 8,5 metros. Problemas não convencionais são apresentados em textos mais elaborados, contendo personagens, provocando a imaginação do aluno e sugerindo situações inusitadas. Convidam ao raciocínio, motivam e causam encantamento. Uma boa fonte para encontrá-los são os almanaques e os gibis. Eles podem ser resolvidos por diversas estratégias e muitas vezes têm mais de uma solução. Exemplo: Vovô disse que cresceu numa casa onde havia 12 pés e um rabo. Quem poderia ter vivido com vovô? Observe como é preciso mobilizar vários conhecimentos para a resolução. Se havia um rabo, supõe-se que havia um animal. Um cachorro, por exemplo, que tem quatro pés. Os oito restantes poderiam pertencer a quatro pessoas, uma delas o próprio vovô. Mas e se o rabo fosse de um peixe no aquário? Problemas sem solução desenvolvem a habilidade de duvidar. Peça aos alunos que modifiquem o enunciado de problemas desse tipo, para que em a ter solução. Problemas com mais de uma solução valorizam o processo de resolução, que pode não ser único. O aluno se sente mais encorajado e autônomo, pois encontra o próprio caminho. Ao observar as estratégias dos colegas, adquire a capacidade de analisar a eficiência da própria solução. Problemas com excesso de dados assemelham-se às situações que o aluno vai enfrentar na vida. Geralmente são apresentados de forma pouco objetiva, que evidenciam a importância da leitura para a compreensão. Problemas de lógica necessitam de raciocínio dedutivo. Para resolvê-los o aluno deve se mostrar hábil em prever e checar situações, levantar hipóteses, buscar suposições, analisar e classificar dados.
BIBLIOGRAFIA Crianças Pequenas Reinventam a Aritmética - Implicações da Teoria de Piaget, Constance Kamii e Leslie Baker Housman, 277 págs., Ed. Artmed, tel. 0800-703-3444, 42 reais
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Ler, Escrever e Resolver Problemas, Kátia Stocco Smolle e Maria Ignez Diniz, 203 págs., Ed. Artmed, 44 reais.
Fonte: http://novaescola.abril.com.br/index.htm?ed/160_mar03/html/matematica
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